Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:603/12.0BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:10/17/2019
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:IVA – FRAUDE CARROSSEL
Sumário:1. Gera o vício de nulidade da sentença a falta de indicação separada da matéria de facto não provada da matéria de facto provada e das respectivas fundamentações, bem como a descriminação dos factos não provados por mera exclusão dos factos provados.
2. As simples hesitações no depoimento de uma testemunha não legitimam extrair, de imediato, a conclusão de que o seu depoimento não merece credibilidade, mormente se essas hesitações são fruto do modo como as perguntas são feitas e das interrupções e considerações a que é sujeita nas suas respostas.
3. O relatório de inspecção tributária é um documento autêntico que, quando devidamente fundamentado e desde que baseado em critérios objectivos, faz fé pública relativamente aos factos que integra (cfr. artigo 76.º, n.º 1, da LGT), gozando de força probatória plena no que concerne aos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
4. A prova quanto a tais factos só pode ser ilidida mediante a arguição e prova da sua falsidade (n.º 1 do artigo 372.º do Código Civil).
5. É processualmente imprestável o depoimento prestado por escrito, de um cidadão estrangeiro, não residente em Portugal, oferecido como testemunha, se o documento que contém as suas declarações não reúne os requisitos formais exigidas pelo artigo 519.º, designadamente o seu n.º 3, do CPC, e se não é possível atribuir esse depoimento à pessoa que alegadamente subscreveu o documento, por falta de reconhecimento, por recusa notarial do mesmo, da respectiva assinatura.
6. No esquema mais simples da chamada fraude carrossel uma empresa - conduit company - efetua uma transmissão de bens intracomunitária para outra empresa - missing trader - situada noutro Estado-membro. Nestas circunstâncias a transmissão é isenta de IVA, nos termos do artigo 14.º, al. a), do RITI. Por sua vez o missing trader revende os bens a uma terceira empresa - o broker -, situada no mesmo país, liquidando o IVA nessa transação, que todavia não entrega ao Estado. A fraude concretiza-se quando o broker efectua a dedução do IVA liquidado pelo missing trader, que regra geral desaparece do circuito.
7. Na fraude carrossel pode nem sequer haver circulação física de mercadorias mas apenas uma aparência documentada dessa circulação.
8. Os requisitos legais para a efectiva isenção do IVA nas aquisições intracomunitárias, previstos no artigo 14.º, alínea a), do RITI, exigem que o transmitente e o adquirente sejam sujeito passivos de IVA no Estado-membro das respectivas residências, que o segundo utilize o seu número de identificação na aquisição e que se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens e que os bens sejam efectivamente expedidos do Estado-membro do transmitente para outro Estado-membro, com destino ao adquirente.
9. Não exigem, porém, que os bens entrem efectivamente no Estado-membro de residência do adquirente nem fazem recair sobre o transmitente o controlo do processo de envio, a não ser que as convenções contratuais lhe atribuam essa responsabilidade.
10. Todavia, recai sobre o expedidor dos bens a prova dos factos associados à expedição e à efectiva remessa dos bens e não à AT a prova de que essa remessa não se efectuou (cfr. artigo 74.º, n.º 1, da LGT e 342.º, n.º 1 e 2, do CC).
11. Nos casos em que avultam indícios sérios e credíveis de operações simuladas, à AT apenas cabe provar esses indícios, competindo ao sujeito passivo provar que as operações aparentemente simuladas efectivamente foram realizadas
12. Não é condição de liquidação oficiosa do IVA liquidado na fraude carrossel que a AT prove que o montante de imposto não foi entregue ao Estado. Por força do artigo 19.º, n.º 3, do Código do IVA, o IVA relativo a operações simuladas não pode ser deduzido.
13. As alterações na composição do Governo são irrelevantes para a validade das delegações e subdelegações de competência quanto a actos de inspecção tributária.
14. Existe fundamentação de direito com a indicação das normas legais, independentemente da sua localização na narrativa fundamentadora, ou quando a fundamentação exarada permite perceber qual o quadro normativo aplicável.
15. Na audiência prévia relativa ao acto administrativo de derrogação do sigilo bancário, não é exigível nem sequer curial que sejam enviados ao contribuinte os documentos bancários que Administração pretende obter.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:
1. Relatório
1.1. As partes
P….. – C.R.A., Lda., não se conformando com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que na impugnação judicial deduzida contra a Fazenda Pública e em que impugna os actos de liquidação de IVA e Juros Compensatórios do exercício de 2007, veio interpor recurso jurisdicional.
*
1.2. O Objecto do recurso
1.2.1. Alegações
Nas suas alegações a recorrente formulou as seguintes conclusões:
1.ª O presente recurso incide na apreciação da matéria de direito, e também na apreciação da matéria de facto, pretendendo-se que V. Exas modifiquem os pontos concretos e determinadas da matéria de facto que se irão individualizar de forma expressa infra,

