Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 49/19.0BCLSB |
Secção: | CA |
Data do Acordão: | 12/10/2019 |
Relator: | PAULA DE FERREIRINHA LOUREIRO (relatora por vencimento) |
Descritores: | DISCIPLINA DESPORTIVA- COMPORTAMENTO DO PÚBLICO; INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE NORMAS DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DA LIGA; VIOLAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE AUDIÊNCIA E DE DEFESA; VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA; VIOLAÇÃO DOS DIREITOS AO CONTRADITÓRIO E A UM PROCESSO EQUITATIVO; NÃO APLICAÇÃO DA ISENÇÃO DE CUSTAS CONSTANTE DO ART.º ART.º 4.º N.º 1, AL. F), DO RCP. |
Sumário: | I- O processo sumário configura uma forma especial do processo disciplinar, regulando-se pelas disposições que lhe são próprias e, na parte nelas não previstas e com elas não incompatíveis, pelas disposições respeitantes ao processo comum, consonantemente com o previsto no art.º 213.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional. II- A audiência do arguido está claramente prevista e descrita como um princípio essencial e uma formalidade obrigatória no âmbito do procedimento disciplinar comum, como decorre do estatuído nos art.ºs 236.º a 246.º do aludido Regulamento Disciplinar, subsistindo, até, diversos momentos em que o arguido, antes da emissão da decisão sancionatória, intervém no procedimento disciplinar de que é alvo, como dimana do disposto nos art.ºs 227.º, 230.º e 231.º do mesmo Regulamento. III- Ora, constituindo o processo sumário também um procedimento disciplinar, impera assentar que tal procedimento assume natureza sancionatória e pública, o que convoca a aplicação de determinadas garantias constitucionais, por razões de similitude de essência com o próprio processo penal, mormente, as consagradas no art.º 32.º, n.º 10 e no art.º 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa. IV- A Doutrina (entre outros, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, artigos 1.º a 107.º, janeiro, 2007, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, e JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, dezembro, 2007, Coimbra Editora) e a Jurisprudência do Tribunal Constitucional são absolutamente claras na afirmação da fundamentalidade da garantia da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, decorrendo essa fundamentalidade, entre o mais, do consagrado nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição, e significando que “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas” (como declarado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, n.º 180/2014, n.º 457/2015 e n.º 338/2018). V- Não obstante constituir um princípio essencial, assumido pelo próprio Regulamento Disciplinar, que a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência prévia pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar, a verdade é que o art.º 214.º do Regulamento exclui expressamente esta garantia no que se refere ao processo sumário. VI- Com efeito, o art.º 214.º do Regulamento não só afasta explicitamente a audiência do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, como a própria tramitação do procedimento disciplinar sumário não permite enxertar ou acomodar qualquer ato procedimental concretizador daquela garantia constitucional, como dimana do exame do disposto nos art.ºs 257.º a 262.º do mesmo Regulamento. VII- O que implica que o arguido apenas conhece a existência de imputações disciplinares contra si no momento em que é notificado da própria decisão disciplinar, e sem que tenha tido qualquer hipótese de esgrimir uma defesa em momento anterior ao daquela notificação. VIII- Quer tudo isto significar, portanto, no que concerne ao procedimento disciplinar sumário, que a norma plasmada no art.º 214.º do Regulamento Disciplinar, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do ato punitivo, é materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, preceituados nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa. IX- Sendo assim, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da aludida norma vertida no art.º 214.º, na parte em que exclui e oblitera a audiência do arguido antes da promanação do ato punitivo. X- O que conduz a que o ato punitivo proferido em 21/09/2017, e mantido pela Deliberação emitida em 10/10/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol seja nulo, por violação dos direitos de audiência e de defesa da Recorrente. XI- A presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga (…), enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa, inscrita no art.º 13.º, al. f) do Regulamento Disciplinar, é igualmente aplicada em procedimento disciplinar sumário, atento o prescrito no art.º 213.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, e subjaz ao regime restritivo da realização de diligências complementares em sede de procedimento sumário, descrito no art.º 260.º do mesmo Regulamento. XII- Subsiste uma certa similitude substancial entre o valor reforçado de que beneficiam os autos de notícia e a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, prevista esta no art.º 13.º, al. f) do Regulamento Disciplinar. XIII- Tal similitude conduz-nos à conclusão de que a presunção de veracidade agora em exame, na medida em que traduz mera prova prima facie, suscetível de ser abalada com a demonstração de factualidade diversa, não encerra em si, automaticamente, qualquer afronta aos princípios da defesa, do contraditório, do processo equitativo, da culpa e da presunção da inocência. XIV- Realça-se, porém, que a conformidade constitucional da estipulação daquela presunção de veracidade impõe, impreterivelmente, que ao arguido seja concedida a possibilidade de poder esgrimir as suas armas defensivas, por forma a contraditar os factos presumidos, ou os factos descritos nos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga. XV- É que, a não ser assim, tal implicaria assumir que os factos presumidos, ou cuja veracidade se presume, decorrem de uma presunção inilidível, uma vez que tais factos estariam definitivamente fixados a partir da sua consignação nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, e sem que se considere, sequer, a possibilidade de demonstração de uma realidade diversa. XVI- Revertendo ao caso posto, e tendo em consideração que a decisão punitiva em crise foi proferida em sede de procedimento disciplinar sumário- em que não há lugar à audiência do arguido em momento prévio à emissão do ato punitivo, e em que o arguido apenas tem conhecimento das imputações disciplinares que sobre si recaem no momento em que é notificado da própria decisão punitiva, não tendo qualquer oportunidade, antes desta ser proferida, de manifestar a sua posição, contraditar factos ou apresentar quaisquer meios de prova-, resulta forçosa a conclusão de que os factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, na medida em que não podem ser contraditados antes da produção do ato punitivo, derivam, em bom rigor, de uma presunção inilidível, estando, na realidade, definitivamente fixados com a respetiva inserção nos aludidos relatórios. XVII- Deste modo, a presunção dos factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga pode impor a responsabilidade do Clube de Futebol, independentemente da sua real participação nos factos e mesmo na ausência de qualquer ligação causal ao comportamento adotado por um espectador, supostamente demonstrativo do incumprimento de um dever por banda do mesmo Clube. XVIII- Face a isto, impõe-se concluir que, no domínio do procedimento disciplinar sumário (descrito, essencialmente, nos art.ºs 257.º a 262.º do RD), a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, por traduzir uma presunção inilidível de factos, viola o conteúdo mínimo do princípio da culpa, bem como os princípios da presunção da inocência, do contraditório e do processo equitativo, consonantemente com o preceituado nos art.ºs 32.º, n.º 2 e 20.º, n.º 4 daa Constituição da República Portuguesa. XIX- Daí que, a norma plasmada no art.º 13.º, al. f) do Regulamento Disciplinar, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no art.ºs 32.º, n.ºs 10 e 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art.º 20.º, n.º 4 da mesma Lei Fundamental, devendo este Tribunal recusar a aplicação ao caso posto daquela norma vertida no art.º 13.º, al. f). XX- O que conduz a que o ato punitivo proferido em 21/09/2017, e mantido pela Deliberação emitida em 10/10/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol seja nulo, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, do contraditório e do processo equitativo. XXI- É de salientar que a punição disciplinar no direito desportivo não prescinde da verificação da culpa do infrator, conforme deriva do disposto nos art.ºs 10.º, 16.º, n.º 1, 17.º e 187.º, n.º 1, al. b) do Regulamento Disciplinar, e está em concordância com o preceituado nos art.ºs 52.º, 53.º e 55.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas e, especialmente, com o art.º 32.º da Constituição. XXII- O ónus de carrear factos para o procedimento disciplinar- e de demonstrá-los- ilustrativos da inércia da Recorrente no sentido de adotar medidas dissuasoras e/ou impeditivas dos comportamentos censuráveis dos seus adeptos pertence à Recorrida Federação Portuguesa de Futebol e não à Recorrente. XXIII- O acórdão recorrido, nem no segmento atinente ao probatório, nem em qualquer outro lado, integra qualquer factualidade ou circunstancialismo tangentes aos deveres inobservados pela Recorrente, limitando-se, no que se refere à violação de deveres por parte desta, a transcrever diversos normativos, concretamente, os art.ºs 187.º e 172.º do RD, e os art.ºs 34.º, 35.º e 36.º do Regulamento de Competições da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, não realizando, sequer, a efetiva subsunção do caso em exame nas normas relevantes daqueles preceitos. XXIV- Em bom rigor, o acórdão recorrido- de resto, no seguimento do que sucede já na deliberação da Recorrida de 10/10/2017- não indica, nem apura, quais os deveres que foram incumpridos pela Recorrente durante o desafio em discussão, nem de que modo os incumpriu, se por ação, se por omissão; de igual modo, não enumera qualquer atuação da Recorrente, ou qualquer omissão da atuação devida pela Recorrente, com a qual se possa estabelecer um nexo causal do comportamento dos espectadores perpetradores das deflagrações e dos arremessos, e que sirva de esteio à formulação do juízo de censurabilidade inerente à necessária verificação da culpa do agente infrator. XXV- No que concerne à prova por presunção judicial, a mesma é igualmente admissível nos processos sancionatórios, porque compatível com as garantias constitucionais, desde que possa “sempre ser infirmada por contraprova”, sendo que, “na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.” XXVI- O que quer dizer que a formulação da imputação culposa não pode ser realizada por presunção judicial, sem que haja, ao menos, factos demonstrativos da subsistência de uma conduta omissiva do arguido. XXVII- A utilização de uma presunção judicial quanto à qualidade de sócio ou simpatizante do clube redunda, em bom rigor, na produção de um efeito incriminador automático, o que afronta o princípio da presunção da inocência, cristalizado no art.º 32.º, n.ºs 2 e 10 da Constituição da República Portuguesa. XXVIII- A atuação judicial da Recorrida Federação Portuguesa de Futebol, no âmbito dos presentes autos, não se encontra contida na isenção prevista no art.º 4.º n.º 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais. |
Votação: | MAIORIA |
Aditamento: |
1 |
Decisão Texto Integral: | *** *** Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
-I- i. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 04-02-2019 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 187.º-1 a) do RD, alegadamente cometida no jogo realizado a 28.10.2017 no Estádio Bessa XXI, punindo-a em multa no valor de € l .148, e fixando as custas no total de € 5.104,50.-II- ii. Os factos julgados como provados não preenchem todos os pressupostos típicos das infracções disciplinares pelos quais a arguida foi condenada, nomeadamente, o pressuposto da violação do dever de implementação de meios de prevenção da prática de factos social e desportivamente incorrectos por parte dos seus sócios e simpatizantes e de comissão de factualidade típica a título doloso ou, pelo menos, negligente.iii. Porquanto a culpa é pressuposto de responsabilização pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 187.º-1, a) do RD, a punição pela prática da infracção pressupõe que seja julgada como provada - com fundamento em robustas provas - uma actuação inadimplente e culposa do clube na verificação dos factos. iv. A sofreguidão do Tribunal a quo na condenação da recorrente é tal que, mesmo perante hiatos factuais e probatórios no que à culpa da recorrente concerne nos factos ocorridos determinou que fossem mantidas as sanções disciplinares. v. Não se julgando como provada factualidade essencial ao preenchimento dos tipos legais (187.º-1, a) do RD), vê-se necessariamente prejudicada a decisão recorrida. - III - vi. Considerando a infracção p. e p. pelo art. 187.º-1, a) do RD em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da Futebol Clube ……….. - Futebol SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da Futebol Clube …………… - Futebol SAD.vii. O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar, pelo que, não tem arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada. viii. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência. ix. É precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente. x. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar esta quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova. xi. À míngua de meios de prova demonstrativas da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a demandante falhou nos seus deveres regulamentares, entendendo que caberia à demandante ilidir a presunção de culpa pela qual se rege o Tribunal arbitral; recorrendo a um critério de primeira aparência. xii. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da demandante somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação. xiii. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a demandante é titular e, do do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação. xiv. Sucede que o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), no princípio do Estado de Direito (art. 2.º da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20.º - 4 da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881 e Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, WWW.dgsi.pt). xv. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA's). xvi. A figura da "prova de primeira aparência" ou "prova prima facie" é própria do direito civil, inserindo-se no quadro das presunções judiciais (art. 349.º do Código Civil) e pode, embora com cautelas e cum grano salis, funcionar nos pleitos cíveis, mas é um corpo completamente estranho no direito e processo sancionatórios, desde logo porque contraria os seus princípios estruturantes da culpa e da presunção de inocência. xvii. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adapte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, e que não se imponha à demandante (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante, xviii. Se assim não se fizer, incorrer-se-á em inconstitucionalidade: pois é inconstitucional - por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º- 4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) - a interpretação dos artigos 222.º-2 e 250.º-1 do RDLPFP de 2016 segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação. xix. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.º, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação: a a actuação culposa da recorrente. xx. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções " que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelo art. 187.º- l, a) do RD. xxi. É inconstitucional, por violação do princípio jurídico constitucional da culpa (art. 2.º da CRP) e do principio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32.º-2 e -10 da CRP), a interpretação dos artigos 13.º f) e 187.º- 1 a) o RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais; e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2.º e 30.º-3 da CRP), -IV - xxii. O parâmetro da violação do dever de prevenção adaptado pelo Tribunal a quo é o mesmo para a imputação da infracção p. e p. pelo art. 187.º, n.º 1, a), do RD, correspondente ao comportamento incorrecto dos adeptos consubstanciado em cânticos grosseiros e ofensivos de terceiros.xxiii. Acontece que é completamente impossível à recorrente impedir manifestações vocais desse tipo e fica sempre por demonstrar a efectividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido, não se podendo assacar responsabilidade disciplinar ao clube face a tal impossibilidade (neste sentido o acórdão de 18-07- 2018, nos processo n.º 69/2017 e 72/2017 do Tribunal Arbitral do Desporto). xxiv. Responsabilizar disciplinarmente os clubes pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa puni-los por algo que, objectivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar, o que equivale a uma responsabilidade objectiva. xxv. Pelo que, não podia o Tribunal a quo confirmar a condenação da recorrente pela prática da infracção p. e p. pelo art. 187.º-1, a) do RD. -V- xxvi. A modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01 - ao invés do total da multa por que foi a recorrente condenada - foi feita em violação do previsto no art. 33.º, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixandose o valor da acção no montante de € 1.148,00 daí se extraindo as devidas consequências.xxvii. Os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP). xxviii. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.º e 268.º-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD. xxix. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.º -1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo 1 (2.ª linha), da Portaria n.º 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.º/ l/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.º da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.º da CRP). Termos em que se requer a V. Exas. seja o presente recurso julgado procedente, decidindo pela absolvição da recorrente por falta de verificação dos pressupostos típicos da infracção pela qual foi condenada. Sem prescindir requer-se seja o presente recurso julgado procedente, revogando-se a decisão arbitral recorrida e assim também a condenação da recorrente pela infracção disciplinar p. e p. pelo art. 187.º, n.º 1, a), do RDLPFP, e anulando-se o correspondente acto administrativo do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, conforme o alegado em III supra. Sempre subsidiariamente, caso se entenda não haver motivo para, de imediato, absolver a recorrente, requer-se a revogação do acórdão recorrido e o reenvio do processo ao TAD para que reaprecie a matéria de facto com base em critérios de valoração da prova consentâneas com o princípio da presunção de inocência do arguido, exigindo-se, nomeadamente, a formação de uma convicção para além de toda a dúvida razoável e a não imposição de um ónus da prova à demandante. Sendo interpretados os arts. 13.º e 187.º, n.º l, alíneas a) do RD da LPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, ou ainda que determinam uma responsabilização disciplinar dos clubes independentemente de qualquer conduta, activa ou omissiva, própria e independentemente do dolo ou negligência que lhe possam ser concretamente assacados em relação às condutas dos seus sócios ou simpatizantes, deverá a sua aplicação ser recusada (204.º da CRP), com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da culpa e da intransmissibilidade da responsabilidade penal (arts. 32.º-2 e 10 e art. 30.º-3 da CRP), ambos inerentes ao princípio do Estado de Direito plasmado no art. 2.º da CRP. Sem prescindir, e uma vez mais subsidiariamente, requer-se a V. Exas. se dignem julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto art. 2.º, n.ºs l e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.ª linha, da Portaria n.º 301/2015 com o previsto nos artigos 76.º/l/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º -1 e 268.º- 4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.º da CRP), com as legais consequências.”. Por seu turno, a Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais pugnou pela manutenção da decisão proferida pela Instância a quo, defendendo que beneficia de isenção de custas, ao abrigo do art.º 4.º n.º 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais e requerendo, consequentemente, o reembolso da taxa de justiça que, à cautela, pagou nesta instância recursiva. O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer, nos termos do qual pugna pelo provimento do recurso no tocante à pretensão de destruição do ato punitivo. Esteia a sua visão em dois argumentos essenciais. O primeiro, na circunstância de inexistirem factos suscetíveis de ancorar um juízo de culpa da Recorrente; e o segundo, porque inexiste demonstração de que os autores materiais possuam a qualidade de adeptos ou simpatizantes da Recorrente. No que concerne às custas inerentes ao recurso à arbitragem necessária, defende o Magistrado o não provimento do vertente recurso. * Delimitação do objeto do recurso e questões a apreciar e decidir: Examinado o articulado alegatório da Recorrente, em particular, as conclusões vertidas no mesmo, inexiste qualquer dúvida de que a Recorrente vem impetrar o acórdão prolatado em 04/02/2019, nos termos do qual foi julgado improcedente o recurso e mantida a deliberação tomada pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que aplicou à Recorrente a multa no valor de 1.148,00 Euros pela prática da infração disciplinar prevista no art.º 187.º, n.º 1, al. a) do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, da Liga Portuguesa de Futebol Profissional. Assim, as questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, consubstanciam-se, em suma, em apreciar se o acórdão a quo padece de erro de julgamento quanto: I) à apreciação referente à nulidade da deliberação emitida em 28/11/2017, por a mesma violar o direito de defesa, o princípio da presunção da inocência e o princípio da culpa; II) à apreciação referente aos pressupostos da ilicitude e da culpa; III) à fixação do valor da causa e à constitucionalidade da “norma resultante da conjugação do disposto art. 2.º, n.º s 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.ª linha) da Portaria n.º 301/2015, com o previsto nos artigos 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.º da CRP)”; IV) à isenção de custas de que beneficia a Recorrida. II- FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Arbitral do Desporto, a qual se reproduz ipsis verbis: “4.1.1 No dia 28 de outubro de 2017, no Estádio Bessa XXI, realizou-se o jogo entre …………… Futebol Clube - Futebol SAD e Futebol Clube ………….. - Futebol, SAD, a contar para a 10.ª jornada da "Liga NOS. 4.1.2 Os adeptos afetos à Demandante, situados na Bancada Topo Norte, entoaram em uníssono os seguintes cânticos: "……… é merda" aos 17 minutos por 5 vezes e aos 79 minutos por 5 vezes; "E quem não salta é lampião" aos 19 minutos por 5 vezes; "…………… vai pro caralho" aos 28 minutos por 5 vezes e aos 84 minutos por 5 vezes; e "Filhos da puta até morrer" aos 40 minutos por 5 vezes. 4.1.3 Aos 51 minutos, os adeptos da Demandante, situados na Bancada Topo Norte, arremessaram um isqueiro para dentro do terreno de jogo, caindo junto à baliza do ……………. FC, sem ter atingido qualquer agente desportivo. O isqueiro foi entregue ao delegado de campo pelo 4.º Arbitro. 4.1.4 Ao minuto 24 da primeira parte os adeptos afetos Demandante, situados na Bancada Topo Norte, direcionaram um laser de cor verde em direção dos olhos, perturbando a visão do árbitro momentaneamente, aquando da marcação de uma falta contra a sua equipa. 4.1.5 Na presente época desportiva, à data dos factos, a Demandante já havia sido sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares.”. III- APRECIAÇÃO DO RECURSO A Recorrente apresentou no Tribunal Arbitral do Desporto recurso da deliberação proferida em sede de recurso hierárquico impróprio, em 28/10/2017, pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que manteve a pena de multa anteriormente aplicada à Recorrente, no montante de 1.148,00 Euros, pela prática da infração disciplinar prevista no art.º 187.º, n.º 1, al. a) do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante, apenas RD). O Tribunal Arbitral do Desporto prolatou acórdão em 04/02/2019, nos termos do qual julgou improcedente o recurso apresentado pela Recorrente e manteve a pena disciplinar que lhe foi aplicada. Discorda a Recorrente do julgado na Instância a quo, imputando-lhe erros de julgamento. Examinemos, então, a decisão recorrida. * I) Quanto à invocada violação do direito de defesa, do princípio da culpa, do princípio da presunção da inocência e do direito a um processo equitativoNas conclusões vi, vii, viii, ix, x, xi, xii, xiii, xiv, xv, xvi, xvii e xviii do seu recurso jurisdicional vem a Recorrente atacar o acórdão a quo, sustentando que o mesmo padece de erro de julgamento no que se refere - entre outras problemáticas de que adiante trataremos - à assunção de que os perpetradores dos atos eticamente incorretos durante a competição desportiva em causa são seus sócios ou simpatizantes. Aliás, neste ensejo, clama a Recorrente que a presunção de veracidade dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga afronta o princípio da presunção de inocência, e que, por essa razão, bem como pela violação do direito de defesa, a norma constante do art.