Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2126/13.1BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:11/28/2019
Relator:VITAL LOPES
Descritores:IUC;
INCIDÊNCIA;
REGISTO;
PRESUNÇÃO;
ILISÃO
Sumário:1. O IUC está legalmente configurado para funcionar em articulação com o registo automóvel.
2. O art.º 3º/1 do Código do IUC consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário.
3. Mas essa presunção é ilidível por força do art.º 73º da LGT.
4. Todavia, não basta à parte que pretenda ilidir a presunção legal opor a mera contraprova – a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos (art.º 346º do C. Civil) que torne os factos presumidos duvidosos - pelo contrário, ela tem de demonstrar, através de prova positiva e concludente, que o facto presumido não é verdadeiro.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

1 – RELATÓRIO

A Exma. Representante da Fazenda Pública, recorre da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por “B......, S.A.”, no seguimento de deferimento parcial de reclamação graciosa, contra a liquidação de IUC do mês de Março de 2013, no montante total de 9.272,06 Euros.

Recebido o recurso, a Recorrente juntou alegações, que termina com as seguintes «Conclusões:


I – Com a devida vénia, contrariamente à asserção sustentada pela douta Sentença a quo, entende esta RFP que o art.º 3º, 1 do CIUC, não estabelece uma presunção, mas antes limita- se a identificar quem são os sujeitos passivos do IUC, identificando sobre quem ele incide subjectivamente, sempre com um intuito de politica legislativa em evitar interpretações “contra legem” que façam vacilar a unidade e a segurança do sistema jurídico-fiscal.
II – Neste conspecto, o art.º 6º, nº 1 do CIUC, aponta para a matrícula ou registo do veículo como prova da propriedade, motivo pelo qual se deve entender que os registos e certificados que acompanham o veículo contêm todos os elementos necessários à identificação do sujeito passivo, sem necessidade de referência ou recurso a contractos que conferem ou transmitem direitos sobre o veículo.
III – Se assim não fosse, instalar-se-ia na fase da liquidação do imposto uma inadmissível complexidade burocrática, atentatória da segurança e certeza jurídicas, porque associada à necessidade de identificação, através das relações contratuais subjacentes, de eventuais dissonâncias em relação à situação descrita nos registos – mesmo quando essas dissonâncias resultarem de negligência dos particulares na actualização, que lhes cabe, desses mesmos registos, facto que, em última análise, tornaria esses mesmos registos públicos inúteis.
IV – Ao que acresce o elemento teleológico do quadro normativo em análise, do qual resulta manifesta a intenção legislativa do novo regime consagrado no CIUC em tributar os proprietários de veículos constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação efectiva desses veículos na via pública – transformando efectivamente uma tributação sobre a circulação numa tributação sobre a mera propriedade dos veículos.
V – Sendo que este elemento teleológico sai reforçado com as alterações ao art.º 3º do CIUC, introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, no sentido de se esclarecer em definitivo, que o tributo é configurado – e sempre o foi - para funcionar em integração com o registo.
VI – Pelo que, aplicando-se a referida norma ao caso concreto – o imposto é relativo ao ano de 2013 – e admitindo-se que o artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção ilidível, então forçoso é concluir que o funcionamento daquele artigo (i.e., a ilisão da presunção) depende igualmente do cumprimento do estatuído no artigo 19.º do CIUC, conforme se retira o seu elemento literal («para efeitos do artigo 3.º do presente código (…)».
VII – O que equivale a dizer que, em matéria de locação financeira e para efeitos da ilisão do artigo 3.º do CIUC, forçoso é que os locadores (como a Impugnante) cumpram a obrigação ínsita no artigo 19.º daquele código para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto, ou seja, que procedam ao registo – obrigatório, como decorre do disposto no nº 2 do art.º 5º do DL 54/75 de 12/02 – da situação jurídica da locação financeira e de quem é o locatário.
VIII – Ora, nenhuma prova fez o Impugnante quanto ao cumprimento desta obrigação, como aliás lhe competia, pelo que necessariamente terá de improceder a pretendida ilisão da presunção prevista do artigo 3.º aqui em causa.
IX – Ainda que assim não se entenda e sem conceder, no caso de se admitir a hipótese de se considerar que a remessa para os registos constitui uma presunção ilidível, dir-se-á que semelhante ilisão presuntiva também não é alcançável mediante exibição de documentos tais como contractos de promessa de compra e venda e de locação financeira, não só por não fazerem prova do pagamento do preço pelo comprador, como também por, nalguns casos, os contratos se mostrarem caducados antes da data de vencimento da obrigação e noutros identificarem pessoas distintas das constantes da base de dados da AT e ainda noutros, não constar a assinatura das partes e/ou não mencionarem a respetiva duração.
X – De tudo quanto supra se expôs resulta claro que os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e dos artigos 6.º e 19º do mesmo código, era a ora Impugnante, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC, devendo, em conformidade, tais liquidações manter-se na ordem jurídica.
Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação totalmente improcedente, tudo com as legais e devidas consequências.
PORÉM V. EX.AS DECIDINDO, FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA».

