Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 310/22.6BESNT |
Secção: | CA |
Data do Acordão: | 02/23/2023 |
Relator: | ANA PAULA MARTINS |
Descritores: | PROVIDÊNCIA CAUTELAR; INDEFERIMENTO LIMINAR; PERICULUM IN MORA |
Sumário: | A rejeição liminar do requerimento inicial, nos termos e ao abrigo do artigo 116.º, n.º 2, al. d) do CPTA, é uma situação excepcional que apenas pode/deve ter lugar em face de razões indiscutíveis que determinem a manifesta improcedência da pretensão formulada, tornando inútil qualquer instrução ou discussão posterior. |
Aditamento: |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: I – RELATÓRIO T. – A. T. T., Associação de Empregadores, e T. – R. C. T., LD.ª, melhor identificadas nos autos, requereram contra o INSTITUTO PORTUGUÊS DA QUALIDADE, I.P., com os demais sinais nos autos, providência cautelar de suspensão de eficácia de acto administrativo, com pedido de decretamento provisório da providência. * Por decisão de 08.05.2022, o Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa indeferiu liminarmente o requerimento inicial apresentado. * Inconformados, os Requerentes vieram interpor recurso da aludida decisão, concluindo assim as suas alegações: * Admitido o recurso, foi ordenada a citação do Requerido, tanto para os termos do recurso como para os da causa. * O Requerido contra-alegou, pugnando pela rejeição do recurso e manutenção da decisão recorrida. * O Ministério Público emitiu parecer, nos termos e ao abrigo dos artigos 146º e 147º do CPTA, no sentido da improcedência do recurso. * Sem vistos, atento o disposto nos arts. 36º nºs 1 e 2 e 147º do CPTA, mas com prévia divulgação do projecto de acórdão pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência. * II - OBJECTO DO RECURSO Atentas as conclusões das alegações do recurso interposto, que delimitam o seu objecto, nos termos dos arts 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi art 140º, nº 3 do CPTA, a questão decidenda reside em aferir se o Tribunal a quo errou ao indeferir liminarmente o requerimento inicial apresentado. * III – FUNDAMENTAÇÃO De Facto A decisão recorrida considerou indiciariamente assentes “as seguintes ocorrências processuais”: A) Foi publicado no Diário da República n.º 222/2021, Série II de 2021-11-16, parte C, o Despacho 11222/2021, proferido pelo Presidente do Conselho Directivo do Instituto Português da Qualidade, I. P., com o seguinte teor: “Sumário: Desqualificação de entidades como reparador/instalador de tacógrafos e taxímetros. O Instituto Português da Qualidade, I. P. (IPQ, I. P.) é o instituto público ao qual compete assegurar e gerir o sistema de controlo metrológico legal dos instrumentos de medição, reconhecer entidades competentes para o exercício delegado desse controlo, sempre que tal se revele necessário para garantir a efetiva cobertura a nível nacional, e coordenar a rede constituída por aquelas entidades, encontrando-se estas competências previstas no Decreto-Lei 71/2012, de 21 de março, alterado pelo Decreto-Lei 80/2014, de 15 de maio, bem como no regime de controlo metrológico de métodos e instrumentos de medição aprovado pelo Decreto-Lei 291/90, de 20 de setembro, e respetiva regulamentação própria. O acompanhamento e a supervisão das entidades qualificadas concretizam-se, designadamente, através da realização periódica de auditorias, no âmbito das quais é verificada a regularidade do desempenho da atividade e a manutenção das condições que justificaram a atribuição da qualificação, e, bem assim, da avaliação da necessidade do reconhecimento para garantir a efetiva cobertura a nível nacional do controlo metrológico legal dos instrumentos de medição. Nessa sede, sendo apuradas irregularidades, incumprimentos ou constatando-se não existir aquela necessidade, a qualificação atribuída é necessariamente revogada. Nestes termos, ao abrigo do disposto na alínea s), do n.º 3.º no artigo 3.