º 13.º, al. f) do RDLPFP é inconstitucional. Ora, diga-se que esta problemática tem sido objeto de atenção da Doutrina e da Jurisprudência. A norma vertida na al. f) do art.º 13.º do RDLPFP consagra, como princípio fundamental do procedimento disciplinar regulado no aludido RD, a presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa. A questão que se coloca neste horizonte é o da consagração de uma presunção de veracidade de factos relatados em sede de procedimento disciplinar, especialmente tendo em conta os valores jusfundamentais que militam nesta área, visto que o direito disciplinar desportivo assume natureza sancionatória, paralela àquela que pacificamente se reconhece ao direito disciplinar público em geral. Efetivamente, a Recorrente sufraga que a cristalização de uma tal presunção de veracidade dos factos contraria o princípio da presunção de inocência de que beneficia a Recorrente enquanto arguida em processo disciplinar, bem como coarta o seu direito de defesa. A verdade é que esta querela, não obstante a constatação de uma certa pacificação recente na Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, continua a fundar posições divergentes na Doutrina, sucedendo que, enquanto uns manifestam-se concordantes com o estabelecimento de tal presunção (contam-se nesta fileira TITO CRESPO, o Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol: Uma Breve Introdução, in Direito do Desporto, Vol. 2, Coordenador José Manuel Meirim, abril, 2019, Universidade Católica Editora, p. 125; e PEDRO COELHO SIMÕES, Futebol Profissional: processo sumário sustentado em auto por infração em flagrante delito (?), in Revista de Direito do Desporto, n.º 2, maio-agosto, 2019, AAFDL Editora, p. 22), já outros não convivem bem com a dita (aqui se integra ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA, A presunção de veracidade dos factos no direito disciplinar administrativo: uma prova pouco inocente- Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (1.ª Secção) de 18.10.2018, P. 144/17.0BCLSB 0297/18, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 131, setembro/outubro 2018, Cejur, pp. 19 a 35). Efetivamente, decorre do disposto no art.º 13.º, al. f) do RDLPFP que a descrição factual contida nos relatórios elaborados pela equipa de arbitragem e delegados da Liga, que respeite a factos diretamente percecionados por estes agentes, se presumem verdadeiros até que a sua veracidade seja fundadamente posta em causa. Ora, de acordo com o entendimento propugnado por TITO CRESPO (idem, p. 125), “tais factos, porque gozam de um valor probatório especial e reforçado, de uma presunção de veracidade (presunção iuris tantum), estão subtraídos ao princípio da livre apreciação da prova (constante do artigo 220.º, n.º 2 do RDFPF)”. Daqui decorre um “especial esforço probatório que, nestes casos, se impõe aos acusados: caber-lhes-á fazer, ao menos, prova prima facie, que coloque o facto constante do documento em dúvida razoável (contraprova). Sem isso, atenta a natureza de prova tarifada a que supra se fez referência, o facto será, necessariamente, dado como demonstrado”. De igual modo, defende PEDRO COELHO SIMÕES (idem, pp. 22 e 23) que “esta presunção é, na verdade, semelhante à que os art.º 371.º do Código Civil e 169.º do Código de Processo Penal preveem para os documentos autênticos, ou seja, para aqueles que são exarados por autoridade ou oficial públicos, nos limites das suas competências. Em abono da verdade, inexistindo dúvidas quanto à natureza pública dos poderes exercidos pela Federação Portuguesa de Futebol e, em consequência, pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (…), seria possível, sem particular dificuldade argumentativa, incluir todos os documentos referidos no sobredito artigo 258.º do RD no universo de documentos autênticos que o art.º 371.º do Código Civil refere e que, de igual modo, o art.º 169.º do CPP considera”. De resto, no entendimento deste autor, são os documentos elencados no dito art.º 13.º, al. f) “que permitem, ou, verdadeiramente, autorizam, a possibilidade de se sancionar uma infração (…) em sede de processo sumário”. Optando por não escalpelizar a questão da qualificação dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga como documentos autênticos - uma vez que tal qualificação é, a nosso ver, muito discutível -, impõe-se notar que a visão oferecida pelos citados autores não é partilhada por todos e, principalmente, não é isenta de críticas profundas. Com efeito, como bem salienta ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA (idem, p.34) “a questão que se coloca no caso em apreço é se a existência de uma presunção de veracidade dos factos permite satisfazer sempre o grau de prova da Administração (…) exigido no procedimento disciplinar e se, inclusivamente, a Administração pode, através de regulamento, limitar o seu dever de investigação através de uma solução idêntica à que se encontra em apreciação”. Especialmente, tendo a Federação Desportiva em causa o claro intuito de “instrumentalizar a presunção regulamentar para fundamentar a existência de um incumprimento de deveres de vigilância de clubes de futebol sobre adeptos”. Conclui o mesmo autor (idem, p.35), portanto, que “a existência, num regulamento administrativo, de um mecanismo de presunção de veracidade de factos com base num relatório de um delegado ao jogo ou de um árbitro violará o princípio da presunção da inocência sempre que se pretenda com este facto eximir a Administração de desenvolver uma actividade probatória que não seja arbitrária e que não tenha como único objectivo sancionar aquele que se submete ao direito disciplinar”. As posições vindas de elencar são, realmente, bem demonstrativas da dissonância subsistente nesta matéria. O que significa que uma análise mais profunda da temática não se mostra despicienda. Bem pelo contrário. O primeiro labor a realizar é o que se refere ao enquadramento axiológico do procedimento disciplinar desportivo, quer na sua vertente regulamentar, quer, principalmente, na sua vertente legal e constitucional. Assim, Perscrutado o RDLPFP (na versão aplicável aos factos em discussão), ressalta desde logo a consagração, no art.º 6.º, de um princípio de autonomia do regime disciplinar desportivo face à responsabilidade civil, penal e contraordenacional, seguindo-se um elenco de princípios tipicamente associados ao direito sancionatório de cariz disciplinar, como sejam, os princípios da tipicidade, da irretroatividade, da legalidade, da proporcionalidade e do non bis in idem, de acordo com os art.ºs 8.º a 12.º do aludido RD. Ademais, o art.º 13.º acrescenta um conjunto de princípios fundamentais, como o da separação e independência entre as funções disciplinares instrutórias e decisórias, a garantia de impugnação administrativa, o direito de constituição de advogado por banda do arguido, os direitos de audiência e de defesa do arguido em conformidade com a densificação regulamentar, o direito ao silêncio, a liberdade de produção e utilização de todos os meios de prova, o princípio da autoridade do árbitro e a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, que sejam por eles percecionados no exercício das suas funções. É de notar, finalmente, que o art.º 16.º, n.º 1 do RD estipula a aplicação subsidiária do disposto no Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, mutatis mutandis, no domínio da “determinação da responsabilidade disciplinar e na tramitação do procedimento disciplinar” regulados pelo mesmo RD, deixando salvaguardada a aplicação, em qualquer caso, dos princípios enumerados no referido art.º 13.º, que se sobrepõem a enformam, necessariamente, o recurso ao regime subsidiário. No que concerne à natureza do procedimento disciplinar desportivo, incluindo a forma de processo sumário, é de realçar que o mesmo tem natureza pública, gozando de autonomia face aos procedimentos destinados à efetivação da responsabilidade penal, civil ou da responsabilidade disciplinar de direito privado, nos termos consagrados no art.º 212.º do RD. No caso posto, verifica-se que a Recorrente foi punida com fundamento no cometimento da infração que se encontra descrita no art.º 187.º, n.º 1, al. a) do RD. De facto, aquele normativo prescreve a aplicação da pena de multa ao clube futebolístico “cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina”, mormente, mediante o arremesso de petardos, tochas e outros objetos e o proferimento de expressões insultuosas. Saliente-se, também, que a punição da Recorrente constitui o desenlace de um procedimento disciplinar, sob forma especial, concretamente, o processo sumário, previsto nos art.ºs 213.º, n.º 1, al. b) e 257.º a 262.º do RD. Relativamente ao processo sumário, que configura uma forma especial do procedimento disciplinar, importa dizer que o mesmo é instaurado tendo por base, normalmente, o relatório da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga (cfr. n.º 1 do art.º 258.º), sendo estes relatórios transmitidos com a máxima urgência à Secção Disciplinar que, por intermédio de um dos seus membros (…), procederá à aplicação da correspondente sanção mediante despacho sinteticamente fundamentado (art.º 259.º, n.º 1). Esta decisão deve ser proferida no prazo de cinco dias, contados desde a data da receção dos relatórios, sob pena de caducidade do processo sumário (n.º 2 do art.º 259.º). Nas situações em que seja absolutamente indispensável esclarecer o relatório da equipa de arbitragem, os relatórios dos delegados da Liga (…), o relator na Secção Disciplinar poderá ordenar as diligências complementares que entender pertinentes e não sejam prejudiciais à economia da forma sumária do processo (cfr. n.º 1 do art.º 260.º). A necessidade de esclarecimento pode decorrer, nomeadamente, quando os relatórios forem evasivos ou ambíguos, não concretizarem suficientemente as circunstâncias de tempo, lugar e modo relativas aos factos descritos ou não indiquem com precisão os respetivos agentes (cfr. n.º 2 do mesmo art.º 260.º). De todo o modo, a emissão da decisão punitiva deve suceder no prazo máximo de 15 dias após a receção dos documentos respeitantes às diligências complementares, sob pena, também, de caducidade do processo sumário (n.º 3 do art.º 260.º). Finalmente, é de salientar ainda duas características essenciais do processo sumário: a exigência de fundamentação das decisões punitivas, em conformidade com o imposto pelos art.ºs 262.º, n.º 1 e 222.º, n.º 1 do RD, e a dispensa da audição do arguido em momento prévio à emissão da decisão sancionatória disciplinar, nos termos do estatuído nos art.ºs 13.º, al. d), 213.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3 e 214.º do RD. Relativamente ao primeiro aspeto focado- a exigência de fundamentação da decisão sancionatória tomada em processo disciplinar sumário-, estabelece o art.º 222.º, n.º 1 do RD que a mesma deverá descrever as circunstâncias relativas ao facto sancionado e proceder à sua qualificação disciplinar através do preceito regulamentar violado. No que concerne à audiência do arguido, prévia à tomada da decisão sancionatória, esclareça-se que, atenta a sistematicidade e a teleologia subjacente, apresenta-se como indubitável que tal trâmite procedimental está absolutamente arredado da forma sumária do procedimento disciplinar. Realmente, o art.º 13.º, al. d) do RD institui como pilares fundamentais do procedimento disciplinar os direitos de audiência e de defesa do arguido, relegando a concretização procedimental desses princípios para os termos a estabelecer no próprio Regulamento Disciplinar. Nessa senda, constituindo o processo sumário uma forma especial do processo disciplinar, o sobredito processo sumário regula-se pelas disposições que lhe são próprias e, na parte nelas não previstas e com elas não incompatíveis, pelas disposições respeitantes ao processo comum, consonantemente com o previsto no art.º 213.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do RD. Ora, a audiência do arguido está claramente prevista e descrita como uma formalidade obrigatória no âmbito do procedimento disciplinar comum, como decorre do estatuído nos art.ºs 236.º a 246.º do RD, subsistindo, até, diversos momentos em que o arguido, antes da emissão da decisão sancionatória, intervém no procedimento disciplinar de que é alvo, como dimana do disposto nos art.ºs 227.º, 230.º e 231.º do mesmo RD. Todavia, não obstante constituir um princípio essencial, assumido pelo próprio RD, que a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência prévia pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar, a verdade é que o mesmo art.º 214.º do RD exclui expressamente esta garantia no que se refere ao processo sumário. Efetivamente, em atenção aos elementos sistemáticos e teleológicos que perpassam o RD, não é possível descortinar outra interpretação que não a agora exposta, nem conferir outro sentido coerente à expressão empregue pelo legislador regulamentar, ao cristalizar que “salvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido”. E mesmo que, porventura, e por apelo aos princípios que regem o procedimento disciplinar comum, fosse nosso intento enxertar no processo disciplinar sumário um momento de audiência do arguido, em que este, caso pretendesse, pudesse exercer o seu direito de defesa previamente à emissão da decisão sancionatória, a verdade é que de imediato se perceciona que tal intento está destinado ao fracasso absoluto. É que, em bom rigor, a própria tramitação do processo sumário, descrita nos art.ºs 257.º a 262.º do RD, não comporta, nem permite acomodar qualquer momento em que o arguido, previamente à edição da decisão sancionatória, possa exercer o seu direito de defesa. Assente, então, que inexiste audiência do arguido no processo disciplinar sumário, impera apurar se tal omissão é respeitadora do quadro legal infraconstitucional que rege a matéria e, especialmente, se devem ser aplicadas as vinculações constitucionais que derivam do disposto nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP em diante). No que tange ao nível legal infraconstitucional, é de assinalar o regime mestre traçado pela Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro - que define as bases das políticas de desenvolvimento da atividade física e do desporto (doravante, LBAFD)-, especialmente o prescrito nos seus art.ºs 3.º, 18.º e 19.º. Com efeito, é assinalado no art.º 3.º o objetivo primacial, entre outros, de concretização, em diversos níveis, do princípio da ética desportiva, mormente através da adoção, por parte do Estado, de medidas tendentes a prevenir e a punir as manifestações antidesportivas, designadamente, a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo, a xenofobia e qualquer forma de discriminação. Nesse seguimento, e quanto às infrações à ética desportiva, incluindo a manifestação de violência, é claramente admitida a repressão de natureza disciplinar, exercida através de decisões e deliberações, sujeitas às normas do contencioso administrativo e, por conseguinte, recorríveis judicialmente (cfr. art.º 18.º, n.ºs 1 e 3 do LBAFD). De resto, os poderes regulamentares da Recorrida, incluindo os de natureza disciplinar, possuem natureza pública, consonantemente com o disposto no art.º 19.º, n.ºs 1 e 2 do diploma em análise. Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de junho, que estabelece o regime jurídico das federações desportivas, concede às federações desportivas- e, portanto, à Recorrida- determinados poderes de natureza pública, mormente, regulamentares e disciplinares, submetendo o seu exercício às normas de contencioso administrativo (cfr. art.ºs 10.º, 11.º e 12.º). O regime jurídico das federações desportivas (daqui em diante, apenas RJFD) prevê, no âmbito dos poderes disciplinares, que as federações disponham de regulamentos disciplinares próprios com vista a sancionar a violação das regras de jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas, nomeadamente as relativas à ética desportiva, dentre as quais se integram todas as normas que visem sancionar a violência no âmbito do fenómeno desportivo (cfr. art.º 52.º, n.ºs 1 e 2 do RJFD), sucedendo que, por força do estipulado nos art.ºs 26.º, n.º 2, 27.º, 28.º e 29.º do mesmo RJFD, o raciocínio exposto é igualmente aplicável às ligas profissionais, quando estas existam e sempre que o contrato pelas mesmas celebrado com a respetiva federação desportiva assim o permita. De acordo com o preceituado no art.º 54.º, n.º 1 do RJFD, o poder disciplinar das federações pode ser exercido diretamente sobre os clubes, dirigentes, praticantes, treinadores, técnicos, árbitros, juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos que desenvolvam atividade desportiva, sendo que, em sede de regulamentação disciplinar, a levar a cabo através da edição de regulamentos próprios, as federações devem prever os seguintes aspetos (cfr. art.º 53.º): a submissão dos agentes desportivos a deveres gerais e especiais de conduta, especialmente para tutela da ética desportiva; a observância dos princípios da igualdade, irretroatividade e proporcionalidade na aplicação de sanções; a exclusão de penas de irradiação ou de duração ilimitada; a enumeração das circunstâncias agravantes, atenuantes ou extintivas da responsabilidade do infrator; a existência de processo disciplinar para aplicação de sanções quando estejam em causa infrações mais graves ou quando a sanção a aplicar determine a suspensão da atividade por período superior a um mês; a consagração das garantias de defesa do arguido, designadamente exigindo que a acusação seja suficientemente esclarecedora dos factos determinantes do exercício do poder disciplinar e estabelecendo a obrigatoriedade de audiência do arguido nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; e a garantia de recurso para o conselho de justiça quando estejam em causa questões estritamente desportivas. Ora, concatenando o regime vindo de elencar, descrito no RJFD, com o RD agora em análise, verifica-se que, aparentemente, a Recorrida não extravasou os limites desenhados no sobredito regime no que concerne ao dever de audiência do arguido em sede de processo disciplinar. Realmente, o art.º 53.º, al. f) do mencionado regime submete a obrigatoriedade de audiência do arguido aos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar, admitindo-se, portanto e numa interpretação a contrario, que inexistindo processo disciplinar, não há lugar a audiência prévia. Todavia, a verdade é que o RD em exame consagra expressamente o processo sumário como uma das formas de procedimento especial, caracterizando-o, inequivocamente, como um vero procedimento disciplinar, nomeadamente, nos art.ºs 213.º, n.º 1, al. b), 214.º e 257.º e seguintes do RD. Quer isto significar, por conseguinte, que subsiste um óbvio desalinhamento entre os citados normativos do RJFD e o RD no que concerne ao processo disciplinar sumário, devendo concluir-se que este regulamento desrespeita aquele regime jurídico mestre. E o aludido desalinhamento é ainda mais gritante quando enquadrado o caso no patamar constitucional. De facto, constituindo o processo sumário um procedimento disciplinar, impera assentar que tal procedimento assume natureza sancionatória e pública. Desta asserção emerge, de imediato, um apelo à aplicação de determinadas garantias constitucionais, por razões de similitude de essência com o próprio processo penal. Neste contexto, apresenta-se como imperiosa a convocação de dois preceitos constitucionais, a saber, o art.º 32.º e o art.º 269.º, especialmente, os n.ºs 10 e 3, respetivamente. O art.º 32.º condensa os mais importantes princípios materiais do processo criminal, assomando como “a constituição processual criminal” (a expressão é empregue na página 515 por J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, artigos 1.º a 107.º, janeiro, 2007, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, pp. 515 a 526), pois que consagra as garantias de defesa do arguido em processo penal. Dentre as mencionadas garantias da “constituição processual criminal” avultam os direitos de audiência e de defesa consagrados em benefício do arguido, e extensíveis a todos os processos de natureza sancionatória, em conformidade com o prescrito no n.º 10 do art.º 32.º. Realmente, é consabido hodiernamente que é “inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação, pois que só há defesa perante uma acusação. A Constituição proíbe absolutamente a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida a possibilidade de se defender. O direito de se defender é por muitos considerado um princípio natural de qualquer tipo de processo, uma exigência fundamental do Estado de Direito material.” (JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, março, 2005, Coimbra Editora, p. 363). No caso dos processos sancionatórios disciplinares, o legislador constitucional reforçou a essencialidade dos referenciados direitos de audiência e de defesa, estabelecendo expressamente as garantias de audiência e de defesa no caso dos processos disciplinares públicos, nos termos do previsto no art.º 269.º, n.º 3. Como explicam JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, dezembro, 2007, Coimbra Editora, p. 623), “a audiência constitui um dos instrumentos da defesa (…). Sendo ela própria uma garantia do direito de defesa, a audiência é fundamental nesta, merecendo, por isso, menção e proteção autónoma”. Na mesma linha de entendimento situam-se J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, que defendem, a propósito do referido n.º 3 do art.º 269.º, que “o sentido útil da explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa” (in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume II, agosto, 2010, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, p. 841). Nas palavras de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Idem, ibidem), “A audiência constitui um dos instrumentos de defesa, a par de outros, como o de conhecer inteiramente as imputações disciplinares que lhe são feitas, o da assistência e patrocínio por advogado (artigo 20.º), o acesso ao processo (artigo 268.º, n.ºs 1 e 2), o direito de não declarar contra si próprio, o direito de oferecer e/ou requerer meios de prova pertinentes, o de não ter de provar a sua inocência. Sendo ela própria uma garantia do direito de defesa, a audiência é fundamental nesta, merecendo, por isso, menção e proteção autónoma.” Importa salientar, neste contexto, que o próprio RD agora em análise estabelece a aplicação do estatuto disciplinar aplicável às relações de emprego público como direito subsidiário para efeitos de determinação da responsabilidade disciplinar e da tramitação do procedimento disciplinar, e desde que, em qualquer caso, sejam salvaguardados os princípios elencados no art.º 13.º deste RD (cfr. art.º 16.º, n.ºs 1 e 2 do RD). Adicionalmente, é de notar que a Jurisprudência do Tribunal Constitucional é absolutamente clara na afirmação da fundamentalidade da garantia da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, decorrendo essa fundamentalidade, entre o mais, do consagrado nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição, e significando que “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas” (como declarado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, n.º 180/2014, n.º 457/2015 e n.º 338/2018). Ponderando cuidadosamente o que vem de se expender, é cristalina a conclusão de que o regime do procedimento disciplinar sumário é inconstitucional na medida em que oblitera qualquer possibilidade do arguido conhecer as imputações disciplinares que lhe são dirigidas e sobre as mesmas emitir pronúncia antes do proferimento da decisão disciplinar. Com efeito, e como se descreveu antecedentemente, nos termos que derivam do estatuído do art.º 214.º do RD, não só está explicitamente afastada a audiência do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, como a própria tramitação do procedimento disciplinar sumário não permite enxertar ou acomodar qualquer ato procedimental concretizador daquela garantia constitucional, como dimana do exame do disposto nos art.ºs 257.º a 262.º do RD. O que implica que o arguido apenas conhece a existência de imputações disciplinares contra si no momento em que é notificado da própria decisão disciplinar, e sem que tenha tido qualquer hipótese de esgrimir uma defesa em momento anterior ao daquela notificação. Quer tudo isto significar, portanto, no que concerne ao procedimento disciplinar sumário, que a norma plasmada no art.º 214.º do RD, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do ato punitivo, é materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, preceituados nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa. Sendo assim, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da aludida norma vertida no art.º 214.