Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:09718/13
Secção:CA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:10/24/2013
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:RESERVA ECOLÓGICA NACIONAL, RIA DO ALVOR
Sumário:1. O disposto no DL 140/99 é imediatamente aplicável, porque a Ria do Alvor é S.I.C. desde a Resolução do C.M. nº 76/2000 (in DR-I-B de 5-7-2000).
2. A violação das normas de protecção da natureza e do ambiente aqui em causa implica a restituição natural como principal medida reparadora, ou seja, a reposição da situação que existiria se não tivessem ocorrido os actos danosos ilegais. É o que decorre dos arts. 25.° do DL 140/99 alt. pelo DL 49/2005, 114.° do DL 380/99, 12.°, n.° 3, alínea g), do DL 180/2006, e 48.°, n.° 1, da Lei n.° 11/87.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO
· ... – ... e
· Outros, melhor identificados com os demais sinais dos autos,
intentaram acção administrativa comum sob a forma ordinária contra
· ... – ... Serviços e Investimentos, SA, com sede na Av. ... , n° 30, 1°, Sala A, no Funchal.
O pedido formulado foi o seguinte:
1-Ser reconhecida a existência dos habitats e espécies protegidos e sua distribuição na ... , conforme descrição feita na p.i, nomeadamente artigos 13.° a 30.°;
2-Ser a R. condenada a abster-se, por si ou por intermédio de outrem, da realização de quaisquer trabalhos ou acções de mobilização de terrenos e remoção do coberto vegetal, nas zonas da Quinta d... onde existem espécies e habitats protegidos;
3-Ser condenada a R. na interdição de acesso aos sapais, quer por maquinaria de qualquer tipo, quer de qualquer gado, bovino ou outro, por um período mínimo de 10 anos.
4-Ser a Ré condenada na reposição das espécies e habitats destruídos, observando as condições e acções descritas nos artigos 115.° a 121.° desta p i.
5-Ser a Ré condenada a apresentar, num prazo a fixar pelo Tribunal, ao ICNB, à Câmara Municipal de Portimão, e à CCDR­-Algarve, para apreciação e acompanhamento, um projecto para a reposição de todas as espécies e habitats destruídos, que observe as condições e acções descritas nos artigos 116.° a 122.° desta p i.
*
Por sentença de 31-5-12, o referido tribunal decidiu
-Reconhecer a existência dos habitats e espécies protegidos e prioritários e sua distribuição na Quinta d... de acordo com a matéria provada;
-Condenar a Ré na abstenção, por si ou por intermédio de outrem, na realização de quaisquer trabalhos ou acções de mobilização de terrenos e remoção do coberto vegetal, nas zonas da Quinta d... nas quais se deu como provada a existência de espécies e habitats protegidos e prioritários;
-Condenar a Ré na interdição de acesso aos sapais na ... , quer por maquinaria de qualquer tipo, quer de qualquer gado, bovino ou outro, por um período mínimo de dez anos;
-Condenar a Ré na reposição das espécies e habitats destruídos na ... ;
-Condenar a Ré a apresentar no prazo de seis meses ao Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve e ao Município de Portimão, um projecto para a reposição de todas as espécies e habitats destruídos na ... .
*
Inconformada, a r. recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões inutilmente longas:
1.
Ao fundamentar a decisão, designadamente no que toca ao primeiro pedido formulado pelas ora recdas, nas als. G) a K) da matéria de facto que foi dada como assente no despacho de fls. 444 e segs., o Tribunal a quo funda-se em matéria de facto obscura e deficiente, na medida em que nas referidas alíneas se limita a identificar os docs. juntos com a p.i. sob os n.os 3 a 7, inclusive, e a remeter para os mesmos, não indicando expressamente os factos que considera provados pelos referidos documentos, pelo que a sentença enferma de nulidade, nos termos do preceituado nos arts. 653.0, n.° 2, 659.0, n.° 2, e 668.°, n.° 1, al. b), do CPC.
2.
Ainda que se entenda que a remissão para os docs. 2 a 8 juntos à p.i. se reporta à específica identificação e distribuição/localização de ocupações de solo, espécies e habitats na Ria de Alvor e, designadamente, na ... , o que apenas como hipótese se refere, sem conceder, importa ter em atenção que o teor dos referidos docs. foi expressamente impugnado pela Ré, ora recte, na contesta­ção (cf. n.° 72), pelo que, tratando-se de matéria controvertida, a aludida matéria de facto deveria ter sido levada à base instrutória e não à matéria de facto assente.
3.
Verificando o Tribunal ad quem que foram considerados assentes factos que afinal eram controvertidos - os alegadamente contidos nas als. G) a K) e O) a Q) da matéria de facto assente -, é-lhe lícito corrigir as falhas detectadas na selecção da matéria de facto, eliminando factos assentes e levando-os à base instrutó­ria, ao abrigo do preceituado no art. 712.0, n.° 4, do CPC.
4.
Os factos constantes da al. L) da matéria assente são contraditórios com o que alegadamente terá sido dado como assente sob as als. G) e I), designada­mente no que toca ao habitat 1510* Estepes salgadas mediterrânicas (Limonieta­lia), que existiria na ... , mas não se encontraria presente no Sítio da Ria de Alvor, o que constitui uma impossibilidade fáctica e lógica, pelo que também nessa parte deve ser anulada a decisão quanto à matéria de facto, tal como se dis­põe no n.° 4 do art. 712.0 do CPC.
5.
O facto contido na al. S) da matéria assente foi expressamente impug­nado pela Ré no n.° 94 da cont., pelo que nunca poderia ter sido levado à matéria de facto assente, além de que os factos referidos nas alíneas S) e T) são contradi­tórios com o teor das als. G) e I) também da matéria assente e, por isso, fáctica e logicamente impossíveis, o que deve ser corrigido, ao abrigo dos poderes conferidos ao Tribunal ad quem no art. 712.°, n.° 4, do CPC.
6.
Apesar de terem sido ouvidas testemunhas ao quesito 1, cuja matéria apenas poderia ser provada por documento, a saber, o acto de classificação da Ria de Alvor como SIC e a respectiva publicitação no âmbito interno, e de a resposta ao quesito 11 ser lógica e juridicamente incompreensível, na verdade, porque o primeiro integra facto público e de conhecimento oficioso e a segunda se revela total­mente irrelevante para a boa decisão da causa, não será de aplicar a cominação prevista no art. 646.°, n.° 4, do CPC às duas situações.
7.
Conforme se expôs nos n.os 2.13 a 2.17, que aqui se dão por reproduzi­dos, as respostas aos quesitos 18, 21, 23, 33, 36 e 37 devem ser alteradas, por resultarem de uma errada apreciação da prova, documental e testemunhal, produ­zida nos autos.
8.
Assim, por aplicação do princípio contido no art. 663.° do CPC, na res­posta ao quesito 18 deveria ter-se reflectido a situação actual, tal como comprova­da pelos depoimentos das testemunhas Dalila Espírito Santo e Rute Caraça supra indicados, pelo que aquela resposta deverá ser corrigida, para nela passar a constar que «Provado que na área de mato da parte sul da "... ', na zona cen­tral da mesma, em Julho de 2020 existia uma população de cinco subpopulações da espécie Thymus Camphoratus, e que em 2010 existiam dois grandes núcleos dessa planta».
9.
A correcta consideração dos depoimentos supra indicados das testemu­nhas Dalila Espírito Santo, Rute Caraça e José Guerreiro, que o Tribunal considerou inteiramente credíveis e idóneas, e das respostas aos quesitos 25 e 28, bem como do facto levado à matéria assente sob a al. CC), deveria ter levado a uma resposta restritiva ao quesito 21, na medida em que não é correcto dar-se como provado que a Ré destruiu habitats e espécies, uma vez que, apesar das intervenções imputadas à Ré, ora recte, ocorridas entre 2006 e 2007, a verdade é que, em 2010, os habitats e espécies protegidos e presentes na Quinta d... se encontravam em franca recuperação e mesmo num estado de conservação favorável, todos eles con­tinuam a existir, e em bom estado de conservação, na ... .
10.
Assim sendo, a resposta ao quesito 21 deverá ser corrigida, para nela passar a constar: "Provado apenas o que resulta das respostas aos quesitos 25 e 28 e na al. CC) da matéria de facto assente".
11.
A resposta ao quesito 23 deverá ser corrigida para "Não provado", na medida em que resulta sem margens para dúvidas da prova testemunhal produzi­da, designadamente dos depoimentos supra indicados de Dalila Espírito Santo e Rute Caraça, que a espécie Juncus acutus não foi destruída, não desapareceu da ... , apenas momentaneamente foram cortados espécimes, que poste­riormente voltaram a nascer.
12.
A resposta que foi dada ao quesito 33 só se pode ter devido a lapso, uma vez que, por um lado, o mato a que se reporta o referido quesito integra o habitat 5330pt5 - Matos Termo mediterrânicos ou pré-desérticos, sendo que na área da Quinta d... não se reconheceu a presença daquele tipo de habitat, tal como resulta dos docs. juntos aos autos, pelo que não é possível dar-se com provado que o mesmo foi destruído.
13.
Por outro lado, nenhuma das testemunhas das Autoras inquiridas ao referido quesito fez qualquer referência à área alegadamente objecto da relevada destruição, sendo ainda certo que o próprio quesito enferma de um erro de trans­crição do facto articulado no n.° 79 da p.i., onde se afirmava apenas que «A aber­tura e caminhos e o desbaste de vegetação na encosta sul por trabalho de retroes cavadora terá afectado pelo menos 0,12 ha deste mato», sendo que no doc. n.° 67 junto com a p.i., igualmente apenas se refere como "Área destruída — 0,12 ha, ou seja, 1.200 m2 e não os improváveis 100.000 ou 120.000 m2.
14.
Deste modo, não só porque se reporta a matéria de facto não alegada por qualquer das partes, e, por isso, subtraída ao conhecimento do Tribunal, nos termos do disposto no art. 664.° do CPC, como porque, ainda que assim não se entendesse, nenhuma das testemunhas referiu tal facto, o quesito 33 deve ser dado como "Não provado".
15.
Por último, e no que toca às respostas aos quesitos 36 e 37, cumpre concluir que, conforme melhor se expôs em 2.17 antecedente, os depoimentos das testemunhas das Autoras sobre esta matéria não podem ser considerados unívo­cos e convincentes, antes se devendo considerar que os depoimentos das tes­temunhas da Ré, ora recte., foram suficientes para tornar duvidosos os factos perguntados nos quesitos 36 e 37, cuja prova incumbia às Autoras, pelo que deve a questão ser decidida contra a parte onerada com a prova, tal como se dispõe no art. 346.° do CC e, em consequência, deve a resposta aos quesitos 36 e 37 deve ser corrigida, para passar a ser, em ambos os casos, "Não prova­do".
16.
Ao responder afirmativamente às três questões que identificou como constituindo o thema decidendum, o Tribunal a quo incorre em erro na identificação e apreciação dos factos relevantes para a boa decisão da causa, assim como incorre em erro na determinação, interpretação e aplicação do direito pertinente.
17.
Ao responder afirmativamente à primeira das questões controverti­das que identificou, isto é, para concluir que a Ré praticou na Quinta d... actos lesivos contra direitos fundamentais do ambiente, conservação da nature­za e da biodiversidade, a sentença recda não indica que concretos habitats e espécies protegidas considerou existentes dentro da "... ", nem tão pouco indica que concretos habitats e espécies foram alegadamente "corrompi­dos" pela Ré, o que constituiriam pressupostos lógicos do silogismo que entende aplicar e que deveriam resultar de concretos pontos da matéria de facto que deu como assente ou provada.
18.
Ao não fazer qualquer exame crítico das provas e dos factos de que lhe cumpre conhecer, não sendo apreensível pela leitura da sentença qualquer exercício de selecção dos factos relevantes para a boa decisão da causa, tendo em atenção as normas que, mal ou bem, identifica como aplicáveis ao caso sub Júdice, o Tribunal a quo viola o preceituado no art. 659.°, N.os 2 e 3, do CPC, porquanto o correcto cumprimento das referidas normas não se basta com a simples transcrição de todos os factos que foram dados como assentes ou pro­vados nos autos.
19.
Nessa medida, não pode igualmente deixar de se entender que uma sentença que padece de tal omissão incorre na nulidade prevista na al. b) do art. 668.0 do CPC, por falta de especificação (clara e suficiente) dos fundamen­tos de facto que justificam a decisão.