º do Decreto-Lei 71/2012, de 21 de março e da alínea c) do n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei 291/90, de 20 de setembro, e cumpridas que foram as disposições relativas à realização de audiência prévia dos interessados, determino: 1 - A revogação dos despachos de qualificação que constam do anexo I ao presente despacho, e que dele faz parte integrante, por não existir necessidade do reconhecimento da qualificação de entidades como Reparador e/ou Instalador para a realização das operações de Primeira Verificação e de Verificação Periódica, encontrando-se garantida a efetiva cobertura a nível nacional do controlo metrológico legal de tacógrafos e taxímetros. 2 - Por força do determinado no número anterior, ficam estas entidades inibidas de exercer a atividade a que se referem os despachos ora revogados, ficando igualmente impedidas de utilizar a designação de entidade qualificada, proceder a ações publicitárias ou emitir qualquer documento com referência àquela qualificação. 3 - O presente despacho produz efeitos a partir do dia 1 de janeiro de 2022. 4 de novembro de 2021. - O Presidente do Conselho Diretivo, António Mira dos Santos.” (cfr. DRE, https://dre.pt/dre/detalhe/doc/11222-2021-174406817); B) Foi publicado no DR. n.º 241, II Série, parte C, de 2021/12/15, o despacho n.º 12146/2021, com o seguinte teor: (cfr. Doc. n.º 2 junto com a P.I.); C) Em 16/11/2021, a 2ª Requerente e outras empresas, em coligação, apresentaram Reclamação, nos termos do art.º 191º do CPA, para o Presidente do Conselho Directivo do Presidente do Conselho Directivo do IPQ, I.P. (cfr. Doc. n.º 22, junto com o R. I.); D) Em 30/03/2022, a presente acção foi apresentada junto do Tribunal Administrativo e Fiscal via “site” (cfr. SITAF, a fls. 1). * De Direito Os Requerentes, ora Recorrentes, intentaram providência cautelar de suspensão de eficácia de acto administrativo, com pedido de decretamento provisório. O Tribunal a quo, a título de questão prévia, consignou que “vieram os Requerentes peticionar a suspensão de eficácia Despacho N.º 1222/2021, de 16 de novembro, publicado no Diário da República n.º 222/2021, IIª Série, de 16 de novembro”. Contudo, compulsados os documentos juntos com o R.I., em particular o Doc. n.º 1, constata-se que o Despacho ora sindicado é o Despacho n.º 11222/2021, de 4 de Novembro, publicado no Diário da República n.º 222/2021, Série II de 2021-11-16, concedendo tratar-se de um mero lapso, que ora se rectifica, nos termos do art.º 249º do C.P.C. e art.º 146º do C.P.C.” Após, ao abrigo do artigo 116º, nº 1 do CPTA e do artigo 590º, nº 1 do CPC “ex vi” art. 35º n.º 2, do CPTA, rejeitou liminarmente o requerimento inicial, com a seguinte motivação: “(…) Por razões que se prendem com a instrumentalidade, começaremos por apreciar o “periculum in mora”, por forma a saber se existe o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que as Requerentes visam assegurar no processo principal. Haverá fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado se os factos concretos alegados pelas Requerentes inspirarem o fundado receio de que, se a providência for recusada, se tornará depois impossível, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, proceder à reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade. Deste modo, interessa como parâmetro decisório do primeiro segmento do critério previsto no nº 1, do nº 120º, do CPTA, respeitante ao periculum in mora, aferir da existência de um perigo de inutilidade da decisão a proferir no processo principal, ainda que meramente parcial, pela constituição de uma situação de facto consumado ou pelo receio de se produzirem prejuízos de difícil reparação. Para tanto, deve o julgador proceder a um juízo de prognose ou de probabilidade das razões que determinam o receio de inutilidade da sentença a proferir na acção principal, pelo perigo da constituição de uma situação de facto consumado ou de se produzirem prejuízos de difícil reparação. No que respeita ao perigo de, sendo a providência recusada, tornar-se