º do RD, na parte em que exclui e oblitera a audiência do arguido antes da promanação do ato punitivo. Ora, revertendo ao caso versado, verifica-se, realmente, que em 31/10/2017, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol aplicou à ora Recorrente a pena de multa no montante de 1.148,00 Euros, relativa a eventos sucedidos durante o jogo disputado em 28/10/2017, com a seguinte fundamentação: “(Comportamento incorreto do público- Os adeptos afectos à equipa visitante, F………, aos 17 e aos 79 minutos de jogo, entoaram em uníssono por cinco vezes o seguinte cântico: “……… é merda”. Também aos 28 e 84 minutos de jogo, por cinco vezes, os mesmos adeptos disseram. “……… vai pro caralho”. Os adeptos do F………, situados na bancada topo norte, aos 51 minutos de jogo, arremessaram um isqueiro para dentro do terreno de jogo, caindo aquele junto da baliza do ……… FC, não tendo atingido qualquer (…). Por fim, aos 24 minutos da 1.ª parte do jogo, os adeptos afectos ao F……… direcionaram um laser de cor verde aos olhos do árbitro principal, tendo perturbado a visão do mesmo por momentos. Conforme é relatado no Relatório do Árbitro e no Relatório dos Delegados da Liga.)” (cfr. fls. 120 do processo n.º 75/2017 do TAD). Antes de ser notificada da citada decisão punitiva emitida em 31/10/2017, não teve a Recorrente oportunidade de conhecer as imputações disciplinares que lhe eram dirigidas, nem sobre as mesmas apresentar a sua versão ou posição. Assim, quedando a norma do art.º 214.º do RD desaplicada ao caso versado, impera concluir que a Recorrente, na qualidade de arguida do processo disciplinar sumário ora em análise, foi punida sem que pudesse ter apresentado qualquer defesa. Pelo que, o ato punitivo proferido em 31/10/2017, e mantido pela Deliberação emitida em 28/11/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol- através da qual foi aplicada à agora Recorrente a multa no montante de 1.7148,00 Euros pela prática de infração por parte da Recorrente, em virtude dos seus adeptos terem entoado cânticos insultuosos, arremessado objeto para dentro do terreno de jogo e perturbado a função do árbitro com a projeção de um laser durante um jogo de futebol ocorrido em 28/10/2017- é nulo, por violação do direito de defesa da Recorrente. Numa outra vertente, a Recorrente argumenta que o ato punitivo agora sob escrutínio é nulo, por violação dos princípios da presunção da inocência e da culpa e do direito a um processo equitativo, violação essa concretizada pela presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga. Nessa senda, a Recorrente invoca a inconstitucionalidade da norma contida no art.º 13.º, al. f) do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, quando interpretada “no sentido de que os factos não constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga podem ser dados como provados, por presunção, se a sua verificação não foi infirmada pelo arguido”, em virtude da afronta ao princípio da presunção da inocência, ao direito a um processo equitativo e ao princípio do Estado de Direito, vertidos, respetivamente, nos art.ºs 32.º, n.ºs 2 e 10 e 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa. Mais invoca a Recorrente a inconstitucionalidade da “interpretação dos artigos 13.º, alínea f) e 187.º, n.º 1, alínea a) [do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional] no sentido de que a indiciação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que os sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorretas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte do clube”, em razão da violação dos princípios da culpa e da presunção de inocência. Adiante-se, desde já, que comungamos, ainda que por fundamentos diferentes, da visão da Recorrente no tocante à presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, consagrada no art.º 13, al. f) do RD. Realmente, o dito art.º 13.º, al. f) consagra, como um dos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, a presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga (…), enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa. Esta presunção de veracidade é igualmente aplicada em procedimento disciplinar sumário, atento o prescrito no art.º 213.º, n.º 1, al. b) e n.º 3 do RD, e subjaz ao regime restritivo da realização de diligências complementares em sede de procedimento sumário, descrito no art.º 260.º do mesmo RD. Ora, como já referimos supra, a consagração desta presunção legal, de veracidade dos factos constantes nos relatórios dos árbitros e da equipa de arbitragem, não tem sido isenta de críticas, que se fundam essencialmente na constatação de um certo modo de atuação da Recorrida. Seja como for, no que concerne à consagração de presunção de veracidade dos factos contidos em determinados documentos elaborados por determinados agentes, no domínio penal e sancionatório, o Tribunal Constitucional já trilhou, em vários Acórdãos, uma posição firme no sentido da sua admissibilidade (entre outros, Acórdãos n.º 87/87, n.º 276/2004, n.º 211/2017 e n.º 338/2018). Com efeito, a admissibilidade do valor reforçado de determinados documentos, quanto aos factos aí descritos e provenientes da direta perceção dos agentes que elaboram os mencionados documentos, é já questão trabalhada e pacificada pelo Tribunal Constitucional a propósito do valor probatório dos autos de notícia. Realmente, no Acórdão n.º 87/87, a Colenda Instância Constitucional afirmou, além do mais, o que se segue: “ (…) 3- Os autos de notícia, levantados ou mandados levantar por qualquer autoridade, agente de autoridade ou funcionário público, no exercício das suas funções, relativos às infracções que presenciarem, fazem fé em juízo até prova em contrário, mas unicamente quanto aos factos presenciados pela autoridade, agente de autoridade ou funcionário público que os levantar ou mandar levantar (cf. artigo 169.º e § 2.º, do Código de Processo Penal). Ao que acresce que o juiz, a despeito dessa fé em juízo, pode sempre «mandar proceder a quaisquer diligências que julgue necessárias para a descoberta da verdade» (cf. § 3.º do citado artigo 169.º). A fé em juízo de que gozam os autos de notícia, nos termos do artigo 169.º do Código de Processo Penal, reconduz-se, assim, a «um especial valor probatório- aliás de modo algum definitivo, antes só prima facie ou de ínterim- atribuído a certas comprovações materiais, feitas presencialmente por certa autoridade pública» (cf. acórdão n.º 168 da Comissão Constitucional, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 291, p. 341; cf. também acórdão n.º 219, da mesma Comissão, no citado Boletim, n.º 298, p. 95). Estas «comprovações» ou «verificações» materiais valem, exclusivamente em relação aos puros factos presenciados pela autoridade, e não quanto a factos não perceptíveis sensorialmente (juízos de valor, proposições conclusivas, etc), nem quanto a factos que, sendo embora sensorialmente perceptíveis, a sua «comprovação» não foi, todavia, feita presencialmente pela autoridade ou funcionário, antes provindo de facto terceiro (cf. arestos citados). Assim, pois, a fé em juízo dos autos de notícia a que se refere o artigo 169.º do Código de Processo Penal não acarreta qualquer presunção de culpabilidade, nem envolve, necessariamente, qualquer manipulação arbitrária do princípio in dúbio pro reo. A presunção contida na fé própria do auto de notícia refere-se- como se disse já- «a certas comprovações materiais, que não à culpa ou à 'culpabilidade' do agente, e não obriga minimamente- bem pelo contrário (cf. § 3.º do artigo 169.º citado)- a dispensar a produção, em julgamento, de qualquer outra prova que se repute no caso necessária» (cf. acórdão n.º 368 da Comissão Constitucional, publicado no Apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983). 4- O especial valor probatório dos autos de notícia, reconduzindo-se, ao cabo e ao resto, a simples prova de ínterim, também não põe em crise o direito de defesa do réu. De facto, a audiência de julgamento não se destina apenas à «reprodução» do auto de notícia, antes servindo também para a produção de provas que o juiz considere necessárias- necessárias, designadamente, para questionar o próprio auto de notícia, pondo em dúvida a veracidade das «comprovações» ou «verificações» materiais dele constantes (cf. citado § 3.º do artigo 169.º do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 19.º e 47.º, do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945). Além disso, há-de ela subordinar-se, por imperativo constitucional, ao princípio do contraditório (cf. artigo 32.º, n.º 5, da Constituição), e bem assim de realizar-se com observância dos demais princípios que a regem (o da oralidade e da imediação). Daqui resulta que o réu, que pode aí fazer-se assistir por um defensor da sua escolha, tem assegurado o direito a um processo público e leal («a due process of law», «a fair process»)- a um processo, em suma, que lhe assegura todas as garantias de defesa, de que fala o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.” Ou seja, o Tribunal Constitucional não descortinou qualquer violação dos direitos de defesa, ou do princípio da presunção da inocência, na consagração legal daquele valor reforçado para os autos de notícia. Por outro lado, também as presunções legais são admissíveis em processos sancionatórios, consubstanciam-se em normas criadas pelo legislador que estabelecem uma relação entre um facto conhecido (provado) e um facto desconhecido ou incerto, inferindo este último a partir daquele (Acórdão n.º 338/2018). Refira-se que, “a presunção legal opera uma inversão do ónus da prova, desonerando desta, aqueles que têm a presunção a seu favor” (Acórdão n.º 211/2017), sendo que, “por regra, as presunções legais estabelecem uma verdade presumida (não provada) que poderá vir a ser infirmada mediante prova em contrário- presunções ilidíveis ou iuris tantum (…)” (Acórdão n.º 338/2018). Trazendo estes ensinamentos para o regime jurídico regulamentar que enforma o caso que agora nos ocupa, verifica-se que, em boa verdade, subsiste uma certa similitude substancial entre o valor reforçado de que beneficiam os autos de notícia e a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, prevista esta no art.º 13.º, al. f) do RD. Tal similitude conduz-nos à conclusão de que a presunção de veracidade agora em exame, na medida em que traduz mera prova prima facie, suscetível de ser abalada com a demonstração de factualidade diversa, não encerra em si, automaticamente, qualquer afronta aos princípios da defesa, do contraditório, do processo equitativo, da culpa e da presunção da inocência. Realça-se, porém, que a conformidade constitucional da estipulação daquela presunção de veracidade impõe, impreterivelmente, que ao arguido seja concedida a possibilidade de poder esgrimir as suas armas defensivas, por forma a contraditar os factos presumidos, ou os factos descritos nos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga. É que, a não ser assim, tal implicaria assumir que os factos presumidos, ou cuja veracidade se presume, decorrem de uma presunção inilidível, uma vez que tais factos estariam definitivamente fixados a partir da sua consignação nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, e sem que se considere, sequer, a possibilidade de demonstração de uma realidade diversa (Acórdão n.º 338/2018). Ora, aqui reside, precisamente, o busílis do caso vertente. Como se já expendeu, a decisão punitiva em crise foi proferida em sede de procedimento disciplinar sumário, sendo que nesta forma procedimental não há lugar- como explanado antecedentemente- à audiência do arguido em momento prévio à emissão do ato punitivo. Mas mais. O arguido apenas tem conhecimento das imputações disciplinares que sobre si recaem no momento em que é notificado da própria decisão punitiva, não tendo qualquer oportunidade, antes desta ser proferida, de manifestar a sua posição, contraditar factos ou apresentar quaisquer meios de prova. Esta constatação tem como consequência a conclusão, irremediável, de que os factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, na medida em que não podem ser contraditados antes da produção do ato punitivo, derivam, em bom rigor, de uma presunção inilidível, estando, na realidade, definitivamente fixados com a respetiva inserção nos aludidos relatórios. Aqui chegados, resta saber, pois, se a presunção de veracidade dos factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, prevista no art.º 13.º, al. f) do RD e quando aplicada em sede de procedimento disciplinar sumário, entra em confronto com os princípios da presunção da inocência e da culpa. A resposta a esta indagação deve ser, quanto a nós, positiva. Em primeiro lugar, porque o estabelecimento de uma presunção inilidível de veracidade dos factos relatados, com a inerente fixação dos mesmos como provados, pode, em bom rigor, converter uma presunção de factos numa presunção inilidível de autoria da infração. Deste modo, a presunção dos factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga pode impor a responsabilidade do Clube de Futebol, independentemente da sua real participação nos factos e mesmo na ausência de qualquer ligação causal ao comportamento adotado por um espectador, supostamente demonstrativo do incumprimento de um dever por banda do mesmo Clube. Face a isto, impõe-se concluir que, no domínio do procedimento disciplinar sumário (descrito, essencialmente, nos art.ºs 257.º a 262.º do RD), a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, por traduzir uma presunção inilidível de factos, viola o conteúdo mínimo do princípio da culpa (em termos ilustrativos, sobre presunções legais inilidíveis, incluindo de autoria, veja-se o Acórdão n.º 338/2018 do Tribunal Constitucional). A Recorrente invoca, ainda, que a mencionada presunção de veracidade, inscrita no art.º 13.º, al. f) do RD, viola o princípio da presunção da inocência. E, em nosso entendimento, a razão está do lado da Recorrente. E por três razões. Em primeiro lugar, importa assentar que o direito do arguido a que seja presumido inocente até ao trânsito em julgado de sentença de condenação, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, estende-se, por força do disposto no n.º 10 do mesmo artigo, aos processos disciplinares (Acórdão n.º 338/2018). Realmente, a Jurisprudência Constitucional tem admitido, em processo disciplinar, o princípio da presunção da inocência do arguido, “como decorrência a um processo justo, não apenas na sua vertente probatória, correspondendo à aplicação do princípio in dúbio pro reo, pelo qual é à Administração que cabe o ónus da prova dos factos que integram a infração, quer ao nível do próprio estatuto ou condição do arguido em termos de tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou restrição de direitos que, de qualquer modo, representem e se traduzem numa antecipação da condenação” (Acórdão n.º 62/2016). Ademais, no Acórdão n.º 397/2017 e no Acórdão n.º 675/2016 afirmou-se que o princípio da presunção de inocência “pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que, enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito sancionatório público”. Assim, o estatuto processual do arguido, enformado pela garantia da presunção de inocência, permite, nomeadamente- e para o que agora releva-, que o tratamento do arguido ao longo de todo o processo seja configurado sem perder de vista a possibilidade de verificação da sua inocência, não sendo de admitir, designadamente, que o arguido seja tido como culpado em momento anterior ao da formalização do juízo sancionatório de forma necessariamente fundamentada. Destarte, o entendimento da norma ora questionada como estabelecendo uma presunção inilidível dos factos responsabilizantes do ilícito disciplinar, não pode deixar de se ter como violadora do princípio da presunção da inocência. “Tal entendimento normativo afronta diretamente e de forma intolerável o princípio da presunção da inocência, já que o que tal norma determina é precisamente uma presunção inabalável de culpabilidade” (Acórdão n.º 338/2018). Em reforço da asserção vinda de enunciar, cumpre referir que J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, artigos 1.º a 107.º, janeiro, 2007, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, pp. 518 e 519), enunciam a proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido e o princípio in dúbio pro reo como duas das dimensões realizantes da presunção da inocência. Por sua banda, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, março, 2005, Coimbra Editora, p. 355) realçam, como corolário do princípio da presunção da inocência, também a necessidade de “informação ao acusado, em tempo útil, de todas as provas contra ele reunidas a fim de que possa preparar eficazmente a sua defesa”, desde logo contraditar a prova que poderá servir para o punir. Outra das dimensões do princípio da presunção da inocência é o princípio do contraditório, que se traduz na estruturação do procedimento em termos de um debate entre a acusação e a defesa, incluindo em sede probatória, devendo, à luz deste princípio, ficar excluída a possibilidade de condenação com base em elementos probatórios que não tenham sido apresentados ao arguido antes da decisão punitiva e relativamente aos quais o arguido não tenha tido a possibilidade de oferecer defesa. Aliás, este princípio entronca com o direito a um processo equitativo, postulando este que ao arguido sejam asseguradas todas as possibilidades de contrariar a acusação e a lealdade do procedimento. Como melhor explica RUI PATRÍCIO (A Presunção da Inocência no Julgamento em Processo Penal, Alguns Problemas, fevereiro, 2019, Almedina, p. 101), “o princípio do contraditório impõe que toda a prossecução processual deve cumprir-se de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação, mas também as da defesa, implica que ao arguido haja de ser dada a oportunidade de reagir relativamente a quaisquer decisões (…), devendo aquela oportunidade ser efetiva e eficaz; por seu lado, o princípio da igualdade de armas, cabendo naquele mais vasto princípio do contraditório, tem especificamente a ver com as posições e atuações processuais da acusação e da defesa, significando a atribuição à acusação e à defesa de meios jurídicos igualmente eficazes para tornar efetivos os seus direitos.” Ora, o estabelecimento de uma presunção, inilidível, de veracidade de factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga arrasta um evidente desequilíbrio entre as partes no tocante ao estatuto processual que cada uma beneficia, implicando para o arguido uma posição de maior fragilidade, não só porque passará a incumbir-lhe a demonstração da ocorrência de factos diversos dos presumidos - ou pelo menos, a criação de dúvida- , mas principalmente, porque o arguido, no procedimento disciplinar sumário, não tem, sequer, a oportunidade de contraditar os factos que gozam da aludida presunção de veracidade. O que significa que, a presunção de veracidade contida no art.º 13.º, al. f) do RD, quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, é também violadora dos princípios do contraditório e do processo equitativo, inscritos no art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa. Quer tudo isto significar, portanto, que a norma plasmada no art.º 13.º, al. f) do RD, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no art.ºs 32.º, n.ºs 10 e 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art.º 20.º, n.º 4 da mesma Lei Fundamental. Pelo que, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da norma vertida no art.º 13.º, al. f) do RD, por a mesma padecer de inconstitucionalidade material quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário. Sendo assim, a decisão punitiva de 31/10/2017, e que foi mantida pela deliberação emanada em 28/11/2017, através da qual o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol aplicou à ora Recorrente a pena de multa no montante de 1.148,00 Euros, relativa a eventos sucedidos durante o jogo disputado em 28/10/2017, é nula por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência. Quanto a esta matéria impõe-se, ainda, consignar uma última nota relevante. Tal nota respeita à circunstância da Recorrente, após a emissão da decisão punitiva em 31/10/2017, ter à sua disposição a possibilidade- e o direito- de impugnar administrativamente tal decisão, bem como de a impugnar judicialmente. O que, de resto, sucedeu. Com efeito, antevê-se a possibilidade de tal circunstancialismo ser usado à guisa de contra-argumento das posições que vimos elevando como juridicamente corretas. Todavia, estas vias de reação contra a decisão punitiva não constituem mecanismos aptos ou adequados à realização dos direitos de defesa da Recorrente, nem apagam a violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, não logrando, por conseguinte, transmutar o ato punitivo nulo editado em 31/10/2017- e confirmado em 28/11/2017- num ato legal e constitucionalmente válido, porque respeitador das sobreditas garantias constitucionais. É que a utilização dos mecanismos de impugnação judicial não se inscreve na concretização das garantias de defesa e do respeito pelos princípios da culpa e da presunção de inocência, plasmados nos art.ºs 32.º, n.ºs 2 e 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição, mas antes na realização do direito de acesso ao Direito e aos Tribunais, consagrado nos art.ºs 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da mesma Lei. Pelo que, a circunstância da Recorrente ter impugnado judicialmente a deliberação emitida em sede de recurso hierárquico impróprio não releva para efeitos de aferição da conformidade constitucional das normas vertidas nos art.ºs 214.º e 13.º, al. f) do RD, na sua aplicação ao procedimento disciplinar sumário, não obstaculizando minimamente ao juízo de inconstitucionalidade material que expendemos supra. No que tange à circunstância da Recorrente, previamente à impugnação judicial, ter reagido administrativamente através de recurso hierárquico impróprio, cumpre dizer que tal reação não vivifica, nem corresponde ao exercício do direito de audiência por parte do arguido, nos moldes em que tal garantia está cristalizada nos art.º 32.º, n.º 2 e 10 e 269, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa. Como ensinam MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECO DE AMORIM (Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2.ª edição, maio, 2001, Almedina, pp.743 a 747), as impugnações administrativas têm por objeto a revogação, a anulação e a modificação, ou substituição, de atos administrativos anteriores, e assumem “uma importante função de garantia da posição jurídico-administrativa (…) face a um acto administrativo, impondo à Administração o dever de questionar o seu próprio acto e de reavaliar novamente a situação concreta (ou a decisão que sobre ela versou).” Assim, as impugnações administrativas- dentre as quais se contabiliza o recurso hierárquico impróprio- constituem procedimentos de segundo grau, conducentes à prolação atos de segundo grau, por respeitarem a uma decisão primária ou de primeiro grau e “através da qual se definiram já os efeitos administrativos de (ou para) uma determinada situação concreta” (idem, Ibidem). Por conseguinte, nos procedimentos de segundo grau, “a decisão proferida respeita sempre ao modo como essa situação já foi jurídico-administrativamente conformada por decisão anterior” (idem, Ibidem). Concomitantemente, é de salientar que, versando os procedimentos de segundo grau sobre um anterior ato de conformação jurídico-administrativa duma situação concreta, os factos e interesses envolvidos nessa situação foram já analisados e fixados instrutoriamente num procedimento de 1.º grau, valendo, ou podendo valer, toda a aquisição probatória para o procedimento de segundo grau. Aliás, a dispensa de audiência prévia é característica dos procedimentos de segundo grau (neste sentido, ELIANA DE ALMEIDA PINTO, ISABEL SILVA e JORGE COSTA, Código de Procedimento Administrativo, Comentado, maio, 2018, Quid Juris, p. 448). Finalmente, é de assinalar que ELIANA DE ALMEIDA PINTO, ISABEL SILVA e JORGE COSTA (idem, ibidem) enquadram constitucionalmente as impugnações administrativas no art.º 52.º, n.º 1, ou seja, no direito de petição, e não nas garantias de audiência e defesa do arguido, prescritas nos art.ºs 32.º, n.