Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 319/08.2BELRS |
| Secção: | CT |
| Data do Acordão: | 06/19/2024 |
| Relator: | RUI ANTÓNIO DOS SANTOS FERREIRA |
| Descritores: | NULIDADES DE ACÓRDÃO |
| Sumário: | I– “Questão” (questão-de-direito ou questão-de-facto) que o tribunal deva conhecer ou esteja proibido de conhecer, para efeitos de nulidade da sentença (artigo 615º do CPC), é o problema suscitado nos autos ou de conhecimento oficioso, e não os factos subjacentes a esse problema nem os argumentos esgrimidos na causa de pedir, a favor ou contra a procedência do pedido. II– O parecer do Ministério Público só está sujeito a notificação às partes para exercício do direito a contraditório, quando nele seja suscitada questão nova que obste ao conhecimento do pedido ou sobre a qual as partes ainda não tenham tido oportunidade se se pronunciarem; III- A omissão de contraditório relativo ao conteúdo de parecer do Ministério Público, no qual não foi suscitada qualquer questão nova, não constitui nulidade processual com reflexo anulatório da decisão; a omissão de pronúncia sobre a especifica posição manifestada no parecer acima referido não constitui nulidade da decisão referido no artigo 615º, nº 1, al. d), do CPC; IV– Sem prejuízo de eventual erro de julgamento, a modificação da matéria de facto, nos termos do artigo 662º do CPC, e a pronúncia sobre factos suscitados pelas partes e submetidas à apreciação do tribunal de primeira instância, mas expressamente desvalorizados por este, não constituem nulidades do acórdão, proferido no reexame em segunda instância, por excesso de pronúncia. |
| Votação: | Unanimidade |
| Indicações Eventuais: | Subsecção Tributária Comum |
| Aditamento: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Contencioso Tributário Comum do Tribunal Central Administrativo Sul
* Notificada, a Requerida não apresentou resposta.* Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.* Proferido acórdão, pode a parte vencida arguir “nulidades da sentença”, nos termos dos artigos 615º e 666º do CPC. Conhecendo dos vícios imputados ao acórdão: Sintetizando, estão em causa os seguintes vícios: a. Omissão de qualquer referência ao entendimento manifestado no parecer do Ministério Público (alegações 2 a 13); b. Excesso de pronúncia, ao interpretar o pedido e a causa de pedir do recurso no sentido de a Recorrente imputa à sentença recorrida o vicio de erro de julgamento, o acórdão comete (alegações 14 a 12, retificada oficiosamente para 19); c. Nulidade processual por omissão de notificação do conteúdo do Parecer do Ministério Público (alegações 13 a 16, retificadas oficiosamente para 20 até 23); d. Omissão de pronúncia quanto à argumentação invocada no Parecer do Ministério Público relativa à imodificabilidade da matéria de facto (alegações 18 a 20, retificada oficiosamente para 24 até 26); e. Excesso de pronúncia sobre matéria de facto (relatório elaborado por consultor contratado pela impugnante para esse efeito) que o tribunal de primeira instância julgara desprovido de valor probatório (alegações 21 a 39, oficiosamente retificadas para 27 a 45). Vejamos: De acordo com o disposto nos artigos 615º, nº 1, al. d), e 666º, nº 1, do Código de Processo Civil (CPC), é nula a decisão judicial (sentença ou acórdão) o quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar». Este vício anulatório designa-se “omissão de pronúncia”. Identicamente, a decisão judicial é nula quando «o juiz [...] conheça de questões de que não podia tomar conhecimento» (artigos 615º, nº 1, al. d), e 666º, nº 1, do CPC). Este vício da decisão designa-se “excesso de pronúncia”. Não é qualquer omissão de pronúncia que conduz à nulidade da sentença; essa omissão só será, para estes efeitos, relevante quando se verifique a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias quanto às quais a lei imponha que sejam conhecidas e sobre as quais o juiz deva tomar posição expressa. Essas questões são (apenas) aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (cfr. artigo 608.