impossível ou difícil, proceder à reintegração da situação conforme à legalidade, em caso de procedência do processo principal, este pressuposto relaciona-se com a possibilidade de se produzirem prejuízos de difícil reparação, considerando que, contrariamente ao sentido da “ideia antiga”, como refere Vieira de Andrade, obra cit., pp. 299, não se afere esta dificuldade de reparação à possibilidade de avaliação ou quantificação pecuniária dos danos, mas antes à dificuldade de reintegração da situação que deveria existir caso o acto administrativo não tivesse sido praticado ou executado. Assim, contrariamente ao entendimento anterior à reforma do contencioso administrativo, não procede à luz do novo regime, para afastar a dificuldade de reparação desses prejuízos, a exigência da irreparabilidade dos danos ou o argumento de os prejuízos serem susceptíveis de avaliação pecuniária ou passíveis de indemnização. Regressemos aos autos. N caso vertente, invocam as Requerentes que o prejuízo sério que se pretende evitar pode ser resumido da seguinte forma: Prejuízos diretos: Empresas em causa:146 Funcionários:1288 (muitas famílias); Prejuízos na ordem de € 67. 500 000.00; Prejuízos Indiretos: € 55. 825 000.00; Custos indiretos: O procedimento torna-se mais pesado e oneroso, e em determinadas situações é absolutamente inexequível; maior pobreza em resultado do encerramento destas empresas geograficamente.” Para o efeito, invocam em suma, que “A atuação sindicada compromete, seriamente, a continuação da existência da 1ª Requerente, ao perder todo o universo dos seus efetivos e potenciais associados; Encerra a atividade da 2ª Requerente e de todas as empresas Instaladores e Reparadores de Tacógrafos e Taxímetros que, sendo a sua única atividade, ficam, imediatamente, sem recursos para sobreviver e assegurar o pagamento das suas obrigações, nomeadamente, para com os trabalhadores que empregam; No caso das Requerentes, a demora de uma ação principal será, manifestamente, prejudicial para empresas e Associação. Porquanto, está a impedir a 2ª Requerente e todas as empresas Instaladores e Reparadores de Tacógrafos e Taxímetros de continuar a exercer a sua atividade que sendo, aliás, a sua única atividade, ficam, imediatamente, sem recursos para sobreviver e assegurar o pagamento das suas obrigações, nomeadamente, para com os trabalhadores que empregam. (…) Num curto espaço de tempo, mantendo-se o Despacho de desqualificação na ordem jurídica, causará a falência de mais de uma centena e meia de empresas e o despedimento de mais de um milhar de trabalhadores, com custos financeiros elevadíssimos e efeitos indiretos que atingem o próprio serviço público; Sendo bastante provável que, no momento em que a ação seja julgada, por decisão judicial transitada em julgado, já as decisões do IPQ sejam irreversíveis ou, pelo menos, tenham provocado sérios e irrecuperáveis danos, impossíveis de reconstituir por meras indemnizações, à 2ª Requerente, às empresas representadas pela 1ª Requerente e a estas mesmas, incluindo seus trabalhadores, diretores e famílias;. Como se decidiu no Ac. do TCA Sul, no âmbito do Proc. n.º 166/04 “a prova da existência do direito a acautelar basta-se com indícios de uma mera probabilidade séria da sua existência, ficando a certeza da sua existência para a acção principal; a prova da produção dos prejuízos de difícil reparação carece de demonstração de que são evidentes e reais, através de factos que mostrem ser tais prejuízos fundamentais(…).” Sendo que, ainda no sentido expendido pelo Acórdão supra referido, relativamente aos critérios a atender na apreciação deste requisito, os mesmos devem obedecer a um maior rigor na apreciação dos factos integradores de tal periculum in mora, visto que a qualificação legal do receio como “fundado” visa restringir as medidas cautelares, evitando a concessão indiscriminada de protecção meramente cautelar, com o risco inerente de obtenção de efeitos que só podem