ºs 2 e 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição (muito embora tal inserção não seja consensual; em sentido diverso, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECO DE AMORIM (idem, ibidem)). Quer tanto significar, que as impugnações administrativas, na medida em que constituem procedimentos de segundo grau, que versam sobre atos administrativos anteriores, não são aptas a concretizar as garantias de audiência e defesa do arguido, bem como as inerentes à presunção da inocência, visto que o ato de segundo grau- emitido a título de decisão final nas impugnações administrativas- labora já sobre uma realidade pré-compreendida, dado o facto da situação concreta a que respeita o ato estar já juridicamente fixada. Deste modo, não só o arguido continua a não ter oportunidade de, efetivamente, influenciar a modelação da compreensão inicial da situação fáctico-jurídica, como, além disso, enfrenta um manancial de factos já fixados e de provas já valoradas e, ainda, de uma imputação já definitiva. Seja como for, adiante-se que, no caso concreto em apreciação, grassa à evidência a inaptidão da Deliberação emitida em 28/11/2017, pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, para colmatar a violação das garantias de defesa, e dos princípios da presunção da inocência e da culpa de que é beneficiária a Recorrente. É que, se é certo que a Recorrente foi confrontada, pela primeira vez, com as imputações disciplinares através da notificação do ato punitivo de 31/10/2017, sem que antes desta notificação conhecesse a factualidade em causa ou pudesse organizar a respetiva defesa, também é certo que a Deliberação de 21/11/2017, que manteve o ato punitivo, introduziu nova “factualidade”- concretamente, os pontos 2 e 6 do probatório inserto naquela Deliberação-, sem que tenham sido produzidas novas diligências de prova, e sem que a Recorrente fosse previamente confrontada com a materialidade dos aludidos pontos. Quer isto dizer, portanto, que a Deliberação emitida em 28/11/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, não só não colmatou as patologias de natureza constitucional de que o ato punitivo sofria, como agudizou, ainda mais, a violação das garantias constitucionais em exame. * II) Quanto à apreciação do invocado erro referente aos pressupostos da ilicitude e da culpaNas conclusões ii, iii, iv, v, xix, xx, xxi, xxii, xxiii, xxiv e xv do seu recurso jurisdicional vem a Recorrente atacar o acórdão a quo, clamando, em suma, que o mesmo erra na apreciação dos pressupostos atinentes à ilicitude e à culpa, pois que, i) a Deliberação punitiva não contém quaisquer factos aptos a fincar a demonstração da violação de deveres por parte da Recorrente e ii) a imputação do incumprimento dos deveres derivar de uma responsabilização objetiva e não subjetiva, o que viola o princípio da culpa. Ora, antes de tudo o mais, cumpre assentar que, nos moldes do que se expendeu supra, o ato punitivo proferido pela Recorrida em 28/11/2017 é nulo com fundamento na violação dos direitos de defesa e audiência da Recorrente, bem como por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência e dos direitos ao contraditório e a um processo equitativo. Mas ainda que assim não sucedesse, a verdade é que o ato punitivo não poderia manter-se na ordem jurídica, em virtude das ilegalidades que o mesmo patenteia. Vejamos, então, porquê. Para tanto, interessa recordar o juízo de inconstitucionalidade material que formulamos quanto às normas insertas nos art.ºs 214.º e 13.º, al. f) do RD quando aplicadas ao procedimento disciplinar sumário. Com efeito, consagrando a primeira das normas a supressão da audiência do arguido antes de ser proferido o ato punitivo em procedimento disciplinar sumário, é manifesto que a mesma norma viola as garantias de defesa e audiência, descritas nos art.ºs 32.º, n.ºs 2 e 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição. Já no tangente à segunda das enumeradas normas regulamentares, na medida em que a dita corresponde à consagração, para o procedimento disciplinar sumário, de uma presunção inilidível de factos cruciais para a responsabilização do arguido, resulta claro que viola os princípios da culpa e da presunção da inocência, bem como os direitos ao contraditório e ao processo equitativo, inscritos nos art.ºs 32.º, n.ºs 2 e 10 e 20.º, n.º 4 da Lei Fundamental. Sendo assim, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto das normas vertidas nos art.ºs 214.º e 13.º, al. f) do RD, por as mesmas padecerem de inconstitucionalidade material quando aplicadas ao procedimento disciplinar sumário. Nessa senda, examinando a situação em preço, facilmente se conclui que os factos coligidos no probatório da decisão punitiva não são suficientes, nem adequados, a suportar os juízos de ilicitude e de culpa formulados pela Recorrida na decisão punitiva e reafirmados pelo Tribunal a quo. Com efeito, da decisão punitiva promanada em 31/10/2017 consta a seguinte fundamentação: “(Comportamento incorreto do público- Os adeptos afectos à equipa visitante, F………….., aos 17 e aos 79 minutos de jogo, entoaram em uníssono por cinco vezes o seguinte cântico: “B………… é merda”. Também aos 28 e 84 minutos de jogo, por cinco vezes, os mesmos adeptos disseram. “B………. vai pro caralho”. Os adeptos do FC ………., situados na bancada topo norte, aos 51 minutos de jogo, arremessaram um isqueiro para dentro do terreno de jogo, caindo aquele junto da baliza do B……… FC, não tendo atingido qualquer (…). Por fim, aos 24 minutos da 1.ª parte do jogo, os adeptos afectos ao FC ………… direcionaram um laser de cor verde aos olhos do árbitro principal, tendo perturbado a visão do mesmo por momentos. Conforme é relatado no Relatório do Árbitro e no Relatório dos Delegados da Liga.)” (cfr. fls. 120 do processo n.º 75/2017 do TAD).” Da fundamentação que consta deste ato emerge, claramente, o seguinte circunstancialismo: o facto de na bancada topo norte estarem posicionados os grupos organizados de adeptos afetos ao FC………..; o facto de, aos minutos 17 e 79, os adeptos do FC…….. terem entoado, por cinco vezes, o cântico “B………. é merda”; o facto de, aos minutos 28 e 84, os adeptos do FC……… terem entoado, por cinco vezes, o cântico “B…….. vai pro caralho”; o facto de, ao minuto 51 os adeptos do FC……. terem arremessado um isqueiro, que caiu junto à baliza do B……….; e o facto dos mesmos adeptos terem direcionado um laser de cor verde aos olhos do árbitro, que lhe perturbou a visão do jogo. Por seu turno, a Deliberação emanada em 28/11/2017, através da qual o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol manteve a aplicação à ora Recorrente da pena de multa no montante de 1.148,00 Euros, incorpora, além do mais, a seguinte factualidade: “(…) 2. A Recorrente não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias para evitar os seguintes acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos: (…) 6. A Recorrente agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos acontecimentos incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade participante no dito jogo de futebol. (…).” Ora, do confronto entre a fundamentação de ambas as decisões decorre, imediatamente, subsistir uma alteração da coleção de factos consignada na decisão de 31/10/2017, perpetrada pela Deliberação de 28/11/2017, sem que tenha havido, de permeio, produção de qualquer diligência de prova complementar, e sem que as ora partes tenham invocado novidades em termos de factualidade relevante. Na verdade, a inovação da Deliberação consistiu em introduzir os pontos 2 e 6 no respetivo probatório que, em bom rigor, não traduzem a inclusão de novos factos, mas sim de juízos puramente conclusivos, uma vez que não se descortina a enunciação de qualquer verdadeiro facto que permita afirmar que “a Recorrente não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias para evitar os seguintes acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos”, e que “a Recorrente agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos acontecimentos incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade participante no dito jogo de futebol”. Por outro lado, não é sem surpresa que se verifica que o Acórdão a quo, não obstante ter procedido a uma modelação da factualidade relevante, incluindo alguns factos não contemplados nos atos produzidos anteriormente pela Recorrida, a verdade é que também não enuncia qualquer facto ou circunstância que permita percecionar quais os deveres concretos incumpridos e, especialmente, a demonstração do aludido incumprimento. Em bom rigor, o que a factualidade em causa permite apurar de relevante, quando muito, é que durante o desafio em causa, nos minutos indicados foram entoados pelos adeptos do Clube visitante, por cinco vezes, dois cânticos insultuosos diferentes, que ao minuto 51 foi arremessado um isqueiro para dentro do terreno de jogo e, ainda, que foi direcionado laser aos olhos do árbitro, que lhe perturbaram a visão do jogo, tudo proveniente de bancada onde se encontravam os adeptos do Clube da Recorrente. Ou seja, não se sabe quais os deveres que foram incumpridos pela Recorrente durante o desafio em discussão, nem de que modo os incumpriu, se por ação, se por omissão. Não demonstra a Recorrida qualquer atuação da Recorrente, ou qualquer omissão da atuação devida pela Recorrente, com a qual se possa estabelecer um nexo causal do comportamento dos espectadores perpetradores das dos cânticos e dos arremessos, e que sirva de esteio à formulação do juízo de censurabilidade inerente à necessária verificação da culpa do agente infrator. É que, não se olvide a este propósito, que a punição disciplinar no direito desportivo não prescinde da verificação da culpa do infrator, conforme deriva do disposto nos art.ºs 10.º, 16.º, n.º 1, 17.º e 187.º, n.º 1, al. b) do RD, e está em concordância com o preceituado nos art.ºs 52.º, 53.º e 55.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas e, especialmente, com o art.º 32.º da Constituição. De resto, o Tribunal Constitucional afirmou cristalinamente, no Acórdão n.º 730/1995, a exigência da verificação da culpa do Clube desportivo no que concerne às condutas das suas claques, para efeitos de responsabilidade disciplinar do Clube: “(…) Ora, sendo isto assim, convém reter que as sanções (…) são aplicadas aos clubes desportivos, por condutas ilícitas e culposas das respectivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz. Deveres que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando, decorrendo nomeadamente de condutas (v.g. declarações) dos dirigentes do clube, a quem cabe velar, mesmo no plano pedagógico, pelo "fair play" desportivo dos sócios ou simpatizantes do clube (podendo falar-se aqui de uma certa intenção comunitária), sendo aceitável que a estes dirigentes possam substituir-se como centros éticos-sociais de imputação jurídica, as suas obras ou realizações colectivas (cfr. o citado Acórdão nº 302/95). Aos clubes desportivos, com efeito, cabe o dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas, como forma de garantir a realização do direito cultural consagrado no artigo 79º da Constituição.” E mais adiante: “(…)Estamos, assim, em condições de responder afirmativamente à questão da punição dos clubes desportivos, como foi posta a título introdutório, pois, pode encontrar-se um fundamento de censura por culpa, na imputação dos factos aos clubes. Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilidade objectiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabilidade objectiva pelo facto de o artigo 3º exigir, para a aplicação da sanção da interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes. E no mesmo sentido milita a referência que nesse mesmo preceito (nº 7) e no artigo 6º (nº 1. 1 e 2) é feita ao clube responsável (pelos distúrbios). Por fim, o processo disciplinar que se manda instaurar (artigo 4º) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infracção, sendo que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruida pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube). (…)” Sobre a exigência da verificação da culpa e a inerente natureza subjetiva da imputação disciplinar, bem como sobre a atuação omissiva relevante do agente infrator no direito disciplinar desportivo, convocamos a declaração de voto constante do Acórdão proferido por este Tribunal Central Administrativo Sul, no processo n.º 43/19.0BCLSB, em 21/11/2019: “(…) A responsabilidade do Clube em termos subjectivos, assente na verificação da sua culpa, é também uma imposição constitucional — cf. art.° 32.° da CRP. Assim, para o Clube ser punido nos termos dos indicados preceitos terá de resultar provado no procedimento disciplinar que foram omitidos os deveres que lhe incumbiam, de prevenir e reprimir eventuais condutas incorrectas dos seus sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores, designadamente, que foram omitidos os deveres gerais e específicos que vêm previstos nos art.° s. 4.°, n.° 2, 8.°, n.° 3, do Regulamento do Campeonato Elite de Futebol de Praia (RC/2016), 4.° a 6.°, 11.° e 13.° a 22.° do Regulamento de Prevenção da Violência (RP/2016). Ou seja, seguindo a indicada jurisprudência do STA, para a punição do Clube não basta a ocorrência de comportamentos e condutas incorrectas, perpetradas pelos sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores, que estejam atestadas em relatórios ou documentos oficiais, mas é, também, preciso ficar provado no procedimento disciplinar que o indicado Clube omitiu deveres de vigilância e cuidado, porque não levou a cabo as condutas necessárias para efectivar os deveres impostos pelos indicados regulamentos. Terá que ficar provado no procedimento disciplinar que o Clube tinha de ter adoptado determinadas acções visando a prevenção e repressão das condutas incorrectas dos seus sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores e que omitiu esse seu dever jurídico. A culpa do Clube tem de ser uma culpa efectiva, não uma culpa presumida. Têm de existir factos no procedimento punitivo que comprovem uma efectiva abstenção do Clube em adoptar certos comportamentos ou acções, que constituíssem um dever jurídico, fossem os adequados a obstar à violência e às condutas impróprias dos sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores. Como se refere na decisão ora tomada, no caso, estar-se-á a punir por um ilícito omissivo impróprio ou comissivo por omissão, em que resultado se incluí no próprio tipo legal. Por conseguinte, no facto delitual exige-se incluída quer a acção adequada a produzir o indicado resultado, como a omissão adequada a evitá-lo. Tal como decorre dos art,'s 4.°, n.° 2, 8.°, n.° 3, RC/2016, 4.° a 6.°, 11.° e 13.° a 22.° do RP/2016, o Clube tem um dever de garante face à actuação dos seus sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores, Tal dever estará justificado pela proximidade entre estes e o Clube e pela possibilidade do Clube assumir o domínio do facto ou uma posição de controlo sob os referidos sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores. Assim sendo, tal com se julga através do presente Acórdão, para a punição do Clube terá de resultar provada a ligação funcional, ou de proximidade ao Clube, do sócio ou simpatizante que cometeu as condutas impróprias, com a sua identificação processual. Mas, para além disso, terá também que ficar provado nos autos que existiu um comportamento, comissivo ou omissivo, imputável ao Clube, que originou um risco na verificação do resultado que se pretendia evitar, ou que o Clube provocou ou potenciou esse resultado com a omissão dos seus deveres jurídicos. Ora, nada disso ficou provado na decisão recorrida. Nessa decisão não foi dado por assente, por provado, um único facto concreto relativo à materialização da violação pelo Clube dos deveres de prevenir e reprimir eventuais condutas incorrectas dos sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores, por se ter abstido, em termos efectivos (e não presumidos) da prática de certas acções, comportamentos ou actividades. A decisão recorrida não deu por provados factos que atestem a omissão de certas e determinadas medidas de segurança, ou relativos à não prolação de regulamentos internos que punam os sócios, adeptos ou simpatizantes quando incorrectos e violentos, sendo a prolação desses regulamentos exigível. Na decisão recorrida não vem provada a omissão de algum concreto comportamento do Recorrente que concorresse para a prevenção da violência dos adeptos, sócios, simpatizantes ou espectadores. Não vem provada a omissão de comportamentos do Recorrente que impedissem aquela violência ou que concorressem para a sua diminuição ou abolição. Não vem dado por provada a omissão de concretas medidas formativas, de sensibilização dos adeptos ou grupos organizados, de educação dos mesmos, de formação para o espírito ético e desportivo, para a civilidade, ou de formação para a não violência, para o pacifismo e para o fair play. Não vem provado que o Clube punido não tenha aplicado medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública. Não vem dado por provado que o Clube tenha omitido comportamentos concretos relativos à protecção dos outros utentes dos recintos desportivos ou de outros indivíduos ou que não tenha cooperado com as forças de segurança ou requisitado e pago o necessário policiamento. Não vem provado que o Clube punido não tenha designado um coordenador de segurança. Não está provado que o Clube punido tenha incumprido regras concretas relativas às condições de acesso e de permanência de espectadores no recinto desportivo. Não vem provado que o Clube que foi punido tenha permitido, não tenha evitado ou não tenha impedido a entrada no recinto desportivo de sócios que antes tenham sido punidos por praticarem actos de violência. Não está provado que o Clube punido tenha incitado à violência ou à intolerância por via de qualquer concreto comportamento que tenha sido adoptado, antes, durante e depois do jogo. À contrário, dos pontos O. a S. resulta que o Clube tem um registo de todos os grupos organizados, que elaborou regulamentos para enquadrar a actividade de tais grupos e submete os adeptos a uma regulamentação que inclui um elenco de deveres. Mais se provou, que o Clube faz reuniões de formação com os adeptos e que promove activamente os valores que integram a ética desportiva. Por conseguinte, atendendo à matéria de facto apurada nos autos não podemos concluir pela omissão de determinadas condutas que lhe fossem exigíveis. Ou seja, atendendo à factualidade provada nos autos não podemos concluir pela violação comprovada de nenhum dever de vigilância por banda do Clube. Nessa mesma medida, não podemos concluir pela verificação do pressuposto culpa efectiva (não valendo em termos disciplinares, a existência de uma culpa meramente presumida, por aqui regerem os princípios de direito penal que a tal se opõem). Atendendo à factualidade apurada nos autos não se pode concluir que o Clube tenha tomado alguma actuação que possa ser a causa da violência ocorrida, ou que tenha omitido determinada conduta, que lhe era exigível e que seria adequada a evitar o resultado. Frente à factualidade apurada, apenas se pode concluir que o Clube adoptou medidas tendentes a controlar a actuação dos sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores. Frise-se, que tal como parece decorrer assente da jurisprudência do STA, aqui não existe uma responsabilidade objectiva, nem uma culpa presumida, por a tal responsabilidade e culpa se oporem os princípios de direito penal e disciplinar e o art.° 32.°, n.° 2, da CRP. Logo, seguindo a indicada jurisprudência do STA, porque para a punição do Clube é necessária a culpa subjectiva, uma culpa in vigilando, não estando provados nos autos e designadamente na decisão punitiva factos que permitam concluir pela violação de tal dever de cuidado, é a indicada decisão inválida e anulável, por erro nos pressupostos de facto e de Direito. Como já se indicou, dos autos não está assente um único facto concreto e especificado que indicie o incumprimento do dever de vigilância ou de cuidado do Clube. Mas estão provados vários factos que induzem que o Clube tomou medidas para prevenir e evitar a violência entre sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores. Assim, estes últimos factos descaracterizam os que se pudessem retirar dos relatórios oficiais, designadamente, afastam a presunção da violação do indicado dever de vigilância ou de cuidado do Clube, por se terem verificado comportamentos incorrectos e agressões perpetradas por pessoas, presumíveis sócios, adeptos ou simpatizantes. Os factos atestados em tais relatórios presumem-se verdadeiros, mas, no caso dos autos, tais relatórios nada atestam quanto a concretas condutas omissivas do Clube visado. Os relatórios ora em questão apenas atestam a existência de desacatos, incorrecções, agressões e actos de violência ocorridos. A partir da existência de tais actos, admite-se que possa ocorrer uma presunção de culpa do Clube, por a este caber, prevenir a violência antes, durante a após o jogo e lhe estar associado um dever de promoção do espírito desportivo. Mas, no caso dos autos, face aos factos provados, ficou afastada aquela presunção, pois todos os factos assentes apontam no sentido de que o Clube adoptou um conjunto de medidas que visavam a prevenção de actos de violência e a promoção do espírito desportivo. Em suma, a presunção que resultaria dos Relatórios oficiais, de que o Clube não cumpriu o seu dever geral de prevenir a violência e de promover o espírito desportivo entre os sócios, simpatizantes, adeptos e espectadores, ficou ilidida. No mais, atendendo aos factos provados nos autos não se pode concluir que o Recorrente, através da sua conduta, tenha contribuído de forma culposa ou censurável para o resultado desvalioso. Igualmente, não são indicados nos autos quaisquer concretos comportamentos do Clube, ora Recorrente, que tenham sido contrários aos seus deveres regulamentares. Por fim, também não vem provado nos autos o incumprimento de certos deveres de cuidado por banda do Clube Recorrente, pois não se deu por assente que este Clube tenha omitido alguma conduta que corporizasse o invocado dever de vigilância e cuidado. Consequentemente, nestes autos não ficou provada a culpa do Clube, ainda que a título de negligência, por falta de cumprimento dos seus deveres de cuidado e vigilância. Assim, também por estas razões revogaria a decisão recorrida e julgaria a decisão sancionatória como inválida e anulável, por padecer de nos pressupostos de facto e de Direito, por dos autos não resultarem factos concretos e especificados em que se possa alicerçar a culpa do Clube e a presunção de presunção de veracidade dos relatórios, ter ficado abalada por via dos factos provados em O) a S). (…)” A Jurisprudência vinda de expender é, em nosso entender, perfeitamente adequada ao caso agora em discussão, uma vez que, reitere-se, nem a Deliberação punitiva, nem o Acórdão a quo contêm um único facto demonstrativo da existência de uma atuação omissiva relevante por parte da Recorrente. Ressalte-se, a este propósito, que o ónus de carrear factos para o procedimento disciplinar- e de demonstrá-los- ilustrativos da inércia da Recorrente no sentido de adotar medidas dissuasoras e/ou impeditivas dos comportamentos censuráveis dos seus adeptos pertence à Recorrida e não à Recorrente. Daí que, a ausência de tais factos devam redundar na inverificação da ilicitude e da culpa da Recorrente, pois que o tipo de ilícito integra os deveres concretamente violados e o nexo de imputação da conduta à agora Recorrente. E não se diga que, por utilização e aplicação de presunções judiciais, é possível alcançar uma solução diversa daquela que vem de se exarar, quer quanto ao alcance da convicção referente à culpa, quer quanto ao preenchimento do tipo de ilícito respeitante à autoria. É certo que a utilização de presunções judiciais em processos sancionatórios, mesmo incluindo o processo penal, é hodiernamente aceite, como decorre da Jurisprudência do Tribunal Constitucional. Com efeito, esta Instância, no Acórdão n.º 391/2015, a propósito da utilização de presunções judiciais em processo penal, afirmou o seguinte: “(…) 2.3. Da interpretação do artigo 127.º do Código de Processo Penal O Recorrente questiona a constitucionalidade da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal. Alega que esta interpretação é incompatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, e com o dever de fundamentar as decisões judiciais imposto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição. (…) Para melhor análise da questão de constitucionalidade sub judicio, importa começar por tecer algumas breves considerações sobre o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, bem como sobre o conceito de presunção judicial. O artigo 125.º do Código de Processo Penal consagra a regra da “não taxatividade dos meios de prova” dispondo que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei». Por sua vez, no que respeita à apreciação da prova, o artigo 127.º do aludido Código consagra o princípio da livre apreciação da prova, estabelecendo que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». Como é sabido, no que respeita à apreciação da prova produzida e ao modo como esta deve ser valorada no sentido de o julgador formar a sua convicção sobre os factos relevantes para a decisão, ao sistema da prova legal (em que a apreciação da prova tem por base regras legais que pré-determinam o valor a atribuir-lhe) opõe-se o sistema da prova livre, caracterizado pela circunstância de tal apreciação ser efetuada com base na livre valoração do juiz e na sua convicção pessoal. Conforme refere Figueiredo Dias (cfr. ob. cit., págs. 202-203) o princípio da livre apreciação da prova «não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida», acrescentando ainda que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” –, de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo». Neste mesmo sentido, Castanheira Neves (Cfr., Sumários de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, págs. 50-51), escreve que «a liberdade de que aqui se fala não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionisto-emocional que se furte, num incondicional subjetivismo, à fundamentação e à comunicação. Trata-se antes de uma liberdade para a objetividade – não aquela que permita uma “intime conviction”, meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objetividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, i. é, uma verdade que transcenda a pura subjetividade e que se comunique e imponha aos outros». Também o Tribunal Constitucional em várias decisões em que estava em causa a constitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo Penal disse o seguinte: “…O atual sistema da livre apreciação da prova não deve definir-se negativamente pela ausência das regras e critérios legais predeterminantes do seu valor, havendo antes de se destacar o seu significado positivo. […] A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e portanto imotivável. há de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão. [...]