º, nº 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. Desta forma, a omissão de pronúncia é um vício gerador de nulidade da decisão judicial que ocorre quando o tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer motivo ou argumento aduzido pelas partes. Inversamente, o excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal conhece de questões que não foram colocadas pelas partes e não são de conhecimento oficioso. Trata-se de vício anulatório da sentença ou do acórdão que resulta da inobservância, pelo tribunal, do disposto no artigo 608.º, nº 2, e no artigo 609.º, nº 1, do CPC, segundo os quais o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, e não pode a sentença condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir. Quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas partes, mas que são de conhecimento oficioso e prejudicam todas as demais questões colocadas, não está a atuar de modo a cometer uma nulidade por excesso de pronúncia. Para este efeito, “questões” sobre as quais a pronúncia é obrigatória, sob pena de a sua omissão consistir num vício anulatório da decisão, ou é proibida, sob pena de nulidade por excesso de pronúncia, são os problemas a resolver, e não os motivos ou argumentos esgrimidos acerca desses problemas; a “questão” refere-se ao concreto objeto que é submetido à cognição do tribunal, correspondendo aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir (ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir) e não aos motivos ou às razões alegadas. Não padece, por isso, de nulidade por omissão de pronúncia a decisão na qual o tribunal não responda, um a um, a todos os argumentos das partes ou que não aprecie questões com conhecimento prejudicado pela solução dada a anterior questão. Importa, agora, subsumir a situação concreta àquilo que acima ficou dito.
* B. Do excesso de pronúncia, cometido na parte em que o acórdão interpreta o pedido e a causa de pedir do recurso no sentido de que a Recorrente imputa à sentença recorrida o vicio de erro de julgamento (alegações 14 a 12, retificadas para 14 até 19):A Requerente alega o seguinte: «14. E também se constata que o próprio acórdão reconhece insuficiências ao recurso da Recorrente, como se reproduz (fls. 29 do Acórdão): Ora, lidas as conclusões da alegação do recurso, verifica-se que o recurso não imputa claramente qualquer vício à sentença, antes parecendo pretender a simples reapreciação da questão suscitada em primeira instância relativa à “Falta de verificação dos pressupostos para recurso à determinação da matéria colectável através de métodos indirectos e excesso de quantificação”. Porém, interpretando o pedido e a causa de pedir, este Tribunal considera que o Recorrente imputa à sentença o vício de erro de julgamento. Assim, temos por seguro que este Tribunal foi chamado a decidir o seguinte: a) - saber se o Tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto; b) - saber se o Tribunal a quo errou no julgamento da questão relativa aos pressupostos da aplicação de métodos indiretos; c) – (subsidiariamente) saber se o Tribunal a quo errou no julgamento da questão relativa ao excesso de tributação. (negrito e sublinhados nossos) 15. Ou seja, com todo o respeito, parece-nos perfeitamente estabelecido que a decisão agora tomada sofre de deficiências graves, que a comprometem de uma forma decisiva e que passamos a expor: 16. Começando pelos termos em que o recurso foi admitido, não nos parece que o Tribunal possa substituir-se às partes da forma em que se concretizou aquilo a que qualificou como de interpretação do pedido, mas que, na nossa opinião, supriu as deficiências que antes expressamente foram reconhecidas, de uma forma que excede em muito a sua esfera de actuação, até por se tratar do pedido, matéria na absoluta disponibilidade do Recorrente, onde qualquer intervenção correctiva deverá ser exercida com a máxima restrição. 17. Numa palavra, não nos parece que o Tribunal possa substituir-se ao Recorrente, nem oficiosamente suprir deficiências do que é ou não é pedido em sede de recurso. 18. Diz-nos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 27-09-2018 (Proc. 2611/12.2TBSTS.L1.S1 disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b 980256b5f003fa814/9cd6ef26b3a23d8f8025831500549377?OpenDocument) o seguinte: a. I - Como decorre do art. 640.