ser obtidos com a segurança e ponderação garantidas pelas acções principais. In casu, quer a 1ª Requerente, quer a segunda Requerente não concretizaram em que medida cada uma das empresas suas associadas (que, aliás, não identifica) e das empresas Instaladores e Reparadores de Tacógrafos e Taxímetros, respectivamente, sofrerá prejuízo irreparável com o despacho suspendendo (sublinhado nosso). Como resulta da leitura do requerimento inicial e da síntese aqui efectuada, a primeira Requerente não concretiza os prejuízos que possam resultar, para as suas associadas (cada uma delas, em concreto), da não adopção da providência requerida, limitando-se à alegação genérica da sua falência. O mesmo sucedendo quanto aos alegados trabalhadores e famílias das visadas associadas, sem que, para o efeito, tenha procedido à cabal identificação dos(as) mesmos(as) De igual modo, no que a si concerne, invocou singelamente que “A atuação sindicada compromete, seriamente, a continuação da existência da 1ª Requerente, ao perder todo o universo dos seus efetivos e potenciais associados”, sem contudo, identificar quais os efectivos e potenciais associados que perderá. Por seu turno, invoca a 2ª Requerente que o Despacho Suspendendo está a impedi-la e a todas as empresas Instaladores e Reparadores de Tacógrafos e Taxímetros de continuar a exercer a sua atividade, ficando, imediatamente, sem recursos para sobreviver e assegurar o pagamento das suas obrigações, nomeadamente, para com os trabalhadores que empregam, sem contudo proceder à cabal identificação de cada um dos seus trabalhadores e das visadas empresas Instaladoras e Reparadores de Tacógrafos e Taxímetros. O mesmo sucedendo com o alegado eventual pagamento de indemnizações às associadas da 1ª Requerente, incluindo os respectivos trabalhadores, que também não identifica concretamente. Donde, no caso vertente não se mostra verificado o pressuposto do “periculum in mora” de que depende a adopção da presente instância cautelar, porquanto, sem a alegação de factos concretos, nos termos supra expostos, ao Tribunal não é possível aferir da constituição de uma situação de facto consumado e/ou da produção de prejuízos de difícil reparação. Pois que, o fundado receio a que a lei se refere é o receio “apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e a actualidade da ameaça e a constituição de uma situação de facto consumado. Não bastam, pois, simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assente numa apreciação ligeira da realidade (…)” (António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, 3ª ed., pag. 103). Termos em que, falecem, assim, porque não alegados, os argumentos aduzidos pelas Requerentes no tocante ao fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado/à produção de prejuízos de difícil reparação, não se encontrando, pois, verificado o requisito do periculum in mora. E, nesta medida é manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada pelas Requerentes. Pelo que, nesta sede, se verifica a manifesta falta de fundamento da pretensão formulada (cfr. art.º 116º, n.º 2, al. d) do C.P.T.A.), a qual constitui motivo para indeferimento liminar.” Em síntese, o Tribunal a quo decidiu-se pela rejeição liminar da providência cautelar por manifesta falta de fundamento da pretensão formulada (cfr. al. d) do nº 2 do artigo 116º do CPTA), concretamente por considerar manifesta a não verificação do requisito periculum in mora. O decidido não pode manter-se. As ora Recorrentes apresentaram requerimento inicial de suspensão de eficácia do despacho n.º 11222/2021, de 04.11, proferido pelo Presidente do Conselho Directivo do Instituto Português da Qualidade, I. P. (indicado na al. A) da factualidade indiciariamente assente), que determina: “1 - A revogação dos despachos de qualificação que constam do anexo I ao presente despacho, e que dele faz parte integrante, por não existir necessidade do reconhecimento da qualificação de entidades como Reparador e/ou Instalador para a realização das operações de Primeira Verificação e de Verificação Periódica, encontrando-se garantida a efetiva cobertura a nível nacional do controlo metrológico legal de tacógrafos e taxímetros. 