. A regra da livre apreciação da prova em processo penal […] não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável» (cfr. Acórdão n.º 1164/96, acessível em www.tribunalconstitucional.pt). Já no que respeita ao conceito de presunções judiciais, não existe no Código de Processo Penal qualquer menção expressa ao mesmo. A referência legal ao conceito de presunções pode ser encontrada no Código Civil, cujo artigo 349.º as define como «ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido». Vaz Serra (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 108.º, n.º 3559, pág. 352), caracterizando esta figura, referiu que as presunções «pressupõem a existência de um facto conhecido (base das presunções), cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelos meios probatórios gerais; provado esse facto, intervém a lei (no caso de presunções legais) ou o julgador (no caso de presunções judiciais) a concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras deduzidas da experiência de vida». Na verdade, a utilização de presunção judicial permite que perante um ou mais factos conhecidos, por um procedimento lógico de indução, se adquira ou se admita a realidade de um facto não diretamente demonstrado, na convicção, apoiada nas regras da ciência, da experiência ou da normalidade da vida, de que certos factos são a consequência de outros. E é no valor da credibilidade do id quod e na consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta que está o fundamento racional da presunção, residindo na medida desse valor e dessa consistência a maior ou menor validade da inferência efetuada. No âmbito da apreciação da prova em processo penal, durante muito tempo, foram escassas na doutrina e jurisprudência portuguesas as referências à possibilidade de recurso a presunções judiciais, embora a sua utilização nos tribunais fosse uma prática comum. Nos tempos mais recentes registam-se algumas abordagens teóricas da prova denominada de “indireta”, “indiciária”, “circunstancial” ou “por presunções”, procurando-se definir os critérios que devem presidir à sua utilização de forma a que esta seja compatível com o princípio da presunção de inocência (cfr. Euclides Dâmaso Simões, em «Prova indiciária», na Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 203 e ss., José Santos Cabral em «Prova indiciária e as novas formas de criminalidade», na Revista Julgar, n.º 17, 2012, pág. 13, Marta Sofia Neto Morais Pinto, em «A prova indiciária no processo penal, na Revista do Ministério Público, n.º 128, Out.-Dez. 2011, pp. 185-222, Luís Campos, em «A corrupção e a sua dificuldade probatória – o crime de recebimento indevido de vantagem», na Revista do Ministério Público, n.º 137, Jan.-Mar. 2014, pp. 132 e ss., André Lamas Leite, em “Nótulas sobre o crime de administração danosa”, na Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano IX – 2012, pág. 56, e na jurisprudência, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2007, de 6-10-2010 e de 7-4-2011, todos acessíveis em www.dgsi.pt). A questão a apreciar é precisamente a de saber se a interpretação sustentada pelo Acórdão proferido nestes autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 17 de março de 2015, segundo a qual o artigo 127.º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205.º, n.º 1, da Constituição. O Tribunal Constitucional já se debruçou sobre problemas de constitucionalidade de normas que estabelecem presunções legais em matéria penal, tendo concluído pela sua admissibilidade, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustenta e que baste para tal a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário. É o caso do Acórdão n.º 38/86 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), que decidiu não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 169.º, § 1.º, e 557.º do Código de Processo Penal (de 1929) e as do artigo 2.º, n.º 2 e seu § único, do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de outubro de 1948, que se referiam à “fé em juízo” do auto de notícia em processo sumário. Também o Acórdão n.º 448/87 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), entre outros, no mesmo sentido, sobre a mesma questão, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 26.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 85-C/75, de 26 de fevereiro (Lei de Imprensa), na medida em que determinava que, no caso de escritos ou imagens não assinados, publicados na imprensa periódica e consubstanciando um crime de abuso de liberdade de imprensa, fosse havido como autor do escrito ou imagem o respetivo diretor, o que o responsabilizava como autor do crime, a não ser que provasse que não conhecia o dito escrito ou imagem ou lhe não tivesse sido possível impedir a respetiva publicação. Considerou o Tribunal que não se mostrava violado o princípio da presunção de inocência, referindo, na fundamentação, o seguinte: «Na verdade, pode dizer-se que a dimensão deste princípio suscetível de estar em causa na hipótese – tratando-se nela, como se trata, da presunção de um puro facto – seria, não a que proíbe o estabelecimento de presunções de “culpabilidade” (não é, com efeito, a culpa do agente que aí se presume), mas antes a que respeita ao tema da prova em processo penal e se exprime (…) na regra segundo a qual uma situação de non liquet na questão de facto deverá ser valorada e resolvida em favor do réu. Ora, o que sucede é que, sendo a presunção em apreço meramente relativa – pois sempre o diretor é admitido a fazer prova de que não teve conhecimento do escrito (ou de que não pôde impedir a respetiva publicação), a mesma presunção redunda em não mais do que uma simples prova de ínterim ou de primeira aparência, pelo que ainda quanto aos factos a que respeita pode operar, bem vistas as coisas, a mencionada regra in dubio pro reo: basta, para tanto, que através da prova trazida ao processo o diretor do periódico crie uma situação de incerteza (de non liquet) acerca da questão de facto, ou seja, acerca dos factos integrados na presunção». Ainda neste mesmo sentido se pronunciou o Acórdão n.º 246/96 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), no qual se decidiu não julgar inconstitucionais as normas do artigo 22.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Aduaneiras, na sua interpretação conjugada, segundo a qual se presumem não nacionais as mercadorias que forem colocadas ou detidas em circulação no interior do território aduaneiro sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigíveis ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos. E é ainda o caso do Acórdão n.º 276/2004, que decidiu interpretar, nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o n.º 1 do artigo 152.º, do Código da Estrada, no sentido de que este preceito se limita a estabelecer uma presunção ilidível de que o proprietário ou possuidor do veículo é o seu condutor, desde que não identifique outrem como tal, tendo-se considerado, remetendo para jurisprudência anterior do Tribunal, que a existência de presunções, mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis. Todas estas decisões revelam que concluir-se pela prova de um facto em resultado do funcionamento de uma presunção é compatível, em processo penal, com uma presunção geral de inocência e com o princípio in dubio pro reo. O princípio da presunção da inocência, tendo sido consagrado pela primeira vez na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, veio a ter posterior acolhimento no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, encontrando-se previsto no n.º 2, do artigo 32.º, da Constituição, no qual se dispõe que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa». Da consagração constitucional do princípio da presunção de inocência decorre que o processo penal tem de ser estruturado de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido, tido à partida como inocente, por não haver qualquer fundamento para que aquele não se considere como tal enquanto não for julgado culpado por sentença transitada em julgado. Em matéria de prova, este princípio é identificado por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, o qual se traduz numa imposição dirigida ao julgador no sentido de que qualquer situação de dúvida a respeito dos factos relevantes para a decisão da causa ou da culpabilidade do arguido deve ser valorada a favor deste, resolvendo-se desta forma os casos de non liquet em matéria de prova (sobre as diferentes opiniões defendidas na doutrina acerca das relações entre o princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo, cfr. Helena Magalhães Bolina, «Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção da inocência (art. 32.º, n.º 2, da CRP»), Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXX, Coimbra, 1994, págs. 440-442). No entanto, mesmo a nível probatório, ele tem um sentido e alcance mais amplos que o princípio in dubio pro reo, como explica Helena Magalhães Bolina (cit., págs. 443-446): «O princípio in dubio pro reo só se aplica no caso de surgir a dúvida quanto à apreciação da matéria de facto. O princípio da presunção de inocência, atento o objetivo que visa atingir, intervém em momento anterior, condicionando o surgimento dessa dúvida, impondo-o em todas as situações em que, à luz da verdade material, a culpabilidade do arguido não possa considerar-se afirmada com certeza. A dúvida é, assim, por imposição do princípio de presunção de inocência, uma dúvida legal: uma dúvida que deve surgir em determinadas circunstâncias e constitui também matéria de direito, não só a questão de saber se a dúvida surgida na apreciação da prova foi resolvida favoravelmente ao arguido – caso em que se está perante a verificação do respeito do princípio in dubio pro reo –, mas também se, em face da prova produzida, a dúvida surgiu quando devia, ou, noutra perspetiva, se o juízo de certeza foi bem fundado. Nesse caso, o princípio cujo respeito se avalia é, não já o in dubio pro reo, mas, mais rigorosamente, o princípio da presunção de inocência. O princípio da presunção de inocência distingue-se, assim, do princípio in dubio pro reo, não só pela sua relevância no tratamento do arguido ao longo de todo o processo e pelo seu reflexo extraprocessual como critério dirigido ao legislador ordinário, mas também, em sede de prova, impondo que a dúvida surja em determinadas circunstâncias, assim possibilitando, em momento lógico posterior, a aplicação do princípio in dubio pro reo». No presente recurso não se trata de verificar a constitucionalidade de uma qualquer previsão legal de determinada presunção de facto, como ocorreu com os anteriores Acórdãos acima referidos, incidindo a fiscalização de constitucionalidade sobre a possibilidade de, nos termos da interpretação normativa sindicada, se entender ser genericamente admissível o recurso a presunções judiciais como meio de prova em processo penal. Segundo se depreende das alegações do Recorrente, este sustenta que, no domínio do processo penal, na insuficiência de prova direta, o julgador estaria impedido, por força do princípio da presunção da inocência, de recorrer a presunções judiciais. Ou seja, nesses casos de inexistência de prova direta, impor-se-ia, segundo o Recorrente, por força do princípio da presunção de inocência, o surgimento da dúvida a respeito dos factos relevantes para a decisão, dúvida essa que, por força do princípio in dubio pro reo, teria de ser valorada em favor do arguido. Ora, na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu. Se, no caso concreto, houve lugar à utilização de presunções sem a necessária credibilidade ou consistência é uma questão que o Tribunal Constitucional não tem competência para avaliar. (…) Por estas razões se conclui que a interpretação da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal não viola qualquer parâmetro constitucional. (…)” (negro nosso). Como claramente emerge do Aresto transcrito, não subsiste qualquer dúvida de que as presunções legais em matéria penal são admissíveis, “desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustenta e que baste para tal a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário”. No que concerne à prova por presunção judicial, a mesma é igualmente admissível, porque compatível com as garantias constitucionais, desde que possa “sempre ser infirmada por contraprova”, sendo que, “na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.” Ora, uma das questões que aqui se colocam é, precisamente, a de saber se, quanto à formulação da imputação culposa, a mesma pode ser realizada por presunção judicial, sem que haja, ao menos, factos demonstrativos da subsistência de uma conduta omissiva do arguido. Entendemos que a resposta esta questão só pode ser negativa, até porque mesmo a prova quanto a um facto negativo não dispensa a reunião de uma constelação fáctica demonstrada, ainda que mínima, sob pena de se postergar, por completo, as mais elementares regras processuais. A outra questão que se coloca é tangente a um particular aspeto do tipo de ilícito infracional, e que se prende com a demonstração da autoria da infração desportiva, nos casos em que os clubes também são responsabilizados, ainda que pelo incumprimento de deveres disciplinares próprios, por comportamentos e condutas adotadas por adeptos e simpatizantes durante a realização de eventos desportivos, designadamente, como decorre da imputação consagrada no art.º 187.º, n.º 1 do RD. Ora, sobre esta matéria debruçou-se já este Tribunal Central Administrativo no Acórdão proferido em 21/11/2019, no processo n.º 43/19.0BCLSB, tendo tido o ensejo de explicitar, a este propósito, o que a seguir se transcreve: “(…) d. presunções relativas — excepções ao princípio in dubio pro reo; Por força do art° 32° n° 2 e 10 da Constituição, no direito sancionatório, seja criminal seja disciplinar, não se presume a autoria do tipo de ilícito, o que se presume, a partir de uma base fáctica provada (base da presunção), são comportamentos expressos em factos susceptíveis de imputação subjectiva ou objectiva. Dito de outro modo, não é juridicamente admissível presumir a qualidade de sócio, adepto ou simpatizante do clube relativamente à pessoa singular desconhecida e, como tal, não existente no processo, pessoa que executa os actos materiais tipificados no art° 181° n° 1 do RD- FPF/2016, que é o sócio, adepto ou simpatizante do clube, e que assim concretiza a infracção, nos termos já expostos, materializando o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar. Se não se sabe quem é a pessoa singular, porque não está identificada no processo disciplinar, não é possível fazer derivar por presunção e dar como provado que a pessoa em causa é sócio, adepto ou simpatizante do clube para efeitos de imputação da autoria ao clube desportivo. * Vejamos o regime da presunção em sede sancionatória.No campo das presunções judiciais em matéria sancionatória maxime de natureza criminal, importa atender às considerações exaradas no Acórdão do STJ de 19.06.2019 tirado no proc° 881/16.6 JAPRTA.P1.S1 (Pires da Graça): "(..) O artigo 1270 do CPP estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e natureza completamente diferente: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar, (o caso dos documentos autênticos), outra, também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência, finalmente umas outra, eminentemente subjectiva, que resulta da livre convicção do julgador. Porém não há que confundir o grau de discricionariedade implícito na formação do juízo e valoração do julgador com o mero arbítrio: a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser nunca puramente subjectiva ou emotiva, e, por isso, há-de ser fundamentada, racionalmente objectivada e logicamente motivada, de forma a susceptibilizar controlo. A livre apreciação da prova liberta do rígido sistema da prova tarifada, ou prova legal, realiza-se obedecendo a critérios lógicos e objectivos, determinando uma convicção racional e, por isso objectivável e explicável. (v. vg acs do STJ de: 4 de Novembro de 1998, 21 de Janeiro de 1999 e 18 de Janeiro de 2001. respectivamente na CJ, Acs do STJ VI, tomo 3, 201; SAASTJ n° 27, 38; n" 47, 88). Costuma distinguir-se entre prova directa e prova indiciária, referindo-se aquela ao thema probandum, aos factos a provar, e respeitando a prova indirecta ou indiciária a factos diversos (instrumentais) do tema probatório, mas que possibilitam, pelo uso das regras da experiência, extrair ilações no domínio do thema probandum, de convicção racional e objectivável do julgador. O princípio da legalidade da prova perfilhado pelo are 125° do CPP considera "admissíveis as provas que não forem proibidas por lei." (…) Nas provas admissíveis são incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.° do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contraria o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127.° do CPP). Não está, por isso, vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção- por presunção judicial- de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido. (…)". * Feito o devido enquadramento, voltemos ao caso concreto.Como já referido, por disposição expressa do art° 12° do RD- FPF/2016 em matéria de direito adjectivo, nomeadamente sobre meios de prova admissíveis no processo disciplinar, regem subsidiariamente as disposições do regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública consagrado na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Lei 35/2014, 20.06 (LTFP). Por sua vez, nesta matéria sancionatória disciplinar, o art° 201° n° 2, LTFP procede ao reenvio para os princípios de processo penal, o que significa que onde forem omissos o processo comum ou os processos especiais do presente Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2017 rege o disposto no Código de Processo Penal, nomeadamente em sede de diligências indispensáveis à instrução do processo. Em juízo de indispensabilidade impõem-se as diligências instrutórias que possibilitem o exercício do contraditório por parte do clube desportivo no tocante à imputação de autoria por violação do dever geral de garante relativamente aos deveres consagrados no art° 180° n" 1 do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol/2016 em razão do cometimento pelo sócio, adepto ou simpatizante da matéria delitual descrita na norma sancionatória do art° 181° n° 1 do RD- FPF/2016. De modo que em matéria de presunções cabe observar o regime consagrado no Código de Processo Penal. * Diz-nos a doutrina da especialidade neste ramo do Direito que, "(..) As presunções constituem, em processo penal, excepções ao princípio in dublo pro reo. Como excepções devem ser interpretadas nos precisos termos textuais da lei, não podendo ser aplicadas analogicamente. (..) As presunções legais relativas fazem inverter o ónus da prova. Em obediência à presunção, o julgador terá de dar o facto como provado, no caso de incerteza. "A presunção legal relativa tem natureza processual e actua, precisamente, quando, incerto o facto probando (mas somente quando incerto) o legislador permite, perante essa incerteza, a equiparação de um facto indiciante a um facto presumido incerto, da prova do primeiro fazendo derivar então as mesmas consequências que teriam lugar com a prova do segundo. E assim, as presunções simples ou naturais são meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a exactidão no caso concreto" (Cavaleiro de Ferreira, Curso, II). Exactamente por isso, diz-se no Acórdão do STJ de 16.05.2019 tirado no proc° n° 27908/16.6 T8LSB.L1.S1 (Rosa Tching) que, "(..) o erro na livre apreciação das provas, salvo quando, nos termos do artigo 674.°, n.° 3, do CPC, a utilização desse critério de valoração ofenda uma disposição legal expressa que exija espécie de prova diferente para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, ou ainda quando aquela apreciação ostente juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade, ofensivo de qualquer norma legal ou extraído a partir de factos não provados (..) [configuram] verdadeiros erros de direito (..)". A nosso ver, é o que ocorre nas circunstâncias do caso trazido a recurso. Não se suscitam dúvidas quanto a que nenhum dos citados normativos (180º/181° RD- FPF/2016) estabelece expressamente a presunção de que a execução dos factos ilícitos descritos tem como efeito jurídico automático a operatividade da imputação da autoria ao clube, desde que tais factos sejam cometidos por pessoa física a partir do ajuntamento de pessoas identificadas pelas suas camisolas, boné, cachecóis, tarjas, bandeiras, etc. etc., atavios próprios dos sócios, adeptos, simpatizantes e das claques dos clubes, estilo "no name boys", "juventude leonina" et altri, pessoas acantonadas num determinado espaço dos recintos desportivos aquando da realização do jogo. Uma interpretação nestes termos, de considerar a imputação da autoria ao clube e consequente punição um efeito automático decorrente da materialização dos eventos ilícitos constantes da previsão dos citados normativos (180º/181°) do RD-FPF/2016, equivaleria a assumir que a entidade regulamentar consagrou uma assunção automática da posição de garante do clube desportivo e, consequentemente, de autoria. Consequentemente, equivaleria a atribuir a autoria por responsabilidade disciplinar objectiva do clube por decorrência do cometimento dos factos ilícitos descritos nas normas sancionatória, factos oriundos do ajuntamento de pessoas da claque desportiva em tumulto, presumindo que todas aquelas pessoas têm a qualidade funcional (de ligação ao clube) exigida pela norma, isto é, de "sócios ou simpatizantes". * Todavia, como já referido, a responsabilidade objectiva mostra-se afastada pela circunstância de a norma sancionatória em causa (181° n° 1 - ofensas corporais muito graves a agente desportivo) do RD- FPF/2016 exigir para efeito de imputação da autoria aos clubes e punição destes por factos ocorridos nos recintos desportivos, que as faltas sejam praticadas por sócios, adeptos ou simpatizantes do clube.Por esta razão, porque as normas exigem a imputação da qualidade pessoal de sócio, adepto ou simpatizante ao clube especificamente objecto da punição, não é admissível, do ponto de vista jurídico, presumir a qualidade de sócio, adepto ou simpatizante relativamente a pessoa que nem se sabe quem é no processo disciplinar, para efeitos de operatividade da ligação funcional do (desconhecido) sócio, adepto ou simpatizante ao clube desportivo nos termos consignados nos art°s. 180º/181° RD- FPF/2016. * Só os calções e a camisola com a heráldica do clube, não chega para dar operatividade à imputação de autoria ao clube, posto que, nos termos já referidos, tal é vedado pelo art° 32° n° 2 e 10 da Constituição.Efectivamente, a interpretação dos art°s. 180°/181° R.D-FPF/2016 no sentido (i) da imputação de autoria ao clube por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos descritos no citado artigo (181°), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida, (ii) presumindo a qualidade funcional de "sócio ou simpatizante" (ligação ao clube) exigida pelas normas (180º/181º) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida, (iii) associando à concretização dos ilícitos (181°) o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (art° 180° do RD- FPF/2016), configura-se inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do regime constante do art° 32° n°s. 2 e 10 CRP. * No mesmo sentido o acórdão deste TCAS tirado em 09.MAI.2019 no rec. n° 42/19.2BCLSB no segmento do discurso jurídico fundamentador que se transcreve:"(...) Na verdade, também perfilhamos o entendimento expresso pela recorrente e já supra afirmado, de que nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 186° 2 e 187° 1 a) e h) do RD. Daí, pois, se concorde que é inconstitucional, por violação do princípio jurídico- constitucional da culpa (art. 2° da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32° 2 e 10 da CRP), a interpretação dos arts 13° f) e 186° 2 e 187° 1 a) e h) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parle desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais: e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2° e 30° 3 da CRP). (…)” (…)”. Acompanhamos, in totum, o raciocínio desenvolvido no aresto transcrito, por razões de similitude fáctico-jurídica com o caso posto, concluindo, do mesmo modo, ou seja, que a utilização de uma presunção judicial quanto à qualidade de sócio ou simpatizante do clube redunda, em bom rigor, na produção de um efeito incriminador automático, o que afronta o princípio da presunção da inocência, cristalizado no art.º 32.º, n.