º do CPC o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objecto do recurso. b. II - Também não cumpre os seus ónus quando se limita a discorrer genericamente sobre o teor da prova produzida, sem indicar os concretos meios probatórios que, sobre cada um dos pontos impugnados, impunham decisão diversa da recorrida, devendo ainda especificar a decisão concreta a proferir sobre cada um dos diversos pontos da matéria de facto impugnados. c. III - Relativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto não há lugar ao despacho de aperfeiçoamento das respectivas alegações uma vez que o art. 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do art. 639.º”, ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto. 12. Trata-se, portanto, de uma questão fundamental que, com todo o respeito, inquina totalmente a decisão, uma vez que o Tribunal excedeu os seus poderes, objectivamente “aperfeiçoando” (à falta de melhor expressão) o pedido formulado pelo Recorrente, o que não pode fazer e que constitui causa de nulidade por excedido os seus poderes, nos termos do artigo nos termos do artigo 125.º do CPPT e 615.º do CPC, n.º 1, alínea d) e que, formalmente, se alega.». É manifesto o erro material cometido na numeração acima indicada. Assim, nos termos dos artigos 615º e 66º do CPC, o Tribunal retifica oficiosamente a numeração das alegações de modo a que a última, com o nº 12, passe a ter o nº 19. Está em causa a alegação de que o Tribunal “substituiu” a Recorrente na medida em que o acórdão disse pretender interpretar a causa de pedir e o pedido e concluiu que vinha invocado o vício de erro de julgamento quanto à matéria de facto (e, também, quanto aos pressupostos da avaliação indireta e quanto ao invocado excesso de tributação) e, com isso, o tribunal excedeu os seus poderes de cognição. Da mera leitura das alegações de recurso resulta que a Recorrente formulou claramente o seu pedido: “ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, tudo o mais com as consequências legais”. Além disso, como se sabe o objeto do recurso é delimitado pelo conteúdo das conclusões, onde deve constar a síntese das razões jurídicas desenvolvidas nas alegações, que constituem fundamentos do pedido (artigos 635º, nº4, e 639º do CPC). Ora, como se sabe, a causa de pedir traduz-se em factos ou situações jurídicas cuja desconsideração constitui algum tipo de vício, imputado ao ato impugnado, que costuma ser qualificado expressamente pelo autor da petição. No caso dos autos, nas conclusões e nas alegações antecedentes não foi efetuada a qualificação jurídica dos vícios imputados à decisão recorrida, designamente, erro de julgamento ou nulidade da decisão. Ora, sabe-se que, sendo o Estado português um Estado-de-Direito (artigo 2º da CRP), vigora o princípio político da “separação de poderes” (artigos 110º e 111º da CRP), reservando a função judicial para os Tribunais, que são os órgãos de soberania incumbidos da administração da justiça em nome do povo e apenas se submetem à lei (Direito), devendo primar pela independência e imparcialidade (artigos 202º a 205º e 266º da CRP). Assim, o tribunal não pode resolver conflitos pressupostos em determinada ação judicial sem que tal resolução lhe seja solicitada por alguma das partes (artigos 3º, nº 1, 552º, 637º e 639 º do CPC), pelo que o juiz não deve conhecer questões que não tenham sido suscitadas nem sejam de conhecimento oficioso e não pode deixar de conhecer questões que tenham suscitadas ou sejam de conhecimento oficioso (artigo 615º do CPC). Portanto, em caso algum pode o juiz “substituir” alguma das partes no seu dever de iniciativa e de alegação dos factos essenciais subjacentes à causa de pedir. O que ficou dito não conflitua com a independência do tribunal em relação às qualificações jurídicas efetuadas (ou omitidas) pelas partes, antes impõe a obrigação de aquele fazer a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5º, nº 3, do CPC), conforme aforismo latino “iura novit curia”, segundo o qual o tribunal conhece a lei, não precisa de ser informado dela e ele goza da liberdade (vinculada) de proceder às qualificações jurídicas que entender