Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 275/11.0BEALM |
Secção: | CT |
Data do Acordão: | 12/06/2022 |
Relator: | TÂNIA MEIRELES DA CUNHA |
Descritores: | TAXA PELO EXERCÍCIO DA ATIVIDADE DE FORNECEDOR DE REDES E SERVIÇOS DE COMUNICAÇÕES ELETRÓNICAS CONTRIBUIÇÃO FINANCEIRA INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA |
Sumário: | I - Do art.º 204.º da CRP decorre que, se o Tribunal considerar que uma norma é inconstitucional, não pode aplicá-la em nenhuma circunstância. II - A taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas tem natureza de contribuição financeira. III - As normas constantes dos n.ºs 1, 4 e 5 Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria n.º 291-A/2011, de 04 de novembro, na parte em que determinam a incidência objetiva e a taxa a aplicar em relação aos fornecedores de redes e de comunicações eletrónicas enquadrados no “escalão 2”, padecem de inconstitucionalidade orgânica, por violação das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do art.º 165.º e do n.º 2 do art.º 266.º da CRP. |
Aditamento: |
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Decisão Texto Integral: | I. RELATÓRIO
A Autoridade Nacional de Comunicações (doravante Recorrente ou ANACOM) veio recorrer da sentença proferida a 31.10.2019, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Almada, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada pela C…, S.A. (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto a liquidação da taxa anual de atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas, referente ao ano de 201o. Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos: “1.ª Deve ser corrigido o facto considerado provado sob o n.º 4 do probatório, nos termos aduzidos nos números 32 e 33 das presentes alegações; 2.ª Devem ser aditados ao probatório os factos indicados sob os nºs 35 e 36 das presentes alegações, relativos ao (i) procedimento de liquidação, (ii) ao relatório dos custos administrativos e montante resultante da cobrança de taxas no ano de 2010, (iii) à revisão da liquidação em virtude de ter sido corrigido o valor dos proveitos relevantes indicado pela PTC em função dos valores finais dos custos líquidos do serviço universal (CLSU) relativos aos exercícios de 2007 a 2009, (iv) ao relatório dos custos administrativos e montante resultante da cobrança de taxas no ano de 2013, (v) ao relatório dos custos administrativos e montante resultante da cobrança de taxas no ano de 2014 e (vi) ao valor da taxa impugnada nos presentes autos ; 3.ª A questão dos custos administrativos de regulação não se confina à temática das provisões que, no ano em causa, representaram cerca de 17,7% dos custos totais repercutidos sobre as empresas que oferecem redes e serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (€ 5.048.192 / € 28.466.608); 4.ª Embora uma provisão seja, por definição, constituída para salvaguardar riscos futuros e assente num juízo de probabilidade quanto a um eventual exfluxo de recursos baseada numa estimativa fiável da quantia da obrigação (cf. Norma Contabilística e de Relato Financeiro [NCR21, §13]) não deixa de ser um gasto, com impacto nas demonstrações financeiras da entidade, sendo fiscalmente dedutível e afetando os resultados do exercício; 5.ª A ANACOM não só tem a necessidade de constituir provisões, como tem que assegurar ex ante os respetivos meios de financiamento, o que só pode fazer através da taxa de regulação impugnada nos presentes autos; 6.ª Num sistema de autofinanciamento (associado à independência financeira da entidade reguladora) e de partilha dos custos da regulação entre os regulados, não se vê que outra alternativa existiria ao financiamento da responsabilidade emergente de atos praticados no exercício da atividade de regulação que não fosse a taxa de regulação; 7.ª O Tribunal a quo confunde os critérios de reconhecimento e mensuração de provisões, que se colocam ex ante (em sede de interpretação e aplicação da NCRF 21) com o impacto do seu efetivo reconhecimento e registo contabilístico, que se coloca ex post, quer em sede de balanço (conta 29), como um elemento do passivo, quer em sede demonstração de resultados (conta 67), como um gasto do exercício; 8.ª O gasto (custo) das provisões para processos judiciais em curso é relevado contabilisticamente na conta “673 -Processo judiciais em curso”; 9.ª Não podem existir dúvidas de que as provisões para processos judicias em curso são aceites como gastos para efeitos fiscais e como tal são deduzidas na matéria coletável em IRC; 10.ª As provisões têm um tratamento contabilístico autónomo e distinto dos demais gastos, pois todas as naturezas de gastos são discerníveis entre si, com regras contabilísticas diferentes; 11.ª No caso das provisões, o seu registo contabilístico obedece a regras próprias, devidamente explicitadas na Norma Contabilística de Relato Financeiro 21 – Provisões, passivos contingentes e ativos contingentes (“NCRF 21”); 12.ª O Tribunal a quo confundiu (i) a questão do reconhecimento contabilístico das provisões para processos judiciais relacionados com a atividade de regulação do sector das comunicações eletrónicas como gasto ou custo administrativo da ANACOM, com (ii) a questão da sua elegibilidade para efeitos de apuramento dos encargos administrativos que podem ser impostos às empresas que oferecem redes e serviços de comunicações eletrónicas; 13.ª O conceito de contabilístico ou fiscal de gasto (ou custo) não exige um exfluxo financeiro atual ou presente de fundos (pagamento); 14.ª De um ponto de visa contabilístico e fiscal, não são apenas gastos [custos] aqueles que envolvam um exfluxo financeiro atual ou presente, isto é, aqueles que correspondam a despesas efetivamente incorridas, por importarem a mobilização de recursos financeiros; 15.ª De um ponto de vista contabilístico e fiscal, as provisões, tal como as depreciações e amortizações, são um custo efetivo, ainda que assentem em gastos estimados; 16.ª E são um custo real, porque o seu reconhecimento tem impacto financeiro nas contas da entidade que as constitui, afetando os resultados do exercício; 17.ª Uma vez identificado o risco de exfluxo de recursos, as normas contabilísticas obrigam à constituição de provisões, pelo que não é correta a asserção constante da pág. 19 da sentença recorrida, segundo a qual as provisões seriam reservas que são constituídas pelas entidades para fazer face a despesas futuras mais ou menos certas e, aparentemente, de mera constituição facultativa; 18.ª A elegibilidade das provisões para efeitos de apuramento dos encargos administrativos que podem ser impostos às empresas que oferecem redes e serviços de comunicações eletrónicas decorre, desde logo e em primeira linha, do referencial contabilístico aplicável à ANACOM e da utilização da respetiva contabilidade para efeitos de apuramento dos gastos [custos] administrativos de regulação do sector das comunicações eletrónicas; 19.