Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:42/20.0 BEBJA
Secção:CT
Data do Acordão:03/24/2022
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:IRC.
LIQUIDAÇÃO CORRECTIVA.
CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO.
Sumário:O acto tributário relativo a exercício distinto daquele a que respeita a liquidação judicialmente anulada não configura «liquidação correctiva», para efeitos do cômputo do prazo de caducidade do direito à liquidação, na medida em que não há relação entre o caso julgado anulatório e a sua emissão.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO
I- Relatório
S……………-Sociedade ……………, S.A., deduziu impugnação judicial contra o acto de liquidação adicional de IRC, com o n.º …………., referente ao exercício de 2012, do qual resulta a pagar a quantia total de 1.533.602,01€. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, por sentença proferida a fls.125 e ss. (numeração do processo em formato digital - sitaf), datada de 11 de Fevereiro de 2021, julga a impugnação totalmente improcedente e, em consequência, declara nula a liquidação sindicada. A Fazenda Pública interpôs recurso contra a sentença, em cujas alegações de fls. 149 e ss. (numeração do processo em formato digital - sitaf), alegou e formulou as conclusões seguintes:
«I. A decisão a quo proferida foi no sentido da sua procedência, considerando que o acto de liquidação impugnado padecia do vício de caducidade.
II. Porém, dado o acima exposto, temos que, a Administração tributária está obrigada a efetuar a reintegração efetiva da ordem jurídica violada, suprimindo todos os efeitos que nela persistam decorrentes do ato julgado ilegal.
III. Na verdade, a reconstituição da ordem jurídica violada faz-se através da prática dos atos reintegradores tendentes a dar cumprimento ao julgado, sendo que tais atos, como aquele ora impugnado, é reintegrador, materializando uma execução de um julgado anulatório de um ato de liquidação que implica a prática de um outro ato de liquidação visando expurgar a parte (ou o todo) afetada de ilegalidade – é o que se designa por liquidação corretiva.
IV. Com efeito, revestindo o ato de liquidação uma natureza meramente corretiva, sem caráter inovador, como é o caso do ato ora impugnado, a sua prática não está sujeita à limitação dos prazos de caducidade fixado na lei, ao contrário do que erradamente sustenta a sentença a quo.
V. De facto, e na esteira de várias decisões de tribunais superiores, temos que, para efeitos do cômputo do prazo de caducidade do direito de liquidação de tributos, a existência de uma “liquidação corrigida”, ou seja, de uma liquidação em que os serviços competentes da Administração tributária procedem à correção de anterior ato da mesma natureza, não releva para se assumir a eventual ultrapassagem do mesmo, porque o momento a atender deve ser o da emissão da liquidação inicial e não a data daquela que a corrija [Vide Acórdãos do STA datados de 22.3.2006, rec. 1284/05 e de 9.5.2007, rec. 0133/07.].
VI. Aliás, no elenco dos factos e fundamentos que compõem o processo discursivo à propositura da ação, a Impugnante revela um conhecimento profundo dos iter cognoscitivo percorrido pela decisão subjacente à liquidação.»
Termina, pedindo que seja «declarada a nulidade da Sentença recorrida, nos termos expostos, com os devidos efeitos ou, caso assim não se entenda, o que sem conceder se admite» seja «concedido provimento ao presente Recurso Jurisdicional, por provado, revogando-se a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, para todos os devidos efeitos legais».
X
Em contra-alegação que apresentou, a recorrida, S…………..- Sociedade …………., S.A., pugna pela confirmação do julgado, suscita ainda a excepção de incompetência hierárquica deste Tribunal para o conhecimento do recurso, defende que a apelante não deu cabal cumprimento ao ónus de formulação de conclusões e, caso assim se não entenda, requer a sua notificação nos termos do artigo 665º, nº2 e 3 do CPC, expendendo, a final, o seguinte quadro conclusivo:
§1. Antes de mais, o presente Tribunal Central Administrativo deve declarar-se absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer do presente recurso, na medida em que o mesmo versa, exclusivamente, sobre matéria de Direito.
§2. Não obstante o recorrente afirme a existência de um erro de julgamento sobre a matéria de facto, não coloca em causa a própria matéria de facto constante do probatório da sentença recorrida: não discute a veracidade dos factos dados como provados, nem pretende que sejam aditados factos novos ou suprimidos factos constantes daquele mesmo probatório, confundindo de forma manifesta a impugnação da matéria de facto com a alegação de erro de julgamento sobre a matéria de Direito, pois não foram solicitadas quaisquer alterações à matéria de facto dada como provada.