20.
Ainda que se entenda que a fundamentação de facto subjacente à resposta à primeira questão controvertida não padece da aludida nulidade, sempre se deverá entender que a sentença recda se baseou em matéria de facto erradamente dada como assente e provada, designadamente a constante das als. G) a K), O), P) Q), L), 5) e T), tal como se relevou supra, pelo que incorre em erro de julgamento, por se basear em factos incorrectamente dados como assentes e provados.
21.
Também a resposta afirmativa à segunda questão controvertida (aqueles actos foram susceptíveis de acarretar os danos ambientais que as Autoras invocam na presente acção?) padece dos mesmos erros e insuficiências apontados à resposta à primeira questão, por total omissão do exame crítico das provas e dos factos que ao Tribunal cumpria conhecer, não sendo apreensível pela leitura da sentença qualquer exercício de selecção dos factos relevantes para a boa decisão da questão em apreço, designadamente, dos concretos pon­tos da matéria de que revelariam os aludidos danos.
22.
Deste modo, também no tocante à segunda questão controvertida se deve concluir que o Tribunal a quo viola o preceituado no art. 659.0, n.os 2 e 3, do CPC, porquanto o correcto cumprimento das referidas normas não se basta com a simples transcrição de todos os factos que foram dados como assentes ou provados nos autos.
23.
Nessa medida, não pode igualmente deixar de se entender que uma sentença que padece de tal omissão incorre na nulidade prevista na al. b) do art. 668.0 do CPC, por falta de especificação (clara e suficiente) dos fundamen­tos de facto que justificam a decisão.
24.
Ainda que se entenda que a fundamentação de facto subjacente à resposta à segunda questão controvertida não padece da aludida nulidade, sem­pre se deverá entender que a sentença recda incorreu em erro de julgamento por se ter baseado em matéria de facto erradamente dada como provada, designadamente a contida nas respostas aos quesitos 21, 23 e 33, porquanto ficou bem claro que as intervenções da ora recte na "... " não só não tiveram por objectivo provocar qualquer destruição de valores naturais, como ficou provado que a referida destruição não ocorreu, uma vez que, con­forme decorre dos depoimentos supra transcritos, os vários habitats e espécies presentes na propriedade da ora recte encontram-se, actualmente, em franca recuperação, não resultando da prova produzida o desaparecimento definitivo de qualquer dessas espécies ou habitats.
25.
Ao responder afirmativamente à terceira questão controvertida, con­cluindo pela primazia do interesse público de preservação dos bens e valores ambientais sobre o direito de propriedade privada da ora recte. e, consequen­temente, pela sujeição dos proprietários ao dever de salvaguarda dos bens e valores ambientais, o Tribunal a quo invoca uma série de normas gerais, insus­ceptíveis de aplicação directa, como o Plano Nacional da Política de Ordenamen­to do território, um acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, cuja dou­trina não procede de acordo com o entendimento perfilhado pelo STA, a lei geral (sem indicação que qualquer norma ou diploma específico!), os arts. 13.0 e 15.0 do PDM de Portimão, a alegada sujeição dos trabalhos de remodelação de terre­nos a licença camarária, nos termos do RJUE, desconsiderando a ressalva dos trabalhos com fins agrícolas ou pecuários contida na própria norma que invoca, os regimes da REN e da RAN, como se estes proibissem toda e qualquer intervenção ou obra, o regime da Rede Natura 2000, sem, mais uma vez indicar qualquer norma específica de onde decorreria a aludida sujeição dos titulares de propriedade privada à salvaguarda dos valores naturais.
26.
Ao condenar a Ré, ora recte., nos pedidos formulados pelas autoras com base nos aludidos regimes e normas gerais, o Tribunal a quo faz uma erra­da aplicação dos mesmos, como se deixou dito.
27.
Não sendo a sentença recda clara quanto à efectiva relevância que o Tribunal a quo atribuiu para a decisão da causa a todos os preceitos do RJRN exaustivamente transcritos na parte inicial da análise da primeira das questões controvertidas, cumpre evidenciar que só por erro se pode configurar a eventual aplicação do regime consagrado no Decreto-Lei n.° 140/99, na sua actual redac­ção, ao caso dos autos.
28.
Com efeito, muito embora, nos termos do art. 7.o-A do referido diploma se estabeleça que, aos sítios da lista nacional de sítios aprovados e enquanto não se proceder à sua classificação como ZEC, é aplicável o regime previsto no presente diploma para as ZEC (contrariamente às ZPE, até à presen­te data ainda não foi classificada nenhuma ZEC no território português, median­te a publicação do pertinente decreto-regulamentar, como se estabelece no art. 5.0, n.° 6 do RURN), a verdade é que muitas das disposições consagradas no alu­dido diploma não eram por natureza operativas e aplicáveis ao caso dos autos, uma vez que dependiam, não tanto da classificação efectiva como ZEC, mas sim da aprovação do plano sectorial de execução da Rede Natura 2000, que, como se sabe, só foi aprovado pela RCM n.0 115-A/2008, de 21 de Julho.
29.
Conforme melhor se expôs nos n.os 3.10 a 3.15 antecedentes, que aqui se dão por reproduzidos, as alegadas restrições impostas pelo regime jurídico da Rede Natura 2000, designadamente as contidas no seu art. 9.0, n.° 2, só passaram a ser efectivamente operativas, isto é, passíveis de aplicação pelas "entidades da Administração Pública com intervenção nas zonas especiais de conservação" e pelo próprio ICN e CCDR's, nos termos e para os efeitos do preceituado no cit. art. 9.0, n.° 2, a partir da aprovação do PSRN 2000, pela RCM n.° 115-A/2008, de 21 de Julho, pois só com o plano sectorial se elaboraram as fichas de Sítios e ZPE, bem como as fichas de caracterização ecológica e de gestão das espécies de flora, fauna e aves, se procede à harmonização da cartografia disponível sobre habitats naturais e espécies da flora e da fauna e são estabelecidas as orientações de gestão para cada um dos sítios,
30.
Não tendo nenhuma das intervenções sub judice e imputadas à ora recte ocorrido em data posterior à aprovação e entrada em vigor do PSRN 2000, não se encontravam as mesmas sujeitas às restrições previstas no RJRN, designa­damente, à obtenção de prévio parecer favorável do ICNB ou da CCDR.
31.
Para além de todas as críticas já apontadas, a sentença recda. incorre num erro fundamental ao não se ter apercebido de que as autoras recorreram a um meio processual impróprio, o que determinou que, ao julgar procedente a acção, o Tribunal a quo invadisse as margens próprias da jurisdição administrativa, incor­rendo, desse modo, em violação da separarão entre a função jurisdicional e a fun­ção administrativa.
32.
A lei frequentemente atribui a determinadas entidades administrativas, como sucede, no caso do RJRN, com o ICN e a CCDR, o poder administrativo e dis­cricionário de, ponderando diversos interesses, praticar determinados actos, como autorização de certos actos e actividades ou imposição de cessação de determina­das actuações ilegais.
33.
Quando a Administração exerce este tipo de função, que envolve a ponderação e harmonização de diversos interesses e a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa, no uso de poderes discricionários, deve entender-se que esse exercício é exclusivo da Administração, não podendo os Tribunais, ou outros órgãos de soberania, substituir-se-lhes, sob pena de viola­ção do princípio da separação dos poderes, consagrado no art. 111.0 da Constitui­ção.
34.
Ao aceitar conhecer da presente acção, culminando com a condenação da Ré, ora recte. nos vários pedidos formulados pelas Autoras e que se traduzem no exercício de valorações e juízos discricionários, próprios da função administrati­va, e cuja apreciação caberia em primeira linha ao ICNB ou à CCDR, ao invés de ter reconhecido que o único meio processual próprio a que as Autoras poderiam ter recorrido seria a propositura de uma acção administrativa especial para condena­ção à prática de acto devido, em que fosse demandada a entidade administrativa competente, o Tribunal a quo violou o princípio da separação de poderes, consa­grado no art. 111.0 da Constituição, bem como os arts. 37.0 e 46.0 do CPTA, con­jugados com o art. 71.0, n.0 2, também do CPTA.
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A recorrida contra-alegou.
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O Exmº representante do Ministério Público junto deste Tribunal foi notificado para se pronunciar como previsto na lei de processo.
Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.(1)
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II. ÂMBITO DO RECURSO - QUESTÕES A RESOLVER
Os recursos, que devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos, têm o seu âmbito objectivo delimitado pelo recorrente nas conclusões (sintéticas) da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser oficiosamente conhecidas.
Assim, considerando as conclusões apresentadas resultantes do corpo alegatório, o presente recurso demanda a apreciação do seguinte (contra a decisão recorrida):
i- Nulidade decisória, porque as al. G a K da matéria de facto provada são obscuras e deficientes,
ii- Erro de direito ou erro de facto, respectivamente, porque as al. G a K e O da matéria de facto provada correspondem a matéria impugnada no art. 72 da Contest., pelo que ou deveriam ir para a BI ou ser factos não provados,
iii- Erro de facto, porque as al. L, S e T da matéria de facto provada contradizem as al. G e I,
iv- Erro de facto, porque a al. S da matéria de facto provada foi impugnada no art. 94º da Cont.,
v- Erro de direito, porque a resposta ao quesito 1 viola o art. 393º CC, pois só poderia resultar de doc.,
vi- Erro de direito, porque a resposta ao quesito 11 é incompreensível,
vii- Erro de facto, porque a resposta ao quesito 18 devia ser «Provado que na área de mato da parte sul da "... ', na zona central da mesma, em Julho de 2020 existia uma população de cinco subpopulações da espécie Thymus Camphoratus, e que em 2010 existiam dois grandes núcleos dessa planta», em consequência da prova testemunhal,
viii- Erro de facto, porque a resposta ao quesito 21 devia ser restritiva, em consequência da prova testemunhal e das respostas aos quesitos 25 e 28 e do facto CC),
ix- Erro de facto, porque a resposta ao quesito 23 deveria ser não provado,
x- Erro de facto, porque a resposta ao quesito 33 devia ser não provado (v. art. 79 p.i. e art. 664º CC),
xi- Erro de facto, porque a resposta aos quesitos 36 e 37 devia ser não provado (v. art. 346 CC),
xii- Erro de direito, porque a sentença não indica que concretos habitats e espécies existentes foram postos em perigo,
xiii- Erro de direito, porque o DL 140/99 não se aplica ao caso antes da RCM 115-A/2008.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. FACTOS RELEVANTES PROVADOS segundo o tribunal recorrido
(OMISSIS)
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III.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
A decisão jurisdicional ora recorrida, algo confusa e superficial, com pouco rigor linguístico e jurídico, designadamente na exposição da matéria de facto provada, entendeu, em síntese, o seguinte:
«… a) A Ré praticou na Quinta d... actos lesivos contra direitos fundamentais do ambiente, conservação da natureza e da biodiversidade?
O enquadramento legal desta matéria assenta na Directiva das Aves e a Directiva dos Habitats, directivas comunitárias estas que foram transpostas para o direito interno português pelo Decreto-Lei n° 226/97 de 27 de Agosto com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n° 140/99 de 24 de Abril e objecto de nova revisão pelo Decreto-Lei n° 49/2005 de 24 de Fevereiro a que se seguiu o Plano Sectorial da Rede Natura 2000 com as condicionantes das ZPE e SÍTIOS e do que resultou a Resolução do Conselho de Ministros n° 115-A/2008 publicada no Diário da República, I Série, Suplemento, de 2008.07.21 na qual igualmente são definidas as restrições ao uso intensivo dos solos, captações de água bem como o afastamento da actividade humana desses locais, e em caso imperioso da mesma, dependente de parecer ou autorização das entidades competentes.