ª O elenco de custos constante do artigo 12.º, n.º 1, alínea a) da Diretiva Autorização e do n.º 4 do artigo 105.º da LCE é meramente exemplificativo; 20.ª O TJUE já se pronunciou por duas vezes sobre a interpretação do artigo 12.º da Diretiva Autorização e, embora afirme a natureza limitada dos custos administrativos suscetíveis de cobertura pelas taxas de regulação (cf. considerandos 22, 23 e 27 do acórdão Telefónica proferido em 21 de julho de 2011 no processo C -284/10 e considerandos 36 e 38 a 42 do acórdão Vodafone Omnitel de 18 de julho de 2013, proferido nos processos apensos nºs C -228/12 a C -232/12 e C -254/12 a C -258/12) nunca se pronunciou explicitamente sobre a questão de saber se os custos com provisões se enquadram no conceito de custos administrativos relacionados com a adoção, gestão, controlo e aplicação do regime de autorizações gerais ; 21.ª O TJUE afirmou claramente que os custos elegíveis para efeitos de financiamento através dos encargos administrativos a que se refere aquele artigo 12.º compreendem a totalidade dos custos resultantes das atividades mencionadas na alínea a) do n.º 1 daquela disposição de direito da União Europeia e não apenas uma parte (cf. considerandos 38, 41, 42 e 43 do acórdão de 18 de julho de 2013) ; 22.ª Se todas as atividades de regulação são suscetíveis de controlo jurisdicional (cf. artigo 4.º da Diretiva- Quadro e artigo 13.º da LCE) seria manifestamente absurdo considerar tais atividades elegíveis para efeitos de partilha dos custos administrativos da regulação entre operadores quando as mesmas se desenvolvem de modo normal, e já não as considerar elegíveis para efeitos de partilha dos custos administrativos da regulação entre operadores quando se desenvolvem de modo patológico, maxime se e quando a ANACOM fosse condenada a pagar indemnizações a terceiros por atos de regulação ilegais, sustentando que, nesses casos, deve ser a generalidade dos contribuintes a suportar tais custos ; 23.ª Caso a ANACOM não pudesse repercutir nas taxas de regulação das comunicações eletrónicas os custos com a constituição de provisões ligadas à regulação do sector, ficaria dependente do Orçamento de Estado, o que prejudicaria a sua independência financeira e administrativa, para além de pôr em causa o princípio do autofinanciamento da regulação hoje consagrado nos artigos 6.º, n.º 3, alínea c) e 7.º, n.º 3, alínea e), da Lei -Quadro das Entidades Reguladoras (LQER); 24.ª A utilização dos excedentes gerados pelas taxas de utilização do espectro radioelétrico para financiar a constituição de provisões ligadas à atividade de regulação, equivaleria a transferir para outras fontes de financiamento custos que devem ser internalizados no âmbito da atividade de regulação (artigo 12.º da Diretiva Autorização e artigo 105.º, n.º 4 da LCE), implicando o regresso ao sistema anterior à Portaria n.º 1473-B/2008, em que a regulação era financiada pelo produto das taxas de utilização do espectro radioelétrico; 25.ª O facto de, porventura, poderem ser utilizadas outras fontes de financiamento para suportar os custos administrativos da regulação na sua vertente patológica, maxime se e quando a ANACOM for condenada a pagar indemnizações a terceiros por atos de regulação ilegais, não quer dizer que tenha sido essa a opção do legislador comunitário e nacional, ou que deva ser a generalidade dos contribuintes a suportar tais custos; 26.ª A exclusão das provisões da base dos gastos administrativos de regulação – como foi decidido pelo Tribunal a quo – não assegura uma correspondência integral entre os custos de regulação e a receita da taxa, pondo em causa o princípio da orientação para os custos, uma vez que todos os custos decorrentes de situações patológicas não seriam internalizados pelo sector, ficando a cargo do Estado, isto é, da generalidade dos contribuintes, quer através da mobilização das receitas da taxa de utilização do espectro radioelétrico, quer através de dotações orçamentais específicas; 27.ª Não se trata de um “resultado pernicioso”, mas de uma consequência do modelo de internalização dos custos de regulação subjacente ao disposto no artigo 12.º da Diretiva Autorização e no artigo 105.º, n.º 4 da LCE ; 28.ª A exclusão das provisões da base dos gastos administrativos de regulação não proporcionaria uma recuperação integral de todos os custos suportados com a regulação do sector, incluindo os custos decorrentes da impugnação de decisões da ARN ligadas à gestão, controlo e aplicação do regime de autorização geral; 29.ª A inclusão das provisões na base dos gastos administrativos de regulação é inerente aos objetivos e à teleologia dos encargos a que se refere o artigo 12.º da Diretiva Autorização, sob pena de não existir uma correspondência integral entre receitas e custos, os quais não podem resumir -se às situações normais de regulação, tendo ainda que abranger as situações patológicas que envolvem a constituição de provisões; 30.ª Os custos administrativos diretamente relacionados com a atividade de regulação do sector das comunicações eletrónicas incluem, inequivocamente, os custos suportados com a constituição de provisões, os quais são elegíveis para efeitos de distribuição pelos prestadores de redes e serviços de comunicações eletrónicas, sendo a sua consideração absolutamente essencial para assegurar a coerência e o equilíbrio do modelo de internalização dos custos de regulação subjacente ao disposto no artigo 12.º da Diretiva Autorização e no artigo 105.º, n.º 4 da LCE ; 31.ª Ao instituir um sistema de partilha dos custos da regulação, o artigo 12.º, n.º 1, alínea a) da diretiva autorização e o artigo 105.º, n.º 1, alínea b) e nºs 4 e 5 da Lei das Comunicações Eletrónicas, não pretende, seguramente, que seja a generalidade dos contribuintes a suportar os custos com indemnizações fundadas em responsabilidade civil por atos ou omissões de regulação imputáveis à ARN, nem se vê que tal solução seja compatível com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, qu e vincula o legislador, nas suas opções de afetação de meios financeiros à satisfação de necessidades coletivas, ao respeito pelos modos de legitimação da tributação consentâneos com as utilidades geradas pela despesa pública; 32.ª Nestes termos e ao contrário do entendimento formulado pelo Tribunal a quo, a elegibilidade das provisões para efeitos de apuramento dos encargos administrativos que podem ser impostos às empresas que oferecem redes e serviços de comunicações eletrónicas decorre do modelo de internalização dos custos de regulação subjacente ao disposto no artigo 12.º da Diretiva Autorização e no artigo 105.º, n.