No entanto,
2.ª A alínea K do probatório é uma reprodução quase integral do relatório de inspecção tributária, o que provocou mesmo duplicação de factos dados como provados – cfr. ex. Alíneas G) H) e I) do probatório, com o início da pág. 11. da sentença, erigindo tudo o que constava do mesmo como facto.
3.ª Reproduzir na íntegra um relatório da fiscalização tributária, sem qualquer sentido crítico do seu conteúdo, equivale a “4 - A exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se satisfaz com a simples referência aos meios de prova que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção, devendo indicar as razões que, na sua análise crítica, relevaram para a formação da sua convicção, expondo o processo lógico e racional que seguiu, por ser esta a única forma de tornar possível o controlo da razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto, e de convencer os destinatários sobre a sua correcção.
4.ª A motivação que consta da douta sentença recorrida e que se reproduz:
Motivação: A convicção do Tribunal que permitiu dar como provados os factos acima descritos assentou na análise dos documentos constantes dos Autos, tudo conforme discriminado em cada uma das alíneas dos Factos Assentes, conjugado com o princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, analisando dialecticamente os meios de prova ao seu alcance, procurando harmoniza-los entre si de acordo com os princípios da experiencia comum.
5.ª Para além disso, foi tido em conta o depoimento de P........, inspectora tributária, a qual veio confirmar os factos relatados no Relatório da Inspecção
6.ª Por outro lado, não foi tido em conta o depoimento de E……., administrador da sociedade de direito italiana W…. Italia, S.RL., uma vez que o Tribunal considerou que o seu depoimento foi vago e genérico, não logrando, por isso, convencer o Tribunal da sua veracidade.
Quanto ao facto não provado, o Tribunal considerou que os elementos carreados pela Impugnante não são suficientes para provar o mesmo.
7.ª Não há qualquer exame crítico da prova e o que existe é pouco, ou mesmo nada.
8.ª No caso “sub judice”, não existiu qualquer exame crítico da prova na sentença recorrida e por isso, apelamos em primeiro lugar à nulidade da sentença nos termos do art.° 125.° do C.P.P.T., mesmo considerando que o regime aí previsto é mais “brando” que o regime constante do art.° 615.°, n.° 1, alínea b) do C.P.C., o que a nosso ver não se justifica, pois a redacção literal possui o vocábulo “justificam” no C.P.C., que não se encontra redigido no art.° 125.°, do C.P.P.T., não nos parecendo que a diferença seja de substância.
9.ª Com todo o devido respeito, o que se escreveu quanto à fundamentação e exame crítico da matéria de facto dada como provada e não provada é o mesmo que não “dizer nada”.
10.ª Acresce que, atento o fundamento da norma, concordamos com o entendimento que defende ocorrer também esta nulidade “quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial”.

No entanto, por mera precaução de patrocínio,
11.ª Caso não se entenda que estamos perante uma nulidade da sentença por falta de fundamentação, sempre a consideração dos factos dados como provados e não provados, não possui justificação mínima e cognoscitiva, do porquê dessa opção.
12.ª Quanto ao primeiro ponto I) dos factos assentes, da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, que se encontra registada em suporte áudio – CD datado de 26.11.2014 concretamente quantos ao minuto 45:05 a minuto 46:32:
A investigação perpetrada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nem sequer considerou a possibilidade do transporte ser feito pela operadora italiana W…, razão pela qual a alínea K) do probatório deveria ter um facto assente: As despesas de transporte não se encontram contabilizadas na P........, não se apurando se foram contabilizadas na W...... T..... Italia.
13.ª Lê-se na sentença recorrido que, esta testemunha veio confirmar os factos constantes do relatório de inspecção.
Sem prejuízo do que já se escreveu, tendo sido levantada esta questão em sede de audiência e tendo sido confirmado pela própria testemunha que a investigação levada a cabo pela Autoridade Tributária e Aduaneira se mostra afinal deficiente, será que deveria ter sido considerado o que consta do relatório de inspecção? Cremos que não! Pois então de que serve a prova que se possa produzir em sede de audiência, se da mesma é feita tábua rasa? Se o processo judicial apenas serve para validar novamente o conteúdo integral do relatório?
14.ª Refere-se no ponto da matéria de facto assente indicada supra como ponto II) que estamos perante vendas omissas, mas da análise da prova documental e da testemunha Dr.ª P….., o que se retira é que os Inventários não foram corrigidos, foram aceites e por isso é impossível compreender de onde vieram estas mercadorias.
15.ª Deve assim ser retirado esse facto da alínea K) do probatório.
16.ª O depoimento da Dr.ª P….. não confirma a integralidade do relatório da inspecção tributária.
17.ª Não tem fundamento, desvalorizar o depoimento da testemunha E........., Administrador da Sociedade de direito italiana W….. Italia, S.R.L., cujo depoimento foi considerado vago e genérico, sem se explicar porquê.
18.ª Do mesmo depoimento retira-se que as operações qualificadas de falsas, são verdadeiras, pelo que do probatório deverá ser retirado tudo o que no RIT diz que não são verdadeiras e ser aditado o facto “As operações constantes das facturas emitidas pela T….. à P….. são verdadeiras, bem como as operações constantes das facturas emitidas pela P........ à W…. Itália.
19.ª “Nenhum dos intervenientes nestas transmissões apurou (IVA) a pagar ao Estado.”, não está correcta. E não está correcta pela simples razão de constar também no próprio circuito que foi facturado pela T….. à recorrente, 379.950,00€, acrescido de IVA. Se foi facturado acrescido de IVA é porque a T….. declarou e liquidou esse IVA ao Estado e a P........ deduziu-o.

20.ª Cai assim por terra, todo o fundamento da correcção pretendida fazer no montante de 79.789,50€, não se podendo dar como provado que:



Que consta da alínea K, do probatório.
21.ª A T…. liquidou o IVA e apô-lo no campo respectivo da liquidação, por isso declarou-o. Por sua vez, a P........ deduziu o mesmo IVA, que agora a ATA pretende que seja desconsiderado, tendo-o liquidado adicionalmente.
22.ª No Aviso 27246/2010, de 27 de Dezembro, não consta nenhuma delegação no Digníssimo Chefe de Divisão dessa competência, que conforme refere a douta sentença recorrida, se baseia no Aviso 7337/2010, que também não delega nada referente ao artigo 87.º, pelo que a competência seria do Director Geral dos Impostos.
23.ª O RIT não está fundamentado de Direito porque não diz ao abrigo de que disposição procedeu à liquidação adicional, aliás, a douta sentença recorrida designa por liquidação oficiosa.
24.ª O RIT menciona expressamente que, “Esta decisão foi, no prazo legalmente estabelecido, notificada ao SP, através do ofício n.º 42… de 6/7/2011 enviado por carta registada com aviso de recepção, que foi recepcionado em 7/7/2011, razão pela qual não se anexam ao presente projecto os documentos associados à derrogação do sigilo bancário.”cfr. fls. 12 do PAT.
25.ª Mas se lermos com atenção não faz qualquer sentido. O que foi notificado em 7/7/2011 foi a decisão e não os documentos, pois, a decisão é que permitiu que a ATA tivesse acesso aos documentos, que obviamente, lhe é posterior e por isso não haviam ainda documentos em 7/7/2011.
26.ª O momento próprio era a remessa com o relatório, mas isso não foi feito conforme se escreveu expressamente nesse relatório e que acabámos de transcrever e também resulta da mera leitura dos anexos que foram juntos ao RIT, fls. 25 do PAT., não era apenas o cumprimento forçado do art.º 37.º do CPPT, pois, já o procedimento estava findo e nada já o recorrente poderia fazer quanto ao exercício de um direito – o de audição prévia, fls. 69 do PAT.
Pelo que,
27.ª Existiu preterição de formalidade legal, violação do direito de audição prévia e (ou) ineficácia da liquidação, que em resumo, existiu ilegalidade na liquidação.
28.ª “III- O direito de audição constituiu uma formalidade essencial pelo que a violação da referida norma procedimental ou a sua incorreta realização tem como consequência normal a ilegalidade do próprio ato final e a sua consequente anulabilidade.”
29.ª Dizer que nada foi trazido de novo sem explicar, mesmo que sucintamente porquê, é o mesmo que não dizer nada, o que é igual, quando não se remeteu ao impugnante os documentos bancários que serviram de base às correcções.
30.ª Quando estamos a falar de dois operadores residentes e um não residente, a operação tripartida não tem interesse nenhum, só terá, se um dos operadores portugueses, o fornecedor a montante, não liquidar e entregar o IVA ao Estado, o que não é o caso dos autos.
31.ª A (T…..) liquidou IVA a B (recorrente) e declarou, por sua vez este vendeu a um operador não residente e mesmo que o operador não residente revendesse a A, isso não tinha interesse nenhum, porque o IVA liquidado por A, anula-se com o IVA liquidado por B, e nada se tinha vendido, apenas se tinha andado a “jogar”, Às transacções.
32.ª Essa é a grande razão para se concluir que as operações, bem ou mal feitas do ponto de vista formal foram verdadeiras.
33.ª O Acórdão da Terceira Secção de 11 de Maio de 2006, no processo C-384/04, que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pela Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido), por decisão de 30 de Julho de 2004, entrado no Tribunal de Justiça em 4 de Setembro de 2004, no processo Commissioners of Customs & Excise, Attorney General contra Federation of Technological Industries , pode aplicar-se ao caso concreto.
34.ª Conclui a douta sentença por dizer que o ónus da prova era então do impugnante. Mas se os factos apurados pela ATA não são suficientes, não era ao impugnante que caberia demonstrar ainda mais do que já demonstrou.
35.ª Se a sociedade T…. se tivesse limitado a facturar à ora recorrente, o efeito prático era o mesmo, pelo que não faz qualquer sentido ter-se “montado” uma circulação “documental“ que não produz qualquer vantagem patrimonial efectiva de ninguém.

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1.2.2. Contra-alegações
A recorrida Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.
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1.3. Parecer do Ministério Público
A Exm.ª Magistrada do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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1.4. Questões a decidir
1. Se a sentença padece de nulidade por deficiente selecção dos factos e por insuficiente especificação dos elementos relativos à motivação da matéria de facto.
2. Apurar se existe erro na apreciação da prova e erros de julgamento.
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2. Fundamentação
2.1. De facto
2.1.1. Factos considerados provados na sentença:

“Texto Integral com imagem”




"Texto Integral com imagem”





“Texto Integral com Imagem”



“Texto Integral com Imagem”





