Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:8622/15.9BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:11/28/2019
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:JUROS COMPENSATÓRIOS;
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO.
Sumário:I. Sendo a liquidação de juros compensatórios absolutamente omissa quanto aos fundamentos de direito e tendo a mesma considerado uma taxa cuja aplicação não se consegue apreender, atento o regime vigente, tal omissão não pode ser considerada irregularidade não invalidante em termos de fundamentação, padecendo a referida liquidação de falta de fundamentação.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 04.12.2014, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por J...... (doravante Recorrido ou Impugnante), na parte atinente à liquidação de juros compensatórios relativa à liquidação de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), referente ao ano de 1991.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:
I. Considerou a douta sentença, ora recorrida na parte referente aos juros compensatórios, que “não há indicação de qualquer desses elementos: não há referência à taxa ou taxas aplicadas na liquidação dos juros; não há qualquer menção das datas que foram consideradas como sendo as do inicio e do termo do prazo de contagem desses juros, nem sequer se diz com base em que norma legal foi efetuada a liquidação de juros compensatórios”.
II. É de concluir que a mínima fundamentação exigível em matéria de actos de liquidação de juros compensatórios terá de ser constituída pela indicação da quantia sobre que incidem os juros, o período de tempo considerado para a liquidação e a taxa aplicada, para além da indicação das normas legais em que assenta a liquidação desses juros e que esses elementos devem ser indicados na liquidação, directamente ou por remissão para algum documento anexo.
III. “No entanto, há ainda uma declaração mínima que se nos afigura indispensável para que se cumpram as exigências legais de fundamentação que visam, afinal, que o contribuinte possa optar conscientemente entre o conformar-se com o acto, aceitando a sua legalidade, ou contra ele reagir administrativa ou contenciosamente. Nesse conteúdo mínimo da declaração fundamentadora deverá conter-se a referência ao montante de imposto sobre o qual foram liquidados os juros compensatórios, à taxa ou taxas aplicáveis e ao período de tempo em que tais juros são exigíveis" (negrito nosso).
IV. Ora compulsados os autos, constatamos que tais elementos se encontram verificados.
V. Sendo certo, também, que o cálculo dos juros compensatórios decorre da lei, mencionando expressamente o art°.35, da L.G.T., que os juros são calculados dia a dia, desde a data em que deveria ter sido liquidado e entregue até à detecção da falta (n°.3), integrando-se na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados (n°.8), sendo a taxa equivalente à taxa de juros legais fixados nos termos do art°.559, do C.C. (n°.10), inexistindo, desta forma, a alegada falta de fundamentação, tal como postulado na douta sentença, ora recorrida.

IV. Pelo que, à Fazenda Pública, não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, não resta senão concluir, salvo o devido respeito, que a douta sentença violou o disposto no artigo 35. ° da LGT”.

O Recorrido não contra-alegou.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa de vistos, atenta a simplicidade da questão a apreciar (art.º 657.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há erro de julgamento, em virtude de a liquidação em crise não padecer de falta de fundamentação?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“a) Em 10 de Março de 1992, o ora Impugnante, J......, com referência ao ano de 1991, entregou declaração de rendimentos de IRS, com base em rendimentos que auferiu como trabalhador dependente - Cfr. documento a fls. 62;

b) Em 6 de Agosto de 1996 foi o Impugnante notificado para efectuar o pagamento da quantia de 3.989.754$00, sendo 1.816.239$00 de IVA e 2.173.515$00 de juros compensatórios - Cfr. documento a fls. 11 e 12, o qual se dá, aqui, por integralmente reproduzido”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Nenhum outro facto com interesse para a decisão da causa ficou provado”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“[Consideraram-se provados os factos] com base na documentação junta aos autos, depoimento das testemunhas inquiridas, bem como na posição assumida pelas partes”.

II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda­-se em aditar a seguinte matéria de facto provada:

c) Em anexo à comunicação mencionada em b), foi remetido documento relativo aos juros compensatórios, do qual consta designadamente o seguinte:

Importância em dívida – 1.816.239$00;

Taxa de juro – 24%;

Data inicial: 15.05.1991;

Data final: 07.05.1996;

Dias: 1820;

Juros: 2.173.515$00 (cfr. fls. 12).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo laborou em erro, na medida em que a liquidação em crise, em seu entender, se encontra cabalmente fundamentada.

Vejamos então.

Está em causa a liquidação de juros compensatórios, no valor de 2.173.515$00 (10.841,45 Eur.), emitida na sequência da emissão de liquidação de IVA, no valor de 1.816.239$00 (9.059,36 Eur.), respeitante ao ano de 1991.

À data da emissão da liquidação em crise, os juros compensatórios estavam previstos, desde logo, no art.º 83.º do Código de Processo Tributário (CPT) (aprovado pelo DL n.º 154/91, de 23 de abril, que entrou em vigor a 01.07.1991).