º 4 da LCE e da necessidade de assegura uma correspondência integral entre os custos de regulação e a receita da taxa, bem como do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos ; 33.ª É totalmente improcedente o alegado erro de quantificação do tributo com fundamento na integração do valor das provisões nos gastos administrativos relacionados com a atividade de regulação da ANACOM; 34.ª A sentença recorrida violou o disposto no artigo 12.º, n.º 1, alínea a) da Diretiva Autorização e o disposto no artigo 105.º, n.º 4 da LCE; 35.ª Existe erro de julgamento na parte dispositiva da sentença, a qual deveria ter determinado a anulação parcial da liquidação e não a anulação total, com consequências em sede de execução de sentença, uma vez que não haveria lugar à devolução do tributo pago, na sua totalidade, mas à revisão da liquidação da taxa de regulação de 2010; 36.ª A sentença recorrida incorre em erro de julgamento quanto à condenação em juros indemnizatórios porque, na realidade, o vício considerado procedente, apenas abrange um dos pressupostos da liquidação (o relativo à inclusão dos gastos com provisões); 37.ª Os erros de julgamento invocados nas duas conclusões anteriores, apenas deverão ser apreciados pelo Tribunal ad quem, na hipótese, que não se admite, de improcedência do presente recurso; 38.ª Nos termos dos nºs 2 e 3 do artigo 665.º do CPC, aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT, conjugado com o artigo 4.º, n.º 1, alínea a ) do Decreto -Lei n.º 303/2007, e na procedência do presente recurso, deverá o Tribunal ad quem conhecer as demais questões suscitadas pelas partes e substituir -se ao Tribunal recorrido na de cisão da causa. Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., que se pede e espera, deverá o presente recurso ser considerado procedente por provado e, em consequência, modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto e revogada a sentença recorrida, por violação do disposto no artigo 12.º, n.º 1, alínea a) da Diretiva Autorização e do disposto no artigo 105.º, n.º 4 da LCE. Na procedência do presente recurso e ouvidas as partes, deverá a sentença recorrida ser substituída por outra que declare improcedente a impugnação do ato de liquidação da taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público, relativa ao ano de 2010, assim se fazendo Justiça!”. A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões: “A. Tendo em conta a matéria de facto provada nos presentes autos, entende a ora Recorrida que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo, devendo ser mantida; B. Desde logo porque, independentemente da sua classificação contabilística, as provisões para processos judiciais em curso não implicam, no exercício a que dizem respeito, a uma verdadeira despesa, entendida enquanto exfluxo financeiro; C. Ademais, contrariamente ao que vem alegado pela Recorrente, a Diretiva Autorização, em conformidade com a qual deve a legislação nacional ser interpretada, exclui dos custos administrativos relacionados com a regulação as provisões relativas a processos judiciais em curso; D. Por outro lado, a Taxa de Regulação enferma de diversos outros vícios apresentados pela Recorrida na sua petição inicial, para a qual se remete por economia de espaço, e que, por desnecessidade, não foram apreciados pela douta Sentença recorrida, mas que acrescem às ilegalidades decorrentes da violação do Direito Europeu; E. Na verdade, a Taxa de Regulação constitui, em substância, um verdadeiro imposto de repartição e não uma taxa, falhando inapelavelmente nos testes da bilateralidade e da proporcionalidade; F. Mais ainda, quanto à origem e criação, a Taxa de Regulação assenta numa violação da reserva constitucional de lei formal da Assembleia da República; G. Quanto à substância e cálculo, a Taxa de Regulação pressupõe ainda: (i) uma violação do princípio constitucional da igualdade tributária, cumprindo destacar a exclusão injustificada de determinados proveitos de um outro sujeito passivo (o incumbente), determinando um incremento da tributação dos demais, incluindo a Recorrida; e (ii) a violação de outras dimensões do Direito Europeu, como são o princípio da igualdade, as regras dos auxílios de Estado e do direito a uma proteção jurisdicional efetiva, ao incluir na coleta a angariar através da Taxa de Regulação as indemnizações que a Anacom tenha de suportar em virtude de uma atuação ilegal; e H. Ainda que fosse uma contribuição financeira sujeita ao regime das taxas, violaria os princípios da equivalência e da proporcionalidade; 1. Razões pelas quais, e em suma, de deverá manter a Douta Sentença Recorrida, nos exatos termos em que foi proferida. Termos em que, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela Anacom, e a Sentença Recorrida ser mantida, nos seus exatos termos, Pois só assim se fará a costumada JUSTIÇA!”. O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser concedido provimento ao recurso. Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto: “1. A Impugnante é fornecedora de redes e serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público. 2. Em 29 /11 /2010, a ICP – Autoridade Nacional de Comunicações – ANACOM emitiu a factura n.º F2210000116, em nome da C…, S.A. referente à taxa Anual da Actividade de Fornecedor de redes e serviços do período de 1/2010 a 12/2010, referente ao escalão 2, no valor de EUR 543.701,76 (cf. factura a fls. 177 dos autos). 3. Em 7/5 /20 11, a Impugnante C…, S.A. procedeu ao pagamento da taxa identificada no ponto anterior, acrescida de juros de mora e custas no valor de EUR 19.626,61, no valor total de EUR 563.328,37 (cf. Documento inico de cobrança a fls. 466 dos autos). 4. A ANACOM incluiu no Relatório de custos administrativos e montante resultante da cobrança de taxas, os montantes relativos a provisões por si criadas para processos judiciais em curso relativos a actos de regulação o valor de EUR 7.067.491 (cf . Documento constante de fl s. 1 a 7 do Processo Administrativo Tributário e Relatório do exercício de 2010 constante a fls. 741 a 766 dos autos ) . 5. Em 14/6/2011 a ICP – Autoridade Nacional de Comunicações procedeu à devolução à Impugnante do valor de EUR 53.347,67, através da nota de crédito n.º C72000107 (junta com a contestação). 6. Em 16/12/2013, a ICP – Autoridade Nacional de Comunicações procedeu à devolução à Impugnante do valor de EUR 28.623,26, através da nota de crédito n.º C72000219, de 11/12/2013, constante de fls. 1714 d os autos. 7. Em 25/6/2014, através da nota de crédito n.º C72000075, a entidade Impugnada procedeu à devolução à Impugnante do valor de EUR 67.992,13 (cf. nota de crédito a fls.1742 dos autos). 8. Em 12/6/2015, a ICP – Autoridade Nacional de Comunicações procedeu à devolução à Impugnante do valor de EUR 5.705,63 (nota de crédito a fls.1761 dos autos)”.