2 - Por força do determinado no número anterior, ficam estas entidades inibidas de exercer a atividade a que se referem os despachos ora revogados, ficando igualmente impedidas de utilizar a designação de entidade qualificada, proceder a ações publicitárias ou emitir qualquer documento com referência àquela qualificação.” Nos termos do artigo 116º do CPTA, sobre o requerimento do interessado recai despacho de admissão ou rejeição, constituindo fundamentos de rejeição: a falta de qualquer dos requisitos indicados no nº 3 do artigo 114º que não seja suprida na sequência de notificação para o efeito, a manifesta ilegitimidade do requerente, a manifesta ilegitimidade da entidade requerida, a manifesta falta de fundamento da pretensão formulada, a manifesta desnecessidade da tutela cautelar e a manifesta ausência dos pressupostos processuais da ação principal. Na mesma linha, o artigo 590.º do CPC, epigrafado “Gestão inicial do processo”, preceitua, no nº 1, que “Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.” Decorre destes normativos que o indeferimento liminar da petição inicial/do requerimento inicial, radicando em motivos de economia processual, é uma situação excepcional, que apenas pode ter lugar “em face de razões evidentes e indiscutíveis, em termos de razoabilidade, que determinem a manifesta improcedência do pedido ou a verificação evidente de excepções dilatórias insupríveis e de conhecimento oficioso, que tornam inútil qualquer instrução e discussão posterior.” (cfr. ac. do TRL de 82020/19 de 11.05.2021, disponível para consulta em www.dgsi.pt, bem como os demais arestos citados infra). O STA, em acórdão de 17.10.2018 (Proc. n.º 646/17.8BEAVR 0121/18), decidiu que «o indeferimento liminar, por manifesta improcedência, só deve decretar-se quando tal improcedência for evidente em termos de o seguimento do respectivo processo carecer, em absoluto, de razão de ser.» O acórdão do TCAN, de 02.10.2020 (proc. nº 1049/20.2BEBRG), transitado em julgado, foi assim sumariado: “I - A rejeição liminar do requerimento inicial de uma providência cautelar com fundamento na alínea d) do nº 2 do artigo 116º do CPTA, só deve ocorrer quando seja «manifesta» a falta de fundamento da pretensão, exigindo, por um lado, que seja imediatamente detetável perante os termos em que o requerente a formula e delimita no requerimento inicial, e, por outro, que outra conclusão não possa ser alcançada numa subsequente análise, mesmo que perfunctória, própria da decisão cautelar. II - O juízo sobre a manifesta falta de fundamento da pretensão, motivador da imediata rejeição, em sede de despacho liminar, do requerimento da providência cautelar, apela, assim, a um duplo critério: o da evidência, dispensando, assim, mais averiguações ou ponderações; e o da certeza, apoiado na convicção firme e segura de que a pretensão do requerente deverá ser, à luz do direito, indeferida. Assim, a medida drástica de indeferimento liminar da petição inicial deve ser reservada para situações limite e de absoluta certeza jurídica, em que inexista qualquer possibilidade de o autor obter merecimento do pedido formulado. E, como tal, que seja remota a possibilidade de esse indeferimento liminar vir a ser revogado, em sede de recurso, pois que, assim não sendo e prosseguindo a acção, temos que o Réu se vai defender da pretensão do Autor em momento em que conhece já o “pensar” do julgador, circunstância que dificilmente não o condicionará. No caso que nos ocupa, não há evidência ou certeza da inviabilidade da acção. O artigo 120.