Assim, o seu n.º 1 determina que “[e]m caso de atraso na liquidação por motivo imputável ao contribuinte, são devidos juros compensatórios”.

“Os juros compensatórios (…) [t]êm a natureza de uma reparação civil, indemnizando o credor pela perda de disponibilidade de quantia que não foi liquidada oportunamente ou que foi indevidamente reembolsada”(1).

É ainda de chamar à colação o art.º 89.º do Código do IVA (CIVA) então em vigor, nos termos do qual:

“1 - Sempre que, por facto imputável ao contribuinte, for retardada a liquidação ou a entrega de parte ou da totalidade do imposto devido, acrescerão ao montante do imposto juros compensatórios à taxa básica de desconto do Banco de Portugal, em vigor no momento do início do retardamento, acrescida de cinco pontos percentuais.

2 - Os juros serão contados dia a dia, a partir do dia imediato ao do termo do prazo em que o imposto deveria ser entregue nos cofres do Estado até à data em que vier a ser suprida ou corrigida a falta, tendo como limite a data da emissão da certidão de dívida, após a qual se contarão juros de mora.

3 - Quando o atraso na liquidação resultar de erros evidenciados na própria declaração, os juros compensatórios não serão devidos a partir dos 180 dias posteriores à entrega desta ou, em caso de faltas apuradas em ação de fiscalização, a partir dos 90 dias posteriores à sua conclusão, se entretanto não tiver sido efetuada a liquidação ou o pagamento”.

Trata-se da redação conferida pelo DL n.º 7/96, de 7 de fevereiro (retificado pela Declaração de retificação n.º 7-A/96, de 30 de abril), cujo art.º 11.º prescrevia que a nova redação dada, entre outros, ao art.º 89.º do CIVA se aplica às liquidações que ocorram após a sua entrada em vigor (ou seja, no 5.º dia posterior à sua publicação – cfr. art.º 5.º, n.º 2, do Código Civil, e art.º 2.º, n.º 1, da Lei n.º 6/83, de 29 de julho).

Como resulta do n.º 1 do art.º 89.º do CIVA, a taxa aplicável estava definida por referência à taxa básica de desconto do Banco de Portugal, em vigor no momento do início do retardamento, acrescida de cinco pontos percentuais.

Por referência a 1991, a taxa a considerar é então de 19,5%.

Com efeito, através do Aviso do Banco de Portugal n.º 3/88 (publicado no Diário da República, I Série, n.º 104, Suplemento, de 05.05.1988), a taxa básica de desconto do Banco de Portugal foi fixada em 13,5% (cfr. 1.º, n.º 1, do mencionado aviso).

Através de Aviso (sem número) do Banco de Portugal (publicado no Diário da República, I Série, n.º 65, Suplemento, de 18.03.1989), foi alterado o mencionado n.º 1, n.º 1, fixando­-se a mencionada taxa nos 14,5%, entrando tal alteração em vigor a 20.03.1989.

Esta taxa manteve-se até à entrada em vigor do Aviso n.º 3/93 (publicado no Diário da República, I Série, n.º 117, 2.º Suplemento, de 20.05.1993), que o revogou e que veio a fixar a taxa de desconto novamente nos 13,5%.

Portanto, considerando a taxa de desconto do Banco de Portugal em vigor em 1991 (14,5%) e adicionando à mesma cinco pontos percentuais, a taxa aplicável era, como referido, de 19,5%.

Na liquidação de juros compensatórios, à época como hoje, têm de estar preenchidos elementos objetivos (ter havido atraso na liquidação de imposto, taxa, número de dias) e um elemento subjetivo (o facto ser imputável ao sujeito passivo, a título de dolo ou negligência(2)).

Distintos dos juros compensatórios são os juros de mora, devidos nos casos de retardamento de pagamento voluntário do valor em dívida, sendo, nos termos do n.º 2 do já mencionado art.º 89.º do CIVA, contados a partir da data de emissão da certidão de dívida. À época a taxa dos juros de mora mensal situava-se nos 2% (cfr. DL n.º 49.168, de 05.08.1969 e Portaria n.º 174/86, de 02 de maio). Tal taxa veio a ser alterada com a Lei n.º 10-B/96, de 23 de março, cujo art.º 55.º previu, no seu n.º 1, que “[o]s juros de mora resultantes do não pagamento de dívidas ao Estado nos prazos legalmente previstos serão liquidados e cobrados à taxa aplicável, nos termos do n.º 4 do artigo 83.º do Código de Processo Tributário, aos juros compensatórios, acrescida de 5 pontos percentuais, salvo se for superior à taxa de 1,5% por mês, caso em que se aplicará esta última”.

A liquidação de juros compensatórios, como ato tributário que é, deve estar cabalmente fundamentada.

O dever de fundamentação dos atos tributários insere-se no princípio constitucionalmente consagrado, no art.º 268.º, n.º 3, da CRP, nos termos do qual “os atos administrativos (…) carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”.