“Texto Integral com Imagem”
*
2.2. De Direito
2.2.1. Da nulidade da sentença
2.2.1.1. Quanto à duplicação de factos no probatório:
A recorrente principia por imputar à sentença erro quanto à prova, na medida em que, alega, duplicaram-se factos dados como provados e a motivação quanto à matéria de facto não revela “qualquer exame crítico da prova”. Assevera, por isso, que a sentença é nula.
Vejamos estas questões pela ordem que a recorrente as coloca.
A recorrente afirma que a alínea k) do probatório “é uma reprodução quase integral do relatório de inspecção tributária, o que provocou mesmo duplicação de factos dados como provados – cfr. ex. Alíneas G) H) e I) do probatório, com o início da pág. 11. da sentença, erigindo tudo o que constava do mesmo como facto”.
A alínea k) do probatório da sentença tem o seguinte teor:
Em 18/10/2011, foi elaborado o relatório de fiscalização junto no Processo Administrativo contido no CD apenso aos Autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, onde consta a fundamentação para as referidas correcções ao ano de 2007, e das quais com interesse para a causa se destacam as seguintes: « (…) “.
O que a sentença consignou (no essencial) como facto provado na referida alínea k) é, apenas, que a fundamentação para as correcções em causa consta do relatório. Nada mais.
Não há, assim, qualquer incompatibilidade entre a referida alínea e as alíneas g), h) e i) do probatório da sentença.
De resto, mesmo que fosse real a duplicação de factos no probatório, isso poderia eventualmente constituir erro técnico mas em caso algum consubstanciaria vício processual que determinasse nulidade da sentença.
Improcede, portanto, esta questão.
*
2.2.1.2. Da motivação sobre a matéria de facto constante da sentença
Alega a recorrente que “Reproduzir na íntegra um relatório da fiscalização tributária, sem qualquer sentido crítico do seu conteúdo, equivale a “4 - A exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se satisfaz com a simples referência aos meios de prova que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção, devendo indicar as razões que, na sua análise crítica, relevaram para a formação da sua convicção, expondo o processo lógico e racional que seguiu, por ser esta a única forma de tornar possível o controlo da razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto, e de convencer os destinatários sobre a sua correcção.” (sic).
Parte deste pressuposto para afirmar que a sentença é nula.
Em recente acórdão[1], esta formação de julgamento teve oportunidade de afirmar que:
Decorre do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, aplicável ao processo judicial tributário ex vi do artigo 2.º do CPPT, e ao processo arbitral tributário em razão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT, que a sentença é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A exigência de fundamentação das sentenças e despachos judiciais resulta do comando constitucional previsto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, que impõe que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, norma esta densificada no artigo 158.º, n.º 1, do CPC, de acordo com o qual as decisões proferidas sobre qualquer questão controvertida devem ser sempre fundamentadas.
A fundamentação tem por objectivo essencial permitir o escrutínio do iter cognoscitivo e decisório do julgador, e expressasse através do conjunto de razões, de facto e ou de direito, em que se baseia a decisão.
É opinião pacífica que este vício só se verifica em face da absoluta falta dos fundamentos de facto ou de direito. Isto é, os fundamentos deficientes, incompletos, medíocres, obscuros ou errados podem gerar erro de julgamento mas não nulidade.
Decorre do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do CPPT, que o julgador “discriminará também a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões”. Na economia do preceito, o vocábulo discriminará significa diferenciar, distinguir, destrinçar, discernir, separar, especificar. Não há, pois, qualquer dúvida de que esta norma impõe a enunciação, descrição ou exposição dos factos que o julgador considera provados e dos factos que julga não provados.
A mera indicação dos factos provados não satisfaz a exigência legal de fundamentação factual da sentença, visto que o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, estabelece um dever declarativo que abrange os factos provados e não provados, tendo em vista possibilitar que a decisão seja a foto fiel da realidade histórica apreendida para os autos.
Não sendo curial exigir uma descrição textual e exaustiva de cada facto, parece que a simples remissão para os factos alegados, considerados não provados, será em princípio suficiente para possibilitar a sindicância da decisão, nos termos já referidos, como resulta, aliás, da aplicação dos critérios de interpretação plasmados no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil.
O problema é que o acórdão em causa é de todo omisso a qualquer referência à matéria de facto não provada. Nem a essa matéria nem à motivação (fundamentação relativa à matéria de facto) que conduziu a que fossem dados como provados os “factos” elencados como tal.
Não é possível, tão-pouco, com base nos factos considerados “com interesse para a boa decisão da causa”, exercitar um raciocínio excludente a partir dos considerados provados, simplesmente porque se desconhece quais os factos que foram cogitados como tendo tal interesse.
Ou seja, é de todo impossível identificar no acórdão os factos não provados porque não é possível saber, em primeiro lugar, quais os factos com interesse para a boa decisão da causa que foram tidos em mente.
Por outro lado e como já se disse, o acórdão carece em absoluto de falta de motivação relativamente à matéria de facto.
Padece, pois, de vícios que importa dissecar.
O art.º 125.º, n.º 1, do CPPT enumera as causas de nulidade da sentença no processo tributário, em que os fundamentos desse vício são assim apresentados:
(i) Falta de assinatura do juiz;
(ii) Não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão
(iii) Oposição dos fundamentos com a decisão;
(iv) Omissão de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer.
Com excepção do primeiro fundamento, a lei processual tributária não permite a correcção oficiosa das irregularidades. Contudo, sendo a lei processual civil aplicável subsidiariamente ao processo tributário nos termos do art.º 2.º, al. e), do CPPT, parece que nenhum obstáculo se levanta à aplicação do regime de supressão das nulidades, previsto no art.º 617.º do CPC.
A nulidade decorrente da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando legal que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”.
O que se reproduziu vale, mutatis mutandis, para o caso presente, embora aqui esteja em causa uma sentença e no referido acórdão uma decisão colegial.
Em relação aos factos não provados a sentença diz o seguinte:
3.2 Factos Não Provados
Todos os restantes, nomeadamente os alegados em contrário do que se deu como provado supra, e ainda, com interesse, o seguinte:
1. Todas as operações são reais – facto alegado no artigo 99º da p.i.
Se considerarmos que este alegado facto não passa de uma manifesta conclusão, forçoso será de concluir que o raciocínio seguido pode eventualmente enfermar de outros idênticos erros técnicos, isto é, podem ter sido considerados como factos o que não passa de meras conclusões!.
No entanto, poderá objectar-se que, delimitando a sentença negativamente o universo de factos não provados por contraponto aos não provados, tudo o que não foi considerado provado é facto não provado. Mas esse raciocínio lógico-dedutivo, tendente a atingir uma resposta ou conclusão óbvia, que quadra bem nas áreas das ciências exactas, não se ajusta à ciência do direito, nomeadamente às questões de prova, na medida em que esta pode ter graduações que impedem uma resposta simplista, negativa ou positiva.
Explicitando, um facto alegado por vir a ser considerado plenamente provado ou não provado pelo julgador, mas pode também ser provado (e consequentemente não provado) apenas em parte. Consequentemente, a discriminação dos factos não provados não pode ser feita por simples discriminação negativa.
Sendo acolhida na sentença recorrida essa errada fórmula, logo se vê que a sentença padece de um dos vícios previstos no artigo 125.º, n.º 1, do CPPT, comprometendo a sua validade, o que tanto basta para que deva ser declarada nula (nessa parte).
Essa nulidade acarreta, como consequência legalmente imposta ao tribunal ad quem (cfr. artigo 665.º, n.º 1, do CPC), conhecer em substituição, ou seja, refazer todo o probatório.
Impõe-se, por isso, reconstruir o segmento probatório de suporte à decisão, neste termos:

2.2.2. Factos relevantes para a decisão:
2.2.2.1. Factos provados:
1. Todos os discriminados na sentença recorrida, que aqui se dá por reproduzida nessa parte, à excepção da sua alínea j) (cfr., infra, n.º 3)
E ainda (ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC):
2. A impugnante/recorrente foi notificada da abertura de um procedimento de inspecção tributária aos anos de 2006/2007 (artigo 14.º e doc. n.º 1, da p.i.);
3. A Impugnante foi notificada para se pronunciar em sede de Audição Prévia relativamente ao procedimento de derrogação do sigilo bancário;
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2.2.2.2. Factos não provados:
Os constantes dos artigos 82.º e 86.º da p.i.;
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2.2.2.3 Motivação relativa à matéria de facto:
Para além dos artigos 82.º e 86.º da p.i., os restantes artigos contidos nesta peça contém, na sua esmagadora maioria, meras conclusões, juízos opinativos ou valorativos e argumentos. Os restantes, muito poucos, contêm matéria factual, que todavia é irrelevante para a decisão do pleito, segundo as várias soluções jurídicas abstractamente possíveis.
A prova dos factos provados resulta dos documentos dos autos e do PAT, concatenada com o depoimento da inspectora tributária, que no essencial confirmou os factos vertidos para o relatório.
Embora na sua inquirição pareça mostrar alguma hesitação em relação a certas perguntas que lhe foram colocadas, tal não justifica descredibilizar o depoimento no seu todo.
A título exemplificativo, veja-se o caso da inexistência da documentação relativa ao transporte, que a testemunha referiu não constar da contabilidade da recorrente, tirando o Ilustre mandatário daquela, de imediato, a conclusão de que “se não estavam quem os pagou foi a w….!”.
A explicação pode ser essa mas pode muito bem ser outra qualquer, sem que daí se possa inferir que o depoimento da referida testemunha não merece credibilidade, pois uma coisa é a insuficiência de diligências probatórias (devia a AT ter feito outras neste particular?), outra a credibilidade da testemunha que não é abalada pelo desconhecimento de um facto que não apurou.
Daí que se deva considerar provado o facto constante do relatório, de que os custos com transporte não estavam contabilizados na contabilidade da recorrente, aliás em decorrência do que infra se aduzirá quanto à valia probatória dos documentos autênticos.
As considerações acima produzidas valem para os demais factos constantes do relatório, nomeadamente quanto às vendas omissas, que a recorrente pretenderia ver erradicadas do relatório de Inspecção e que entende que não correspondem a factos provados.
As perguntas efectuadas à testemunha acima referida pelo Ilustre mandatário da recorrente e as respostas daquela, reproduzidas no corpo das alegações e constantes do registo áudio, não abalam, também, a credibilidade da testemunha. Com efeito, as perguntas do Ilustre mandatário à testemunha, colocadas certamente com o melhor propósito e quiçá formuladas com adequadas técnicas de interrogatório, o certo é que não permitem que a testemunha esclareça devidamente cada questão que lhe é colocada, pois é frequentemente interrompida pelo Ilustre mandatário com novas perguntas ou achegas que visam, claramente, condicionar a resposta da testemunha e com isso conduzir a sua resposta no sentido pretendido.
Elucidativo disso é, por exemplo, esta afirmação do Ilustre mandatário (reproduzida no corpo das alegações): “por acaso estive à procura dessa resposta a ver se dizia isso… porque eu acho que eles sempre disseram que tinha a ver com os vales ctt´s das vendas à distância do outro de lá, porque o outro como tinha problemas para fazer vendas on line e não sei o quê, eu acho que a empresa sempre explicou isso dos vales ctt’s”…
Sendo irrelevantes estes considerandos, pela simples razão de que são probatoriamente inócuos, eles têm a virtualidade de demonstrar que as aparentes hesitações da testemunha não são produto de deficiente memorização dos factos, de um discurso enviesado e sem adesão à realidade ou de uma descrição falseada desta, mas antes produto das observações a que foi sujeita, do modo como as perguntas foram feitas e do contexto inquisitorial que dominou todo o interrogatório, e da falta de objectividade e certeza das questões colocadas, permitida quiçá pela complacência de quem presidiu à inquirição.
Donde, não ser de arredar a credibilidade da testemunha com base na sua aparente hesitação.
Por outro lado, é sabido que o relatório de inspecção tributária, quando devidamente fundamentado e desde que baseado em critérios objectivos, faz fé pública relativamente aos factos que integra (cfr. artigo 76.º, n.º 1, da LGT).
Ademais, trata-se de um tipo de documento autêntico (cfr. artigo 363.º, n.º 2, do CC), com força probatória plena, apenas ilidível nos termos da lei, no que concerne aos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
Claro está que o SP não fica impedido de demonstrar a falsidade parcial ou total do relatório ou de demonstrar que os factos que dele constam não conduzem ao resultado (fiscal) visado pela AT.
Mas, no caso sub judice a prova produzida pela recorrente não logrou atingir tal objectivo.
As declarações de E........., para além de genéricas e vagas como acertadamente a sentença recorrida considerou, referem factos de pouca ou nenhuma verosimilhança, como sucede quando explica o circuito dos relógios entre a W……. Itália, a T......... e a recorrente. Não é explicado de forma convincente esse circuito nem a justificação avançada para a intermediação da T......... tem plausibilidade.
Mas ainda que assim não fosse, as ditas declarações são juridicamente imprestáveis. Não está comprovado que sejam da pessoa (E.........) a quem é atribuída a sua autoria. Recorde-se que da própria declaração consta que três notários recusaram certificar a assinatura. Por outro lado não obedece aos requisitos formais previstos no artigo 519.º, designadamente ao n.º 3, do CPC. Logo, não obstante ter sido admitido nos autos, a sua eficácia probatória é nula.
De tudo resulta que os factos não provados, acima referidos, não poderiam merecer outro juízo.
Na verdade, a explicação para a existência dos alegados Vales-CTT, nomeadamente, não convence.
Se a W…… vendia bens digitalmente, a que propósito iria surgir uma outra entidade (a recorrente) cobrar dos clientes (digitais)? É manifesto que as vendas pela internet requerem alguns cuidados, razão pela qual não se compreende como poderiam os clientes da W....... pagar a uma entidade com a qual não tinham tido qualquer relação comercial.
Por outro lado não corresponde à verdade que a maioria das operadoras de transportes de encomendas não tenham serviço de entrega contra-reembolso e que tal serviço tenha um custo exorbitante em relação ao preço do artigo (cfr. artigos 82.º e ss. a p.i.). Basta uma consulta na Internet para nos dar resposta em sentido contrário.
Daí as respostas negativas aos factos constantes dos artigos 82.º e 86.º da inicial.
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2.2.3. Das restantes questões do recurso
2.2.3.1 Da fraude carrossel e da dedução de IVA
Consolidada a matéria de facto, impõe-se lançar um olhar sobre a parte não viciada por nulidade da sentença, que a recorrente critica numa perspectiva de alegados erros de julgamento.
Principiemos pela questão fulcral contida no relatório de inspecção: a existência (ou não) de um esquema tipo fraude carrossel.
Alega a recorrente (conclusão 19.ª) que a afirmação constante do relatório, de que “Nenhum dos intervenientes nestas transmissões apurou (IVA) a pagar ao Estado.”, não está correcta”, porque, se consta que “foi facturado pela T......... à recorrente, 379.950,00€, acrescido de IVA”, então “é porque a T......... declarou e liquidou esse IVA ao Estado e a P........ deduziu-o”.