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, diz-nos quais são os critérios de decisão dos processos cautelares, aí constando que: “1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente. 2 - Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providência (…)». Assim, um dos critérios gerais (o primeiro enunciado) de que depende a concessão de providências cautelares é o denominado perículum in mora. In casu, considerou o Tribunal a quo que, no requerimento inicial, não foram alegados factos integradores de tal periculum in mora. O mesmo é dizer que padece de défice de alegação. O periculum in mora consiste no fundado receio de que quando um processo principal chegue ao fim, e sobre ele venha a ser proferida uma decisão de mérito, essa decisão já não venha a tempo de dar uma resposta adequada às situações jurídicas envolvidas no litígio, nomeadamente porque a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão claramente inútil, ou porque essa evolução conduziu à produção de danos dificilmente reparáveis - Almeida, M. A., & Cadilha, C. A. in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 970. O ónus de alegação e a prova da existência de uma situação de facto consumado ou prejuízo de difícil reparação cabe ao requerente. No requerimento inicial, as Requerentes identificam-se e legitimam-se nos seguintes termos: - A 1ª Requerente é uma Associação de direito privado e de Empregadores constituída no dia 12 de fevereiro de 2022 e estatutos publicados no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 9, de 08.03.2022, págs. 805-813; - A 2ª Requerente é uma sociedade comercial de responsabilidade limitada, que se dedica à Instalação e Reparação de Taxímetros, devidamente certificada pelo IPQ, em 6 de janeiro de 1997, pelo certificado de reconhecimento de qualificação de reparador e instalador de taxímetros n.º 101.21.97.6.006, publicado no D.R. N.º 40, 2ª Série, de 17.02.1997 – Doc.º n.º 4 - renovado pela última vez em 26 de Março de 2020, pelo Despacho n.º 3722/2020, publicado no D.R. N.º 61, 2ª Série, - Doc.º n.º 5 -, e é uma das muitas empresas desqualificadas pelo Despacho N.º 1222/2021, de 16 de novembro aqui em crise. Acrescentam, mais adiante, que “embora se encontre a intervir apenas uma das empresas atingidas, o Despacho N.º 1222/2021, de 16 de novembro, que justifica esta ação, atinge, indistintamente, todas as demais, pelo que a presente iniciativa processual se insere no âmbito mais alargado da defesa coletiva dos seus associados pela 1ª Requerente.” Assim, a 2ª Requerente apresenta-se como uma das empresas visadas e lesadas pelo despacho suspendendo e a 1ª Requerente como uma associação de empregadores, em defesa dos interesses dos seus associados, ou seja, as demais empresas abrangidas pelo despacho suspendendo (num total de 146). No que tange ao periculum in mora, as Requerentes alegam, entre o mais, que o despacho suspendendo impede todas as empresas Instaladores e Reparadores de tacógrafos e taxímetros de continuar a exercer a sua actividade. Com o que determina, quer para a 2ª Requerente quer para as empresas representadas pela 1ª Requerente, a retirada de autorização para exercício de actividade – única actividade para que existem e foram credenciadas - e encerramento imediato, privando-as e aos seus trabalhadores de angariar qualquer receita. Acrescentam que a actuação sindicada compromete, seriamente, a continuação da existência da 1ª Requerente, ao perder todo o universo dos seus efectivos e potenciais associados. Concluem que está assim em causa a existência das Requerentes. A alegação – constante do artigo 96º do requerimento inicial - de que “… num curto espaço de tempo, mantendo-se o Despacho de desqualificação na ordem jurídica, causará a falência de mais de uma centena e meia de empresas e o despedimento de mais de um milhar de trabalhadores, com custos financeiros elevadíssimos e efeitos indiretos que atingem o próprio serviço público”, encontra reforço em documento junto (sob o nº 19), para o qual se remete, denominado “Impacto económico e social da aplicação da deliberação 1134/2017 no sector do IR de Tacógrafos e Taxímetros”, datado de 28.03.2022, da autoria da aqui 1.