Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 1138/04.0BELSB |
Secção: | CT |
Data do Acordão: | 10/17/2019 |
Relator: | TÂNIA MEIRELES DA CUNHA |
Descritores: | IRS CAPACIDADE CONTRIBUTIVA FUNDADA DÚVIDA |
Sumário: | I. Tendo sido pago diretamente pelo Recorrido à locadora o valor residual do automóvel que caberia à locatária pagar, com emissão do correspondente recibo em nome desta última, tal evidencia que a aquisição feita pelo Recorrido não o foi a título gratuito.
II. Ainda que possam existir irregularidades na contabilidade da sociedade locatária, relativas à transação, a demonstração da realidade substantiva assume maior relevância que tal irregularidade, sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva. |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: |
1 |
Decisão Texto Integral: | Acórdão
I. RELATÓRIO A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 12.11.2014, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por Á...... (doravante Recorrido ou Impugnante), que teve por objeto o indeferimento da reclamação graciosa que, por seu turno, versou sobre a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), relativa ao ano de 1999. O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos: “1º- A douta decisão de que se recorre não traduz uma correcta valoração e interpretação da matéria fáctica dada como provada, nem tão pouco uma correcta interpretação e aplicação da lei e do direito atinentes, em prejuízo da apelante. Na verdade, 2o- Face aos factos assentes entendeu o tribunal “a quo" que não se verificou uma transmissão gratuita da locatária D….. – E…, D…., CRL para o impugnante, entendendo que o montante pago à sociedade locadora correspondeu de facto ao custo que incorreu, o impugnante, pela aquisição da referida viatura automóvel. 3o- No seguimento do que vai dito retro, concluiu o tribunal “a quo" pela ilegalidade da liquidação impugnada, por erro nos pressupostos, impondo-se assim a sua anulação. 4o- Na verdade face à prova produzida necessário se tornaria dar como assente que face ao que vai dito em G) dos factos assentes, que pese a tal declaração constar da documentação, não se provou o seu recebimento, ou seja, apenas se prova a veracidade física da declaração e não já a sua veracidade intelectual. 5o- Sendo que tal declaração não prova o recebimento efectivo, o que aliás foi liminarmente contestado pela Fazenda Pública, fazendo parte da matéria controvertida, pelo que ao não apreciar tal questão incorre, a douta sentença ora colocada em crise, em nulidade. 6o- Relativamente ao contrato de locação, verdade o artigo 1059.° do Código Civil preconiza que "a posição contratual do locatário é transmissível por morte dele ou, tratando-se de pessoa colectiva, pela extinção desta, se assim tiver sido convencionado por escrito. A cessão da posição do locatário está sujeita ao regime geral dos artigos 424.° e seguintes (…).” 7o- Por sua vez, postula o artigo 424.° do Código Civil que “no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiros a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão.” 8o- Resulta dos factos provados que quem antecipou o cumprimento do contrato de locação financeira foi, efectivamente, a D….. – E…., D…., CRL. 9o- É mister referir que, da concatenação, dos artigos 1059.° Código Civil e 424.°, também do Código Civil, não poderia ser de outra forma pois não existindo consentimento do locador financeira para a transmissão da posição contratual, esta não poderia suceder. 10o- Assim, face ao que vai dito, não se compreende como o tribunal “a quo” entendeu que sendo o pagamento efectuado por intermédio do impugnante, este tenha assumido a obrigação de pagamento que era da sociedade, correspondendo tal ao custo que incorreu pela aquisição da referida viatura. 11o- Pelo que incorreu em erro de julgamento, com claro prejuízo da apelante. 