Afigura-se-nos que esta afirmação e as demais que se seguem nas conclusões posteriores revelam uma, salvo o devido respeito, deficiente visão do que é a fraude carrossel.
Neste tipo de fraude uma empresa – conduit company- efetua uma transmissão de bens intracomunitária para outra empresa – missing trader - situada noutro Estado-membro. Nestas circunstâncias a transmissão é isenta de IVA [cfr. artigo 14.º, al. a), do RITI[2].
Por sua vez o adquirente – missing trader – revende os bens a uma terceira empresa – o broker- situada no mesmo país, liquidando o IVA nessa transação.
Todavia, apesar de liquidado o montante respectivo não é entregue à autoridade tributária nacional.
Regra geral o missing trader desaparece do circuito, surgindo então o
brokera deduzir o IVA que lhe foi alegadamente liquidado, exigindo o seu reembolso.
Regra geral também, as mercadorias são (aparentemente) reexpedidas para o país de origem (igualmente com isenção de IVA), com destino à conduiti company, completando-se assim o circuito fictício de exportação e reexportação dos bens.
Neste esquema pode nem sequer haver circulação física de mercadorias mas apenas uma aparência documentada dessa circulação. Por conseguinte, os bens podem nem sequer sair das instalações da conduit company como podem nem tão pouco existir!.
A fraude carrossel por vezes envolve esquemas mais sofisticados, com a intervenção de outro ou outros intervenientes – buffer ou buffers – coniventes ou não com o esquema fraudulento e que se destinam a reforçar a aparência de legalidade da operação e a dificultar o trabalho das autoridades tributárias, através da sua inserção na etapa posterior à aquisição, pelo missing trader, dos bens à conduit company.
O objectivo é sempre o mesmo: o reembolso do IVA, provocando assim um prejuízo para o Estado equivalente ao montante reembolsado, por falta da contrapartida de IVA liquidado mas não entregue.
Os requisitos legais, previsto no artigo 14.º, alínea a), do RITI, para que a isenção de IVA possa ser efectiva exigem que o transmitente e o adquirente sejam sujeito passivos de IVA no Estado-membro das respectivas residências, que o segundo utilize o seu número de identificação na aquisição e que se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens e que os bens sejam efectivamente expedidos do Estado-membro do transmitente para outro Estado-membro, com destino ao adquirente.
Não é, porém, exigível, face à redacção do artigo 14.º, n.º 1, do RITI, que os bens entrem efectivamente no Estado-membro de residência do adquirente.
Por isso, o transmitente apenas tem como obrigação colocar os bens à disposição do adquirente e certificar-se que estes são enviados para fora do território do respectivo Estado-membro. Não lhe compete controlar o processo de envio, a não ser que as convenções contratuais lhe atribuam essa responsabilidade. Daí que tenha interesse o exame da documentação associada ao transporte, seja a carta de porte ou vulgarmente CMR - no caso do transporte dos bens ser feito por via rodoviária -, sejam os documentos relativos ao transporte marítimo e as estipulações relativas ao frete, na modalidade FOB (Free on Board) ou CIF (Cost, Insurance and Freight).
Mas, contrariamente ao que defende a recorrente, recai sobre o expedidor dos bens a prova dos factos associados à expedição e da efectiva remessa dos bens e não à AT a prova de que essa remessa não se efectuou (cfr. artigo 74.º, n.º 1, da LGT e 342.º, n.º 1 e 2, do CC).
Prova essa que, nos casos em que se verificam indícios sérios de operações intracomunitárias simuladas, se torna mais exigente para o transmitente.
Ora, se é certo que não é necessário um CMR para cada factura, também não deixa de ser verdade que a comprovação da operação, em caso de fundada dúvida, exige que o vendedor comprove através de outra documentação que os bens efectivamente foram postos à disposição do adquirente e efectivamente expedidos para outro Estado-membro.
No caso presente a recorrente não fez essa prova, por perfilhar o entendimento de que os CMR bastariam para tal, entendimento que já vimos não ser o correcto.
De facto, nos casos em que avultam fortes e sérios indícios de operações simuladas, à AT apenas cabe provar esses indícios, competindo ao sujeito passivo provar que as operações aparentemente simuladas efectivamente foram realizadas. É jurisprudência uniforme e também assim resulta da lei: artigos 74.º, n.º 1, e artigo 75.º, n.º 2, als. a) e b), da LGT.
Mas é evidente que numa fraude de tipo carrossel, o broker não está sobrecarregado com o ónus de prova da falta de entrega do IVA que foi liquidado nas facturas pelo missing trader à AT, o que, no caso vertente, equivale a dizer que a recorrente não tem o ónus de provar que a T......... entregou o IVA ao Estado.
Todavia, também ao contrário do que parece entender a recorrente, é irrelevante para a definição da situação tributária da recorrente saber se a T......... entregou ou não o IVA que aparentemente liquidou. E dizemos aparentemente porque não há prova cabal de que esse IVA tenha sido pago pela recorrente, visto que os elementos bancários não fornecem dados nesse sentido.
Mas, retomando o raciocínio, é irrelevante saber se o IVA foi ou não entregue pela simples razão de que a lei impede a dedução de IVA nas operações simuladas, o que bem se compreende.
E é esta a questão fundamental na apreciação do presente recurso, porque, mesmo que tenha/tivesse havido liquidação e entrega do IVA liquidado, a dedução não era legalmente possível por se tratar de uma operação simulada (cfr. artigo 19.º, n.º 3, do Código do IVA). Questão diversa é a de saber como opera a restituição de IVA indevidamente liquidado, cobrado e entregue, relativo a uma operação simulada, sendo que neste caso apenas o “substituto tributário” está em posição de o reclamar do Estado.
E quanto a essa simulação no caso presente parece não existirem dúvidas, em face dos factos constantes do RIT: falta de elementos relativos ao local e hora de carga nas facturas, falta de documentos de transporte, apesar de solicitados, bem como todas as outras circunstâncias de facto constantes do ponto III.1.2. Aquisições à T........., Lda., do RIT, cuja veracidade não foi abalada por prova de sinal contrário produzida pela recorrente.
Em resumo: no que concerne à liquidação adicional relativa ao IVA deduzido pela recorrente com base nas compras efectuadas à T........., nenhum vício se antolha que justifique a sua anulação.
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2.2.3.2. Do vício da incompetência
Prosseguindo o excurso pelas conclusões da recorrente, importa abordar a questão do alegado vício de incompetência.
A recorrente aborda esta questão com um enfoque que não corresponde exactamente àquele que foi suscitado na p.i.. Nesta (artigos 3.º e ss.), é referido que a incompetência dos autores dos actos relativos à inspeção tributária resulta da mudança de governo. Na tese da recorrente, plasmada na p.i., a mudança de governo fez caducar todas as delegações e subdelegações de competência, pelo que os actos relativos ao procedimento de inspecção estão viciados de incompetência.
E foi esta questão, com esta perspectiva, que foi enfrentada e resolvida pela sentença. Não aquela que a recorrente agora suscita, sob uma perspectiva totalmente diferente, de incompetência em relação aos actos do procedimento de fixação e liquidação, e não em relação ao procedimento de inspecção.
O que desde logo impede a sua apreciação, pois o tribunal de recurso não visa apreciar questões novas, porque apenas lhe compete o reexame das questões que foram suscitadas perante o tribunal recorrido, exceptuando aquelas em que a lei impõe o conhecimento oficioso.