§3. Nos termos do disposto no artigo 280.º, n.º 1 do CPPT, das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, «salvo quando a decisão proferida for de mérito e o recurso se fundamente exclusivamente em matéria de direito», caso em que tal apelo tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do STA.
§4. A violação desta regra de competência, em razão da hierarquia, determina, por previsão explícita do artigo 16.º, n.º 1 do CPPT, a incompetência absoluta do tribunal, a que é, indevidamente, dirigido o recurso.
§5. Pelo que deve este Tribunal Central Administrativo abster-se de conhecer o recurso apresentado, com as demais consequências legais, designadamente, a respetiva remessa à Secção do Contencioso Tributário do STA, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 1 do CPPT.
§6. Acresce que, da leitura das alegações e das conclusões de recurso da Fazenda Pública, não resulta sequer com clareza qual o objeto do recurso, afigurando-se, porém, à Recorrida que este se cinge à questão da (in)impugnabilidade do ato de liquidação adicional em apreço – o de 2012 –, invocando o erro de julgamento de direito, sem especificar os termos pelo qual fundamenta a sua oposição perante a decisão proferida pelo tribunal a quo (cfr. artigo 20 das alegações).
§7. Desde logo ante a impossibilidade de, com clareza, fixar o objeto do seu recurso, a Fazenda Pública falha redundantemente na contestação da sentença emitida pelo Tribunal a quo, não cumprindo, desde logo, o ónus que lhe caberia ao abrigo do artigo 639.º do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT.
§8. Com efeito, nos termos do mencionado artigo do CPC, caberia à Fazenda Pública enunciar os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da sentença recorrida; devendo incluir nas conclusões formuladas, quais as normas jurídicas violadas, o sentido em que, no entender da Fazenda Pública, as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas e qual a norma jurídica que se considera ser aplicável — cfr. n.º 2 do artigo 639.º do CPC – não se podendo bastar com a repetição de argumentos anteriores.
§9. No caso em apreço, analisando as conclusões da Fazenda Pública, constata-se que esta optou por recorrer reproduzindo, acriticamente, o teor da sua contestação, na linha do defendido pela AT, sem lograr analisar, refutar e afastar o que foi decidido pelo Tribunal a quo, o que nos permite imediatamente concluir no sentido da improcedência liminar do recurso.
§10. De outro passo, e sem prescindir do que acima se referiu quanto ao objeto do recurso, a Recorrida constata também que a apreciação do recurso se mostra inútil por que aquele falha evidentente no alvo do recurso.
§11. Conforme demonstrado pela Recorrida ao longo do presente processo, mesmo que se pudesse considerar que a liquidação adicional de IRC de 2012 impugnada se configura como um ato integrado no poder de execução da sentença proferida no processo de impugnação n.º 235/13.6BEBJA (o que apenas por hipótese académica se admite, tal é a evidência de que a anulação do IRC de 2010 foi assim determinada pelo tribunal sem mais e sem nunca aludir a exercícios posteriores, designadamente a 2012), o mesmo tinha sido emitido quando o prazo para a execução espontânea daquela decisão há muito tinha expirado, o que implica que o direito à liquidação, mesmo naquelas circunstâncias, se tinha de considerar caducado.
§12. Ora, nas suas alegações de recurso, a Fazenda Pública limita-se a defender que o ato de liquidação em crise corresponde a um ato de execução de decisão judicial anterior, nada dizendo, relativamente ao facto de que aquela ter sido emitida para além do prazo de execução espontânea da sentença referente ao IRC de 2010 e chamada à colação pela mesma Fazenda Pública.
§13. Assim, ainda que se admitisse dar provimento àquela questão suscitada pela Fazenda Pública — o que apenas por dever de patrocínio se admite, sem conceder — e, como tal, se tivesse de considerar que o ato de liquidação adicional em causa tinha sido emitido no âmbito do poder de execução da sentença proferida no processo n.º 235/13.6BEBJA, tendo tal sucedido muito para além do prazo de execução espontânea (o que foi dado por provado pelo tribunal a quo e contestado em sede de recurso pela Fazenda Pública) constatar-se-ia de imediato que a decisão teria de ser a mesma, pois que o direito à execução da decisão por meio da emissão de liquidação com referência a 2012, em outubro de 2019, há muito havia caducado.