12o- Resulta da lei, que quem tinha legitimidade para antecipar e adquirir por via de efeito constitutivo resultante da antecipação do contrato de locação financeira, seria sempre, de forma inequívoca a locatária D......, tal como resulta da declaração junta aos autos, a fls. 43, pela locadora, onde refere, e passamos a citar, por pertinente, "(...) a locatária D...... - E......,D....., CRL antecipou o cumprimento do contrato de locação financeira, tendo procedido ao pagamento integral das responsabilidades. Mais informamos, que o respectivo recibo de liquidação foi emitido a favor da locatária, titular da posição contratual e detentora de todos os direitos inerentes à aquisição do bem objecto do contrato (…).” (negrito e sublinhado nossos) 13o- Assim, o montante pago pela antecipação do contrato, independentemente de quem assumiu o pagamento, apenas terá repercussões nas relações internas dos mesmos, sendo chamado à colação o direito de crédito. 14o- Porém, relativamente à posterior venda ao impugnante, não havendo qualquer suporte documental, maxime não tendo sido detectado o correspondente meio de pagamento (por ex. cópia de cheque, comprovativo de transferência bancária), nos termos do art. 3.° do CIRS, considerado que é rendimento de categoria B. 15o- Entender de outra forma será postergação de lei fundamental, maxime princípio da legalidade. 16o- Mais, a antecipação do contrato assumida que foi pela locatária, porém, quem paga é o impugnante, emitindo depois aquela uma declaração de recebimento do preço sem o respectivo suporte documental, o que nos leva para o campo da reserva mental ou não se entendendo assim, do abuso de direito. 17o- A reserva mental vem regulada no artigo 244.° do Código Civil, sendo que a lei distingue entre reserva mental desconhecida e a reserva mental conhecida do declaratário. 18o- No caso sub judice, estamos perante reserva mental conhecida do declaratário, sendo que a declaração negocial é nula. Tal resulta do n.° 2 do art. 244.° que preconiza que “a reserva não prejudica a validade da declaração, excepto se for conhecida do declaratário; neste caso a reserva tem os efeitos da simulação”. 19o- No caso concreto dos autos estamos na presença de reserva mental, pois a locatária quando emite a declaração de recebimento do montante da venda do veículo ao impugnante, bem sabe que tal montante nunca foi recebido, estando a actuar com reserva mental, de conhecimento do impugnante, pelo que tal declaração enferma de nulidade. 20o- Não se entendendo assim, terá de se configurar, tal actuação, por tudo quanto vem dito, como abuso de direito. 21o- Não o entendendo assim, a douta sentença em recurso violou os preceitos legais invocados na mesma, pelo que, deverá ser revogada, com todas as legais consequências devidas”. O Recorrido não contra-alegou. Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso. Colhidos os vistos legais (art.º 289.º, n.º 2, do CPPT) vem o processo à conferência. São as seguintes as questões a decidir: a) Há nulidade da sentença por omissão de pronúncia? b) Há erro de julgamento, em virtude de, atenta a factualidade assente, resultar que o valor em causa respeita a rendimento tributável em sede de IRS? II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto: “A) Entre a sociedade T….., I….., S.A., anteriormente denominada T…, S.A., e a sociedade D...... – E......,D....., CRL, foi celebrado contrato de locação financeira do qual foi objecto o veículo automóvel Volkswagen Passat, com a matricula 19-….. (matéria não controvertida; cfr. relatório de inspecção de fls. 27 a 29 dos autos e declarações da T….., I…., S.A. de fls. 9, 36 e 43 dos autos); B) Em 24.03.1999, pela Universidade M….., de que sociedade D...... – E......,D....., CRL é entidade gestora, foi dirigido ao ora Impugnante o ofício n.º 062/8/99, com o seguinte teor: “(…) Vimos pela presente informá-lo que as condições para ficar com a viatura são as seguintes: - Assumir o contrato de leasing da T…., da viatura 19-….., Wolksvagen Passat – 1.8 T; - Valor contrato com IVA – 7003.115$00; - Data início – 01.06.1997; - Data final – 01.06.2001; - Rendas a vencer – 4.659.916$00. (…)” (cfr. documento de fls. 39 do processo de reclamação graciosa apenso) ; C) A sociedade D...... – E......,D....., CRL remeteu ao ora Impugnante o ofício n.