ª Requerente. Vem ainda invocado que “caso a providência cautelar não seja decretada, corre-se o risco sério de, mais tarde, se a decisão em crise for declarada nula ou for decretada a anulação da mesma, nada se poder fazer para reconstituir a situação atual e, assim, perderem os seus agentes das marcas de aparelhos que instalam, … as empresas representadas pela 1ª Requerente que foram proibidas de prestar serviços, nunca mais poderem ser reativadas”. E que, “ao encerrarem as portas, pois, esta é a sua única atividade, não poderem pagar as dívidas dos investimentos e empréstimos contratados e correntes, sendo mais tarde impossível atalhar os efeitos desses incumprimentos e assim, … não mais poderem contar com os trabalhadores despedidos e sem possibilidade de indemnização, porque as empresas, para além de terem sido apanhadas desprevenidas, estão, neste momento, depauperadas, podendo, ainda, os técnicos que formaram ao longo de vários anos e eram uma mais-valia, serem imediatamente procurados pelos novos operadores.” Assim delineado o preenchimento do requisito periculum in mora, não há evidência ou certeza de que sobre o mesmo recaia um juízo negativo. O exposto não permite afirmar que estamos perante processo que não reúne as condições mínimas de viabilidade ou processo que esteja inevitavelmente condenado ao insucesso. Veja-se que, em acórdão de 16.03.2006 (proc. 0143/06), decidiu este TCA Sul que “Os actos que importem inibição ou cessação do exercício de comércio ou indústria ou actividades profissionais livres constituem prejuízo de difícil reparação”, declarando que “a jurisprudência e a doutrina têm referido, como constituindo casos típicos de prejuízos de difícil reparação os actos que importem inibição ou cessação do exercício de comércio ou industria ou actividades profissionais livres, que, na verdade e em regra originam lucros cessantes de montante indeterminado (cfr. Ac. STA de 14.08.96, Rec. 40.826; Ac. TCA de 17.6.99, Rec. 3106/99; Freitas do Amaral, “Direito Administrativo”, vol. IV, p. 311; Maria F. dos Santos Maçãs, “A suspensão judicial da eficácia dos actos administrativos e a garantia constitucional da tutela judicial efectiva”, Coimbra Editora, 1966, e extensa jurisprudência ali indicada)”. E, em acórdão de 15.03.2007 (proc. nº 1863/06.1BEPRT), decidiu o TCAN que “O acto administrativo que ordena o encerramento de um estabelecimento comercial de venda a retalho num “Outlet” origina a perda de negócios e de clientela desse mesmo estabelecimento. Essa perda de clientela e de negócios são factos atendíveis para efeito do preenchimento do requisito do “periculum in mora” a que alude o art. 120º, n.º 1, al. b) do CPTA”. Aí se diz que “… a ser executado o acto administrativo em causa, resulta para a recorrente um prejuízo real de ver os seus direitos que pretende fazer valer no processo principal serem postos em causa e com isso se poderá vir a criar uma situação de facto consumado, pois, que, caso venha a ter ganho de causa não poderá jamais recuperar as oportunidades de negócio entretanto perdidas.” Assim, em termos de razoabilidade, não se pode asseverar, de forma inequívoca, que a pretensão das Requerentes nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais, mostrando-se inútil qualquer instrução ou discussão posterior. Tanto basta para concluir que o juízo do Tribunal a quo foi prematuro. Tendo a decisão recorrida incorrido em erro de julgamento ao rejeitar liminarmente o requerimento inicial, a mesma deverá ser revogada e, em consequência, determinada a baixa dos autos ao TAC de Lisboa, com vista ao prosseguimento do processo nessa instância (naturalmente, se a tal nada vier, entretanto, a obstar). * IV - DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, tendo em vista o seu prosseguimento para os ulteriores termos. * Custas a cargo do Recorrido. * Registe e notifique. *** Lisboa, 23 de Fevereiro de 2023 Ana Paula Martins Carlos Araújo Frederico Macedo Branco |