§14. Neste sentido, deve este douto Tribunal recusar conhecer do recurso interposto pela Fazenda Pública, confirmando, sem mais, a decisão contestada; outro entendimento não se afigura possível, mas novamente, por dever de patrocínio, sempre se aventa que caso assim não se entendesse, deveria notificar-se a ora Recorrida nos termos do disposto no artigo 665.º, n.º 2 e n.º 3 do CPC, para se pronunciar relativamente aos vícios da liquidação relativamente aos quais o Tribunal a quo deixou de pronunciar-se como seja o relativo à intempestividade do suposto ‘ato de execução’ praticados pela Autoridade Tributária.
§15. Avançando para a reapreciação da exceção invocada pela Fazenda Pública e nas suas alegações revisitada, como julgou acertadamente o Tribunal a quo, o ato que o Tribunal reconheceu ilegal nos autos n.º 235/13.6BEBJA foi o ato de liquidação de IRC de 2010 aí impugnado, ato esse que foi objeto de anulação, tendo o imposto a mais liquidado pela Administração Tributária sido eliminado.
§16. O único ato tributário que antecede o ato de liquidação adicional que ora se impugna foi o ato de autoliquidação de IRC de 2012 praticado pela própria Recorrida, pelo que através do ato cuja anulação se requer, a Administração Tributária procedeu à alteração da matéria coletável apurada pela Recorrida em sede de autoliquidação, fixando um valor adicional de IRC a pagar pela mesma. §17. Como corretamente entendeu o Tribunal a quo, o ato tributário em causa é distinto daquele de 2010, encerrando uma decisão da Administração Tributária sobre a situação concreta do contribuinte de IRC, unilateralmente determinando o montante de obrigação pecuniária, sendo, pois, impugnável.
§18. Tudo visto, o ato em apreço configura-se lesivo, inovador e como tal, suscetível de ser posto em causa pela ora Recorrida mediante reclamação graciosa ou impugnação judicial.
§19. Nesta conformidade, deve a sentença dos Autos ser mantida para todos os efeitos, sendo negado provimento ao recurso da Fazenda Pública.
§20. Como resulta da doutrina e da jurisprudência consolidada dos nossos tribunais superiores, as liquidações corretivas são atos de apuramento de imposto subsequentes a liquidações adicionais resultantes de reclamações graciosas dos contribuintes parcialmente atendidas e em razão dos quais se apure quantitativo de imposto inferior ao determinado naquela, não sendo, assim, lesivas dos interesses dos destinatários no segmento não corrigido.
§21. A liquidação de IRC de 2012, impugnada nos presentes Autos, não resulta de uma qualquer decisão favorável à Recorrida nesse exercício, na medida em que a mesma, não foi objeto de reclamação graciosa ou impugnação judicial e o processo n.º 235/13.6BEBJA não teve igualmente por objeto essa liquidação, nem a decisão proferida neste último processo se pronunciou sobre esta.
§22. Nestes termos, estando em causa o exercício de 2012, o direito à liquidação de imposto caducou em 31 de dezembro de 2016, i.e., 4 anos volvidos daquela data — cfr. artigo 45.º, n.º 1 da LGT —, pelo que, em 28 de outubro de 2019, quando a liquidação adicional de IRC de 2012, ora impugnada, foi emitida, o direito a essa emissão já se encontrava há muito caducado.
§23. Face ao exposto, impõe-se concluir que o tribunal a quo decidiu bem e que a liquidação de IRC em crise é ilegal por violação de lei, designadamente do disposto no artigo 45.º da LGT, pelo que deverá a sentença que julgou no sentido da sua anulação ser mantida para todos os efeitos, incluindo sendo a Administração Tributária condenada ao reembolso do imposto e ao pagamento de juros indemnizatórios.»
X
A Digna Magistrada do M. P. junto deste Tribunal notificada para o efeito, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
X
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
X
II- Fundamentação
1.De Facto.