ºs 2 e 10 da Constituição. Deste modo, realçando, por um lado, a total ausência de factualidade no que concerne aos aspetos de ilicitude e culpa e, por outro lado, a inadmissibilidade constitucional de presunções legais e/ou judiciais de autoria do ilícito, assoma imperativa a eliminação, por anulação, do ato punitivo em discussão da ordem jurídica, por falta de pressupostos de facto e de direito. * IV) Quanto à fixação do valor da causa e à constitucionalidade das custas aplicadas no Tribunal a quoVem, ainda, a Recorrente impetrar o aresto recorrido, por o mesmo proceder à alteração do valor da causa e à fixação de custas processuais desproporcionais e excessivas, nos termos que emergem das conclusões xxvi, xxvii, xxviii e xxix. Defende a Recorrente que o valor da causa deveria ser fixado em 1.148,00 Euros, por ser este o valor da multa que lhe foi aplicada, e não no montante de 30.000,01 Euros. Sufraga a Recorrente, ainda, que condenação em custas é violadora do princípio da proporcionalidade e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, devendo ser julgada inconstitucional “a norma resultante da conjugação do disposto art. 2.º, n.ºs 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.ª linha) da Portaria n.º 301/2015, com o previsto nos artigos 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.º da CRP)”. Vejamos. Dispõe o art.º 33.º do CPTA, aplicável ex vi art.º 61.º, da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, com as alterações insertas pela Lei n.º 33/2014, de 16 de junho, e doravante, apenas LTAD) o seguinte: “Nos processos relativos a atos administrativos, atende-se ao conteúdo económico do ato, designadamente por apelo aos seguintes critérios, para além daqueles que resultem do disposto no artigo anterior: (…) b) Quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada; (…)”. Em anotação a este normativo, explicam MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4ª Edição, p. 232), o seguinte: “A alínea b) identifica o conteúdo económico do ato com o montante da sanção aplicada, quando esta corresponda a uma sanção de caráter pecuniário, como é o caso de sanções desse tipo que visem punir um ilícito administrativo, das multas contratuais aplicadas ao contraente público no âmbito do contencioso dos contratos, ou das penas disciplinares que se consubstanciam na aplicação de uma multa.” (sublinhados nossos). Nestes termos, carece de fundamento a aplicação pelo acórdão arbitral recorrido do critério do valor indeterminável previsto no art.º 34.º, do CPTA, dado que este estabelece um critério específico de fixação do valor da causa nos processos respeitantes a bens imateriais - isto é, que se destinem à declaração ou à efetivação de direito extrapatrimonial - e a processos relativos a normas administrativas, e nos presentes autos está em causa a impugnação de pena disciplinar de multa, pelo que antes é aplicável o estatuído na al. b) do art.º 33.º, do CPTA. De resto, neste sentido, veja-se o Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 08/11/2018, no processo n.º 70/18.5 BCLSB, em que se afirma: “II- De acordo com o artigo 76.º n.º 2 da Lei do TAD a taxa de arbitragem é devida em função do valor da causa, mas nada se referindo quanto ao critério ou critérios a que se deve obedecer na fixação do valor da causa a resposta à questão de saber quais os critérios a que deve obedecer a fixação do valor da causa pelo Tribunal Arbitral do Desporto, nos processos que decide em sede de jurisdição arbitral necessária, haverá de ser encontrada nos normativos contidos no CPTA a respeito do valor das causas, em conformidade com o disposto no artigo 61º da Lei do TAD. III – Os elementos interpretativos (cfr. artigo 9º do Código Civil) apontam todos no sentido de que por aplicação do disposto no artigo 33º alínea b) do CPTA, de acordo com o qual “…quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada”, estando em causa a impugnação de uma decisão disciplinar aplicativa de uma pena disciplinar de multa, o valor da causa deve corresponder ao montante da sanção aplicada, significando simultaneamente que em tais casos não há que fazer apelo ao critério do valor indeterminável a que alude o artigo 34º do CPTA.” Deste modo, vindo impugnada nestes autos, em suma, a aplicação de uma pena de multa no montante 1.7148,00 Euros, pela prática da infração disciplinar prevista e punida pelo art.º 187.º n.º 1, al. b), do RD, e face ao estatuído na al. b) do citado art.º 33.º, do CPTA, o valor da causa deverá ser fixado em 1.148,00 Euros. Assim, nesta matéria, deve ser dado, também, provimento ao vertente recurso jurisdicional. A Recorrente vem, por último, suscitar a inconstitucionalidade da “norma resultante da conjugação do disposto art. 2.º, n.ºs 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.ª linha) da Portaria n.º 301/2015, com o previsto nos artigos 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.º da CRP)”. Ora, esta problemática foi objeto, já, de exame pelo Tribunal Constitucional que, no recentíssimo Acórdão n.º 543/2019, proferido em 16/10/2019, decidiu não julgar inconstitucionais as normas aludidas do Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro. Foi o seguinte o entendimento da Colenda Instância. “(…) 2.1. A Portaria n.º 301/2015, em que se inserem as normas julgadas inconstitucionais pelo Tribunal a quo, foi aprovada ao abrigo, designadamente, do artigo 76.º da Lei n.º 74/2013, alterada pela Lei n.º 33/2014, que criou o Tribunal Arbitral do Desporto, e tem por objeto, para o que agora releva, o estabelecimento da taxa de arbitragem e dos encargos do processo arbitral no âmbito da arbitragem necessária (artigo 1.º). O referido artigo 76.º da Lei n.º 74/2013 enquadra-se no título da lei especificamente dedicado às «custas processuais no âmbito da arbitragem necessária» (título IV), isto é, às custas devidas nos processos que respeitam a «litígios emergentes dos atos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina» (artigo 4.º, n.º 1), e nos processos que têm origem em recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem (artigo 5.º). Relembre-se que, por opção do legislador, inovatoriamente consagrada no ordenamento jurídico português a partir da entrada em vigor da Lei n.º 74/2013, a competência para apreciar e decidir essa particular categoria de litígios, que antes pertencia aos tribunais estaduais (administrativos), foi transferida para os colégios arbitrais que funcionam no âmbito do Tribunal Arbitral do Desporto. Deste modo, o recurso a este tribunal arbitral por quem queira impugnar a validade dos atos praticados pelas entidades desportivas, no uso de poderes públicos delegados pelo Estado, não decorre de uma opção livre do particular, mas de uma imposição do legislador (arbitragem necessária). Nesta medida se distingue do sistema de arbitragem voluntária - igualmente consagrado na citada lei para os demais litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou sejam relacionados com a prática do desporto (artigos 1.º, n.º 2, e 6.º, n.º 1) -, sistema que, participando da matriz originariamente privada da arbitragem, reconhece desde logo aos litigantes a faculdade de escolher entre o recurso aos tribunais do Estado e o recurso ao Tribunal Arbitral do Desporto. Em consonância com a génese pública da arbitragem necessária, é o legislador, e não as partes do litígio e os árbitros, quem determina o valor das custas dos respetivos processos, vigorando, nesta matéria, as regras dos artigos 76.º a 80.º da Lei n.º 74/2013, e da Portaria n.º 301/2015, na redação introduzida pela Portaria n.º 314/2017, 24 de outubro. O artigo 76.º da Lei do TAD, ao abrigo do qual foi aprovada a portaria ora sob sindicância (parcial), integra no conceito de custas processuais a «taxa de arbitragem» e os «encargos do processo arbitral» (n.º 1). De acordo com o mesmo normativo legal, «a taxa de arbitragem corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor da causa, por portaria dos membros do Governo responsáveis pela área da justiça e do desporto» (n.º 2). Por seu lado, os encargos do processo arbitral incluem «todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção de prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros» (n.º 3). Integrando o quadro legal diretamente aplicável às custas do processo arbitral necessário, o n.º 3 do artigo 77.º da Lei do TAD determina, na parte relevante, que a taxa de arbitragem é integralmente suportada pelas partes (e por cada um dos contrainteressados, se os houver), devendo ser paga por transferência para a conta bancária do TAD aquando da apresentação do requerimento inicial e da contestação (e da pronúncia dos contrainteressados). A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes deve ser feita na decisão arbitral (n.º 4), devendo cada uma delas pagar, no prazo de dez dias contado da respetiva notificação, as quantias que eventualmente acrescem à taxa já paga (n.º 5). Finalmente, cumpre registar que as custas processuais devidas pelos processos arbitrais (necessários ou voluntários) constituem receitas próprias do TAD, definido por lei como entidade jurisdicional independente, quer dos órgãos da administração pública do desporto, quer dos organismos que integram o sistema desportivo, e dotada de autonomia administrativa e financeira (artigo 1.º, n.ºs 1 e 3, da Lei do TAD). Apesar da alusão restrita à taxa de arbitragem constante do n.º 2 do artigo 76.º da Lei do TAD, certo é que a Portaria n.º 301/2015 fixou, não apenas o respetivo valor (a pagar por cada sujeito processual no momento da apresentação do respetivo articulado), mas também o montante dos encargos do processo arbitral (a pagar após a prolação da decisão final), autonomizando, neste âmbito, as quantias devidas a título de honorários dos árbitros e a título de encargos administrativos, em conformidade com o disposto no n.º 3 do citado artigo 76.º (cfr. Anexo I). Para todas as parcelas das custas processuais, a Portaria n.º 301/2015 estabeleceu, como critério de determinação das quantias devidas a esse título, o do valor da causa, adotando, assim, com tal amplitude, no domínio da arbitragem necessária, um dos principais factores de determinação do montante da taxa de justiça devida nos processos judiciais (cfr. artigos 529.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e 6.º do Regulamento das Custas Processuais - RCP). Com efeito, sob a epígrafe «taxa de arbitragem no âmbito da arbitragem necessária», o artigo 2.º da mesma portaria, na redação introduzida pela Portaria n.º 314/2017, determina o seguinte: «1- A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do Desporto em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante. 2-Compete ao tribunal arbitral definir o valor da causa, nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. 3- Se a arbitragem terminar antes da sentença final, o Presidente do Tribunal Arbitral do Desporto pode reduzir a taxa de arbitragem tomando em consideração a fase em que o processo arbitral foi encerrado ou qualquer circunstância que considere relevante. 4- São encargos do processo arbitral todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção de prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros. 5- A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I». Em conformidade, a tabela constante do Anexo I da Portaria n.º 301/2015, na redação introduzida pela Portaria n.º 314/2017, fixa os montantes respeitantes à taxa de arbitragem e aos encargos do processo arbitral em função do valor da causa, estabelecendo, para o efeito, onze escalões: o primeiro escalão aplica-se aos processos arbitrais cujo valor não ultrapassa os €30.000,00, a que corresponde uma taxa fixa de arbitragem de €750,00, honorários coletivos dos árbitros no montante de €2.500,00 e encargos administrativos no montante de €75,00, sendo a taxa de arbitragem e os encargos administrativos da responsabilidade individual de cada sujeito processual; o último escalão integra os processos cujo valor se situa entre os €450.000,01 e os €500.000,00, a que se aplica uma taxa fixa de arbitragem de €5000,00, honorários coletivos dos árbitros de €30.000.00 e encargos administrativos de €500,00. Para além dos €500.000,00, ao valor da taxa de arbitragem, dos honorários dos árbitros e dos encargos administrativos acresce por cada €50.000,00 ou fração, €500,00, €5000,00 e €50,00, respetivamente. Porém, se o valor da causa atingir ou ultrapassar os €2000.000,00 a taxa de arbitragem e os encargos do processo arbitral passam a ter um valor fixo, não podendo ultrapassar os montantes apurados em função da regra de majoração até aí aplicada. A decisão de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal a quo, ora em reapreciação, tem precisamente por objeto as normas do artigo 2.º, nºs. 1 e 5, da Portaria n.º 301/2015, acima destacadas em itálico, na parte em que, por remissão para o disposto no primeiro escalão da tabela constante do seu Anexo I, fixam em €750,00, €2500,00 e €75,00, respetivamente, a taxa de arbitragem, os honorários coletivos dos árbitros e os encargos administrativos devidos em processos arbitrais de valor igual ou inferior a €30.000,00. Defende o Tribunal recorrido, por remissão para o acórdão do TCA Sul de 6 de dezembro de 2017, proferido no processo n.º 155/17.5BCLSB, que «há ali um condicionamento excessivo e injustificado do acesso aos tribunais por via tributária ou paratributária, por causa do elevado valor das custas processuais, que podem ser concretamente – e aqui foram – muito superiores ao valor do processo, processo que tem natureza arbitral ou forçada». Por isso, conclui que, «[t]endo aqui – numa arbitragem forçada – aplicado tais regras desproporcionais e injustas, resultando num valor de custas processuais muitíssimo superior ao valor processual e num valor relativamente elevado tendo presente o valor da causa, o colégio arbitral do TAD violou, no caso concreto, os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso à justiça». Vejamos se assim é. 2.2. Como é sabido, o Tribunal Constitucional foi chamado a apreciar, no Acórdão n.º 230/2013, proferido em processo de fiscalização preventiva, a inconstitucionalidade da opção de política legislativa, consagrada na norma constante da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º, conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todos do Anexo ao Decreto n.º 128/XII, de reservar exclusivamente ao TAD a competência para julgar os litígios emergentes dos atos praticados pelas federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no exercício dos poderes públicos que lhe foram transferidos pelo Estado através da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, sem possibilidade de recurso para os tribunais estaduais. Estando exclusivamente em causa nesse aresto o problema da irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões proferidas pelo TAD no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, o Tribunal Constitucional não deixou, então, de abordar a questão prévia da própria admissibilidade constitucional da criação de tribunais arbitrais necessários, tendo por referência fundamental o disposto nos artigos 20.º, 202.º, n.º 4, e 209.º, n.º 2, da Constituição. A este respeito, lê-se no Acórdão n.º 230/13 o seguinte: «A Constituição prescreve, a propósito da função jurisdicional, que a lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (artigo 202º, nº 4), e faz expressa referência, no artigo 209º, n.º 2, aos tribunais arbitrais e aos julgados de paz. Qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros por si designados, podendo a convenção de arbitragem ter por objeto um litígio atual, ainda que se encontre afeto a um tribunal judicial (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (cláusula compromissória) (artigo 1º, n.º 3, da LAV). Os tribunais arbitrais estão previstos como uma categoria autónoma de tribunais e encontram-se submetidos a um estatuto funcional similar ao dos tribunais judiciais, e as suas decisões têm natureza jurisdicional, mas não são órgãos estaduais, correspondendo a sua atividade a um verdadeiro exercício privado da função jurisdicional (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/86). Mais problemática é a questão de saber se a cobertura constitucional dos tribunais arbitrais abrange apenas os tribunais voluntários (isto é, os instituídos por vontade dos interessados) ou também os tribunais necessários (ou seja, os impostos por lei), visto que estes implicam que os litigantes fiquem impedidos de recorrer diretamente aos tribunais ordinários que seriam competentes, podendo, por isso, pôr em causa não apenas o direito de acesso aos tribunais, mas também o princípio da igualdade (expressando esta dúvida, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª edição, Coimbra, pág. 551; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, pág. 17). Todavia, o Tribunal Constitucional tem extraído do expresso reconhecimento constitucional da possibilidade de existirem tribunais arbitrais, o entendimento de que, não só os cidadãos podem, no exercício da sua autonomia de vontade, constituir tribunais arbitrais para resolução de determinados litígios, como o próprio legislador pode criá-los para o julgamento de determinada categoria de litígios, impondo aos cidadãos neles implicados o recurso necessário a essa via de composição jurisdicional de conflitos (acórdãos nºs. 52/92, 757/95 e 262/98). No entanto, a arbitragem necessária não releva da autonomia de vontade das partes e, nesse plano, apresenta contornos diversos dos simples tribunais arbitrais voluntários. Neste último caso, o litígio é cometido pelos interessados à decisão de árbitros, mediante uma convenção de arbitragem, desde que estejam apenas em causa interesses de natureza patrimonial ou as partes possam transacionar sobre o direito controvertido. A função jurisdicional dos tribunais arbitrais tem aqui natureza privada, na medida em que o seu fundamento imediato radica na liberdade contratual e na autonomia privada (PEDRO GONÇALVES, ob. cit., págs. 566 e 569). Isso explica que as partes possam determinar, por acordo, que o julgamento seja feito segundo o direito constituído ou segundo a equidade, ou por apelo à composição do litígio na base do equilíbrio dos interesses em jogo, e que só haja lugar a recurso da decisão arbitral se as partes tiverem previsto expressamente essa possibilidade e a causa não tiver sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável (artigo 39º da LAV). Ao contrário, se por lei especial o litígio for submetido a arbitragem necessária, a decisão de recorrer à jurisdição arbitral não se baseia num negócio jurídico celebrado entre as partes, mas no ato legislativo que impõe essa forma de composição do litígio, ficando os interessados impedidos de aceder quer à jurisdição estadual, quer à arbitragem voluntária» - itálico acrescentado. Considerou-se, assim, que, fora das matérias constitucionalmente sujeitas a uma reserva de jurisdição pública, também o Estado, no exercício da sua liberdade de avaliação do interesse público e de escolha das medidas de política legislativa que melhor garantam a sua prossecução, pode constituir tribunais arbitrais para o julgamento de determinado tipo de litígios e impor aos cidadãos o recurso a tais instâncias jurisdicionais. No caso do TAD, as razões de interesse público concretamente invocadas para a sua constituição prendem-se com a «necessidade de o desporto possuir um mecanismo alternativo de resolução de litígios que se coadune com as suas especificidades de justiça célere e especializada» (cfr. exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 84/XII, que esteve na origem da Lei n.º 74/2013), configurando, pois, uma medida de adequação que, sendo imposta por razões de defesa e promoção do sistema desportivo (artigo 79.º da Constituição), aproveita diretamente àqueles que operam no seu seio. O julgamento de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso aos tribunais e do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição), proferido pelo Tribunal Constitucional no citado acórdão e, posteriormente, no Acórdão n.º 781/2013, não recaiu, pois, sobre a opção legal de impor às partes o recurso ao TAD para resolução dos litígios abrangidos pela sua competência arbitral necessária, mas apenas sobre a solução que, nas sucessivas formulações normativas então apreciadas, negava às mesmas partes o direito de sindicar o mérito da decisão arbitral junto dos tribunais do Estado, julgados indispensáveis à efetivação da garantia consagrada nos mencionados preceitos constitucionais. É, pois, no pressuposto da conformidade constitucional da opção de fundo tomada pelo legislador no âmbito do sistema desportivo de atribuir ao TAD competência exclusiva para controlar, em primeira apreciação (instância), a legalidade de atos praticados pelas federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no exercício de poderes públicos – pressuposto não controvertido nos presentes autos –, que se devem apreciar todos os aspetos normativos do respetivo regime jurídico, mormente aquele que respeita à conformação normativa das custas dos processos que necessariamente devem correr termos nesse tribunal arbitral. Dando por assente esse dado jurídico-constitucional, o da legitimidade dos tribunais arbitrais necessários, importa destacar da transcrita jurisprudência duas ideias que, sendo fruto de uma reflexão iniciada muito antes no Tribunal Constitucional sobre a temática geral dos tribunais arbitrais, encontrou na figura recém-criada do TAD, que cruza características orgânicas e funcionais de natureza pública e privada, particular evidência: i) a ideia de que, na perspetiva da Constituição, os tribunais arbitrais, voluntários e necessários, são «verdadeiros tribunais»; ii) e a ideia de que, sendo-o, não são, em determinados aspetos, «tribunais como os outros» (Acórdão n.º 230/1986). 2.3. A primeira asserção assenta no reconhecimento da natureza materialmente jurisdicional das funções exercidas pelos tribunais arbitrais e no estatuto de independência e imparcialidade dos árbitros. Verificando-se estes dois traços, um relacionado com o tipo de atividade exercida, essencialmente dirigida à composição de litígios (objeto), e outro respeitante às características exigíveis a que tem a seu cargo o exercício dessa atividade (sujeito), é possível concluir que estamos perante um verdadeiro tribunal, não relevando para efeitos constitucionais a natureza pública ou privada da entidade que reúne estruturalmente essa dupla dimensão orgânica e funcional. Como se afirma no Acórdão n.º 230/86, «embora a administração da justiça caiba em exclusivo aos tribunais, tal não significa que esse exclusivo respeite apenas aos tribunais estaduais; abrange também os tribunais arbitrais que, não podendo considerar-se órgãos de soberania, são verdadeiros tribunais» (cfr, no mesmo sentido, Acórdãos n.ºs 419/87, 33/88, 98/88, 250/96 e 465/97). Ora, sendo os tribunais arbitrais «verdadeiros tribunais» não se lhes pode deixar de aplicar também o regime garantístico consagrado no artigo 20.º da Constituição, nos aspetos que possam implicar com o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos e, desde logo, com o próprio direito de acesso aos tribunais aí consagrado. Em desenvolvimento desse quadro garantístico comum, a Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, enuncia uma série de princípios de estruturação do processo arbitral e obrigações dirigidas aos árbitros, na apreciação e decisão do litígio submetido à sua apreciação, que têm no direito fundamental ao processo equitativo a sua fonte de legitimação material – princípios e obrigações cuja violação constitui fundamento de anulação da decisão arbitral invocável perante os tribunais estaduais [cfr., designadamente, artigos 30.º, n.º 1, 42.º, n.ºs 1 e 3, e 46.º, n.º 2, alíneas ii) e vi)]. E é também nessa perspetiva que devem ser interpretadas as normas que, no âmbito da arbitragem cometida ao TAD, impõem na tramitação dos respetivos processos a observância dos valores da igualdade e do contraditório garantidos pelo princípio constitucional do processo equitativo (cfr. artigo 34.º da Lei n.º 74/2013). O princípio da equivalência constitucional dos tribunais arbitrais e tribunais estaduais, na perspetiva das garantias dos cidadãos, sendo aplicável à arbitragem voluntária, não sofre desvios quando aplicado aos tribunais arbitrais necessários, antes pelo contrário. Como vimos, a criação destes últimos decorre de um ato do poder público, que simultaneamente impõe aos particulares o recurso necessário a essa via de composição de conflitos, o que materialmente representa uma transferência para o domínio privado de uma função que originariamente pertence ao Estado – a de administrar a justiça (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição). Ora, tratando-se de uma obrigação do Estado a que corresponde um direito fundamental dos cidadãos (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), parece claro que a regulamentação legal dos processos que correm termos nos tribunais arbitrais necessários deve estar sujeita aos mesmos princípios constitucionais que regem as normas respeitantes aos processos judiciais, competindo ao Estado assegurar, em qualquer caso, os valores tutelados pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição. Assim sendo, tal como sucede com os tribunais do Estado, o acesso aos tribunais arbitrais por este criados não pode ser denegado por insuficiência de meios económicos (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição) e as custas dos processos arbitrais que aí correm termos não devem atingir valores tais que inviabilizem na prática o acesso ao serviço de justiça, impondo-se também neste domínio o respeito pelo princípio constitucional da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição). A ideia de que o padrão constitucional de controlo dos valores de tributação fixados pelo legislador em relação ao serviço de justiça não sofre substanciais variações em função da natureza da entidade competente para a sua prestação foi recentemente sublinhada, ainda que em diferente contexto normativo, no Acórdão n.