Da profusa prova documental e testemunhal obtida, resulta à saciedade que a Ré tem corrompido os habitats e as espécies protegidas existentes dentro da propriedade da ... , com o uso de meios mecânicos para gradagem do solo, para a retirada de terras, no lavrar do terreno para semear cereais, permitindo o pastoreio de espécies bovinas em áreas sensíveis.
Nessa medida, parece até ter sido em vão os inúmeros Autos de Notificação e Embargo que foram sendo instaurados pela CCDR-Algarve, em virtude de perseverar a Ré indemne, na sua conduta, na sequência nomeadamente de denúncias da situação como a de 2006.03.13, do Director Executivo da Autora solicitou ao Comandante do Posto da GNR de Portimão, averiguação urgente de ocorrência da destruição de plantas de conservação prioritária, segundo a Directiva Habitats, como a comunicada por por fax, de 24 de Agosto de 2007, dirigido à GNR - SEPNA a ocorrência de movimentação de terras em área onde está georeferenciada a espécie Pombinhas (Linaria algarviana) e a de 6 de Setembro de 2007, na qual ‗A ... ‘ envia à GNR - SEPNA uma denúncia acerca da destruição de coberto vegetal em habitat ―Natura 2000‖ – 5330pt5 (matos mediterrânicos pré - desérticos).
…a Ré continuou a sua acção de destruição de habitats e espécies protegidos na ... .
Acresce que apesar da instauração da referida acção cautelar neste Tribunal, se materializaram, pelo menos, mais seis ocorrências consubstanciadas em diversos trabalhos de obras, agrícolas e de escavação, o que constitui uma violação flagrante ao que pressupõe e é determinado legalmente na instauração de qualquer acção cautelar – suspensão de toda e qualquer actividade trazida a pleito bem como o notório descaso pelo estatuído nos correspondentes Autos de Notícia, Relatórios de Campo – e até o embargo – instruídos então pelos serviços competentes.
A propósito, a testemunha, Ana Fátima da Costa Nunes, nos presentes autos e vigilante da natureza da CCDR de 2007.03.01 a 2008.02.28, referiu que se deslocou cerca de dez vezes à ... , por denúncia, que começou como vigilante em Aljezur, em 1998, e que `nunca viu nada como isto; eles não queriam saber‘.
Entende-se que este modus operandi foi gerador de danos para o ambiente, a conservação da natureza e da biodiversidade numa área tão sensível, e por isso merecedora de um tratamento cuidado no sentido da preservação dos habitats e das espécies que se encontram em diversos locais na ... .
Com efeito, a propriedade da Quinta d... é abrangida pelo Sítio de Importância Comunitária PTCON0058 `Ria de Alvor‘, cuja designação no âmbito da Directiva Habitats se deve à presença de 19 habitats naturais, a saber: 1110, 1130, 1140, 1150, 1160, 1210, 1310, 1320, 1410, 1420, 1430, 1510, 2110, 2120, 2130, 2230, 5330, 6420, 92 D0 do Anexo B-I do Decreto-Lei n° 140/90 de 30 de Abril, republicado pelo Decreto-Lei n° 49/05, de 24 de Fevereiro, três dos quais prioritários, e de diversas espécies vegetais e animais do Anexo B-II do mesmo Decreto-Lei.
A prevenção que deve ser dada a estes habitats e espécies não se compadece nem coaduna com a actuação indómita e desenfreada que a Ré tem adoptado, designadamente pelo descaso de que os terrenos que integram a propriedade in casu são reconhecidos no PDM como Reserva Ecológica Natural e como Zona Protegida pela Rede Natura 2000.
Consequentemente, o direito a que se arrogam as Autoras foi lesado, encontra-se amputado, com a actuação da Ré. As acções desta são arredias ao princípio da igualdade, que implica designadamente a proibição de discriminação e, com o princípio da proporcionalidade, respectivamente previstos no art° 13° e n° 2 do art° 18° da Constituição da República Portuguesa.
A importância desta matéria assegura que os danos ambientais são indemnizáveis segundo o princípio geral contido no art° 562° do Código Civil – vide nesse sentido o Acórdão do STA, Processo n° 039934 A de 2005.03.08 e o do Pleno n° 24779 A de 2001.03.14 in www.dgsi.pt.
Assim, a resposta à primeira questão: A Ré praticou na Quinta d... actos lesivos contra direitos fundamentais do ambiente, conservação da natureza e da biodiversidade?
- É garantidamente positiva.
Esta primeira questio entronca com a segunda:
b) Aqueles actos foram susceptíveis de acarretar os danos ambientais que as Autoras invocam na presente acção?
Não restam dúvidas pela profusa prova documental e testemunhal, que a resposta a esta quaestio, é igualmente, afirmativa.
Traz-se à colação que (...) uma descoberta fundamental da ecologia é a de que os organismos vivos (a comunidade biótica) e o seu ambiente inerte (abiótico) estão inseparavelmente ligados e interagem. Neste contexto, qualquer unidade que inclua a totalidade dos organismos de uma área espacial determinada, interagindo com o ambiente físico por forma a que uma corrente de energia conduza a uma estrutura trófica, à diversidade biótica e a ciclos materiais (i.e., troca d materiais entre as partes vivas e não vivas) é um sistema ecológico ou ecossistema.
Por outro lado, os sistemas ecológicos – como quaisquer sistemas – são essencialmente um conjunto de elementos e de processos funcionais que, pela sua interacção, tornam possível a prossecução de objectivos sistémicos essenciais: a sobrevivência, a diferenciação, a auto-regeneração e a reprodução‖ – cfr José de Sousa Cunhal Sendim in Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos – Da Reparação do Dano através de Restauração Natural, Coimbra Editora, 1998, p 77 e 78.
Neste sentido, entende-se fundamental a preservação do património natural existente na ... , património este sedimentado nos art°s 17° e 20° da Lei de Bases do Ambiente – Lei n° 11/87 de 7 de Abril – no qual radica o princípio do desenvolvimento sustentado ínsito no art° 66° da Constituição da República Portuguesa.