De todo o modo, sem prescindir nem conceder, sempre se dirá que a questão da competência foi resolvida e bem pela sentença, visto que o aviso Aviso n.º 7337/2010, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 71, de 13/04/2010, delega competência do DG da DGI no Director de Finanças de Leiria para a práticas de actos relacionados com a inspecção, que por sua vez forem subdelegadas através do Aviso 27246/2010, de 27 de Dezembro, competências essas que resultam do artigo 2.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º Decreto-Lei 366/99, de 18 de Setembro (Orgânica da DGI).
Aliás, o Despacho 3673/2010, de 1 de Março, do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (SEAF) nem sequer menciona autorizações para a práticas de actos relativos à inspecção.
Consequentemente, o problema da mudança de Governo e da eventual caducidade, por esse motivo, das delegações e subdelegações do SEAF nem sequer se coloca.
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2.2.3.3. Da falta de fundamentação de direito
Alega a recorrente que o “RIT não está fundamentado de Direito porque não diz ao abrigo de que disposição procedeu à liquidação adicional, aliás, a douta sentença recorrida designa por liquidação oficiosa”
Tal afirmação não corresponde à verdade.
Esta questão foi resolvida pela sentença nestes termos:
A Impugnante também refere que em nenhum lugar do relatório vem referida a fundamentação de direito em que assenta a correcção à matéria tributável, o que consubstancia um vício de forma por falta de fundamentação.
Vejamos.
O dever de fundamentação dos actos tributários insere-se nos princípios de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias enunciadas no Título II da parte 1.ª da CRP, e encontra-se constitucionalmente consagrado no artigo 268.º, n.º 3, nos termos do qual “os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos ”.
Este dever de fundamentação, encontra ainda acolhimento no artigo 77.º da LGT, que determina a obrigatoriedade de fundamentação dos actos tributários, fundamentação essa que deve conter, ainda que sucintamente, as disposições legais aplicadas, a qualificação e a quantificação dos factos e as operações de apuramento da matéria tributável e do imposto.
Por outro lado, cumpre referir, a este propósito da fundamentação dos actos tributários, que uma coisa é a fundamentação formal do acto e outra a sua fundamentação material: a primeira tem a ver com a validade formal do acto, no sentido de se saber se a Administração deu a conhecer os motivos que a levaram a actuar como actuou, ou seja, as razões em que fundou a sua actuação, a segunda respeita à validade substancial do acto, ou seja, aqui coloca-se a questão de saber se esses motivos em que baseou a sua actuação correspondem à realidade e, correspondendo, se são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa.
Dito isto, vejamos o caso dos Autos.
Resulta dos factos assentes que a Inspecção Tributária entendeu proceder às correcções à Impugnante em sede de IVA com base nos fundamentos constantes no extenso Relatório apenso aos Autos.
Assim, podemos concluir que a mera leitura do Relatório da Inspecção que foi remetido para a Impugnante, e que está na génese da alterações efectuadas em sede de IVA, permite à Impugnante perceber as razões da Administração Fiscal discordar dos valores declarados.
Claro que a Impugnante pode não concordar com a fundamentação apresentada, mas não pode dizer que não se encontra fundamentada
Acrescenta-se que, ao contrário do que a impugnante argumenta (na PI e no recurso), o relatório está fundamentado de direito, inclusive quanto à liquidação. Pode essa fundamentação não estar localizada no lugar que a impugnante entenderia como correcto; mas não se pode dizer que inexiste falta de fundamentação por ausência de normas legais.
Por outro lado, a falta de referência às normas legais não é causa invalidante do acto se a fundamentação exarada permite perceber qual o quadro normativo aplicável.
O que manifestamente sucede no caso sub judice.
Improcede, pois, esta questão.
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2.2.3.4. Da preterição da audiência prévia e da ineficácia e ilegalidade da liquidação
Alega a recorrente que:
“O RIT menciona expressamente que, “Esta decisão foi, no prazo legalmente estabelecido, notificada ao SP, através do ofício n.º 42… de 6/7/2011 enviado por carta registada com aviso de recepção, que foi recepcionado em 7/7/2011, razão pela qual não se anexam ao presente projecto os documentos associados à derrogação do sigilo bancário.”cfr. fls. 12 do PAT.
Mas se lermos com atenção não faz qualquer sentido. O que foi notificado em 7/7/2011 foi a decisão e não os documentos, pois, a decisão é que permitiu que a ATA tivesse acesso aos documentos, que obviamente, lhe é posterior e por isso não haviam ainda documentos em 7/7/2011.
O momento próprio era a remessa com o relatório, mas isso não foi feito conforme se escreveu expressamente nesse relatório e que acabámos de transcrever e também resulta da mera leitura dos anexos que foram juntos ao RIT, fls. 25 do PAT., não era apenas o cumprimento forçado do art.º 37.º do CPPT, pois, já o procedimento estava findo e nada já o recorrente poderia fazer quanto ao exercício de um direito – o de audição prévia, fls. 69 do PAT.
Pelo que,
Existiu preterição de formalidade legal, violação do direito de audição prévia e (ou) ineficácia da liquidação, que em resumo, existiu ilegalidade na liquidação”
E acrescenta:
III- O direito de audição constituiu uma formalidade essencial pelo que a violação da referida norma procedimental ou a sua incorreta realização tem como consequência normal a ilegalidade do próprio ato final e a sua consequente anulabilidade.”
Dizer que nada foi trazido de novo sem explicar, mesmo que sucintamente porquê, é o mesmo que não dizer nada, o que é igual, quando não se remeteu ao impugnante os documentos bancários que serviram de base às correcções”.
O que a impugnante, ora recorrente, suscitou na P.I., sob o título “Da resposta à audição prévia”, foi a alegada violação do direito à audição prévia do acto que autorizou a derrogação do sigilo bancário.
No seu entendimento a falta de envio dos documentos bancários é motivo invalidante do acto e, consequentemente, de todo o procedimento inspectivo.
Mas, como é óbvio, precedendo a audição prévia o momento da prática do acto autorizador da derrogação do sigilo bancário, os documentos bancários nunca poderiam ser enviados.
De todo o modo, a formalidade da audição prévia concretiza-se com o envio do projecto de decisão, o que foi feito.
Como se escreve na sentença, a recorrente foi devidamente notificada para exercer o direito de audição prévia e a AF pronunciou-se no sentido de que não havia quaisquer elementos novos a ponderar na fundamentação da decisão, como determina o nº 7 do artigo 60º da LGT, uma vez que não foram trazidos quaisquer elementos pela Impugnante, nada alegando que pudesse mudar o sentido da decisão.
A falta de remessa dos documentos bancários – ainda que a lei impusesse tal formalidade, o que não é o caso - não era objectivamente possível à data em que a recorrente pretendia que tal remessa fosse efectuada, pelo que o procedimento não ficou inquinado por essa razão.
Tendo sido oferecida oportunidade da recorrente se pronunciar sobre o projecto de relatório, foi facultado o exercício do direito de audição pela recorrente, tendo a AT expressado a opinião de que aquela não aduziu quaisquer factos novos e que impusessem decisão diversa.
Logo, o direito de audição foi observado, pelo que não tem qualquer fundamento dizer-se que existe, por tal motivo, ineficácia e ilegalidade da liquidação.
Improcede, portanto, este fundamento do recurso.