º 803/2017. Estava em causa nesta decisão a inconstitucionalidade de norma, ou interpretação, que estabelecia para os honorários notariais devidos em processo de inventário de valor superior a €275.000,00 acréscimos tributários crescentes por cada €25.000,00 ou fração, sem qualquer limite máximo, não permitindo que o montante dos honorários fosse fixado de acordo com a complexidade e tempo gasto. Considerou o Tribunal Constitucional que, havendo similitude entre a tributação processual a título de taxa de justiça e a fixação de honorários notariais, as normas que fixam o valor destes últimos «devem ser orientadas pelos mesmos critérios jurídico-constitucionais que determinam o valor das custas judiciais», pois que «do ponto de vista dos interessados, o facto de o processo de inventário ter, por decisão do legislador democrático, sido transferido dos Tribunais para os Cartórios Notariais, não tem qualquer consequência na natureza dos custos que lhes cabem; mantém-se uma contraprestação pela utilização dos serviços de justiça – uma taxa – independentemente da configuração dos poderes públicos materialmente conferidos ao notário». Neste quadro de argumentação, concluiu-se que, «não importando a desjudicialização do processo de inventário a modificação da sua substância», era de convocar a jurisprudência constitucional desenvolvida acerca das normas de fixação da taxa de justiça, designadamente no que respeita ao controlo dos concretos resultados tributários produzidos por aplicação de critérios exclusivamente assentes no valor da ação. Afigura-se que idêntica solução se impõe, por maioria de razão, em relação aos tribunais arbitrais instituídos pelo Estado, como é o caso do TAD, os quais não só exercem uma atividade materialmente jurisdicional, como assumem do ponto de vista orgânico-funcional uma estrutura global equivalente à dos tribunais estaduais. Na verdade, tanto as custas dos processos judiciais como as custas dos processos arbitrais (necessários) condicionam o exercício do direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º da Constituição), categoria que, por expressa determinação constitucional, inclui os tribunais estaduais e os tribunais arbitrais (artigo 209.º, n.ºs 1 e 2, da mesma Lei Fundamental), cuja atividade material participa dessa teleologia garantística comum. Por isso, o critério de determinação do respetivo valor não pode conduzir, num e noutro caso, a montantes manifestamente desproporcionados à complexidade da causa e à utilidade que as partes dela retiram, sob pena de violação das exigências de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido restrito também aplicáveis neste domínio normativo. Por isso, é de aplicar às custas dos processos arbitrais necessários o essencial da parametrização constitucional que a jurisprudência constitucional tem desenvolvido em matéria de custas judiciais. 2.4. Registando as principais linhas de força dessa jurisprudência, com interesse para o objeto do presente recurso, cumpre salientar que o Tribunal Constitucional nunca pôs em causa a constitucionalidade de soluções de tributação exclusivamente assentes no valor da causa, como se sublinha no Acórdão n.º 803/2017. Tais soluções são ditadas pelo legislador democraticamente eleito, no exercício da liberdade de conformação normativa que lhe assiste também em matéria de fixação do preço do serviço público de justiça, sendo certo que a Constituição não consagra, neste domínio, uma regra de gratuidade, nem fixa valores de cobrança. Indispensável é que a aplicação de um tal critério de determinação do montante de custas não conduza à cobrança de taxas de justiça manifestamente desproporcionais ao custo do concreto serviço de justiça prestado, atento o grau de complexidade do processo judicial e a utilidade que o cidadão dele retirou, sob pena de descaracterização da natureza necessariamente bilateral e sinalagmática desse específico meio de tributação. É, pois, também a esta luz que se deverá aferir a inconstitucionalidade das normas a que o Tribunal a quo recusou aplicação. Com uma ressalva, porém, que se relaciona com a segunda ideia fundamental acima destacada - a de que os tribunais arbitrais, sendo tribunais, não são, em certos aspetos, tribunais «como os outros», o que decorre essencialmente do facto de «não [serem] órgãos estaduais, correspondendo a sua atividade a um verdadeiro exercício privado da função jurisdicional», como se esclarece no Acórdão n.º 230/13. Com efeito, nos tribunais arbitrais, sejam eles voluntariamente constituídos pelas partes, sejam eles instituídos pelo Estado, a decisão do litígio é cometida a árbitros, os quais, embora exerçam uma atividade materialmente jurisdicional, não têm o estatuto de juízes de carreira, nem fazem parte da organização do poder político do Estado. A criação do TAD, tal como as medidas previstas designadamente na Lei n.º 6/2011, de 10 de março, que sujeitou a arbitragem necessária os conflitos de consumo entre os utilizadores e os prestadores de serviços públicos essenciais, e na Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, entretanto revogada, que submeteu à arbitragem necessária os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência e medicamentos genéricos, integram-se num fenómeno mais geral de «desintegração do carácter estadual dos tribunais» (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, pág. 16), e constituem sinais de «erosão da estadualidade enquanto característica distintiva do poder judicial» (Paulo Rangel, Repensar o Poder Judicial, pp. 291-292). Em todos esses casos, está em causa a prestação de um serviço público de justiça por entidades (árbitros) que, mesmo quando inseridos num centro de arbitragem institucionalizado pelo Estado, têm natureza privada. Por isso, embora reconhecendo que «o tribunal arbitral, como tribunal que é, faz parte da própria garantia de acesso ao direito e aos tribunais» (Acórdãos n.ºs 250/96 e 506/96), nunca o Tribunal Constitucional defendeu que a garantia constitucional consagrada nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição, se esgota com a intervenção de tribunais arbitrais. Como resulta do teor das declarações de voto apostas nos Acórdãos n.ºs 230/13 e 781/13, o julgamento de inconstitucionalidade que aí fez vencimento parece revelar o entendimento contrário, o de que os tribunais do Estado são o último baluarte de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não sendo constitucionalmente aceitáveis soluções legais imperativas que proíbam em absoluto o acesso à justiça pública para esse efeito. Ora, estando em causa nos presentes autos o problema da inconstitucionalidade do valor das custas dos processos arbitrais que correm termos no TAD, no âmbito da sua competência arbitral necessária, não é possível desconsiderar, também para este efeito, o facto de este não ser um tribunal público especializado em matéria desportiva mas um centro de arbitragem de caráter institucionalizado que não faz parte da organização do Estado e apenas tem por fonte de receitas as custas processuais cobradas nos respetivos processos e os recursos financeiros gerados pela sua restante atividade, designadamente no âmbito da consulta jurídica e mediação (artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 74/2013). A jurisdição do TAD, no âmbito da sua competência arbitral necessária, é exercida por um colégio de árbitros, de entre os constantes da lista do Tribunal (artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 74/2013), cuja atividade jurisdicional, sendo materialmente equivalente à prestada pelos juízes dos tribunais administrativos, é remunerada por via de honorários. Compreende-se, assim, que as custas processuais fixadas para os correspondentes processos arbitrais incluam, não apenas a taxa de arbitragem, mas também os honorários dos árbitros, que constitui a um encargo permanente do TAD decorrente da sua própria estrutura arbitral (artigo 76.º, n.ºs 1 e 3, da mesma lei) – custo que não existe nos tribunais do Estado e, por isso, não é refletido nas custas judiciais, que diferentemente apenas integram a taxa de justiça, outro tipo de encargos e as custas de parte (artigos 3.º, n.º 1, e 16.º do RCP). Esta diferença de base, que é incontornável e consentida pela própria Constituição, que não veda a possibilidade de o próprio Estado constituir tribunais arbitrais, não pode deixar de ser considerada no controlo de proporcionalidade a que também estão sujeitas, por força da mesma Lei Fundamental, as custas dos processos arbitrais em causa no presente recurso. É este controlo que se fará de seguida, considerando as especificidades constitucionalmente relevantes dos tribunais arbitrais necessários, refletidas nas normas sindicadas, e o resultado tributário que a aplicação destas últimas produziu no concreto processo arbitral que esteve na origem dos autos. 2.5. O Tribunal recorrido não questiona, nem se afigura questionável, necessidade e adequação da medida legal que impõe aos operadores desportivos o pagamento de custas nos processos arbitrais que integram o âmbito da competência material necessária do TAD. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, no contexto de apreciação das custas judiciais, a Constituição não garante uma justiça gratuita mas uma justiça economicamente acessível à generalidade dos cidadãos, sem necessidade de recurso ao sistema de apoio judiciário (cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 1182/96 e 70/98). Ora, se o Estado pode exigir aos cidadãos que recorrem aos tribunais públicos o pagamento de taxas de justiça em contrapartida do serviço público de justiça que lhes é individualmente prestado nos processos judiciais, por maioria de razão poderá exigir aos operadores desportivos o pagamento do serviço especializado de justiça desportiva que lhes é especificamente prestado pelo TAD, que é um centro de arbitragem de natureza privada criado para responder às necessidades de uniformização, celeridade e especialização impostas pela especificidade do litígio desportivo (Acórdão n.º 230/13). Sublinhe-se ainda que, nem mesmo relativamente ao direito à saúde (artigo 64.º da Constituição), o princípio da gratuitidade é absoluto, admitindo a previsão de taxas moderadoras para acesso ao Serviço Nacional de Saúde. Como resulta do Acórdão n.º 330/89, «(…) o conceito de gratuitidade (…) será compatível [com] a exigência (ou a exigência em certos casos) aos utentes do SNS de “taxas moderadoras” (…). Tais taxas visam tão-só “racionalizar a utilização das prestações” facultadas pelo serviço em causa: o seu objectivo (…) é unicamente o de “moderar a procura de cuidados de saúdes, evitando assim a sua utilização para além do razoável”». O mesmo raciocínio será transponível para as custas judiciais – e para as custas cobradas no TAD -, dado que também nesta área, onde nem sequer impera idêntico princípio, se procura a racionalização na utilização da justiça, uma vez que os recursos são limitados e se pretende reservá-los para aqueles que mais deles careçam. Independentemente de outras ponderações, trata-se aqui de aplicar um princípio geral de cobertura e imputação de custos, sendo legítima a adoção de medidas aptas a assegurar a sustentabilidade económica de um serviço público prestado por entidades privadas e a imputação do respetivo custo sobre quem, concluindo pela necessidade da utilização desse serviço público, especialmente dele beneficia. Não questionando tais premissas, o que o Tribunal recorrido defende é que o montante das custas cobradas no TAD por processos arbitrais necessários de valor até €30.000,00 é demasiado elevado, em si mesmo e por comparação com o montantes cobrados nos tribunais estaduais, podendo atingir montantes muito superiores ao valor da causa, como se considerou ser o caso, o que constitui «um condicionamento excessivo e injustificado do acesso aos tribunais por via tributária ou paratributária», especialmente censurável porque as partes não têm a possibilidade de optar, em alternativa, pelo recurso aos tribunais do Estado, que deixaram de ter competência na matéria. O problema levantado situa-se, pois, ao nível do princípio constitucional da proibição do excesso aplicável em matéria de restrição de direitos fundamentais dos cidadãos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição). (…) Como decorre da passagem acima transcrita, embora o Tribunal recorrido não tenha concluído pela violação do princípio constitucional da igualdade, como invocado pelo A., SAD, não deixou de fazer uma ponderação comparativa dos regimes vigentes, em matéria de custas processuais, nos processos arbitrais necessários que correm termos no TAD e nos processos judiciais. A conclusão a que este respeito se chegou, por comparação de valores, é a de que a transferência de competências jurisdicionais dos tribunais administrativos para o TAD, na matéria em apreço (cfr. artigos 4.º e 5.º da respetiva lei), redundou num encarecimento dos valores cobrados pelo serviço público de justiça prestado em processos de valor igual ou inferior a €30.000,00. E efetivamente assim é, como decorre da comparação do montante global fixado na primeira linha da tabela constante do Anexo I da Portaria n.º 301/2015 (€3.325,00) e o montante máximo da taxa de justiça fixado na tabela I do RCP para a generalidade dos processos judiciais de valor não superior a €30.000,00 (cinco unidades de conta, que equivale a €510,00), situando-se a diferença em cerca de seis vezes mais o valor das custas dos processos arbitrais necessários (€510,00 x 6 = €3060,00). Sucede que, como se antecipou no ponto anterior, há razões constitucionalmente aceitáveis para essa diferença de valores, que se prendem com a natureza privada do TAD - que tem nas custas processuais a sua principal fonte de financiamento (artigo 1.º, n.º 3, da Lei do TAD) -, o nível médio de rendimentos das entidades desportivas envolvidas nos litígios que integram a competência necessária desse tribunal arbitral, sensivelmente superior ao nível médio de rendimentos dos cidadãos em geral, e as próprias características do serviço de justiça prestado pelo TAD. Note-se, quanto ao primeiro ponto, que a capacidade de auto-financiamento do TAD é essencial para assegurar a sua independência e imparcialidade, quer em relação à administração pública do desporto, quer em relação aos organismos que integram o sistema desportivo – cfr. artigo 1.º, n.º 1, da referida lei. A redução do preço do serviço especializado de justiça prestado pelo TAD para níveis equivalentes aos que vigoram na justiça estadual comportaria o risco de comprometer, ou a subsistência do TAD, considerando os custos tendencialmente mais elevados da atividade de arbitragem, ou a sua independência e imparcialidade, que necessariamente passam pela garantia de um estatuto de efetiva autonomia económico-financeira em relação a todas as partes potencialmente envolvidas nos litígios que compete àquele tribunal decidir. Por outro lado, se é certo que tanto pode recorrer para o TAD um praticante desportivo como uma sociedade anónima desportiva, como é o caso do A., SAD (artigo 52.º da Lei n.º 74/2013), com diferenciados níveis de rendimentos, é razoável que o nivelamento do valor das custas processuais se faça de modo a permitir a viabilização, em condições de independência, de uma entidade jurisdicional que tem por função prestar um serviço de justiça compatível com as necessidades próprias do sistema desportivo, assegurado que esteja, como está, que ninguém será impedido de aceder à justiça desportiva por insuficiência de meios económicos (cfr. artigo 4.º da Portaria n.º 301/2015, na redação da Portaria n.º 314/2017). Finalmente, não é possível ignorar que o serviço de justiça desportiva prestado pelo TAD, também no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, está normativamente estruturado em termos que garantem a competência e qualificação especializada dos árbitros, por um lado, e a prolação de decisões em tempo compatível com a natureza específica do tipo de litígios abrangidos pela sua jurisdição, por outro. Com efeito, o TAD integra na sua composição o Conselho de Arbitragem Desportiva (CAD), órgão que é composto por 11 membros, sendo 2 deles designados pelo Comité Olímpico de Portugal, 2 designados pela Confederação de Desporto de Portugal e 1 pelo Conselho Nacional do Desporto, de entre juristas de reconhecido mérito e idoneidade, com experiência na área do desporto (artigos 9.º e 10.º, n.º 1, alíneas a) a c), da Lei do TAD). Compete ao CAD, designadamente, estabelecer a lista de árbitros do TAD, com base em propostas apresentadas por entidades com responsabilidades institucionais no sistema desportivo (artigo 21.º), e promover o estudo e a difusão da arbitragem desportiva, bem como a formação específica de árbitros, nomeadamente estabelecendo relações com outras instituições de arbitragem nacionais ou com instituições similares estrangeiras ou internacionais (artigos 11.º, alíneas a) e g), da mesma lei). Essa lista de árbitros é integrada, no máximo, por 40 árbitros, designados de entre juristas de reconhecida idoneidade e competência e personalidades de comprovada qualificação científica, profissional ou técnica na área do desporto (artigo 20.º, n.º 2). Acresce que a competência arbitral necessária é sempre exercida por um colégio de três árbitros, podendo cada parte designar um árbitro, devendo os árbitros assim designados escolher o terceiro, que atuará como presidente do colégio (artigo 28.º, n.ºs 1 e 2). Por outro lado, em atenção às exigências próprias do sistema desportivo, a tramitação do processo arbitral obedece a um padrão comum de simplicidade, celeridade e eficácia, que se manifesta, por exemplo, na regra da continuidade dos prazos processuais, que não se suspendem aos sábados, domingos e feriados, nem em férias judiciais (artigo 39.º, n.º 1), na possibilidade da redução dos prazos legalmente previstos (artigo 40.º), já por si muito curtos, sendo de 5 dias o prazo geral para a prática de atos processuais (artigo 39.º, n.º 3) e de 15 dias o prazo de prolação da decisão final, que se conta da data do encerramento do debate da causa (artigo 58.º, n.º 1), incorrendo os árbitros que obstem a que a decisão seja proferida dentro do prazo legal em responsabilidade pelos danos causados (artigo 45.º). O serviço de justiça prestado pelo TAD revela, assim, um nível de especialização e rapidez que, sendo imposto por razões de interesse público com relevância constitucional (artigo 79.º da Constituição), beneficia diretamente os operadores do sistema desportivo. É, pois, razoável que o maior custo necessariamente implicado na prestação desse serviço seja suportado por quem, tendo condições económicas para tanto, como é manifestamente o caso do A., SAD, e da Federação Portuguesa de Futebol, dele objetivamente beneficia. Conforme é referido no Acórdão n.º 155/2017, «[p]ara que se possa considerar existir uma clara desproporção que afeta o carácter sinalagmático de um tributo não se pode atender apenas ao carácter fortemente excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do serviço (acórdãos nºs. 640/95 e 1140/96); ela há-de igualmente ser aferida em função de outros fatores, designadamente da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo (cfr. acórdãos nºs. 1140/96; 115/02 e 349/02).» Ora, estando em causa a prestação do serviço público de justiça, como é o caso, a utilidade do serviço não deve ser aferida tendo em consideração apenas o valor da causa, mas todos os benefícios com expressão económica que decorrem das características específicas do serviço prestado, designadamente quanto ao (menor) tempo de resposta e o (maior) grau de especialização. Por todas essas razões, não se afigura que a apontada diversidade objetiva de valores vigentes para as custas dos processos arbitrais necessários e para as custas judiciais seja, só por si, passível de um qualquer juízo de censura constitucional. 2.6. Defende ainda o Tribunal recorrido, aqui residindo o aspeto central da argumentação invocada em fundamento da decisão de inconstitucionalidade, que as custas globais fixadas na primeira linha do Anexo I da Portaria para processos arbitrais de valor não superior a €30.000,00, não só são mais elevadas que as custas judiciais aplicáveis a processos de idêntico valor que correm termos nos tribunais administrativos, como podem atingir montantes muito superiores ao valor da causa, pois que é sempre superior a €3000,00, quer se trate de um processo de €100 euros ou de €3000,00. O denunciado risco de desproporção decorrerá do facto de a referida portaria incluir no primeiro escalão tributário todos os processos que tenham um valor até €30.000,00, cobrando por qualquer deles o mesmo (€750,00, a título de taxa individual de justiça, €2500,00, a título de encargos com os honorários coletivos dos árbitros, e €75,00, a título de encargos administrativos), independentemente de se tratar de um processo de valor muito reduzido ou de um processo de valor próximo ou igual a esse limite máximo. Comparando esse regime com o consagrado na Tabela I-A do Regulamento das Custas Processuais, verifica-se que aqui se autonomizaram 13 escalões tributários, sendo as taxas de justiça fixadas nos 5 primeiros escalões no valor de 1, 2, 3, 4 e 5 unidades de conta, respetivamente aplicáveis a processos até €2000,00, de €2000,01 a €8000,00, de €8000,01 a €16.000,00, de €16000,01 a €24.000,00 e de €24.000,01 a €30.000,00. A partir daqui, à medida que o valor dos processos aumenta, aumenta também o âmbito de aplicação das taxas de justiça fixadas em cada escalão, aplicando-se a mesma taxa de justiça a processos cujo valor varia em cerca de €20,000,00 ou €50.000,00. Reconhece-se que a redução do campo de aplicação processual de cada um dos escalões tributários permite afastar a possibilidade de aplicação da mesma taxa de justiça a processos que apresentem valores absolutos muito distintos. Todavia, como o próprio RCP parece pressupor, a partir de determinados montantes a diferença de valor entre as ações não tem um impacto expressivo nos custos (e benefícios) da sua resolução, sendo irrelevante, para efeitos tributários, uma diferença de 20.000 ou 50.000 euros que possa haver entre ações de muito elevado valor. Estando em causa ações de muitos milhares de euros, diferenças de valor dessa ordem não têm impactos economicamente relevantes nem ao nível da complexidade do processo, nem ao nível da utilidade que as partes dele retiram. Inversamente, estando em causa ações de reduzido valor processual, a diferença de valor entre elas pode já assumir significado tributário, senão tanto ao nível da complexidade do processo e dos custos envolvidos na sua apreciação, seguramente ao nível da utilidade que as partes retiram da resolução jurisdicional do litígio. Nestes casos, a fixação de escalões tributários com um amplo campo de abrangência processual pode, de facto, gerar alguma assimetria interna de resultados, como decorre dos exemplos dados pelo Tribunal a quo. Porém, também em relação a este aspeto do problema de inconstitucionalidade levantado pelo Tribunal recorrido não se deve ignorar a especificidade da justiça arbitral (necessária) face à justiça estadual, nem a especificidade do tipo de litígios integrados na competência necessária do TAD face à generalidade dos demais litígios carecidos de resolução jurisdicional, sendo necessariamente diferentes as variáveis de ponderação que o legislador deve atender na fixação do valor das custas de processos que genericamente envolvem federações desportivas, ligas profissionais e clubes desportivos, e são decididos por uma entidade que, tendo natureza jurisdicional, não é pública, nem financiada pelo Estado, e tem a seu cargo custos próprios permanentes que decorrem da sua específica estrutura arbitral de funcionamento. Neste enquadramento, não se afigura constitucionalmente censurável a fixação de um valor mínimo de custas processuais que reflita a maior capacidade económica presumida dos potenciais litigantes e permita cobrir os custos específicos mais elevados do serviço de justiça prestado pelos tribunais arbitrais, como sucede com o valor concretamente fixado na primeira linha da tabela anexa à Portaria n.º 301/2015 (€3325,00). Os eventuais excessos que o sistema de custas processuais legalmente estabelecido possa comportar, por força da amplitude do primeiro escalão tributário, devem ser sinalizados caso a caso em função do concreto valor processual da causa e do concreto valor das custas processuais cobradas. Esta tem sido, aliás, a perspetiva de análise que o Tribunal Constitucional tem adotado no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade de normas que fixam o montante das custas processuais exclusivamente em função do valor da causa, sindicando à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não o critério em si, mas o resultado tributário concreto a que a sua aplicação conduziu no processo que deu origem ao recurso de constitucionalidade. Como expressivamente se afirma no Acórdão n.