Salienta-se que no ordenamento português se encontra consagrado o direito dos particulares à indemnização de danos ecológicos no n° 3 do art° 52° da Constituição da República Portuguesa que confere a todos, quer pessoalmente quer através das associações de defesa dos interesses em causa, o direito de promover a prevenção e a cessação de actividades ou actos lesivos contra o ambiente bem como, quando for o caso, o de pedir para os lesados a indemnização correspondente.

Assim, em conclusão, a violação pela Ré das normas de protecção da natureza e do ambiente devido às acções levadas a cabo na Quinta d... dadas como provadas no Probatório, obriga à restauração natural como principal medida reparadora, ou seja, à reposição da situação que existiria se não tivessem ocorrido os actos danosos, como dispõe o art° 25° do Decreto-Lei n° 49/2005, de 24 de Fevereiro, o art° 114° do Decreto-Lei n° 380/99, de 22 de Setembro, a alínea g) do n° 3 do art° 12°do Decreto-Lei n° 180/2006, de 6 de Setembro e o n° 1 do art° 48° da Lei n° 11/87, de 7 de Abril.
Em terceiro lugar, cabe analisar e responder à seguinte questão:
c) A salvaguarda dos bens e valores ambientais existentes em propriedade privada é devida aos seus proprietários?
A Ré defende que o Plano Sectorial da Rede Natura 2000 não é directamente aplicável aos particulares e que as medidas e orientações de gestão aí previstas apenas serão vinculativas quando forem inseridos nos PMOT e nos PEOT.
Não obstante, existem limites externos ao direito do ordenamento, nos quais radicam os limites ambientais que resultam de normas jurídicas oponíveis aos particulares, e que criam restrições ao direito de propriedade e obrigações para os cidadãos, independentemente de estarem ou não consagradas em instrumentos de ordenamento do território directamente vinculativos para os particulares como o PDM.
Neste sentido, o próprio Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n° 41/2006, estabelece claramente que ―a política de conservação da natureza e biodiversidade determinou que uma parte substancial da superfície de Portugal, desigualmente distribuída, esteja coberta por regimes jurídicos que impõem restrições ou condicionantes ao uso do solo e de outros recursos naturais, comprimindo o conteúdo material e alterando as condições de exercício dos respectivos direitos de propriedade dos particulares".
A título ilustrativo, salienta-se que no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Processo C-535/07, de 2010.10.14, a Áustria foi absolvida da acusação de incumprimento por se considerar que o Direito Europeu não exige um regime de protecção especificamente definido e instituído para cada zona classificada e para cada espécie, bastando que do ordenamento jurídico nacional decorra com clareza que certas actividades são proibidas.
Em Portugal, o desiderato da protecção dos valores ambientais como as obrigações e as proibições inerentes ao regime de protecção, no caso da Ria de Alvor, existem na lei geral.
Igualmente, não se desconsidere que o Plano Director Municipal de Portimão, ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n° 53/95, de 7 de Junho, manifesta preocupação com a consagração de preocupações de índole ecológica e com a previsão de obrigações de protecção da natureza e do ambiente.
Com efeito, nele se prevê, no contexto das medidas relativas à ocupação, uso e transformação do solo, uma ―zona de recursos naturais e de equilíbrio ambiental classificado na Secção II como C – Espaços Naturais – Sapais da Ria de Alvor e Colinas Arge".
A classificação daquele solo é rural, não urbano, nem urbanizável, vocacionado para espaço natural, ao abrigo do disposto na alínea d) do n° 1 do art° 73° do Decreto-Lei n° 380/99, de 22 de Setembro, proibindo-se e condicionando-se acções, designadamente de destruição de coberto vegetal, do relevo natural e de camadas de solo arável – cfr art°s 13° e 15° do Regulamento do PDM de Portimão.
Densifica, a propósito, a Secção II, do indicado Regulamento do PDM que os espaços naturais ―são os que privilegiam a protecção dos recursos naturais e a salvaguarda dos valores paisagísticos e são, no seu conjunto, zonas non aedificandi‖.
Trazendo-se à colação o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), nos termos da alínea a) do n° 2 do art° 4° e da alínea l) do n° 2 do art° 2°, os trabalhos de remodelação de terrenos que impliquem destruição de coberto vegetal, alteração do relevo natural e das camadas de solo arável são ‗operações urbanísticas‘ e sujeitas a controlo prévio da Administração Pública, nomeadamente a licença administrativa.
Destaca-se, no âmbito da matéria que nos ocupa, que os sapais são zonas non aedificandi, nos termos das leis de protecção ambiental e do ordenamento territorial o que concatenado com a disciplina constante dos regulamentos de ordenamento do território e da edificação urbana, resulta que não podem ser realizadas ou autorizadas nessas zonas, obras, serviços, trabalhos ou actividades que danifiquem ou coloquem em perigo as espécies e os habitats protegidos.
Acresce que a Quinta d... é uma zona classificada de especial importância uma vez que integra espécies de habitats considerados prioritários pela lei nacional, em execução das exigências europeias da Rede Natura 2000.
Por outro lado, a área do prédio propriedade da Ré encontra-se ainda sujeita aos regimes da Reserva Agrícola e da Reserva Ecológica Nacional.
Face à presença de habitats prioritários, a lei intensifica exigências para a sua protecção, nomeadamente nestes termos: "Verificando-se que os impactes negativos da acção ou projecto incidem sobre um tipo de habitat prioritário ou sobre uma espécie prioritária, o reconhecimento a que se refere o número anterior só pode ocorrer quando:
a) Estejam em causa razões de saúde ou de segurança públicas;
b) A realização da acção ou projecto implique consequências benéficas para o ambiente;
c) Ocorram outras razões de interesse público, reconhecidas pelas instâncias competentes nacionais e da União Europeia‖ – cfr n° 2 do art° 10° do Decreto-Lei n° 140/99, de 24 de Abril.