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:«
A) A sociedade Impugnante detém a sua sede em Minas ………….., Santa ………….., na área geográfica deste Tribunal – cfr. processo administrativo junta a fls. 91 a 100;
B) Em 05/02/2013, foi emitida em nome da Impugnante a liquidação de IRC com o nº……………….., relativa ao exercício de 2010, com o valor de imposto apurado de 6 931 026,77 € - cfr. doc. nº 3 junto com a petição inicial;
C) Essa liquidação foi impugnada judicialmente, em ação interposta pela Impugnante que correu termos neste tribunal sob o nº 235/13.6BEBJA – cfr. doc. nº 3 junto com a petição inicial;
D) Em 20/10/2016, foi proferida sentença nesse processo n.º235/13.6BEBJA, que julgou a ação procedente – cfr. doc. nº 3 junto com a petição inicial;
E) Dessa sentença foi interposto recurso pela Fazenda Pública – cfr.doc. nº 4 junto com a petição inicial;
F) Subindo ao Supremo Tribunal Administrativo, em 12/12/2018, foi proferido Acórdão que negado provimento ao recurso na questão de mérito submetida a juízo – cfr. doc. nº4 junto com a petição inicial;
G) A Impugnante e a Fazenda Pública, foram notificadas quanto ao teor deste Acórdão – cfr. doc. nº 4 junto com a petição inicial;
H) Em novembro de 2019 a sociedade comercial Impugnante tomou conhecimento de liquidação adicional de IRC respeitante ao exercício de 2012, mediante a qual a Administração Tributária apurou imposto a pagar no valor de 1.533.602,01 € - cfr. doc. nº 1 junto com a petição inicial;
I) A liquidação em causa foi emitida em 28/10/2019 com o nº …………………… – cfr. doc. nº 1 junto com a petição inicial;
J) Foi, consequentemente, emitida e remetida demonstração de acerto de contas – cfr. cfr. doc. nº 2 junto com a petição inicial;
K) Estas com data de limite do imposto apurado fixado em 17/12/2019 – cfr. doc. nº 2 junto com a petição inicial;
L) A sociedade comercial apresentou em 03/02/2020 a petição inicial que deu origem aos presentes autos.»
X
Factos Não Provados //Do exame crítico à matéria de facto alegada e prova carreada julga-se ter ficado por provar o facto atinente ao pagamento do imposto apurado na liquidação impugnada. //
X
Motivação da decisão de facto // A decisão da matéria de facto, consoante ao que acima ficou exposto, efetuou-se com base nos documentos e informações constantes do processo administrativo consoante indicação efetuada em cada uma das alíneas. // Já no que respeita ao facto julgado não provado, ainda que a Impugnante a ele se refira na petição inicial – artigo 21º - e se refira a documento que intitula de doc. nº 5 no qual pretende a sustentação do mesmo tal documento não se mostra junto aos autos.»
X
Ao abrigo do disposto no artigo 662.º/1, do CPC, adita-se a seguinte matéria de facto:
M) Na fundamentação da sentença referida em D), consta, entre o mais, o seguinte:
«Ao invés, o que resulta manifesto para o Tribunal é que a perda apurada pela Impugnante em 2010 corresponde à liquidação nesse mesmo ano dos instrumentos financeiros derivados que havia contratado no ano de 2009 mas que só então alcançavam o seu termo. // Não se trata de qualquer alteração ao correspondente justo valor, à forma pela qual foi efetuada a sua mensuração e não acarretaram quaisquer efeitos nos capitais próprios da sociedade. // Estas conclusões decorrem da subsunção da norma que se citou à realidade que foi trazida para apreciação pelo Tribunal salientando-se que o critério de quantificação do justo valor e evidencia contabilística da estimativa da perda decorriam da aplicação pela S........... de normas internacionais que se mostravam harmoniosas com aquelas que o SNC veio introduzir, inexistindo alterações a registar. // Desta forma afasta o Tribunal a aplicação ao caso vertente da aludida norma constitutiva de regime transitório porquanto serviu apenas para acautelar o regime fiscal de ganhos / perdas que a partir de 01/01/2010 se registassem e deixassem ou passassem a ser fiscalmente relevantes por contraposição do que sucedia até 31/12/2009. // Subscrever o entendimento da ATA seria, na convicção do Tribunal, desvirtuar a natureza dos instrumentos financeiros derivados cuja característica principal é a futuridade da sua liquidação. // Ajustada com tal natureza, e bem assim as normas que o SNC veio impor, se nos afigura a consignação do potencial de perda a um justo valor que decorrerá, naturalmente, do valor do mercado no momento. E foi esse o procedimento que a Impugnante levou a cabo. // (…) // De todo o exposto conclui-se pela procedência do invocado fundamento da impugnação, julgando ilegal a aplicação ao caso vertente do regime transitório contido no art. 5o do Decreto-Lei n° 159/2009, de 13/07, em razão do que se impõe declarar nula e de nenhuns efeitos a liquidação impugnada. // Na decorrência desta nulidade impõe-se determinar o reembolso do montante já pago como ficou assente a titulo de imposto e de juros compensatórios».