º 062/8/99, de 12.04.1999, com o seguinte teor: “No seguimento de contactos havidos com V. Exa., vimos por este meio informá-lo que o montante da viatura Wolksvagen Passat, matrícula 19-….. é de Esc. 4071558$00 (Quatro milhões e setenta e um mil quinhentos e cinquenta e oito escudos). Esta importância deverá ser liquidada até ao próximo dia 23 de Abril de 1999, na Gestão Central da D......, CRL. (…)” (cfr. documento de fls. 38 do processo de reclamação graciosa apenso) ; D) Tendo sido antecipado o cumprimento do contrato mencionado em A) supra, foi emitida, em 19.04.1999, pela sociedade T....., I....., S.A., factura em nome da D...... – E......,D....., CRL (cfr. declarações da T....., I....., S.A. de fls. 9, 36 e 43 dos autos); E) A factura mencionada na alínea anterior foi liquidada pelo ora Impugnante, através do cheque n.º 1745…., no valor de € 20.309,00 (Esc. 4.071.588$00), debitado sobre a sua conta n.º 023/……1, do Banco E….., S.A., em 21.04.1999 (cfr. declarações da T....., I....., S.A. de fls. 9, 36 e 43 dos autos e documentos de 10 e 11 dos autos); F) Em 21.09.1999, a sociedade D...... – E......,D....., CRL emitiu a factura n.º 117, em nome do ora Impugnante, no valor de € 20.309,00 (Esc. 4.071.588$00), com a seguinte descrição: “Venda da viatura VW Passat – 19-….” (cfr. documento de fls. 25 da reclamação graciosa apensa); G) Na mesma data de 21.09.1999, a sociedade D...... – E......,D....., CRL emitiu recibo a favor do ora Impugnante, no qual declara ter recebido o valor de € 20.309,00 (Esc. 4.071.588$00) relativo à factura identificada na alínea anterior (cfr. documento de fls. 26 da reclamação graciosa apensa) ; H) No exercício de 1999, o ora Impugnante auferiu da sociedade D...... – E......,D....., CRL rendimentos de trabalho independente – categoria B –, no valor de € 18.226,13 (Esc. 3.654.010$00) (cfr. documentos de fls. 42 e 43 da reclamação graciosa apensa) ; I) Em cumprimento da ordem de serviço n.º 86575, de 25.08.2003, foi efectuada uma acção de inspecção ao ora Impugnante, relativa ao exercício de 1999 (cfr. relatório de inspecção de fls. 17 a 19 do processo administrativo apenso) ; J) Da acção de inspecção referida na alínea anterior resultou um relatório de inspecção tributária, datado de 07.10.2003, do qual consta o seguinte: “(…) “(texto integral no original;imagem)” (…)” (cfr. relatório de inspecção de fls. 17 a 19 do processo administrativo apenso) ; K) Por despacho datado de 08.10.2003, da Directora de Finanças Adjunta da Direcção de Finanças de Lisboa, foram sancionadas as conclusões constantes do relatório de inspecção, nos termos reproduzidos na alínea anterior, fixando o rendimento global do ora Impugnantes, relativo ao ano de 1999, em € 39.466,73 (cfr. relatório de inspecção de fls. 17 a 19 do processo administrativo apenso); L) Em resultado da fixação do rendimento mencionado em K) supra, a Administração Tributária emitiu a liquidação de IRS n.º 532……, relativa ao ano de 1999, no valor de € 5.717,37, com data limite de pagamento voluntário fixada em 02.01.2004 (cfr. documentos de fls. 20 do processo de reclamação graciosa apenso); M) Em 19.12.2003, o ora Impugnante apresentou reclamação graciosa contra a liquidação identificada na alínea anterior, nos termos contantes de fls. 19 do processo de reclamação graciosa apenso; N) A reclamação graciosa mencionada na alínea anterior foi indeferida por despacho de 27.04.2004, do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa 12, em substituição (cfr. documento de fls. 51-52 do processo de reclamação graciosa apenso); O) Em 21.05.2004, o Impugnante apresentou a presente impugnação (cfr. carimbo aposto a fls. 4 dos autos)”.
II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida: “Factos não provados: não existem factos a dar como não provados com interesse para a decisão”.