fazer das situações descritas nos autos. Não se trata de substituir a parte no seu ónus de alegar, mas, somente, o exercício do direito de qualificar os factos descritos nas alegações apresentadas, para as quais se procurou remeter pertinentemente. No caso, como se disse, embora a Recorrente não tenha efetuado a qualificação dos vícios imputados à sentença, o Tribunal ad quem não excedeu os seus poderes de cognição ao fazê-lo (qualificando todos os vícios como “erro de julgamento” ou erro sobre os pressupostos), antes exerceu um poder próprio que lhe é pacificamente reconhecido e fê-lo com indiscutível acerto. O exercício desse poder funcional pareceu tão óbvio que, por respeito à inteligência e aos conhecimentos dos normais destinatários, o Tribunal considerou sensato não fazer maiores considerações sobre essa questão marginal. Respeito que se mantém; pelo que, o Tribunal decide não reconhecer a invocada nulidade do acórdão. * C. Da nulidade processual por omissão de notificação do conteúdo do Parecer do Ministério Público (alegações 13 a 16, retificadas oficiosamente para 20 até 23);A Requerente alega, ainda, que: «13. Por outro lado, na nossa opinião, uma vez que no parecer do Ministério Público se considera que o recurso é juridicamente insusceptível de ter o resultado pretendido pela Impugnante, por carecer dos requisitos mínimos para o efeito, este deveria ter sido notificado às partes para que estas se pudessem pronunciar. 14. Diz-nos o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (Processo 00343/14.6BEPRT-A datado de 25-02-2016) o seguinte: Decorre do n.º 1 do art.º 195.º do CPC que a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. III. A notificação do parecer emitido pelo Ministério Público, é determinante para se cumprir o princípio do contraditório, mas somente é exigível quando o mesmo se traduza num qualquer agravamento da posição do Recorrente ou quando o parecer, sendo desfavorável a uma das partes, verse sobre matéria relativamente à qual, o recorrente ainda não houvesse tido oportunidade de se pronunciar. 15. O que não teve aqui lugar pelo que, na nossa opinião, se verifica uma nulidade uma vez que as partes nunca tiveram conhecimento do seu teor em tempo, sendo certo que o seu conteúdo é uma novidade no processo e claramente desfavorável para o Recorrente. 16. Pelo que formalmente se alega uma nulidade no procedimento por omissão de um acto devido, nos termos do artigo 195.º do CPC, devendo proceder-se à notificação devida às partes e anular todo o processado subsequente.». Está em causa a preterição de formalidade legal por omissão de notificação, às partes, do teor do parecer do Ministério Público. A Requerente considera que o facto de o Ministério Público junto deste Tribunal ter considerado que o recurso é juridicamente insuscetível de ter o resultado pretendido pela Impugnante, por carecer dos requisitos mínimos para o efeito, este deveria ter sido notificado às partes para que estas se pudessem pronunciar. Ou seja, como referido pela própria Requerente, está em causa uma nulidade processual, eventualmente enquadrável no disposto no artigo 195º do CPC, e não uma nulidade própria da decisão judicial, de entre as previstas no artigo 615º do mesmo diploma. Além disso, afigura-se ser incontroverso que não estamos perante uma situação em que tenha sido omitida a prática de um ato ou formalidade que a lei prescreva e a cuja falta atribua o efeito de nulidade; pelo que não se trata de uma nulidade processual. Na verdade, a lei não prescreve a obrigação de notificar às partes o teor do concreto parecer do Ministério Público. Como reconhece a própria Requerente, tal notificação somente é exigível quando o parecer se traduza num qualquer agravamento da posição do Recorrente ou quando o parecer, sendo desfavorável a uma das partes, verse sobre matéria relativamente à qual, o recorrente ainda não houvesse tido oportunidade de se pronunciar. De facto, o artigo 121º, nº 2, do CPPT, aplicável ao caso, dispõe que o princípio do contraditório (artigo 3º do CPC) impõe que, se o Ministério Público suscitar questão que obste ao conhecimento do pedido, serão ouvidas as partes. No caso, ao