Aqui chegados, entende-se que não assume primazia o direito de propriedade, privada, da Ré, no sentido de que não pode praticar todos e quaisquer actos que violem a sustentabilidade do sistema ecológico e de biodiversidade existente na ... , uma vez que in casu, tudo visto e ponderado, os direitos particulares, devem ceder ao interesse público, de preservação daqueles bens e valores.
Existe, assim, fundamento de facto e de direito para condenar a Ré no pedido das Autoras».

Aqui chegados, há melhores condições para se compreender o recurso e apreciar o seu mérito. O tribunal fá-lo-á de acordo com os valores e postulados estruturantes da ordem jurídica, sob a bússola de um sentido universal-recíproco da ideia de imparcialidade(2), bem como com as regras jurídicas (=mandados ou comandos definitivos que se aplicam por subsunção; ou normas imediatamente descritivas, primariamen­te retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, centra­da na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são axio­logicamente sobrejacentes, entre a construção conceptual da descrição normativa e a construção conceptual dos factos) e os princípios jurídicos (=comandos ou mandados de optimização reportados a um dever-ser ideal que, através dos 3 sub-exames da proporcionalidade ou proibição do excesso, exigem o sopesamento(3) racional do seu objecto ante o que é fáctica(4) e juridicamente(5) possível no caso concreto, culminando na criação de uma regra, adstrita à Constituição, para o caso concreto; ou normas imediatamente finalísticas, prima­riamente prospectivas e com pretensão de complementaridade, sem pretensão de decidibilidade ou abrangência, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção) que sejam pertinentes, normas essas que se “descobrem” in concreto sob as máximas hermenêuticas e metódicas (vd. o art. 9º do CC e os arts. 2º, 13º e 266º da CRP) dum sistema jurídico racional encimado pela Constituição, pelos direitos fundamentais e pelo valor supremo da igual dignidade de cada ser humano (vd. a DUDH, a CEDH e os arts. 2º, 13º e 18º da CRP).(6)
Vejamos, pois.

1 – Da nulidade decisória, porque as al. G a K da matéria de facto provada seriam obscuras e deficientes
Tais alíneas dizem o seguinte:
G) Presença e distribuição dos habitats "Natura 2000" na Ria de Alvor (cfr doc n° 3 da pi);
H) Distribuição e ocupações do solo nos terrenos, sem estes habitats (cfr doc n° 4 da pi);
I) Mapa de habitats produzido pelo ICN (2006) (cfr doc n° 5 da pi);
J) Áreas onde foram observadas diversas espécies (cfr doc n° 6 da pi);
K) Distribuição de espécies botânicas e áreas potenciais de alguns animais (cfr doc n° 7 da pi).
Infelizmente, é verdade que esta forma de quesitar é pobre e irregular. Mas nunca seria uma nulidade das referidas no art. 668º-1 CPC.
Ainda assim, percebe-se o que a Sra. Juiza queria dizer, que era dar como provado o teor gráfico dos docs. ali citados.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

2 – Do erro de julgamento de direito ou erro de julgamento de facto, respectivamente, porque as al. G a K e O da matéria de facto provada corresponderiam a matéria impugnada no art. 72 da Contest., pelo que ou deveriam ir para a BI ou ser factos não provados
A al. O diz o seguinte:
O) Na zona Oeste da quinta existe um mosaico de habitats de sapal cobrindo uma área de 39 hectares (cfr docs n°s 8 e 9 da pi).
Efectivamente, no art. 72º da cont., a ré impugnou os docs. 2 a 8 da p.i., ao que não se seguiu contraprova de acordo com o art. 374º-3 CC.
Donde resulta que a Sra. Juiza nunca poderia dar como provada a factualidade assente em tais docs., i.e. os factos G) a K). Já o facto da al. O) também assenta no doc. 9, pelo que foi bem julgado como provado.
Assim, decide-se eliminar da factualidade provada as al. G) a K).
Procede, assim, parte deste ponto das conclusões do recurso.
Mas, mesmo sem tal factualidade, o sentido do decidido não é afectado.

3 – Do erro de julgamento de facto, porque as al. L, S e T da matéria de facto provada contradiriam as cit. al. G e I
As alíneas L, S e T dizem:
L) A "... ", contém dentro dos seus limites as seguintes espécies e habitats, cuja protecção mais importante é a Natura 2000:
Lista de habitats prioritários e de interesse comunitário
1150* Lagunas costeiras
Directiva Habitats Anexo 1
1310pt3 - Vegetação anual primaveril graminóide de salgados
1320 - Prados de Spartina (Spartinion marítimas)
1410 - Prados salgados mediterrânicos (Juncetalia maritimi)
1420 - Matos halófilos mediterrânicos e termoatlánticos (Sarcocornetea fruticosi)
1430 - Matos halonitrótilos (Pegano-Salsoletea) 1510*Estepes salgadas mediterrânicas (Limonietalia)
5330pt5 - Carrascais, espargueirais e matagais afins basófilos (Directiva Habitats Anexo I da Directiva n° 92/43/CEE, do Conselho, de 21 de Maio);
S) Existe na encosta sul da propriedade, um mato dominado por Carrasco Quercus coccifera e Lentisco Pistacia lentiscus, de tipo ―Carrascais, espargueiras e matagais afins basófilos" (subtipo pt5 de habitat 5330 - matos termodinâmicos pré-desérticos) (por acordo);
T) Existem também outras parcelas de mato associado com afloramentos rochosos espalhados na zona Este da península, caracterizados pela ‗A ... ‘ como um subtipo menos típico do habitat 5330 como elementos de dois outros habitats de interesse (6210 - Prados secos seminaturais, e 6220pt1 —Arrelvados anuais neutrobasófilos) (por acordo);
Ora, eliminadas que devem ser as alíneas G e I, não há, logicamente, possibilidade de ocorrer tal contradição.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