II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida: “Os restantes factos alegados não foram julgados provados ou não provados, em virtude de constituírem considerações pessoais ou conclusões de facto ou direito sem relevância para a decisão da causa * Nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa, atenta a causa de pedir”.
II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto: “A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos, e especificados nos vários pontos da matéria de facto provada”.
II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II.A., em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração(1). Nesse seguimento, passa a ser a seguinte a redação do facto 2, transcrito em II.A: 2. Em 29.11.2010, a ICP – Autoridade Nacional de Comunicações – ANACOM emitiu a fatura n.º F2210000116, em nome da C…, S.A. referente à taxa anual da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas respeitante a 2010 do período de 1/2010 a 12/2010, referente ao escalão 2, no valor de EUR 543.701,76, da qual consta designadamente o seguinte:
(cfr. fatura constante a fls. 177 dos autos em suporte de papel).
III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO III.A. Da inconstitucionalidade orgânica Nos termos do art.º 204.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), “[n]os feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”. Como referido por Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Vol. II, 4.ª Edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 519 e 520): “No modelo de fiscalização judicial consagrado na constituição, o juiz (todos os juízes) são «juízes constitucionais» porque lhes pertence um duplo direito-dever: (i) o direito de exame da questão da inconstitucionalidade; (ii) o direito de decisão no caso concreto, com o eventual direito de desaplicação de normas relevantes na hipótese de uma decisão de acolhimento da inconstitucionalidade dessas normas. (…) Desde que considere que uma norma é inconstitucional, o tribunal não pode aplicá-la em nenhuma circunstância — recusa de aplicação da norma inconstitucional — , salvo se em recurso a decisão de inconstitucionalidade vier a ser revogada”. Assim, as questões de inconstitucionalidade são de conhecimento oficioso, sendo ainda pertinente sublinhar que, com a alteração feita ao art.º 43.º da Lei Geral Tributária (LGT), pela Lei n.º 9/2019, de 01 de fevereiro, a sua verificação passou a sustentar o direito ao pagamento a juros indemnizatórios [cfr. a alínea d) do seu n.º 3]. Na sua petição inicial, já a Impugnante alegara a inconstitucionalidade do tributo em causa, designadamente do ponto de vista da inconstitucionalidade orgânica. Assim, e não obstante tal questão ter sido conhecida pelo Tribunal a quo (que entendeu não se verificar inconstitucionalidade orgânica), tal não impede que este Tribunal sobre a mesma se pronuncie, quando estamos perante normas relevantes para o conhecimento do recurso, dado, como resulta do já citado art.º 204.º da CRP, ser vedada a aplicação por qualquer Tribunal de uma norma que o mesmo repute de inconstitucional. Como referido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 08.11.2007 (Processo: 03014/07): “O disposto no artº 204º da CRP significa que a função jurisdicional integra também a fiscalização da constitucionalidade e que os tribunais têm o poder e o dever de confrontar com a lei fundamental as normas infraconstitucionais que sejam chamados a aplicar, assim procedendo ao “controlo difuso ou desconcentrado da constitucionalidade” (…), sendo tal controlo uma fiscalização concreta porque apenas relevante para o caso concreto em juízo, a questão da inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente nas suas alegações de recurso, sendo uma questão de conhecimento oficioso, deve ser conhecida por este tribunal de recurso, assim como pode ser suscitada em qualquer altura do processo e até à decisão final, «pela simples razão de que os tribunais não podem, nos termos do artº 207 da CRP (hoje artº 204) “aplicar (ou coonestar a aplicação) de norma que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados”(…)”. Tendo esta questão sido amplamente discutida pelas partes ao longo do processo (e, aliás, reiterada em sede de contra-alegações de recurso), passar-se-á, então, à sua apreciação em primeira linha. Enquadrando. A Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro [Lei das Comunicações Eletrónicas (LCE), entretanto revogada pela Lei n.º 16/2022, de 16 de agosto, com efeitos a partir de 14 de novembro de 2022], veio estabelecer o regime jurídico aplicável às redes e serviços de comunicações eletrónicas e aos recursos e serviços conexos, definindo ainda as competências da entidade reguladora neste âmbito. A mesma surge como reflexo de transposição de diretivas comunitárias, concretamente das diretivas 2002/19/CE, 2002/20/CE, 2002/21/CE e 2002/22/CE, todas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março, e 2002/77/CE, da Comissão, de 16 de setembro. O quadro comunitário relativo às comunicações eletrónicas surgiu num contexto de necessidade de acompanhamento da abertura do mercado das telecomunicações à concorrência (transição de mercados monopolistas para mercados de plena concorrência). Como tal, foi aprovado um pacote de diretivas, onde se incluem as já referidas. Centrando-nos especificamente na Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas (“diretiva quadro”), como resulta do seu considerando (5), verificou-se a necessidade de “… separar a regulação da transmissão, da regulamentação dos conteúdos. Assim, este quadro não abrange os conteúdos dos serviços prestados através das redes de comunicações eletrónicas recorrendo a serviços de comunicações eletrónicas, como sejam conteúdos radiodifundidos, serviços financeiros, ou determinados serviços da sociedade da informação”. Esta diretiva consagra um quadro harmonizado para a regulamentação das redes de comunicações eletrónicas [definidas no seu art.º 2.º, al. a)], abarcando os serviços de comunicações eletrónicas [definidos no art.º 2.º, al. c)]. Por outro lado, a Diretiva 2002/20/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa à autorização de redes e serviços de comunicações eletrónicas (“diretiva autorização”), consagra um regime de autorização geral, conforme refletido designadamente no seu art.º 3.º. Voltando à LCE e atento o quadro comunitário mencionado, deste diploma é desde logo de chamar à colação o seu título VII, com a epígrafe “Taxas, supervisão e fiscalização”. Assim, o art.