º 301/2009, «estando em causa o apuramento da proporcionalidade ou não de um valor quantitativamente determinado, as configurações casuísticas, no plano da fiscalização concreta da constitucionalidade, contam como elemento de valoração, sem pôr em cheque a natureza normativa do nosso sistema de controlo. Daí a admissibilidade, sem contradição, de juízos discordantes sobre o mesmo critério normativo, dada a sua diferente projecção consequencialista sobre distintas realidades, do ponto de vista da natureza e do valor do serviço prestado». Como relatado, o processo arbitral que deu origem ao presente recurso de constitucionalidade foi instaurado pelo A., SAD, contra a Federação Portuguesa de Futebol, para impugnação de uma deliberação tomada pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina dessa federação desportiva, que a condenou numa sanção de repreensão e no pagamento de multas no valor global de €4132,00. O processo foi julgado parcialmente procedente, tendo ambas as partes sido condenadas «no pagamento, em partes iguais, das custas do processo no total de 4150,00 euros, sendo 1500,00 euros a título de taxa de arbitragem e 2650 euros a título de encargos do processo (que incluem honorários dos árbitros e encargos administrativos), montantes a que acresce IVA à taxa legal». Cada uma das partes foi assim condenada a pagar a quantia total €2075,00 (€750, a título de taxa de justiça, €1250,00, a título de honorários dos árbitros e €75,00 de encargos administrativos), acrescida de IVA. Ora, cotejando o valor do processo arbitral (€4132,00) e o valor das custas processuais em que cada uma das partes foi condenada (€2075,00) não há, no caso concreto, qualquer desproporção e muito menos manifesta entre o valor da causa e o valor das custas a pagar pelo benefício económico proporcionado a cada uma das partes com a sua resolução arbitral. E claramente também não decorre das custas, atento o seu valor e a capacidade económica dos sujeitos processuais envolvidos, um condicionamento excessivo e injustificado do acesso ao TAD por via tributária ou paratributária. Impõe-se, por isso, a procedência do recurso e a revogação da decisão que, no pressuposto não verificado da violação do princípio constitucional da proporcionalidade e do direito de acesso aos tribunais, recusou a aplicação das normas do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, conjugadas com a primeira linha da tabela do seu Anexo I. (…)”. Considerando toda a linha de argumentação espraiada pelo Tribunal Constitucional no Aresto vindo de transcrever, e realçando a similitude fáctico-jurídica com a questão agora posta nestes autos, é nosso entendimento que todo o acervo argumentativo merece acolhimento e aplicação à presente situação. Sendo assim, cumpre concluir que os normativos enxertados no art. º 2.º, n.ºs 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.ª linha) da Portaria n.º 301/2015, não violam os princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetivo, não revelando, por isso, a inconstitucionalidade que lhe vem assacada pela Recorrente. Por conseguinte, o presente recurso soçobra nesta parte. * IV) Quanto à isenção de custas da RecorridaA Recorrida argumenta na sua peça recursiva que beneficia da isenção de custas, ao abrigo do disposto no art.º 4.º n.º 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais (RCP em diante), requerendo, consequentemente, o reembolso da taxa de justiça que, à cautela, pagou nesta instância de recurso. Apreciando. O Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26de fevereiro, que entrou em vigor em 20/04/2009 (cfr. o respectivo art.º 26.º n.º 1, na redação da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro), revogou, através do seu art.º 25.º n.º 1, “as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas”, e aprovou o Regulamento das Custas Processuais (RCP), nos termos que derivam do respetivo art.º 1º. Dispõe o art.º 4.º, do RCP, o seguinte: “1 – Estão isentos de custas: (…) f) As pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável; (…)” (sublinhados nossos). A isenção de custas prevista na al. f) do n.º 1 deste art.º 4.º depende da verificação dos seguintes requisitos: a) tratar-se de uma pessoa colectiva privada sem fins lucrativos; b) que actue no processo judicial exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos. Quanto ao requisito supra enunciado sob a alínea a), o mesmo encontra-se preenchido, face ao teor do art.º 1.º, n.º 1, dos Estatutos da Recorrida [onde se refere nomeadamente que a FPF é “uma pessoa colectiva sem fins lucrativos”]. Relativamente ao requisito acima enumerado sob a alínea b), e como esclarece SALVADOR DA COSTA (Regulamento das Custas Processuais, Anotado, 2013, 5.ª Edição, págs. 159 e 160), “esta isenção é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, o que à comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar, pelo que lhe subjaz o desiderato de tutela do interesse público. É subjectiva, condicionada às circunstâncias de não terem fins lucrativos e de aquelas entidades atuarem nos processos judiciais, do lado activo ou do lado passivo, no âmbito das suas especiais competências ou para defender os interesses comunitários que lhe estão especialmente conferidos. Dada a sua estrutura e fins, essas associações e fundações beneficiam da isenção de custas a que se reporta este normativo nas acções relativas à defesa e promoção dos seus interesses específicos, naturalmente sob a envolvência do interesse público. É uma isenção de custas restrita, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo respectivo estatuto, ou pela própria lei, que coincidam com o bem comum. Considerando a história deste preceito, reportado às instituições particulares de solidariedade social e às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, reponderando, propendemos em considerar que esta isenção não abrange as ações que não tenham por fim direto a defesa de interesses que lhe estão especialmente confiados pela lei ou pelos seus estatutos.” A Recorrida, de acordo com o prescrito no art.º 2.º n.º 1, dos respetivos Estatutos, tem por principal objeto promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, o ensino e a prática do futebol, em todas as suas variantes e competições. O que significa que, a mesma Recorrida não litiga neste Tribunal Central Administrativo Sul em defesa direta das atribuições enunciadas, visto que o que ora se discute corresponde ao exercício da defesa direta e imediata da legalidade do acórdão do respetivo Conselho de Disciplina de 28/11/2017. Por conseguinte, estando em causa saber se tal acórdão é ou não válido, a ora Recorrida intervém nesta Instância de Apelação com a legitimidade geral que lhe confere o art.º 10.º n.ºs 1 e 9, do CPTA, ou seja, decorrente da autoria do referido acórdão de 28/11/2017. Dito por outras palavras, a ora recorrida contra-alegou o presente recurso jurisdicional não para defender interesses ou atribuições que lhe estão especialmente cometidos pelo respetivo estatuto ou legislação que lhe é aplicável, mas apenas para se opor à invalidação do acórdão do respetivo Conselho de Disciplina de 28/11/2017, invocando que o mesmo não padece de qualquer vício. Deste modo, impera concluir que a atuação da FPF não se encontra contida na isenção prevista no art.º 4.º n.º 1, al. f), do RCP. Neste sentido milita a Jurisprudência vertida no Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 01/06/2017, no processo n.º 57/17.5 BCLSB, em que se afirmou que, “III- A actuação da Federação Portuguesa de Futebol que, no Tribunal Arbitral do Desporto (e também neste TCA Sul), litiga em defesa directa e imediata da legalidade do acórdão do respectivo Conselho de Disciplina, opondo-se à sua invalidação, e com a legitimidade geral que lhe confere o art. 10º n.ºs 1 e 9, do CPTA - ou seja, decorrente da autoria do referido acórdão -, não integra a previsão do art. 4º n.º 1, al. f), do RCP, pois aquela não litiga em defesa directa das atribuições que lhe estão especialmente cometidas pelo respectivo estatuto (promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, o ensino e a prática do futebol, em todas as suas variantes e competições) ou legislação que lhe é aplicável”. Por seu turno, no Acórdão prolatado em 15/02/2018, no processo n.º 165/17.2 BCLSB, esta Instância teve ocasião de confirmar aquela Jurisprudência. Desta feita, atento o expendido, é mister concluir pela improcedência do presente pedido de reembolso da taxa de justiça paga nesta instância de recurso. * Ponderando todo o exposto, bem como a desaplicação ao caso versado das normas constantes dos art.ºs 214.º e 13.º, al. f) do RD com fundamento na respetiva inconstitucionalidade material, é de concluir, então, que o vertente recurso merece provimento quase total.Na verdade, o Acórdão a quo deve ser alvo de repressão e de censura, em atenção, primeiramente às inconstitucionalidades materiais do regime jurídico em que estribou o seu julgamento, e, em segundo lugar, à errónea fiscalização dos factos e inerente subsunção dos mesmos em termos de ilicitude e culpa. Por conseguinte, as inconstitucionalidades materiais detetadas, e que impõem a desaplicação das normas insertas nos art.ºs 214.º e 13.º, al. f) do RD ao caso versado, arrastam imperativamente a declaração de nulidade da Deliberação emitida em 28/11/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, e através da qual foi mantida a aplicação à agora Recorrente da multa no montante de 1.148,00 Euros pela prática de infração por parte da Recorrente, em virtude dos seus adeptos terem proferido cânticos insultuosos, e terem arremessado objetos durante um jogo de futebol ocorrido em 28/10/2017. Ademais, merece o vertente recurso também provimento, na medida em que a sobredita Deliberação punitiva padece de erro nos seus pressupostos de facto e de direito, originada pela inverificação da ilicitude e da culpa. Finalmente, o presente recurso jurisdicional merece provimento no que concerne à fixação do valor desta ação. Desta feita, cumpre conceder provimento parcial ao recurso jurisdicional, revogar o Acórdão recorrido e, em consequência, declarar a nulidade da Deliberação emitida em 28/11/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, e através da qual foi mantida a aplicação à agora Recorrente da multa no montante de 1.148,00 Euros pela prática de infração por parte da Recorrente, em virtude dos seus adeptos terem proferido cânticos insultuosos, e terem arremessado objetos durante um jogo de futebol ocorrido em 28/10/2017. IV- DECISÃO Pelo exposto, acordam, em Conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência: I) Revogar o Acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto em 04/02/2019; e II) Declarar a nulidade da Deliberação emitida em 28/11/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, e através da qual foi mantida a aplicação à agora Recorrente da multa no montante de 1.148,00 Euros pela prática, por parte da Recorrente, da infração prevista no art.º 187.º, n.º 1, al. a) do RD; III) Fixar o valor da presente ação em 1.148,00 Euros; IV) Indeferir o pedido formulado pela Recorrida, de reembolso da taxa de justiça que pagou nesta instância de recurso. Custas a cargo da Recorrida, que se fixam na proporção de 90%. Registe e notifique. Lisboa, 10 de dezembro de 2019, ____________________________ Paula Cristina Oliveira Lopes de Ferreirinha Loureiro
____________________________ Jorge Pelicano
____________________________ Catarina Gonçalves Jarmela [voto vencida conforme projecto de acórdão que elaborei e não obteve vencimento, o qual junto em anexo (39 páginas)] ________________________________ Proc. n.º 49/19.0 BCLSB 2º Juízo – 1ª Secção
* I - RELATÓRIO Futebol Clube…………….., SAD (F….) apresentou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), nos termos do art. 4º n.ºs 1 e 3, al. a), da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (LTAD), aprovada pela Lei 74/2013, de 6/9, na redacção da Lei 33/2014, de 16/6, recurso do acórdão, proferido em plenário, do Conselho de Disciplina (Secção Profissional) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), de 28.11.2017, no âmbito do processo disciplinar n.º 21-17/18 - nos termos do qual foi negado provimento ao recurso hierárquico impróprio e, consequentemente, mantida a decisão disciplinar recorrida proferida em processo sumário, na sessão de 31.10.2017, que condenou o F.... na multa de € 1148, pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 187º n.º 1, al. a), do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017 (RDLPFP 2017) -, contra a Federação Portuguesa de Futebol, indicando como contra-interessada a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, e no qual peticionou a revogação da condenação pela infracção prevista e punida pelo art. 187º n.º 1, al. a), do RDLPFP 2017. Por acórdão de 4 de Fevereiro de 2019 do TAD foi decidido julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida e condenar o FCP nas custas do processo. Inconformado, o FCP interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul desse acórdão arbitral, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões: “-I- i. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 04.02.2019 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 187.º-1 a) do RD, alegadamente cometida no jogo realizado no dia 28.10.2017, no Estádio Bessa XXI, punindo-a em multa no valor de € l.148,00, e fixando as custas no total de € 5.104,50.-II- ii. Os factos julgados como provados não preenchem todos os pressupostos típicos das infracções disciplinares pelos quais a arguida foi condenada, nomeadamente, o pressuposto da violação do dever de implementação de meios de prevenção da prática de factos social e desportivamente incorrectos por parte dos seus sócios e simpatizantes e de comissão de factualidade típica a título doloso ou, pelo menos, negligente.iii. Porquanto a culpa é pressuposto de responsabilização pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 187.º-1, a) do RD, a punição pela prática da infracção pressupõe que seja julgada como provada - com fundamento em robustas provas - uma actuação inadimplente e culposa do clube na verificação dos factos. iv. A sofreguidão do Tribunal a quo na condenação da recorrente é tal que, mesmo perante hiatos factuais e probatórios no que à culpa da recorrente concerne nos factos ocorridos determinou que fossem mantidas as sanções disciplinares. v. Não se julgando como provada factualidade essencial ao preenchimento dos tipos legais (187.º-1, a) do RD), vê-se necessariamente prejudicada a decisão recorrida. - III - vi. Considerando a infracção p. e p. pelo art. 187.º-1, a) do RD em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da Futebol Clube………… - ………..SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da Futebol Clube………. - …….. SAD.vii. O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar, pelo que, não tem arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada. viii. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência. ix. É precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente. x. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar esta quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova. xi. À míngua de meios de prova demonstrativas da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a demandante falhou nos seus deveres regulamentares, entendendo que caberia à demandante ilidir a presunção de culpa pela qual se rege o Tribunal arbitral; recorrendo a um critério de primeira aparência. xii. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da demandante somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação. xiii. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a demandante é titular e, do do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação. xiv. Sucede que o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), no princípio do Estado de Direito (art. 2.º da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20.º - 4 da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881 e Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, WWW.dgsi.pt). xv. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA's). xvi. A figura da "prova de primeira aparência" ou "prova prima facie" é própria do direito civil, inserindo-se no quadro das presunções judiciais (art. 349.º do Código Civil) e pode, embora com cautelas e cum grano salis, funcionar nos pleitos cíveis, mas é um corpo completamente estranho no direito e processo sancionatórios, desde logo porque contraria os seus princípios estruturantes da culpa e da presunção de inocência. xvii. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adapte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, e que não se imponha à demandante (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante, xviii. Se assim não se fizer, incorrer-se-á em inconstitucionalidade: pois é inconstitucional - por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º- 4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) - a interpretação dos artigos 222.º-2 e 250.º-1 do RDLPFP de 2016 segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação. xix. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.º, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação: a a actuação culposa da recorrente. xx. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções " que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelo art. 187.º- l, a) do RD. xxi. É inconstitucional, por violação do princípio jurídico constitucional da culpa (art. 2.º da CRP) e do principio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32.º-2 e -10 da CRP), a interpretação dos artigos 13.º f) e 187.º- 1 a) o RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais; e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2.º e 30.º-3 da CRP), - IV - xxii. O parâmetro da violação do dever de prevenção adaptado pelo Tribunal a quo é o mesmo para a imputação da infracção p. e p. pelo art. 187.º, n.º 1, a), do RD, correspondente ao comportamento incorrecto dos adeptos consubstanciado em cânticos grosseiros e ofensivos de terceiros.xxiii. Acontece que é completamente impossível à recorrente impedir manifestações vocais desse tipo e fica sempre por demonstrar a efectividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido, não se podendo assacar responsabilidade disciplinar ao clube face a tal impossibilidade (neste sentido o acórdão de 18-07- 2018, nos processo n.º 69/2017 e 72/2017 do Tribunal Arbitral do Desporto). xxiv. Responsabilizar disciplinarmente os clubes pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa puni-los por algo que, objectivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar, o que equivale a uma responsabilidade objectiva. xxv. Pelo que, não podia o Tribunal a quo confirmar a condenação da recorrente pela prática da infracção p. e p. pelo art. 187.º-1, a) do RD. - V - xxvi. A modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01 - ao invés do total da multa por que foi a recorrente condenada - foi feita em violação do previsto no art. 33.º, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixandose o valor da acção no montante de € 1.148,00 daí se extraindo as devidas consequências.xxvii. Os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP). xxviii. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.º e 268.º-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD. xxix. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.º -1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo 1 (2.ª linha), da Portaria n.º 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.º/ l/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.º da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.º da CRP). Termos em que se requer a V. Exas. seja o presente recurso julgado procedente, decidindo pela absolvição da recorrente por falta de verificação dos pressupostos típicos da infracção pela qual foi condenada. Sem prescindir requer-se seja o presente recurso julgado procedente, revogando-se a decisão arbitral recorrida e assim também a condenação da recorrente pela infracção disciplinar p. e p. pelo art. 187.º, n.º 1, a), do RDLPFP, e anulando-se o correspondente acto administrativo do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, conforme o alegado em III supra. Sempre subsidiariamente, caso se entenda não haver motivo para, de imediato, absolver a recorrente, requer-se a revogação do acórdão recorrido e o reenvio do processo ao TAD para que reaprecie a matéria de facto com base em critérios de valoração da prova consentâneas com o princípio da presunção de inocência do arguido, exigindo-se, nomeadamente, a formação de uma convicção para além de toda a dúvida razoável e a não imposição de um ónus da prova à demandante. Sendo interpretados os arts. 13.º e 187.º, n.º l, alíneas a) do RD da LPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, ou ainda que determinam uma responsabilização disciplinar dos clubes independentemente de qualquer conduta, activa ou omissiva, própria e independentemente do dolo ou negligência que lhe possam ser concretamente assacados em relação às condutas dos seus sócios ou simpatizantes, deverá a sua aplicação ser recusada (204.º da CRP), com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da culpa e da intransmissibilidade da responsabilidade penal (arts. 32.º-2 e 10 e art. 30.º-3 da CRP), ambos inerentes ao princípio do Estado de Direito plasmado no art. 2.º da CRP. Sem prescindir, e uma vez mais subsidiariamente, requer-se a V. Exas. se dignem julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto art. 2.º, n.ºs l e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.ª linha, da Portaria n.º 301/2015 com o previsto nos artigos 76.º/l/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º -1 e 268.º- 4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.º da CRP), com as legais consequências.”. A FPF, notificada, apresentou contra-alegação de recurso na qual pugnou pela manutenção da decisão proferida pelo TAD, defendendo que beneficia de isenção de custas - ao abrigo do art. 4º n.º 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais (RCP) -, requerendo, consequentemente, o reembolso da taxa de justiça que, à cautela, pagou nesta instância recursiva. O Ministério Público junto deste TCA Sul notificado para os efeitos do disposto no art. 146º n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do presente recurso jurisdicional, excepto no que respeita à aplicação, ao recorrente e recorrida, do regime de custas, posicionamento esse que, objecto de contraditório, não mereceu qualquer resposta. II - FUNDAMENTAÇÃO No acórdão arbitral recorrido foram dados como assentes os seguintes factos:“4.1.1 No dia 28 de outubro de 2017, no Estádio Bessa XXI, realizou-se o jogo entre …… Futebol Clube - ……. SAD e Futebol Clube ……… - ……., SAD, a contar para a 10.ª jornada da "Liga NOS. 4.1.2 Os adeptos afetos à Demandante, situados na Bancada Topo Norte, entoaram em uníssono os seguintes cânticos: "………. é merda" aos 17 minutos por 5 vezes e aos 79 minutos por 5 vezes; "E quem não salta é lampião" aos 19 minutos por 5 vezes; "…….. vai pro caralho" aos 28 minutos por 5 vezes e aos 84 minutos por 5 vezes; e "Filhos da puta até morrer" aos 40 minutos por 5 vezes. 4.1.3 Aos 51 minutos, os adeptos da Demandante, situados na Bancada Topo Norte, arremessaram um isqueiro para dentro do terreno de jogo, caindo junto à baliza do ……….. FC, sem ter atingido qualquer agente desportivo. O isqueiro foi entregue ao delegado de campo pelo 4.º Arbitro. 4.1.4 Ao minuto 24 da primeira parte os adeptos afetos Demandante, situados na Bancada Topo Norte, direcionaram um laser de cor verde em direção dos olhos, perturbando a visão do árbitro momentaneamente, aquando da marcação de uma falta contra a sua equipa. 4.1.5 Na presente época desportiva, à data dos factos, a Demandante já havia sido sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares.”. * Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se: - o acórdão arbitral recorrido enferma de erro: 1) - ao julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida (acórdão, proferido em plenário, do Conselho de Disciplina (Secção Profissional) da FPF, de 28.11.2017); 2) - na fixação do valor da causa; 3) - na fixação do valor de custas. 4) - a FPF beneficia de isenção de custas. Passando à análise de cada uma destas questões. 1) Alega o recorrente que o acórdão arbitral recorrido enferma de erro ao julgar improcedente o recurso, mantendo o acto impugnado [acórdão, proferido em plenário, do Conselho de Disciplina - Secção Profissional - da FPF, de 28.11.2017, nos termos do qual foi negado provimento ao recurso hierárquico impróprio e, consequentemente, mantida a decisão disciplinar recorrida proferida em processo sumário, na sessão de 31.10.2017, que condenou o F….. na multa de € 1148, pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 187º n.º 1, al. a), do RDLPFP 2017 (comportamento incorrecto do público)], referindo a este propósito, e em suma, o seguinte:
Nestes termos, neste segmento deverá ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional. * Do exposto decorre que deverá ser:- determinada a alteração do valor da causa para € 1148 e no demais negado provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, mantida a decisão de improcedência constante do acórdão arbitral recorrido; - indeferido o pedido formulado pela FPF de reembolso da taxa de justiça que pagou nesta instância de recurso. |