4 – Do erro de julgamento de facto, porque a cit. al. S da matéria de facto provada (art. 29 da p.i.) fora impugnada no art. 94º da Cont.
Não tem razão a recorrente, pois o que ali impugnou foi o art. 23º da p.i. e não o art. 29º.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

5 – Do erro de julgamento de direito, porque a resposta ao quesito 1 (A Ria de Alvor é um Sítio de Importância Comunitária?) violaria o art. 393º CC(7), pois só poderia resultar de doc.
A resposta foi «provado».
A recorrente tem parcial razão, mas equivoca-se na base legal.
Com efeito, este tipo de facto não deve constar da b.i., mas pode constar da factualidade provada da sentença se for provada por documento não legislativo. É o que resulta dos arts. 638º-1, 646º-4 e 659º-3 do CPC/95.
Assim, antes da Portaria 829/2007, já a Decisão da Comissão Europeia de 19 de Julho de 2006, que adoptou, nos termos da Directiva 92/43/CEE do Conselho, a lista dos sítios de importância comunitária da região biogeográfica mediterrânica, reconheceu a Ria do Alvor como sítio de importância comunitária (in: Jornal Oficial nº L 259 de 21/09/2006, p. 0001– 0104).
Pelo que tal facto alegado, não devendo constar da b.i., já pode e deve constar da factualidade da sentença.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

6 – Do erro de julgamento, porque a resposta ao quesito 11 (A singularidade ecológica da Ria de Alvor levou à sua classificação como Zona Húmida de Importância Internacional (Convenção de Ramsar), Biótopo CORINE e Zona Especial de Conservação - ZEC (Rede NATURA 2000)?) seria incompreensível
A resposta foi «provado que existem essas características na Ria Formosa».
Pelo que a recorrente tem razão. Com efeito, não se percebe o que a Sra. Juiza quis dizer. Parece não ter a ver com o mesmo assunto.
Além disso, tal quesito contém uma mera conclusão e não um facto. Pelo que nem deveria ter sido formulado. A resposta deve ser considerada não escrita, portanto.
Procede, assim, este ponto das conclusões do recurso.
Mas, mesmo assim, logicamente, o sentido do decidido não é afectado.

7 – Do erro de julgamento de facto, porque a resposta ao quesito 18 (Na área de mato da parte sul da "... ", na zona central da mesma, existe uma população e cinco subpopulações da espécie Thymus camphoratus?) deveria ser «Provado que na área de mato da parte sul da "... ', na zona central da mesma, em Julho de 2002 existia uma população de cinco subpopulações da espécie Thymus Camphoratus, e que em 2010 existiam dois grandes núcleos dessa planta», em consequência da prova testemunhal e do art. 663º CPC
A resposta foi «provado».
A prova testemunhal ora invocada, de facto, referiu o que a recorrente diz.
Mas, ao abrigo do art. 663º CPC/95, esta referência a 2010 não se pode considerar como facto constitutivo, modificativo ou extintivo do direito da A. No caso presente, o que interessa mesmo é o período invocado na p.i.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

8 – Do erro de julgamento de facto, porque a resposta ao quesito 21 (Apesar de `A ... ' ter requerido a Providência Cautelar que corre os seus termos no TAF Loulé, a Ré continuou a sua acção de destruição de habitats e espécies protegidos?) deveria ser restritiva, em consequência da prova testemunhal e das respostas aos quesitos 25 (Em 6 de Setembro de 2007, `A ... ' envia à GNR - SEPNA uma denúncia acerca da destruição de coberto vegetal em habitat "Natura 2000" ~ 5330pt5 (matos mediterrânicos pré –desérticos)?) e 28 (Em 2 de Novembro de 2007, a intervenção de máquinas agrícolas no sapal Este da "... " foi testemunhada ao vivo pela comunicação social?) e do facto CC) (Em 2007 .10 .22, o Director Executivo da Autora comunica ao Comandante do Posto da GNR de Portimão, Brigada SEPNA, nomeadamente o seguinte: "Às 18:15 do dia 21 de Outubro de 2007 (Domingo, ao cair da noite), recebi um telefonema informando da presença de máquinas a arrancar e a amontoar a vegetação de sapal, situada no sapal, lado Oeste, da propriedade ... . A informação foi confirmada, documentada e prontamente denunciada para o seu posto, assim como para o piquete do ICNB, que não se encontrava também de serviço. Na impossibilidade de a brigada SEPNA da GNR vir no dia de ontem, agradecia-lhe que se deslocassem hoje ao local para recolherem dados, nomeadamente fotográficos e para elaborarem o respectivo relatório. Lembro que a área em questão é sítio Natura 2000, e nela existem os habitats 1310pt3 (Vegetação anual primaveril graminóide de salgados), 1410 (Prados Salgados Mediterrânicos [Juncetailia maritimi~), 1420 (Matos Halófilos Mediterrânicos e Termoatlântieos) e 1430 (Matos Halonitrófilos (Pegano-Salsoletea)" (cfr doc n° 48 da pi)).
A resposta ao q. 21 foi «provado».
A resposta aos q. 25 e 28 foi «provado».
Desde já se afirma que, logicamente, não há a mínima oposição lógica entre esses 3 factos.
A prova testemunhal ora invocada pela recorrente também não permite concluir como a recorrente conclui. Ninguém negou a acção de destruição de habitats e espécies protegidos.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

9 – Do erro de julgamento de facto, porque a resposta ao quesito 23 (Os actos ocorridos em 24 de Agosto de 2007 e dias seguintes causaram a destruição da espécie de Junco (Juncus cutus)?) deveria ser não provado
A resposta foi «provado».
A recorrente baseia-se no facto de as testemunha terem dito que o junco se auto-regenera. Ora, tal não impede que se conclua também, com base na prova testemunhal, que a dada altura a espécie foi ali destruída.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

10 – Do erro de julgamento de facto, porque a resposta ao quesito 33 (A abertura de caminhos e o desbaste de vegetação na encosta sul por trabalho de retroescavadora terá afectado pelo menos 12ha deste mato?) deveria ser não provado (v. art. 79 p.i.(8) e art. 664º CPC(9))
A resposta foi «afectou pelo menos 10ha deste mato».
A recorrente baseia-se no teor do art. 79 da p.i., que refere, com evidente lapso, uma medida inexistente, i.e. 0´12ha. Tal evidente lapso, infelizmente, não terá sido corrigido na fase da condensação, aí sem oposição, e sem qualquer prévia impugnação na contestação. Passou para uns estranhos 12ha. Em vez de 0,12ha, possivelmente o que se quereria dizer na p.i.
Portanto, o invocado foram ou uma medida inexistente ou 0,12ha, mas o tribunal respondeu 10ha. Assim, indo além do invocado.
Pelo que há o erro imputado.
Procede, assim, este ponto das conclusões do recurso.
Em consequência, elimina-se o facto III) da sentença.

11 - Do erro de julgamento de facto, porque a resposta aos quesitos 36 e 37 deveria ser não provado (v. art. 346 CC(10))
A resposta foi «provado».
A recorrente baseia-se no facto de as testemunhas não terem sido claras quanto a estas questões, aliás pouco dependentes de prova testemunhal.
E tem razão. Com efeito, sendo certo que a Sra. Juiza nada disse a este respeito, os depoimentos testemunhais pouco ou nada dizem, a não ser «Porém, admite que a sua estabilização leva uma década» (testemunha Mª Alexandra).
Procede, assim, este ponto das conclusões do recurso.
Em consequência, elimina-se os factos LLL) e MMM) da sentença.