º 105.º, n.º 1, al. b), consagra que o “exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas” está sujeito a taxas de periodicidade anual. O n.º 2 da mesma disposição legal remete para despacho do membro do governo responsável pela área das comunicações a definição, entre outros, do montante da taxa referida (passando, com a redação que foi dada pela Lei n.º 51/2011, de 13 de setembro, a remeter para portaria). Por seu turno, o n.º 4 do mesmo art.º 105.º refere que os montantes são determinados em função dos custos administrativos, nos seguintes termos: “Os montantes das taxas referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 são determinados em função dos custos administrativos decorrentes da gestão, controlo e aplicação do regime de autorização geral, bem como dos direitos de utilização e das condições específicas referidas no artigo 28.º, os quais podem incluir custos de cooperação internacional, harmonização e normalização, análise de mercados, vigilância do cumprimento e outros tipos de controlo do mercado, bem como trabalho de regulação que envolva a preparação e execução de legislação derivada e decisões administrativas, como decisões em matéria de acesso e interligação, devendo ser impostos às empresas de forma objetiva, transparente e proporcionada, que minimize os custos administrativos adicionais e os encargos conexos”. Assim, é de chamar à colação a Portaria n.º 1473-B/2008, de 17 de dezembro, que aprova as taxas devidas pela emissão das declarações comprovativas dos direitos, pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas, pela atribuição de direitos de utilização de frequências e de números, pela utilização do espectro radioelétrico e demais taxas devidas à Anacom. Atento o respetivo Anexo II (na redação vigente à época), resulta que, para o cálculo do tributo ora em apreciação: ¾ É tido desde logo em conta o valor dos “proveitos [atualmente rendimentos] relevantes” diretamente conexos com a atividade de comunicações eletrónicas relativa ao ano anterior àquele em que é efetuada a liquidação da taxa, sendo cada entidade enquadrada em um dos três escalões definidos, de acordo com tais valores; ¾ São ainda considerados os custos administrativos, previstos no art.º 105.º, n.º 1, al. b), da LCE. A taxa T0 é de 0,00 Eur. e a taxa T1 é de 2.500,00 Eur. Já a taxa T2, aplicável a entidades como a Impugnante, enquadradas no escalão 2, é uma taxa variável, calculada nos seguintes termos: t2 (Ano n) = [C (Ano n) — ÓT1n1(Ano n)] / ÓP2 (Ano n-1) [percentagem contributiva (%) das empresas do escalão 2 no Ano n].
T2 (Ano n) = t2 (Ano n) × P2 (Ano n-1). Assim, num primeiro momento, é obtido o valor t2, que corresponde à relação entre, de um lado, a diferença entre o total de custos administrativos do ICP-Anacom referentes à al. b) do n.º 1 do art.º 105.º da LCE, a publicar nos termos do n.º 5 do mesmo artigo, a considerar para o Ano n [C (Ano n)] e o somatório da taxas do escalão 1 multiplicadas pelo número de entidades do escalão 1 [ÓT1n1(Ano n)], e, de outro, o somatório dos proveitos relevantes das entidades do escalão 2 no ano -1 [ÓP2 (Ano n-1)]. Desta forma, obtém-se a percentagem contributiva (%) das empresas do escalão 2 no Ano n. Calculada a t2, é calculada a T2, correspondente ao produto de t2 pelos proveitos relevantes das entidades do escalão 2 no ano -1. Todos estes elementos constam, como referimos, do Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008, de 17 de dezembro. Feito este enquadramento, há que atentar na conformidade constitucional desta disciplina. Cumpre, assim e antes de mais, considerar a tipologia de tributos previstos no ordenamento jurídico português. Independentemente da nomenclatura utilizada pelo legislador para designar os tributos, a sua natureza depende das suas específicas caraterísticas. Com efeito, o nosso ordenamento consagra um conceito amplo de tributo. Como resulta desde logo do art.º 165.º, n.º 1, al. i), da CRP, os tributos têm uma natureza tripartida: a) Impostos; b) Taxas; e c) Demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas. Este quadro tripartido surge, ao nível da lei ordinária, previsto no art.º 3.º da LGT. Assim, esta configuração implica que cada um dos tributos tenha caraterísticas e finalidades próprias. Quanto à sua noção, em traços largos, e começando pela de imposto, este define-se como uma prestação pecuniária unilateral, imposta coativa ou autoritariamente pelo Estado ou por uma entidade pública, sem caráter sancionatório, visando angariar receita. É ainda de atentar que, do art.º 103.º, n.º 1, da CRP, resulta igualmente que o sistema fiscal visa diminuir as desigualdades e promover a distribuição de rendimentos e riquezas, conjugando o que se poderá denominar como um interesse financeiro ou imediato com um interesse de justiça social, mediato ou metajurídico. No que respeita às taxas as mesmas configuram-se como prestações pecuniárias impostas coativa ou autoritariamente, pelo Estado ou outro ente público, sem que tenham caráter sancionatório, pressupondo sim a existência de uma contraprestação, seja ela a prestação de um serviço público, a utilização de um bem do domínio público ou a remoção de um obstáculo jurídico. A par das taxas e dos impostos surge a terceira categoria, a das contribuições financeiras, classificação de caráter residual, abrangendo os tributos que não são nem impostos nem taxas. Como se refere no Acórdão n.º 539/2015, do Plenário do Tribunal Constitucional, de 20.10.2015: “[A] revisão constitucional de 1997, introduziu, a propósito da delimitação da reserva parlamentar, a categoria tributária das contribuições financeiras a favor das entidades públicas, dando cobertura constitucional a um conjunto de tributos parafiscais que se situam num ponto intermédio entre a taxa e o imposto (artigo 165.º, n.º 1, alínea i)). As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada,” I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora). As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (…). Por via da nova redação dada à norma do artigo 165.º, n.