dizer que considera que o recurso é juridicamente insuscetível de ter o resultado pretendido pela Impugnante (ou seja, o provimento do recurso), por carecer dos requisitos mínimos para o efeito, o Ministério Público não suscitou qualquer “questão” que obste ao conhecimento do pedido. Além disso, as partes já se tinham pronunciado sobre todas as questões em causa nos autos. O Ministério Público limitou-se, também no segmento trazido à colação pela Requerente, a emitir parecer no sentido da improcedência do pedido recursivo e, portanto, no mesmo sentido pretendido pela Recorrida e agora Requerente e com os fundamentos contantes da sentença. Portanto, abreviando outras explicações, por desnecessárias, o Tribunal nega provimento ao fundamento agora sob análise. * D. Da omissão de pronúncia quanto à argumentação invocada no Parecer do Ministério Público relativa à imodificabilidade da matéria de facto (alegações 17 a 20, retificadas oficiosamente para 24 até 26):Nas suas alegações, a Requerente refere o seguinte: «17. Se assim não for entendido, o que não se concede, constata-se que esta posição assumida pelo MP, já reproduzida, em que de uma forma fundamentada se explica que dos termos em que o recurso foi formulado resulta uma impossibilidade processual de reapreciação pelo tribunal superior tudo o que diz respeito a matéria de facto, não foi examinada. 18. O que, de facto, efectivamente aconteceu foi que no acórdão até se assumiu uma posição perfeitamente oposta a esta, sem qualquer explicação, nem sequer uma simples referência e este entendimento. 19. Por isso, na nossa opinião, verifica-se uma omissão de pronúncia por parte do decisor que estava obrigado a examinar a argumentação aduzida pelo MP e a fundamentar um entendimento eventualmente diverso o que não foi, nem de longe, concretizado. 20. O que, na nossa opinião, constitui uma nulidade processual, nos termos do artigo 125.º do CPPT e 615.º do CPC, n.º 1, alínea d) e que, formalmente, se alega.» Ou seja; a Requerente considera que o Acórdão deveria conter a fundamentação da decisão divergente do parecer do Ministério Público, concretamente, quanto à imodificabilidade da matéria de facto, pelo que a omissão dessa fundamentação se traduz numa “nulidade da sentença” abrangida pelos artigos 125º do CPPT e 615, nº 1, al. d), do CPC. Como se sabe, as nulidades do processo (nulidades processuais) distinguem-se das nulidades da decisão (despacho decisório, sentença, acórdão). As nulidades processuais são desvios entre o formalismo processual efetivamente prosseguido e o formalismo processual prescrito na lei, exigindo-se ainda que esta comine expressamente a sanção de nulidade ou que lhe faça corresponder uma invalidação consequente de atos processuais. Diversamente, as nulidades da sentença e outras decisões judiciais são apenas as expressamente previstas no artigo 615º do CPC (e, no caso de impugnação judicial, no artigo 125º do CPPT). Crê-se, se bem se percebe a intenção da Requerente, que, no caso concreto, a Requerente pretende invocar a nulidade da sentença por “omissão de pronúncia” sobre questão que o Tribunal estava obrigado a apreciar. Como acima já se disse, o referido parecer contém apenas uma mera opinião, do Ministério Público junto deste Tribunal, relativa à mesma questão já apreciada na sentença recorrida sem inovar relativamente á posição das partes, designadamente sem suscitar qualquer outra ilegalidade sobre a qual as partes ainda não tivessem tido oportunidade de se manifestarem. Além disso, como se sabe, o parecer do Ministério Público não tem caráter vinculativo, no sentido que não vincula os juízes ao sentido da decisão aí proposta, podendo estes decidir como melhor entenderem, de acordo com a sua convicção fundamentada. Portanto, uma vez que no parecer do MP não foi suscitada qualquer inovação, não havia lugar à notificação das partes para exercerem o direito ao contraditório nem havia obrigação de fundamentar a divergência da decisão em relação, especificamente, à proposta do DM MP. Sendo assim, não existe qualquer obrigação de o acórdão fazer outra referência à posição do Ministério Público, para além da referência genérica que consta