Não foram apresentadas contra-alegações.

A Exma. Senhora Procuradora-Geral-Adjunta emitiu mui douto parecer em que conclui pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, e nada mais obstando, cumpre decidir.

2 – DO OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação da Recorrente (cf. artigos 634.º, n.º4 e 639.º, n.º1 do CPC), a questão que importa resolver reconduz-se nuclearmente a indagar se foi feita prova bastante para ilidir a presunção de que a propriedade dos veículos ou direito equiparado pertence ao titular inscrito.

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Em 1ª instância, deixou-se consignado em sede factual:
«
A) B......, SA (antes denominado B......, SA e antes T......- F......., SA) sociedade anónima, doravante impugnante, celebrou contratos de locação operacional de veículos automóveis (fls da RG);
B) Nesses contratos o cliente, locatário, durante o tempo que é estipulado, mantém o gozo temporário do veículo – que permanece propriedade da impugnante mediante remuneração sob a forma de rendas (fls da RG);
C) Os veículos automóveis identificados na listagem junta aos autos de reclamação graciosa (RG) foram dados em locação financeira, pela impugnante, aos clientes ali também identificados;
D) A locação encontrava-se em vigor no mês relevante do ano - Maio de 2013 - em que se venceu a obrigação de pagar o IUC, associado aos respectivos veículo (fls da RG);
E) A propriedade pertencia à impugnante, enquanto entidade locadora, não tendo, contudo, a mesma, usufruído da utilização dos veículos, que por força do contrato foram entregues aos locatários, no período considerado em D);
F) A AT procedeu à liquidação do IUC respeitante ao mês de Maio de 2013, respeitante a 142 viaturas devidamente identificados a fls 1419 a 1504 da RG que se dão por reproduzidas;
G) A impugnante deduziu reclamação graciosa vindo a ser dada razão à impugnante quanto a 60 das viaturas sobre as quais havia incidido o imposto (IUC);
H) Em 31-10-2013 a reclamação graciosa foi deferida parcialmente, tendo mantido as liquidações oficiosas do IUC correspondente às seguintes notas de cobrança:
“(texto integral no original; imagem)”

I) O despacho de deferimento parcial da reclamação graciosa tem os fundamentos constantes do doc nº 4, da pi, que se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais e onde consta, nomeadamente:
(…).








“(texto integral no original; imagem)”

“(texto integral no original; imagem)”


(…).
J) A impugnante foi notificada do despacho identificado em H) a 06-11-2013 (facto aceite por confissão);
K) A impugnante pagou o montante de €21.783,97.
*
A convicção do tribunal formou-se no teor dos documentos identificados em cada ponto dos factos provados, juntos à reclamação graciosa e na posição das partes não impugnada.
*
Não existem outros factos provados ou não provados com interesse para a decisão da causa.».
4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Como ilustram os autos, a impugnação judicial foi apresentada com vista a sindicar a liquidação de IUC do mês de Maio de 2013, respeitante aos veículos automóveis devidamente identificados na douta P.I. e no ponto H) do probatório.

Como fundamento da impugnação alegava a Impugnante, em síntese, que apesar de constar como proprietário inscrito dos veículos, estes estavam e estiveram durante o mês de Maio de 2013 entregues em regime de locação financeira e em poder dos locatários, devidamente identificados nos autos.

Como assim, são estes os sujeitos passivos do imposto e os únicos responsáveis pelo seu pagamento.

A sentença, por seu lado, concluiu não haver fundamento legal para os actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios relativamente aos veículos e período identificados nos autos na medida em que, à data da exigibilidade do imposto, se encontravam cedidos aos respectivos locatários ao abrigo de contratos de locação financeira.

Com este modo de ver se não conforma a Recorrente, no entendimento – concordante com a fundamentação do acto impugnado – de que em matéria de locação financeira e para efeitos de ilisão do art.º3.º do Código do IUC forçoso é que os locadores cumpram a obrigação do art.º19.º do mesmo Código para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto, ou seja, que procedam ao registo da situação jurídica de locação financeira e de quem é o locatário, o que se não verificou. Vejamos.

De acordo com o disposto no art.º3.º do Código do Imposto único de Circulação, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho,

«1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação».