II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto: “Assenta a convicção do tribunal no exame dos documentos constantes dos presentes autos e do processo administrativo apenso, não impugnados, com destaque para os referidos a propósito de cada uma das alíneas do probatório”.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO III.A. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia Entende o Recorrente que se verifica nulidade da sentença recorrida, uma vez que, na sua perspetiva, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre questão de não estar provado o recebimento do valor a que se refere o facto G) (ou seja, ainda que inominadamente, invoca a ocorrência de omissão de pronúncia do Tribunal a quo). Vejamos. Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há omissão de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar (cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC). As questões de que o juiz deve conhecer são ou as alegadas pelas partes ou as que sejam de conhecimento oficioso. In casu, desde já se refira que não se verifica a mencionada nulidade. Com efeito, o Tribunal recorrido pronunciou-se sobre as questões que se deveria ter pronunciado. O alegado pela Recorrente não se configura como uma omissão, podendo sim configurar-se como um erro de julgamento (sendo certo que, in casu, não houve impugnação da decisão da matéria de facto). Logo, não se verifica qualquer omissão de pronúncia, nos termos invocados pela Recorrente. III.B. Do erro de julgamento Considera a Recorrente que o Tribunal a quo laborou em erro, na medida em que, não obstante o que resulta da G) do probatório, não se provou o efetivo recebimento por parte da D....... Ademais, refere, não se compreende como o Tribunal a quo entendeu que, sendo o pagamento efetuado por intermédio do Impugnante, este tenha assumido a obrigação de pagamento que era da sociedade, correspondendo tal ao custo que incorreu pela aquisição da referida viatura. Considera ainda, por outro lado, que não existe prova de qualquer venda posterior ao Recorrido. Conclui ademais que se está perante uma situação de reserva mental, que culmina em abuso de direito. Vejamos então. In casu, foi emitida liquidação adicional de IRS em nome do Recorrido em virtude de a administração tributária (AT) ter considerado que não foi detetado meio de pagamento relativo à aquisição da viatura automóvel, titulada pela fatura no valor de 20.309,00 Eur. e respetivo recibo. Nessa sequência, considerou tratar-se de rendimento da categoria B de IRS. O Recorrido alegou, em 1.ª instância, que a mencionada aquisição não foi gratuita, tendo efetuado diretamente o pagamento à locadora. Entendeu o Tribunal a quo que, da factualidade assente, não decorre que a aquisição efetuada o tivesse sido a título gratuito, tendo ficado demonstrado que o Recorrido procedeu ao pagamento dos valores em questão, havendo perfeita correspondência entre o valor pago à locadora e o constante da fatura emitida, concluindo que o valor em causa foi o preço que suportou pela aquisição do veículo. Refere-se também na decisão sob escrutínio que, ainda que não se concluísse nos termos referidos, sempre seria uma situação subsumível ao n.º 1 do art.º 100.º do CPPT, em virtude de, da prova produzida, resultar a fundada dúvida sobre a existência do facto tributário. Desde já se refira que se acompanha o entendimento do Tribunal a quo. Com efeito, como já se referiu supra, e antes de mais, não houve qualquer impugnação da decisão da matéria de facto, pelo que a mesma será considerada nos termos fixados em 1.ª instância. Assim, considerando tal decisão proferida sobre a matéria de facto, decorre, desde logo, que a fatura emitida em nome da D...... mencionada em D) do probatório foi liquidada pelo Recorrido através de cheque, debitado sobre conta bancária sua [facto E)]. Por seu turno, a fatura emitida pela D...... em nome do Recorrido é exatamente no mesmo valor mencionado em D) e E), tendo sido relativamente a esse valor que foi emitido o recibo mencionado em G). Ora, deste contexto factual, resulta demonstrado que foi pago diretamente pelo Recorrido à locadora o valor atinente à aquisição do veículo e em relação ao qual a locadora emitiu fatura em nome da locatária D....... Assim, desde já se refira que não se acompanha o entendimento da Recorrente no sentido de que não se pode concluir, através do pagamento efetuado por intermédio do Impugnante, que este tenha assumido a obrigação de pagamento que era da sociedade no âmbito do contrato de locação financeira. Com efeito, a Recorrente extrai esta conclusão, sem que, na verdade, consiga afastar o que se extrai da factualidade assente e a que já nos referimos. Como já mencionamos, está provado tal pagamento junto da locadora, através de cheque pessoal do Recorrido e está provado que este valor corresponde exatamente ao valor da fatura emitida pela D...... relativamente ao veículo. Está provado que foram feitos vários contactos entre a D...... e o Recorrido com vista, justamente, a definir os termos da aquisição onerosa do veículo por parte do Recorrido. Assim, da factualidade assente conclui-se como concluiu o Tribunal a quo: “o Impugnante, em substância, assumiu a obrigação de pagamento que era da sociedade locatária, decorrente da antecipação do cumprimento do contrato de locação”. Quanto ao alegado pela Recorrente no sentido de quem tinha legitimidade para antecipar e adquirir o veículo seria a locatária D...... e de que o montante pago pela antecipação do contrato, independentemente de quem assumiu o pagamento, apenas