na parte inicial, designada “I- Relatório”, onde se mencionou expressamente que o DM MP emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. Acresce que o Acórdão sob análise fundamentou e motivou a decisão de modificar a matéria de facto, identificando os respetivos meios de prova, todos documentais, e as razões para o julgamento dos factos não provados. O que equivale a dizer que o Tribunal também não reconhece a invocada nulidade da decisão. * Do excesso de pronúncia sobre matéria de facto (relatório elaborado por consultor contratado pela impugnante para esse efeito) que o tribunal de primeira instância julgara desprovido de valor probatório (alegações 21 a 39, retificadas oficiosamente para 27 até 45).A Requerente termina com as seguintes alegações: «21 - Por outro, e, porventura ainda mais importante, verifica-se que na presente decisão se procedeu à análise e até se concluiu pela prevalência dos factos indicados no documento “Relatório de Peritagem” e no depoimento do seu autor, o que, na nossa opinião e na do Ministério Público, o tribunal estava processualmente impedido de fazer. 22. As razões do M.P. constam do seu parecer já indicado e parcialmente citado pelo que se dão aqui como reproduzidas e que acompanhamos. 23. Mas, perece-nos de sublinhar que se em primeira instância tudo o que diz respeito ao documento referido, incluindo o depoimento do seu autor não foi globalmente considerado como prova por carecer de requisitos para o efeito (cfr. Ponto 6 onde se reproduz a sentença nesta parte). 24. Ora, no presente acórdão, acrescentou-se à matéria de facto o próprio relatório, nos termos em que adiante se reproduz: Assim, com base nos elementos trazidos aos autos, este Tribunal acrescenta os seguintes factos provados: (…) Q) Para comprovar a existência de erros na quantificação e consequente excesso de tributação, o impugnante apresentou um estudo datado de maio de 2022, denominado "relatório de peritagem-critérios de cálculo dos valores corrigidos com recurso a métodos indirectos", elaborado pela Consultora J...-Unipessoal, Lda., pertencente a JJ..., que se baseou nos mesmos elementos quantitativos usados no relatório de inspeção e no seu anexo VIII – fls. 596-612 do SITAF e pág. 21 da sentença recorrida; R) Com base nos mesmos elementos constante do anexo VIII do relatório de inspeção é possível constatar que os coeficientes de ponderação nos produtos vendidos, relativos aos produtos “pata negra”, “gambas a la aguillo” e “café”, foram, respetivamente, de 4,26%, 4,67% e 3,34% - pág. 8 do estudo efetuado pelo Consultor contratado pela impugnante, referido de pág. 38 a 41 das alegações do recurso, não impugnado; (…) 25. Em primeiro lugar, com todo o respeito, parece-nos evidente que um relatório pericial não é um facto. Pode incluir factos, análises desses factos, conclusões e tudo o resto, mas não pode ser dado na sua globalidade como facto provado e ser admitido nessa qualidade. 26. E, por outro lado, é pacífico que em segunda instância se procede à revisão da decisão tomada pelo tribunal inferior. 27. E, relembre-se, que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal "ad quem", ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr. artº.639, do C.P.Civil "ex vi" do artº.281, do C.P.P.T.). 28. No caso concreto, validou-se agora como prova o “Relatório de Peritagem” e o depoimento do seu autor, que nem sequer foram valorados como meio de prova em primeira instância por ter logo ali sido afastados na sua globalidade por se ter considerados inidóneos para o efeito. 29. Ou seja, não se verificou no tribunal recorrido qualquer valorização, exame, o que quer que seja, sobre a alegada factualidade lá incluída, foi logo rejeitada por não preencher os pressupostos para esse efeito no tribunal recorrido. 30. Diz-nos a doutrina que: O recurso jurisdicional é o meio processual adequado para a impugnação de decisões judiciais, no âmbito do qual é reexaminada a decisão proferida e os seus fundamentos. Neste sentido, dispõe-se no n.º 1 do art. 627.