12 - Do erro de julgamento de direito, porque a sentença não indicaria que concretos habitats e espécies existentes foram postos em perigo
A recorrente não tem a mínima razão neste ponto.
Os habitats e as espécies estão expressa e claramente indicados na factualidade provada.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

13 - Do erro de julgamento de direito, porque o DL 140/99 original ou alt. pelo DL 49/2005 (que revê a transposição para a ordem jurídica interna da Directiva n.º 79/409/CEE, do Conselho, de 2 de Abril (relativa à conservação das aves selvagens), e da Directiva n.º 92/43/CEE, do Conselho, de 21 de Maio (relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens)) não se aplicaria ao caso presente antes da R.C.M. 115-A/2008 (que aprovou o Plano Sectorial da Rede Natura 2000)
Estão aqui em causa actividades da ré de 2006 e 2007.
A Ria de Alvor é reconhecida como Zona Especial de Conservação na rede de Sítios Natura 2000 estabelecida ao abrigo da Directiva Europeia de Habitats (Sítio PTCON0058, proposto pelo estado Português em Junho de 1999 e confirmado pela União Europeia a 29 de Setembro de 2006). Esta classificação é baseada na presença de habitats e espécies prioritárias e de interesse comunitário sob a legislação da Directiva Europeia de Espécies e Habitats. Depois do processo de ponderação da discussão pública no Plano Sectorial Rede Natura 2000 (ICN, 2006b), 19 habitats de interesse comunitário, incluindo três habitats prioritários e 7 espécies de interesse comunitário, incluindo uma espécie prioritária, são considerados presentes na Ria de Alvor.
Ora, a recorrente não tem a mínima razão neste ponto: o disposto no cit. DL é imediatamente aplicável, porque a Ria do Alvor já era S.I.C. desde a Resolução do C.M. nº 76/2000 (in DR-I-B de 5-7-2000).
E note-se que o DL cit. já dispunha assim em 1999:
Art. 4º:
1 - Além dos sítios já aprovados pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 142/97, de 28 de Agosto, compete ao ICN a elaboração de novas propostas de sítios a incluir na lista nacional de sítios, indicando os tipos de habitats naturais do anexo B-I e as espécies do anexo B-II que tais sítios incluem, de acordo com os critérios previstos no anexo B-III ao presente diploma, que dele faz parte integrante.
2 - A inclusão na lista nacional dos sítios referidos no número anterior é aprovada por resolução do Conselho de Ministros.

(Ver, pois, a Resolução do C.M. nº 76/2000 (in DR-I-B de 5-7-2000))
Artigo 7.º
Planeamento e ordenamento
1 - A totalidade ou a parte dos sítios da lista nacional referidos no n.º 1 do artigo 4.º e os sítios de interesse comunitário e as ZEC referidos, respectivamente, nos n.os 1 e 2 do artigo 5.º, que se localizem dentro dos limites das áreas protegidas classificadas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro, ou de legislação anterior, ou das ZPE, criadas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 75/91, de 14 de Fevereiro, ficam sujeitas ao regime previsto nos respectivos diplomas de classificação ou criação da área protegida e de criação da ZPE.

Artigo 8.º
Actos e actividades sujeitos a parecer
1 - Nos casos previstos no n.º 8 do artigo anterior, ficam sujeitos a parecer do ICN ou da direcção regional de ambiente territorialmente competente os seguintes actos e actividades:

c) As alterações à morfologia do solo, com excepção das decorrentes das normais actividades agrícolas e florestais;
d) A alteração do uso actual dos terrenos das zonas húmidas ou marinhas, bem como as alterações à sua configuração e topografia;

É, pois, claro que a R. violou estas normas do art. 8º.
Artigo 12.º
Espécies vegetais
1 - Com vista à protecção das espécies vegetais constantes do anexo B-IV, são proibidas:
a) A colheita, o corte, o desenraizamento ou a destruição das plantas ou partes de plantas no seu meio natural e dentro da sua área de distribuição natural;

2 - As proibições referidas no número anterior aplicam-se a todas as fases do ciclo biológico das plantas abrangidas pelo presente artigo.
Da referida Lista de 2000 constam os habitats e as espécies referidos nos factos provados.
É, pois, claro que a R. violou esta norma do art. 12º-1-a) cit.
Além disso, o art. 10º-10 do DL cit. alt. em 1995 também foi aqui violado pela R:
A realização de acção, plano ou projecto objecto de conclusões negativas na avaliação de impacte ambiental ou na análise das suas incidências ambientais depende do reconhecimento, por despacho conjunto do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território e do ministro competente em razão da matéria, da ausência de soluções alternativas e da sua necessidade por razões imperativas de reconhecido interesse público, incluindo de natureza social ou económica.
Também o art. 4º do RJREN/90 foi violado, pois a R fez ali escavações e destruição de coberto vegetal.
Por outro lado, os Sapais da Ria de Alvor e Colinas Arge são no PDM de Portimão de 1995 um “espaço natural”, onde não é permitido escavar ou destruir vegetação (arts. 13º e 15º).
Ora, a violação das normas de protecção da natureza e do ambiente acabadas de descrever implica a restituição natural como principal medida reparadora, ou seja, a reposição da situação que existiria se não tivessem ocorrido os actos danosos ilegais. É o que decorre dos arts. 25.° do DL 140/99 alt. pelo DL 49/2005, 114.° do DL 380/99, 12.°, n.° 3, alínea g), do DL 180/2006, e 48.°, n.° 1, da Lei n.° 11/87.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.
Cabe ainda responder à parte final do recurso, onde se invoca algo confusamente violação da separação de poderes e erro na forma do processo: o caso presente não cabe, obviamente, no objecto da AAE prevista nos arts. 66º ss CPTA (pois que não há aqui um requerimento da A. não apreciado ou indeferido); é quase incompreensível a alegação da recorrente de que estaríamos aqui em sede de pura discricionariedade administrativa, caso este em que a intervenção (condenatória) do tribunal violaria a separação de poderes; tratou-se apenas de apurar se a conduta da R, num terreno situado em S.I.C. e em R.E.N., violou ou não as leis e o PDM, designadamente as suas normas proibitivas de alteração de solos, destruição de vegetação legalmente protegida e escavações, matéria que obviamente cabe na função jurisdicional.
Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.
*
IV. DECISÃO
Pelo ora exposto, acordam os Juizes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento parcial ao recurso,
-eliminando a factualidade provada descrita na sentença sob as al. G) a K), OO), III), LLL) e MMM), e
-julgando improcedente o pedido nº 3, julgando-se, portanto, a acção como segue:
1º-Reconhecer a existência dos habitats e espécies protegidos e prioritários e sua distribuição na Quinta d... de acordo com a matéria provada;
2º-Condenar a Ré na abstenção, por si ou por intermédio de outrem, na realização de quaisquer trabalhos ou acções de mobilização de terrenos e remoção do coberto vegetal, nas zonas da Quinta d... nas quais se deu como provada a existência de espécies e habitats protegidos e prioritários;
3º-Condenar a Ré na reposição das espécies e habitats destruídos na ... ;
4º-Condenar a Ré a apresentar no prazo de seis meses ao Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve e ao Município de Portimão, um projecto para a reposição de todas as espécies e habitats destruídos na ... .
Custas a cargo das partes, em ambas as instâncias, sendo 8/10 a cargo da R e o restante a cargo da A., sem prejuízo da isenção da A.
Lisboa, 24-10-2013

(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(António Coelho da Cunha)

(José Fonseca da Paz)