terá repercussões nas relações internas dos mesmos, carece de qualquer relevância, porquanto pretende ancorar-se em fundamentos atinentes à disciplina da locação financeira para daí extrair uma consequência que, no fundo, implica a desconsideração de uma realidade substantiva fundamental in casu: a de que o pagamento à locadora foi feito pelo Recorrido, sendo certo que a fatura foi emitida em nome da D....... Ora, nunca se pôs em causa a dinâmica inerente ao contrato de locação financeira. A locatária era a D...... e foi em nome desta que foi emitida a fatura referida em D). Mas também não é posto em causa que o valor relativo à fatura mencionada em D) foi pago pelo Recorrido, em conformidade com a venda do veículo subsequente que lhe veio a ser feita. O que resulta da matéria de facto assente, no fundo, é que o pagamento do veículo foi feito diretamente pelo Recorrido à locadora, o que, em termos substantivos, é idêntico à situação hipotética de a D...... pagar à locadora e de, em momento ulterior, o Recorrido pagar à D...... (isto independentemente de eventuais irregularidades contabilísticas que se detetem junto da D......, mas que, per se, não afastam a realidade provada). Logo, não se acompanha o entendimento de que o valor pago pelo Impugnante apenas poderá ter repercussões nas suas relações com a D......, tendo, na nossa ótica, impacto ao nível da aferição da existência de rendimento. Como tal, não se pode analisar a fatura e o recibo emitidos pela D...... desconsiderando todos os elementos relativos ao pagamento efetuado à locadora, como parece pretender a Recorrente, pois é justamente aí que radica a evidenciação de que não se está perante uma aquisição gratuita do veículo. Daí que o fundamento constante do RIT, de não constar da contabilidade da D...... reflexo da entrada do valor atinente ao pagamento, seja afastado, porquanto se provou que o valor foi pago diretamente à locadora pelo Recorrido. Ainda que possa haver uma eventual irregularidade contabilística, a verdade é que ficou provado que não houve qualquer aquisição gratuita do veículo por parte do Recorrido. Este entendimento não só respeita o princípio da legalidade como é aquele que assegura o respeito pelo princípio da capacidade contributiva, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-tributário. Com efeito, dispõe o art.º 104.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que “… [o] imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, ou seja, prevê o princípio da capacidade contributiva, que determina que a tributação seja efetuada em função dos rendimentos efetivos. Quanto ao referido no que respeita à reserva mental e ao abuso de direito, cumpre, desde logo, sublinhar que se trata de questão nova, nunca antes colocada (ius novorum) e que nem consubstancia fundamento da liquidação, como resulta da análise da respetiva fundamentação constante do RIT. Com efeito, o processo civil português consagra o chamado princípio da preclusão, ao qual subjaz o ónus de alegação no momento oportuno dos factos essenciais(1), sem prejuízo, naturalmente, das questões que sejam de conhecimento oficioso ou supervenientes. Por outro lado, consagrando o nosso ordenamento um modelo de recurso de reponderação(2), o Tribunal ad quem deve produzir novo julgamento sobre os factos alegados perante o Tribunal a quo. Este modelo de recurso não é um modelo puro, na medida em que, como já mencionado, podem ser apreciadas pelo Tribunal ad quem questões de conhecimento oficioso e pode ser admitida a junção de documentos, desde que supervenientes, cuja influência pode ditar a alteração do julgamento de facto. Neste seguimento, salvo as exceções a que já se fez menção, o Tribunal ad quem não se pode confrontar com questões novas, apenas devendo ser confrontado com questões que, em momento oportuno, foram discutidas pelas partes. “Quando respeitem à matéria de facto mais se impõe o escrupuloso respeito de tal regra, a fim de obviar a que, numa etapa desajustada, se coloquem questões que nem sequer puderam ser convenientemente discutidas ou apreciadas” (3). Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, verifica-se que na presente instância foi invocada a existência de reserva mental ou abuso de direito, sendo que nunca tal questão foi colocada no momento oportuno (nem de facto nem de direito). Como tal, a mesma não será apreciada. Sempre se diga, todavia, que os moldes em que a mesma foi alegada não afasta o entendimento já explanado supra nem afasta o entendimento evidenciado pelo Tribunal a quo, no sentido de, no mínimo, se estar perante uma fundada dúvida da existência de facto tributário, nos termos consignados no art.º 100.º do CPPT, entendimento esse que, aliás, nem sequer foi atacado pela Recorrente. Face ao exposto, não assiste razão à Recorrente, não padecendo a sentença recorrida dos vícios que lhe são assacados.
IV. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul: a) Negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida; b) Custas pela Recorrente; c) Registe e notifique. Lisboa, 17 de outubro de 2019 (Tânia Meireles da Cunha) (Cristina Flora) (Patrícia Manuel Pires) -------------------------------------------------------------------- (1) Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª Ed., Lex, Lisboa, 1997, p. 454. (2)Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pp. 395, 396 e 460, Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2000, p. 106; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 119. (3)António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 119 e 120 |