º do CPC, aplicável ao contencioso tributário, ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT, que “as decisões judicias podem ser impugnadas por meio de recursos” Uma vez que se pretende é o reexame das decisões proferidas pelos tribunais, e que o recurso jurisdicional é o meio próprio para o efeito, não é adequado para proferir decisões sobre “questão nova”, ou seja matéria não previamente submetida ao exame do tribunal de que se recorre, salvo questões novas de conhecimento oficioso e não decididas com trânsito em julgado que podem ser conhecidas no recurso. O reexame da decisão pressupõe, em regra, que o tribunal recorrido já tenha apreciado as questões objecto de recurso. Por essa razão, o recorrente deve indicar quais os vícios que imputa à sentença recorrida de modo a obter a sua anulação ou alteração (…) in “Recursos no Contencioso Tributário, Cristina Flora e Margarida Reis, pag. 16/17” 31. A jurisprudência, aponta-nos o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul produzido no processo n.º 583/09.0BELRA que: I – Os art.ºs 640.º e 662.º do CPC permitem a reapreciação e a modificabilidade da decisão de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância apenas nas situações em que o tribunal recorrido apresente um julgamento errado, porque fixou factos de forma contrária às regras da prova, ou os fixou de forma inexacta, ou porque os valorou erroneamente; II - A impugnação da matéria de facto e a modificabilidade da mesma pelo tribunal superior não visa alterar a decisão de facto fundada na prova documental ou testemunhal, apenas porque a mesma é susceptível de produzir convicções diferentes, podendo ser diversa a tomada no tribunal superior daquela que teve o tribunal da 1.ª instância. Diferentemente, este tribunal superior só pode alterar a matéria de facto porque as provas produzidas na 1.ª instância impunham, decisiva e forçosamente, outra decisão diversa da aí tomada; III - Aqui vale o princípio da livre apreciação da prova, remetendo-se para uma íntima convicção do julgador, formada no confronto dos vários meios de prova, que uma vez exteriorizada através de uma fundamentação coerente, razoável, plausível, que obedeça às regras da lógica, da ciência e da experiência comum, torna-se uma convicção inatacável, salvo para os casos em que a prova deva ser feita através de certos meios de prova, que apresentem uma determinada força probatória; 32. O problema é que na presente decisão não se verifica qualquer tipo de reexame. 33. Nem igualmente de julgamento em substituição, uma vez que nada é referido a esse respeito. 34. Seria assim se o tribunal superior se tivesse debruçado sobre as razões pelas quais foram rejeitados o “Relatório de Peritagem” e o testemunho, no mesmo sentido, do seu autor, como meio de prova e, eventualmente, afastadas por qualquer razão. 35. Mas sem esse passo prévio, condição sine qua non para o efeito, não pode apreciá-las, muito menos validar a sua argumentação e torna-las base do sentido da sua decisão. 36. E se o Tribunal superior poderia discordar da não consideração do documento como fonte de matéria probatória e decidir nessa direcção, deveria, em consequência, mandar baixar os autos para que o tribunal inferior se pronunciasse atendendo a essa consideração. 37. Mas para o fazer, essa hipótese teria de estar incluída no objecto do recurso da Impugnante, o que não se verifica pelo que, na nossa opinião, essa operação é, neste momento, processualmente impossível. 38. Por isso, pensamos, temos de concluir que o tribunal, ao pronunciar-se sobre o conteúdo do “Relatório Pericial” e o testemunho do seu autor, o fez sobre uma matéria que não poderia conhecer por se tratar de uma questão nova, por não ter sido objecto de qualquer análise em primeira instância, por ter sido ali expressamente excluído da matéria de facto. 39. Sendo o tribunal superior um tribunal de reexame, como se viu, a pronuncia sobre a matéria já identificada constitui uma causa de nulidade da presente decisão, conforme os artigos 125.