1- O juiz europeu do Direito público (Direito este que tem uma “condição bifrontal”, o Direito administrativo e o Direito constitucional – cf. RAINER WAHL, Los Últimos Cincuenta Años de Derecho Administrativo Alemán, 2013, Madrid: Marcial Pons, pp. 108-109), pensamos nós, deve ter presente acima de tudo o seguinte: (i) o tipo de sociedade reflectido na sua Lei Fundamental (=estatuto jurídico fundamental da concreta comunidade de pessoas, com igual dignidade e socialmente organizadas, que compõem certo Estado) e nos vários catálogos de direitos fundamentais, incluindo a DUDH; (ii) os princípios jurídicos fundamentais ou morais ou sobre-princípios vigentes; (iii) o primado do Direito justo e democrático, num contexto de uma vida económica que sirva a sociedade (vida económica anti-niilista); (iv) o primado do direito da U.E. No nosso caso, europeu, vivemos normativamente numa sociedade aberta, de economia social de mercado, com substantivas regras de justiça social, avessa à erosão do erário público ou da ética social, sociedade essa que deve funcionar sob a égide do supremo princípio da juridicidade, próprio dum Estado social e democrático de Direito, respeitador de cada ser humano como ser-pessoa com igual dignidade. E sem esquecer a “moral” que se retira da famosa frase do moleiro do conto de 1818 "O Moleiro de Sans-Souci", de François Andrieux (1759-1833), em resposta à ameaça caprichosa e autoritária do rei Frederico II da Prússia: “Ainda há juizes em Berlim…”; ou “(…) se não tivéssemos juizes em Berlim!” "(...) si nous n'avions pas des juges à Berlin!".
Sublinhe-se, por outro lado, que a função jurisdicional europeia, criadora e utilizadora da Ciência do Direito e do primado do Direito democrático, não actua como a dogmática (o inverso também é verdadeiro); e não pode actuar como mera multiplicadora programada da acção política (pois o direito no Estado de direitos fundamentais não é simples fruto do poder político), nem como manipuladora iniciada de uma técnica social funcional e de mera eficiência pragmática (porque a dimensão axiológica-humana do direito tem autonomia ante outros fenómenos sociais, como a jovem Economia) – cf. em geral FERNANDO J. BRONZE, Lições de Introdução…, 2ª ed., 2010, pp. 236 ss, 276-282 e 329. Sob pena de um domínio (niilista) da Economia, ciência social que parece sofrer de “inveja da física e da matemática”, por cima do Direito e da sociedade.

2-KLAUS GÜNTHER, The sense of appropriateness: application discourses in morality and law, trad., Albany: State University of New York Press, 1993, p. 282. Uma versão em português é “Teoria da Argumentação no Direito e na Moral- Justificação e Aplicação”, 2ª ed., Rio de Janeiro: ed. Forense, 2011. O original alemão é “Der Sinn für Angemessenheit - Anwendungsdiscurse in Moral und Recht”, Frankfurt: Suhrkamp, 1988.
3- O que é diferente de ponderação.

4- Sub-exames da “adequação ou idoneidade” e da “necessidade ou indispensabilidade do meio menos restritivo ou agressivo”: o óptimo de Pareto, segundo Alexy.
5- Sub-exame da “proporcionalidade em sentido restrito, justa medida ou razoabilidade”, para apurar qual o lado que tem de suportar os custos.

Aqui R. Alexy, inovando pouco e buscando directa inspiração no TC alemão e talvez em Eberhard Grabitz ("Der Grundsatz der Verhältnismäßigkeit in der Rechtsprechung des. Bundesverfassungsgerichts", in AöR, 98, 1973, pp. 568 ss, maxime pp. 580 ss), aplica uma “lei do sopesamento ou balanceamento”: “The greater the degree of non-satisfaction of, or detriment to, one principle, the greater must be the importance of satisfying the other” (Robert Alexy, A Theory of Constitutional Rights, trad. de Julian Rivers, 2002, p. 102), que terá 3 fases (apurar a intensidade da interferência dum princípio noutro; apurar o grau de importância de cada princípio; e relacionar a intensidade e o grau de importância citados). Depois, tenta criar uma fórmula do sopesamento, para dar racionalidade à aplicação da proporcionalidade em sentido restrito: o peso concreto final de cada princípio jurídico em colisão (Pcf) será o quociente resultante da relação/divisão entre/do “grau suave, médio ou grave da intensidade da interferência concreta de um principio no outro (Ii), com o seu peso concreto” (Pi), e/pela “importância de satisfação do outro princípio colidente (Sii), com o seu peso concreto (Pii)” – cf. “The Construction of Constitutional Rights”, in Law and Ethics of Human Rights, vol. 4, Issue 1, April-2010, pp. 21-32; e “On Balancing and Subsumption. A Structural Comparison”, in Ratio Juris, Vol. 16, Nº 4, December-2003, pp. 433-449.
6- Temos como parâmetro metodológico a utilização da argumentação jurídica racional permitida e exigida pelo direito como sendo a lógica jurídica: com efeito, o raciocínio, a validade lógica, ou a coerência interna da decisão jurisdicional é sempre o produto de uma ou mais premissas, terminando com uma conclusão. Bem diferente é a obtenção correta das premissas de facto e de direito da decisão, i.e. a justificação externa da decisão, onde pontifica o carácter analógico da subsunção e da hermenêutica jurídica, e onde funcionam elementos cognitivos (determinação das premissas de facto), valorativos (construção da norma aplicável e concretização do seu efeito) e volitivos (tomada da decisão), num contexto de utilização de argumentos (v.g., a simile, a contrario, a fortiori; presuntivos, abdutivos), com uma linguagem que é também conceptual e que lida com tipos legais.
Baseamo-nos dogmaticamente, em matéria de interpretação e metodologia jurídicas, nas conhecidas obras essenciais, em parte tributárias da jurisprudência dos tribunais superiores e constitucional da Alemanha posterior à Segunda Guerra Mundial, de
-K. LARENZ [1903-1993] (Metodologia da Ciência do Direito, trad. da 1ª ed. alemã, 3ª ed., Lisboa: FCG, 1997) e hoje K. LARENZ/C. W. CANARIS (Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 3ª ed., Springer, 2008);
-O. ASCENSÃO (O Direito…, 13ª ed., Liv. Almedina, 2005); e
-ALEKSANDER PECZENIK (1937-2005), On Law and Reason, 2ª ed., Dordrecht: Springer, 2008, maxime pp. 99-256 e 305 ss.
Complementarmente, temos presentes as doutrinas de Klaus Günther (em vários textos dos anos 1990 em inglês, castelhano e português do Brasil) e de Robert Alexy (sobretudo nos textos aperfeiçoadores das suas teorias, publicados na revista inglesa Ratio Juris/Oxford Univ. Press e em edições colectivas publicadas em língua castelhana impulsionadas por J.-R. Sieckmann e L. Clérico nas editoras Comares e Marcial Pons desde 2000 até ao presente). Alexy define o Direito como um sistema de normas com uma pretensão de correcção ou justiça, normas pertença de uma Constituição em geral eficaz e não extremamente injustas e ainda normas infraconstitucionais promulgadas de acordo com a Constituição com um mínimo de eficácia social, Constituição à qual pertencem os princípios jurídicos e outros argumentos normativos nos quais se apoia o procedimento de aplicação do Direito ou onde o Direito tem que se apoiar para satisfazer a pretensão de correcção; os Direitos Fundamentais são definidos como comandos ou mandados de optimização (princípios) a aplicar, respeitando a lei da colisão de normas em espaços ponderativos de comparação em concreto, espaços esses estruturais-legislativos (o constitucionalmente possível, sujeito ao exame da proporcionalidade) ou epistémicos-incertos, segundo a fórmula do peso e a teoria das escalas (grau de interferência ou afectação leve, médio ou grande), donde resultará a final a “norma-regra constitucional adstrita” que resolverá o caso concreto; teses estas a que Habermas se opõe; a Teoria da Argumentação Jurídica de Alexy, aperfeiçoada desde 2002 (vd. “Constitutional Rights, Balancing and Rationality”, in Ratio Juris, Oxford: Blackwell P., v. 16, nº 2, 2003, pp. 131 ss; “Justicia como Corrección”, in Doxa-Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, v. 26, 2003, pp. 161 ss; “Agreements and Disagreements – Some Introductory Remarks”, trad., in M. Escamilla/M. Saavedra, “Law and Justice in a Global Society”,Plenarvorträge des 22, 2005, 7p.), explana a descoberta estrutural das premissas da decisão (justificação interna) através da fórmula da subsunção e da fórmula do sopesamento (em que o argumento institucional da interpretação perde força a favor do precedente com base constitucional directa), bem como o processo de justificação saturante da escolha (justificação externa) das premissas resultantes da subsunção ou do sopesamento (que recentemente Alexy atrelou à pretensão de correcção/justiça e à lógica).
Vd. ainda P. PEREIRA GOUVEIA,”O método e o juiz da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias”, in O DIREITO, Ano 145º (2013), Lisboa, I-II.
7- 1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.
2. Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.
3. As regras dos números anteriores não são aplicáveis à simples interpretação do contexto do documento.
8- A abertura de caminhos e o desbaste de vegetação na encosta sul por trabalho de retroescavadora terá afectado pelo menos 0´12ha deste mato. -Doc. 67 - Mapa com área do habitat 5330pt5 — Matos mediterrânicos destruídos.
9- O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264.º.
10- Salvo o disposto no artigo seguinte, à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.