N) A notificação às partes do Acórdão referida em G), foi efectuada por meio de ofício de 14.12.2018 – fls. 480/481, do P. 235/13.6BEBJA.
X
2.2. De Direito.
2.2.1. A presente intenção recursória centra-se sobre o alegado erro de julgamento quanto ao enquadramento jurídico da causa.
2.2.2. Antes, porém, impõe-se dirimir a questão prévia da incompetência absoluta deste TCAS.
Nos termos do artigo 280.º/1, do CPPT, «[d]as decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso, a interpor pelo impugnante, recorrente, executado, oponente ou embargante, pelo Ministério Público, pelo representante da Fazenda Pública e por qualquer outro interveniente que no processo fique vencido, para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a decisão proferida for de mérito e o recurso se fundamente exclusivamente em matéria de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo». Esta norma aplica-se ao caso em exame, dado que se trata de acção instaurada depois de 01.01.2012 (1).
«O recurso não versa exclusivamente matéria de direito se nas suas conclusões se questionar matéria factual, manifestando-se divergência, por insuficiência, excesso ou erro, quanto à factualidade provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, quer porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, quer, ainda, porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos. (…) // O critério jurídico para destrinçar se estamos perante uma questão de direito ou uma questão de facto, passa por saber se o recorrente faz apelo, nos fundamentos do recurso substanciados nas conclusões, apenas a normas ou princípios jurídicos que tenham sido na sentença recorrida supostamente violados na sua determinação, interpretação ou aplicação, ou se, por outro lado, também apela à consideração de quaisquer factos materiais ou ocorrências da vida real (fenómenos da natureza ou manifestações concretas da vida mesmo que do foro espiritual ou volitivo), independentemente da sua pertinência, merecimento ou acerto para a solução do recurso» (2).
No caso em exame, cotejando o teor das alegações de recurso interposto pela Fazenda Pública, verifica-se que as mesmas se centram sobre o invocado erro no cômputo do prazo de caducidade do direito à liquidação, atendendo ao eventual carácter correctivo da liquidação impugnada. Pelo que, com vista a dirimir a questão colocada pelo recurso, importa ter em conta a materialidade fáctica que enquadra a emissão do acto tributário questionado.
Em face do exposto impõe-se concluir que «para solucionar a matéria alegada e controvertida pelas partes torna[-se] necessário fazer juízos sobre questões probatórias ou averiguar da materialidade alegada como eventualmente interessando a outras plausíveis soluções de direito» (3). De onde resulta que o objecto do recurso jurisdicional em exame não versa exclusivamente sobre questões de direito, pelo que assiste competência, em razão da hierarquia, a este tribunal para do mesmo conhecer.
Termos em que se julga improcedente a presente excepção dilatória da incompetência absoluta do TCAS para conhecer do objecto do recurso.
2.2.3. A recorrente alega que revestindo o ato de liquidação uma natureza meramente corretiva, sem caráter inovador, a sua prática não está sujeita à limitação dos prazos de caducidade fixados na lei. Por seu turno, a sentença recorrida julgou procedente a impugnação, determinando a anulação do acto tributário [liquidação adicional de IRC de 2012]. Para tanto, considerou que «o caso dos autos, invocado pela Fazenda Pública como tratando-se de uma liquidação corretiva, é o de uma liquidação totalmente anulada. Além de que respeita ao exercício de 2012 quando aquela sobre que versou o processo que foi julgado neste TAF sob o nº 235/13.6 BEBJA respeitava ao exercício de 2010. // Em conclusão, não se configura como suscetível de integrar a figura da liquidação corretiva quer porque não respeita os pressupostos legais quer porque respeita a distinto facto tributário».
Apreciação.