º do CPPT e 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, por excesso de pronúncia.». A Requerente continua a defender que o Tribunal estava impedido de se pronunciar sobre a modificabilidade da matéria de facto. Porém, o Tribunal fundou-se no disposto no artigo 662º, cujo nº 1 refere expressamente que “A Relação [TCA] deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou documento superveniente impuserem decisão diversa”. O Tribunal limitou-se a dizer, com base na prova documental já produzida nos autos, que o impugnante apresentou um estudo datado de maio de 2022, denominado "relatório de peritagem-critérios de cálculo dos valores corrigidos com recurso a métodos indirectos", elaborado pela Consultora J...-Unipessoal, Lda., pertencente a JJ..., e que no anexo VIII do relatório de inspeção consta que os coeficientes de ponderação nos produtos vendidos, relativos aos produtos “pata negra”, “gambas a la aguillo” e “café”, foram, respetivamente, de 4,26%, 4,67% e 3,34%. Note-se que a Requerente não alega a falsidade de tais factos ou o erro quanto aos respetivos meios de prova. A Requerente limita-se a alegar que a apresentação ou a existência do estudo, designado “relatório de peritagem” não é um “facto”, no sentido do direito probatório. Como se sabe, as provas têm por função fazer a demonstração da realidade dos factos (artigo 341º do Código Civil ou CC). Para além de estados, os “factos” são essencialmente (todas) as ocorrências ou acontecimentos concretos da vida real, embora só alguns factos sejam relevantes para o caso concreto, pelo que só esses devem ser levados ao probatório (ainda com a exceção dos factos notórios ou que o tribunal conheça por força das suas funções e que documente nos autos). Ora, não sofre discussão que a invocada existência e apresentação de um estudo é um “facto da vida real”, pelo que, sendo relevante para decisão segundo alguma solução plausível, deve ser levado ao probatório, como provado ou como não provado, conforme os meios de prova apresentados. Portanto, na seleção dos factos assentes e na seleção dos factos controvertidos, o juiz deve ter em conta todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não apenas os factos que relevam para a solução da questão de direito que tem como aplicável. Pelo que, o juiz não pode decidir de acordo apenas com os factos assentes e que tem por suficientes para a solução jurídica que considera correta, desprezando factos ainda controvertidos e relevantes para uma solução jurídica diversa, mais ou menos plausível, vedando a apreciação alternativa de qualquer outra solução. No caso, o acórdão considerou que a sentença omitiu alguns factos relevantes e que os valorou erradamente. Tal decisão da segunda instância não traduz omissão de ou excesso de pronúncia, mas o exercício de um poder dever imposto pela lei e pela justiça. A Requerente alega que o Tribunal não podia pronunciar-se sobre a existência e conteúdo do referido estudo designado “Relatório de peritagem”, apresentado pela impugnante no decurso da impugnação, porque se trata de uma “questão nova”, por não ter sido objeto de qualquer análise em primeira instância, por ter sido ali expressamente excluído da matéria de facto. Afigura-se, muito respeitosamente, que a requerente continua equivocada quanto ao conceito de “questão”, confundindo o “problema” ou “questão de direito” com os factos subjacentes ao problema. A existência e conteúdo do relatório do estudo de peritagem são “factos” que relevam para o conhecimento da questão de direito de saber se tal relatório merece ou não credibilidade como meio de prova do excesso de tributação por avaliação indireta. Essa questão não é “nova” porque foi objeto de decisão na sentença recorrida, que a apreciou e “expressamente” excluiu a relevância desses factos. O Tribunal ad quem limitou-se a “reexaminar” essa decisão e a julgá-la errada (erro de julgamento), substituindo-a por outra considerada, de acordo com a convicção unânime dos juízes da conferência, como sendo a mais acertada. Ao fazê-lo (bem ou mal, não importa agora), o Tribunal Central Administrativo do Sul não cometeu o invocado vicio de excesso de pronúncia. * II - DECISÃO Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul: Indeferir as arguidas nulidades, mantendo o acórdão em crise; Condenar em custas a Requerente, Fazenda Pública Registe e Notifique. Lisboa, em 19 de junho de 2024 – Rui Ferreira (Relator) – Vital Lopes - Ana Cristina Carvalho (adjuntos). |