º 1, alínea i), a Constituição autonomizou uma terceira categoria de tributos, para efeitos de reserva de lei parlamentar, relativizando as diferenças entre os tributos unilaterais e os tributos comutativos e obrigando a uma reformulação da discussão sobre a exigência da reserva de lei, relativamente às contribuições especiais que não se pudessem enquadrar no preciso conceito de taxa” (sublinhados nossos). Nas palavras de Sérgio Vasques(2): “O que (…) carateriza os tributos que hoje em dia encontramos a meio caminho entre as taxas e os impostos é o estarem voltados à compensação de prestações de que só presumivelmente se pode dizer causador ou beneficiário o sujeito passivo, sendo o seu pressuposto constituído por factos que apenas com segurança relativa permitem concluir pela provocação ou aproveitamento das prestações administrativas. Em suma, o que as define é visarem uma troca entre a administração e grupos de pessoas que se presume provocarem os mesmos custos ou aproveitarem os mesmos benefícios”. Nos termos do art.º 165.º, n.º 1, al. i), da CRP, é da competência relativa da Assembleia da República legislar em matéria de impostos e sistema fiscal e sobre o regime geral das taxas e contribuições financeiras. Assim, e analisando a mencionada al. i) do n.º 1 do art.º 165.º da CRP, lida em consonância com o n.º 2 do art.º 103.º da lei fundamental, dúvidas não há que, no que toca aos impostos, a reserva relativa de lei abrange tudo o que respeite à sua criação, determinação da incidência, da taxa, dos benefícios fiscais e das garantias dos contribuintes. Quanto aos demais tributos, o princípio da reserva de lei formal não tem o mesmo alcance. Com efeito, do disposto no art.º 165.º, n.º 1, al. i), da CRP, resulta que a reserva de lei parlamentar se circunscreve ao regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas, sendo que até à presente data não foi aprovado qualquer regime geral das contribuições financeiras e, ao nível das taxas, apenas foi aprovado o regime geral das taxas das autarquias locais. Assim, reconhece-se ao Governo uma competência concorrente em matéria de criação de contribuições financeiras individualizadas. Chama-se a este respeito, a título exemplificativo, à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 539/2015, de 20 de outubro, onde se refere: “A revisão constitucional de 1997 ao prever a figura das contribuições financeiras como tributo, para efeitos de definição da competência legislativa, equiparou-a às taxas e distinguiu-a dos impostos. Enquanto a criação destes se manteve na reserva relativa da Assembleia da República, relativamente às taxas e às contribuições financeiras aí se incluiu apenas a previsão de um regime geral, ficando excluída da reserva parlamentar a criação individualizada quer de taxas quer de contribuições financeiras. E a aprovação desse regime geral não surge como ato-condição ou pressuposto necessário da criação individualizada desses tributos (Cf. Blanco de Morais, em “Curso de direito constitucional”, Tomo I, pág. 273, nota 400, ed. 2008, da Coimbra Editora), não havendo razões para que se considere que a atribuição reservada daquela competência pelo legislador constitucional tenha procurado refletir uma aplicação mais rarefeita do princípio matriz do parlamentarismo “no taxation without representation”. A opção constitucional por uma reserva parlamentar diferenciada entre impostos, por um lado, e taxas e contribuições por outro lado, teve em consideração a ausência de qualquer bilateralidade de prestações nos primeiros, não tendo o legislador constitucional relevado como fator merecedor de uma distinção em matéria competencial o facto de nas contribuições financeiras essa bilateralidade se apresentar muitas vezes como potencial e/ou difusa. Se a jurisprudência constitucional anteriormente à Revisão de 1997, perante a ausência de previsão na Constituição dos tributos parafiscais, por cautela, preferiu equiparar as contribuições financeiras aos impostos, relevando aquela característica, outra foi a opção do legislador constituinte de 1997 que entendeu preferível tratar do mesmo modo as contribuições financeiras e as taxas, diferenciando estes dois tributos dos impostos, em matéria de reserva parlamentar. Não sendo a existência de um regime geral pressuposto necessário da criação de taxas, nem de contribuições financeiras, não tem qualquer suporte no texto constitucional, na ausência daquele regime, estender-se a competência reservada da Assembleia da República ao ato de aprovação de contribuições financeiras individualizadas, criando-se assim uma reserva integral de regime onde esta não existe. Como afirmaram Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João de Brito Fernandes, “na ausência de regime geral não pode o intérprete subverter a vontade do legislador (constituinte ordinário) criando uma reserva integral” (In “Comentário à IV Revisão Constitucional, pág. 417, ed. de 1999, da AAFDL). O Tribunal Constitucional logo extraiu estas conclusões relativamente à aprovação de taxas individualizadas por ato legislativo do Governo não autorizado, sem que a Assembleia houvesse aprovado um regime geral das taxas (Acórdãos n.º 38/2000 e 333/2001), não havendo razões para que, relativamente à criação de contribuições financeiras, se estabeleça uma solução diversa, efetuando uma distinção onde o texto constitucional não distingue. Assim, a ausência da aprovação de um regime geral das contribuições financeiras pela Assembleia da República não pode impedir o Governo de aprovar a criação de contribuições financeiras individualizadas no exercício de uma competência concorrente, sem prejuízo da Assembleia sempre poder revogar, alterar ou suspender o respetivo diploma, no exercício dos seus poderes constitucionais”. Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 152/2022, de 17 de fevereiro: “A jurisprudência constitucional em matéria de tributos comutativos e paracomutativos tem seguido uma orientação com dois traços fundamentais: a criação desses tributos pode fazer-se através de decreto-lei simples e a concretização do respetivo regime, desde que este conste essencialmente de um ato legislativo, pode ser objeto de portaria (…) [O] Tribunal tem reconhecido ao Governo a possibilidade de exercer uma competência concorrente em matéria de contribuições financeiras, mas − como se salvaguardou no Acórdão n.º 539/2015 − «sem prejuízo da Assembleia sempre poder revogar, alterar ou suspender o respetivo diploma, no exercício dos seus poderes constitucionais». Esta salvaguarda aponta para a exigência de que os elementos essenciais das contribuições financeiras sejam definidos por ato legislativo do Parlamento ou do Governo”. Feito este enquadramento, cumpre, então, passar à concreta situação. Sobre a mesma, já este TCAS teve a oportunidade de se pronunciar, no Acórdão de 29.09.2022 (Processo: 21/13.3 BELRS), no qual a ora Relatora interveio na qualidade de 2.