No que respeita à liquidação correctiva são pontos firmes os seguintes:
i) «A liquidação correctiva não corporiza um acto novo mas apenas o apuramento de tributo na sequência de anulação parcial da liquidação decorrente por exemplo de uma decisão de deferimento parcial em sede de procedimento de revisão do acto tributário, o qual conduz necessariamente a um quantitativo de imposto inferior ao anteriormente exigido pela administração tributária» (4).
ii) «O regime da caducidade do direito à liquidação acabado de examinar não se aplica aos casos de liquidações correctivas (não revestem a natureza de novo acto tributário), considerando estas como os actos de apuramento de imposto subsequentes a uma liquidação adicional, resultantes, nomeadamente, de reclamações graciosas dos contribuintes, parcialmente atendidas e em razão das quais se apure quantitativo de imposto inferior ao determinado naquela, visto que não lesivas dos interesses dos destinatários no segmento não corrigido» (5).
iii) «A liquidação correctiva limita-se a revogar parte de anterior liquidação, não possuindo natureza de acto substitutivo porque não cria um novo quadro jurídico regulador de uma situação concreta, tratando-se antes de um acto que se limita a expurgar uma parte do acto primitivo e que, por isso, não inovando na ordem jurídica na parte não revogada, tem natureza meramente confirmativa que não admite impugnação autónoma» (6).
iv) «O legislador do Código do IRC considera corretivas todas as liquidações que sucedem a anteriores liquidações de imposto referentes ao mesmo período e que determinem a alteração administrativa dos montantes apurados anteriormente (qualquer que seja o sentido dessa alteração). E manda aplicar o regime da caducidade do direito à liquidação a todas elas – ver os artigos 99.º e seguintes. // Mas este conceito de liquidação corretiva não pode estender-se às correções que derivam de procedimentos administrativos de segundo grau e operam em sentido favorável ao sujeito passivo. // Porque o regime da caducidade do direito à liquidação não pode colidir com a garantia de acesso aos meios de impugnação administrativa e à execução das decisões que ali sejam proferidas em sentido favorável aos administrados». (7)
No caso em exam, a liquidação de IRC impugnada nos autos respeita ao exercício de 2012 (alíneas H) e I)), enquanto que a liquidação de IRC objecto de anulação no âmbito do Processo n.º 235/13.6BEBJA, respeita ao exercício de 2010 (alíneas B) e C). Para além da falta de identidade do facto tributário, não se afigura existir relação entre as liquidações em apreço. Não se vislumbra também relação entre o julgado anulatório formado no âmbito do P. 235/13.6BEBJA e a liquidação questionada nos presentes autos, porquanto nada é referido quanto à liquidação em apreço que resulte das directivas contidas naquele.
Com efeito, a liquidação de IRC de 2012 (alíneas H) e I), objecto da presente impugnação não constitui liquidação correctiva de outra anterior, dado que, em vez de rectificar anterior liquidação, a mesma inova no ordenamento jurídico, estabelecendo nova regulamentação da situação fiscal do contribuinte no exercício em causa.
Mais se refere que a invocada execução do julgado anulatório, determinante da emissão da liquidação em causa, não se comprova, seja pela falta de relação entre os actos jurídicos em confronto, seja porque prazo procedimental de 90 dias de execução espontânea do julgado (artigo 175.º/1, do CPTA), não foi observado [a decisão judicial anulatória foi notificada às partes em 14.12.2018 e a liquidação contestada comunicada à impugnante em Novembro de 2019 (8)].
Do exposto se extrai que tendo sido emitido em 28.10.2019 e notificado às partes em Novembro de 2019, o acto tributário, referente ao exercício de 2012, incorreu na preterição do prazo de caducidade do direito à liquidação de quatro anos (artigo 45.º/1, da LGT).
Ao julgar no sentido referido, a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento, pelo que deve ser confirmada na ordem jurídica.
Termos em que se julgam improcedentes as presentes conclusões de recurso.
Dispositivo
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe.
Notifique.
(Jorge Cortês - Relator)

(1.ª Adjunta - Hélia Gameiro Silva)

(2.ª Adjunta – Ana Cristina Carvalho)


(1)Artigo 13.º/1/c), da Lei n.º 118/2019, de 17/09.
(2)Acórdão do TCAS, de 04.06.2013, P. 06465/13.
(3)Acórdão do TCAS, de 22.09.2009, P. 3314/09.
(4)Paulo Marques, A revisão do acto tributário, IDEFF, 2015, p. 306.
(5)Acórdão do TCAS, de 27.11.2012, P. 05908/12.
(6)Acórdão do TCAS, de 21-05-2020, P. 616/08.7BESNT.
(7) Acórdão do STA, de 10-11-2021, P. 0190/14.5BELRS,
(8)Alíneas H) e N).