Na jurisprudência, nomeadamente do TCA Norte, questão idêntica tem sido decidida unanimemente no sentido preconizado na sentença recorrida, com fundamentos a que aderimos sem reservas. Assim por semelhança ao caso em apreço e por economia de meios, visando outrossim a interpretação e aplicação uniforme do direito (cf. artigo 8.º n.º 3 do Código Civil), acolhemos a argumentação jurídica aduzida no acórdão do TCA Norte, de 01/06/2017 proferido no procº2502/14.2BEPRT, que fundamentou nos seguintes termos:
«O Imposto Único de Circulação (I.U.C.) deve configurar-se como um tributo de natureza periódica e anual, sendo os sujeitos passivos do I.U.C., em primeiro lugar, os proprietários dos veículos, mais podendo ser ainda equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação (arts. 3º e 4º do Código do Imposto Único de Circulação, aprovado pela Lei nº 22-A/2007, de 29-06).
Por sua vez, o momento da exigibilidade do I.U.C. consiste no primeiro dia do ano que se inicia a cada aniversário cumprido sobre a data da matrícula, tal como resulta do disposto no art. 6º nº 3, conjugado com o art. 4º nº 2, ambos do C.I.U.C. (A. Brigas Afonso e Manuel T. Fernandes, Imposto Sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Códigos anotados, Coimbra Editora, 2009, pág.187 e seg.).
A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (art. 5º nºs 1 e 2 do D.L. nº 54/75, de 12-02), sendo que a obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador - sujeito activo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo (art. 8º-B nº 1 do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do art. 29º do D.L. nº 54/75, de 12-02, conjugado com o art. 5º nº 1 al. a), deste último diploma).
No entanto, o Regulamento do Registo Automóvel (D.L. nº 55/75, de 12-02) contém um regime especial, em vigor desde 2008, para entidades que, em virtude da sua actividade comercial, procedam com regularidade à transmissão da propriedade de veículos automóveis e de acordo com o aludido regime, que se encontra estabelecido no art. 25º nº 1 al. d), do D.L. nº 55/75, de 12-02 (versão resultante do D.L. nº 20/2008, de 31-01), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.
Também, desde 2001 que a obrigação de declarar a venda por parte do vendedor à autoridade competente para a matrícula se encontra expressamente estabelecida no Código da Estrada (art. 118º nº 4, do Código da Estrada, aprovado pelo D.L. nº 114/94, de 03-05).
O I.U.C. está legalmente configurado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere, desde logo, do art. 3º nº 1 do C.I.U.C., norma onde se estabelece que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, mais acrescentando que se consideram como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
O examinado art. 3º nº 1 do C.I.U.C., consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível, por força do art. 73º da L.G.T..
Nesta situação, a ilisão da presunção obedece à regra constante do art. 347º do C. Civil, nos termos do qual a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto. O que significa que não basta à parte contrária opor a mera contraprova - a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos (art. 346º do C. Civil) que torne os factos presumidos duvidosos, ou seja, e pelo contrário, ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são reais, impondo-se recordar que as presunções legais são provas legais ou vinculadas, que não dependem da livre apreciação do Tribunal, pois que a sua força probatória, legalmente tabelada, proporciona ao juiz uma verdade formal (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág.215 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 500 e seg.).
Assim, no caso dos autos, o que a sociedade recorrida tinha de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre do art. 3º nº 1 do C.I.U.C., é que ela não era proprietária do veículo em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas....”
Não se afastando desta linha de raciocínio, a Mmª juiz a quo julgou ilidida a presunção legal com base na prova dos factos vertidos nos pontos A) a E) da matéria assente.

Essa matéria factual, que a Recorrente não impugna eficazmente, não demonstra que a impugnante não era à data da exigibilidade do imposto a proprietária dos veículos antes evidencia que o registo dos veículos automóveis estava ou continuava na titularidade da impugnante, mas aqueles estavam em poder de locatários (clientes da impugnante), a quem estavam entregues em regime de locação financeira titulada por contrato.

Ora, sendo a situação jurídica de locação financeira equiparada à de propriedade para efeitos de incidência subjectiva do imposto (art.º3.º, n.ºs 1 e 2 do Código do IUC), julgamos que a prova, com êxito, daquela situação jurídica e da entrega efectiva dos veículos aos locatários, em cujo poder se encontravam à data da exigibilidade do imposto (art.º4.º do Código do IUC), é suficiente para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC sobre o proprietário inscrito, em que se suportaram as liquidações tributárias cuja anulação é peticionada nos autos pela impugnante.

Assim, a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento ao concluir que as liquidações impugnadas, bem como a decisão de reclamação graciosa que as manteve, enfermam de vício de lei por erro nos pressupostos, sendo de manter na ordem jurídica.

O recurso não merece provimento.

5 - DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Condena-se a Recorrente em custas.

Lisboa, 28 de Novembro de 2019


Vital Lopes



Anabela Russo



Tânia Meireles da Cunha