ª adjunta, e, bem assim, nos Acórdãos de 24.11.2022, proferidos, nos processos n.ºs 966/12.8BELRS e 968/12.4BELRS, pelo presente coletivo. Escreveu-se no primeiro dos citados arestos: “Percorrido o regime normativo nos aspectos que relevam para os autos, começaremos por dizer que, não obstante o tributo impugnado tenha a designação legal de “Taxa anual devida pelo exercício da actividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações electrónicas”, propendemos para a sua caracterização como contribuição financeira. Com efeito, estão reunidas as principais notas características desta categoria tributária: é uma prestação pecuniária (i), coactiva (ii), cujas receitas são consignadas subjectiva e materialmente a um ente público (iii), que assenta numa relação de bilateralidade genérica ou difusa – visando compensar uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada (iv) por um grupo homogéneo de contribuintes em que o sujeito passivo se integra (v) – vd. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 268/2021, de 29/04/2021. Tratam-se, de acordo com a caracterização da doutrina, de contribuições especiais parafiscais, que financiam entidades públicas de base não territorial cuja actividade beneficia um grupo homogéneo de destinatários. Como refere Ana Paula Dourado, “Direito Fiscal – Lições”, Almedina, 2015, a pág.67, “No quadro da parafiscalidade, são de destacar as novas taxas de regulação económica. Elas têm vindo a proliferar e podemos considerá-las essenciais para financiar as despesas e garantir a independência das entidades reguladoras em relação aos governos emanados das maiorias parlamentares. A mais recente doutrina defende a sua autonomização face aos impostos”. Concluindo-se que a designada “Taxa anual devida pelo exercício da actividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações electrónicas”, tem natureza de contribuição financeira – realçando-se que a querela em torno da qualificação jurídica do tributo impugnado como taxa ou contribuição financeira não assume particular relevância para a decisão a proferir, daí a desnecessidade de mais extensas considerações de ordem dogmática – impõe-se a este Tribunal de apelação, nos termos do art.º 204.º da CRP [“Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”], apreciar e decidir da questão prejudicial imprópria de inconstitucionalidade (vd. Jorge Miranda, “O Regime de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade em Portugal”), arguida na impugnação da liquidação do tributo (cf. ponto VII da douta P.I.) e cujo conhecimento a sentença deu por prejudicado em vista da solução dada ao litígio (art.º 665/2 do CPC), na medida em que se constata existir um nexo incindível entre ela e a questão principal objecto do recurso, ou seja, entre a alegada interpretação não conforme à Constituição que foi feita das normas previstas na alínea b) do art.º 1.º da Portaria n.º 1473-B/2008 e das normas previstas nos n.ºs 1, 4 e 5, do seu Anexo II, em que assenta a liquidação do tributo, e o feito submetido a julgamento, qual o de indagar se os custos administrativos de regulação, que o tributo liquidado visa compensar, poderão incluir as provisões constituídas para processos judiciais pendentes. E passando ao conhecimento da questão de constitucionalidade, em causa está a dimensão normativa dos identificados preceitos da Portaria n.º 1473-B/2008 na parte em que determinam a incidência objectiva e a taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços enquadrados no “escalão 2”, bem como a isenção prevista para certos operadores de comunicações. Como se sabe, na ausência do enquadramento legislativo geral a que se refere a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, a jurisprudência constitucional tem reconhecido ao Governo a possibilidade de exercer uma competência concorrente em matéria de contribuições financeiras, mas − como se salvaguardou no seu Acórdão n.º 539/2015, de 20/10/2015 (cf. ponto 2 da fundamentação do acórdão, “Da alegada inconstitucionalidade orgânica”) − «sem prejuízo da Assembleia sempre poder revogar, alterar ou suspender o respetivo diploma, no exercício dos seus poderes constitucionais». Como se refere no recente Ac. do TC n.º 152/2022, de 17/02/2022, que se debruçou sobre questão idêntica à destes autos, mas em que discutia a conformidade constitucional do acto de liquidação da “taxa anual de prestação de serviços postais” relativa ao ano de 2016, «Esta salvaguarda aponta para a exigência de que os elementos essenciais das contribuições financeiras sejam definidos por acto legislativo do Parlamento ou do Governo. Com efeito, ao determinar que o regime geral das contribuições financeiras integra a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, a Constituição atribui, pelo menos de modo implícito, natureza legislativa a toda a matéria das contribuições na ausência de um regime geral. Esta exigência de que a matéria seja regulada por acto legislativo é da maior relevância, pois não obstante o mesmo órgão − o Governo − ter simultaneamente competência legislativa e regulamentar, há diferenças significativas entre o regime constitucional dos decretos-leis e dos regulamentos, seja qual for a forma que estes revistam. Como se explica no Acórdão n.º 474/2021, a propósito da distinção entre decretos-leis e decretos regulamentares: «A Constituição impõe que os regulamentos independentes revistam a forma de decreto regulamentar (n.º 6 do artigo 112.º), tal se devendo ao facto, não apenas de estes serem assinados pelo Primeiro-Ministro (n.º 3 do artigo 201.º) − ao contrário das portarias ou dos despachos dos membros do Governo –, como ainda − ao contrário do que sucede também com as resoluções do Conselho de Ministros com conteúdo normativo − de carecerem da promulgação do Presidente da República (alínea b) do artigo 134.º) e implicarem recurso obrigatório do Ministério Público para o Tribunal Constitucional em caso de recusa de aplicação de norma (n.º 3 do artigo 280.º). Estes traços de regime aproximam os decretos regulamentares, em boa medida, do regime constitucional dos decretos-leis; mas há certas qualidades procedimentais, relevantes do ponto de vista da legitimidade democrática e da separação de poderes, que só estes possuem. Com efeito, ao contrário dos decretos regulamentares, os decretos-leis, mormente em matéria de competência legislativa concorrencial, devem ser aprovados em Conselho Ministros (alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º), estão sujeitos a apreciação parlamentar (artigo 169.