Ao nível dos atos tributários, encontrava-se especificamente previsto no art.º 21.º do CPT, cujos n.ºs 1 e 2 determinavam que:

“1 - As decisões em matéria tributária que afetem os direitos ou interesses legalmente protegidos dos contribuintes conterão os respetivos fundamentos de facto e de direito.

2 - Os contribuintes têm direito ao conhecimento da fundamentação, que será notificada com a decisão”.

É ainda de atentar no art.º 82.º do CPT, nos termos do qual “[a] fundamentação dos atos tributários conterá, ainda que de forma sucinta, as disposições legais aplicadas, bem como a qualificação e quantificação dos factos e as operações de apuramento da matéria tributável e do imposto”.

“A fundamentação deve consistir, no mínimo, numa sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a decisão…”(3), para que o respetivo destinatário consiga perceber o iter cognoscitivo e para que, por outro lado, seja possível o controlo, quer administrativo, quer jurisdicional, do ato em causa.

Deve ser, pois, clara, expressa, congruente e suficiente, de maneira a esclarecer inteiramente o seu destinatário, cumprindo, dessa forma, o desiderato constitucionalmente consagrado.

Ainda que se admita que a fundamentação da liquidação dos juros compensatórios se limite ao mínimo (atendendo a que, sobretudo em relação ao elemento subjetivo, a mesma advém, em regra, de um procedimento inspetivo ou de fiscalização, onde, à partida, estará evidenciado tal elemento, por referência à situação de retardamento do imposto), essa mesma fundamentação tem, no entanto, de dotar o administrado de toda a informação pertinente para a sua cabal compreensão.

Assim, a liquidação de juros compensatórios deve incluir, em termos factuais, o montante do imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem(4), devendo ainda ser indicadas as normas legais em que assenta a liquidação desses juros(5).. Ou seja, da mesma têm de constar os elementos necessários à aferição da sua forma de cálculo, bem como da sua origem.

Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, desde já se refira que se considera não estar cabalmente fundamentada a liquidação.

Com efeito, não obstante ter acompanhado o ofício mencionado em b) do probatório uma nota demonstrativa da liquidação dos juros compensatórios, da qual constam a data de início e fim, número de dias e a taxa, no que respeita à fundamentação legal a omissão é absoluta [cfr. facto c) ora aditado].

Na verdade, e ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, acompanhou a notificação mencionada em b) do probatório documento respeitante aos juros compensatórios, contendo os seguintes elementos [cfr. facto c) ora aditado]:

a) Importância em dívida – 1.816.239$00;

b) Taxa de juro – 24%;

c) Data inicial: 15.05.1991;

d) Data final: 07.05.1996;

e) Dias: 1820;

f) Juros: 2.173.515$00.

Do referido documento, não consta, como já referido, qualquer menção à fundamentação legal, ou seja, é absolutamente omissa quanto aos fundamentos de direito, ao arrepio do disposto no art.º 21.º do CPT e no art.º 82.º do mesmo código.

Por outro lado, não se pode encarar essa irregularidade na fundamentação, no caso em concreto, como uma irregularidade não invalidante, na medida em que está indicada uma taxa, de 24%, cuja definição não é, per se, apreensível, tanto mais que, como já referimos supra, a taxa de juros compensatórios em vigor se situava nos 19,5%.

Ou seja, mesmo considerando a taxa legal então vigente, não é possível apreender o itinerário cognoscitivo percorrido pela AT, o que se associa ao facto de não haver qualquer menção dos fundamentos de direito aplicáveis, não sendo minimamente percetível o motivo pelo qual foi considerada a mencionada taxa de 24%.

Face ao exposto, considera-se que padece a liquidação em crise de falta de fundamentação, confirmando-se a decisão recorrida, embora com a presente fundamentação.

Vencida a Recorrente seria a mesma responsável pelas custas do recurso. No entanto, há que ter em conta que, nos processos instaurados até 01.01.2004 (como é o caso), a FP se encontrava isenta do pagamento de custas, atento o disposto no art.º 3.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas dos Processos Tributários, aprovado pelo DL n.º 29/98, de 11 de fevereiro (cfr. os art.ºs 14.º, n.º 1, e 15.º, n.º 2, ambos do DL n.º 324/2003, de 27 de dezembro, bem como o art.º 18.º do DL n.º 324/2003, de 29 de dezembro).

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida;

b) Sem custas;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 28 de novembro de 2019

(Tânia Meireles da Cunha)

(Cristina Flora)

(Patrícia Manuel Pires)

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(1).Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues, Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Edição, Encontro da Escrita, Lisboa, 2012, p. 283.

(2).V. Jorge Lopes de Sousa, «Juros nas relações tributárias», Problemas fundamentais do Direito tributário, Vislis, Lisboa, 1999, pp. 147 e 148

(3).Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., p. 676.
(4).Cfr. a este respeito, exemplificativamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.02.2012 (Processo: 0928/11) e de 30.11.2011 (Processo: 0619/11).

(5).Cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.04.2010 (Processo: 0743/09).