º) e podem ser objeto de fiscalização preventiva da constitucionalidade (alínea g) do artigo 134.º)» (fim de cit.). Ora, continuando a acompanhar, com as devidas adaptações, o raciocínio do douto Tribunal, constata-se que as normas do Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008 aqui em apreço regulamentam, é certo, a Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, mas em termos que, face à delimitação da incidência subjectiva e objectiva que resulta dos n.ºs 1 alínea b), 2 e 4 do art.º 105.º deste diploma, não podem deixar de ser considerados substancialmente inovatórios. No que respeita, em especial, à parte em que é determinada a incidência objectiva e a taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços de comunicações electrónicas, enquadrados no «escalão 2», que é o caso da impugnante e ora recorrida, é a Portaria que cria escalões, que define o universo de sujeitos passivos que integram o «escalão 2» e que elege como critério determinante da repartição dos custos a compensar os rendimentos relevantes directamente conexos com a actividade de serviços de comunicações electrónicas, apurados no ano anterior àquele a que a taxa se reporta, do qual resulta a taxa concretamente aplicada aos operadores enquadrados neste escalão. Assim, forçoso é reconhecer que certos elementos da impugnada taxa de regulação, determinantes da quantificação do tributo, foram objecto de normação primária por via regulamentar, ou seja, através do exercício da função administrativa. Acontece que esses elementos, no entendimento do Tribunal Constitucional, que aqui acompanhamos e acolhemos, «integram a reserva de função legislativa, reserva essa, cujo desiderato, na ausência de um regime geral das contribuições financeiras constante de lei parlamentar ou decreto-lei devidamente autorizado, é o de assegurar um certo nível de coerência, transparência, equidade e legitimidade na criação desses tributos. Claro está que, se a matéria em causa integra o domínio da competência legislativa concorrencial da Assembleia da República e do Governo, não está em causa simplesmente a violação da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, cujo alcance é o de delimitar o domínio reservado ao legislador parlamentar em matéria tributária. Em causa está antes a invasão pelo poder administrativo de um domínio que a ordem constitucional reserva ao poder legislativo, ou seja, em que esta não é indiferente a que a regulação da matéria – os elementos essenciais das contribuições financeiras − conste de decreto-lei ou de mero regulamento. O problema essencial, como é bom de ver, prende-se com a legalidade da Administração Pública, relevando do inciso inicial do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, não na dimensão de preferência de lei – que, por ser uma questão de legalidade, em que o parâmetro imediato de controlo é a lei ordinária, extravasa os poderes de cognição da jurisdição constitucional −, mas na dimensão de reserva de lei – que, por dizer respeito a saber se as normas regulamentares invadem um domínio que a Constituição reserva ao legislador, consubstancia uma questão de constitucionalidade» (fim de cit.). Ora, as normas constantes dos n.ºs 1, 4 e 5 do Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008, de 17 de Dezembro, na redacção da Portaria n.º 291-A/2011, de 04 de Novembro, ao regularem de forma inovatória elementos essenciais da taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços de comunicações electrónicas enquadrados no «escalão 2», violam essa reserva de função legislativa que se pode extrair das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição”. Consideramos, pois, tal como no aresto citado, que estamos perante uma contribuição financeira, cujas normas, designadamente de incidência objetiva e taxa a aplicar em relação aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas, concretamente do escalão 2, aqui em causa, constam não de ato legislativo (cfr. art.º 112.º, n.º 1, da CRP), mas de diploma regulamentar, infra legislativo. Como se refere no já citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 152/2022, de 17 de fevereiro, “é a Portaria que cria escalões, que define o universo de sujeitos passivos que integram o «escalão 2» e que elege como critério determinante da repartição dos custos a compensar os rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de serviços postais apurados no ano anterior àquele a que a taxa se reporta, do qual resulta a taxa concretamente aplicada” (no mesmo sentido veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 754/2022, de 9 de novembro). Assim sendo, recusando este Tribunal aplicar as normas constantes dos n.ºs 1, 4 e 5 Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria n.º 291-A/2011, de 04 de novembro, na parte em que determinam a incidência objetiva e a taxa a aplicar em relação aos fornecedores de redes e de comunicações eletrónicas enquadrados no “escalão 2”, por violação das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do art.º 165.º e do n.º 2 do art.º 266.º da CRP, fica sem suporte normativo a liquidação impugnada, o que determina a sua anulação. Como tal, fica prejudicado o conhecimento das demais questões, incluindo as questões objeto do recurso. Assim, é de negar provimento ao recurso, embora com a presente fundamentação.
Vencida a Recorrente é a mesma responsável pelas custas (art.º 527.º do CPC). Cumpre, no entanto, atento o valor dos autos, considerar o disposto no art.º 6.º, n.º 7, do RCP. Assim, nos termos desta disposição legal, “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”. No caso, tendo em conta a circunstância de a questão apreciada já ter sido objeto de conhecimento por este TCAS, sustentando-se em situações similares apreciadas pelo Tribunal Constitucional, e a conduta processual das partes, determina-se que haja lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.
IV. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul: a) Negar provimento ao recurso; b) Custas pela Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.; c) Registe e notifique. Lisboa, 06 de dezembro de 2022
(Tânia Meireles da Cunha) (Susana Barreto) (Patrícia Manuel Pires) _________________________________ (1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286. (2) Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2014, p. 223. |