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2.2.3.5. Resumindo:

Em suma e para concluir, não logrando a recorrente demonstrar que as operações que a AT considerou serem fictícias eram reais e falecendo todos os restantes argumentos esgrimidos contra a sentença (à excepção da falada questão de prova), bem como as correspondentes questões, o recurso não merece provimento.


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2.2.4.

Sumariando:
16. Gera o vício de nulidade da sentença a falta de indicação separada da matéria de facto não provada da matéria de facto provada e das respectivas fundamentações, bem como a descriminação dos factos não provados por mera exclusão dos factos provados.
17. As simples hesitações no depoimento de uma testemunha não legitimam extrair, de imediato, a conclusão de que o seu depoimento não merece credibilidade, mormente se essas hesitações são fruto do modo como as perguntas são feitas e das interrupções e considerações a que é sujeita nas suas respostas.
18. O relatório de inspecção tributária é um documento autêntico que, quando devidamente fundamentado e desde que baseado em critérios objectivos, faz fé pública relativamente aos factos que integra (cfr. artigo 76.º, n.º 1, da LGT), gozando de força probatória plena no que concerne aos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
19. A prova quanto a tais factos só pode ser ilidida mediante a arguição e prova da sua falsidade (n.º 1 do artigo 372.º do Código Civil).
20. É processualmente imprestável o depoimento prestado por escrito, de um cidadão estrangeiro, não residente em Portugal, oferecido como testemunha, se o documento que contém as suas declarações não reúne os requisitos formais exigidas pelo artigo 519.º, designadamente o seu n.º 3, do CPC, e se não é possível atribuir esse depoimento à pessoa que alegadamente subscreveu o documento, por falta de reconhecimento, por recusa notarial do mesmo, da respectiva assinatura.
21. No esquema mais simples da chamada fraude carrossel uma empresa – conduit company - efetua uma transmissão de bens intracomunitária para outra empresa - missing trader - situada noutro Estado-membro. Nestas circunstâncias a transmissão é isenta de IVA, nos termos do artigo 14.º, al. a), do RITI. Por sua vez o missing trader revende os bens a uma terceira empresa - o broker -, situada no mesmo país, liquidando o IVA nessa transação, que todavia não entrega ao Estado. A fraude concretiza-se quando o broker efectua a dedução do IVA liquidado pelo missing trader, que regra geral desaparece do circuito.
22. Na fraude carrossel pode nem sequer haver circulação física de mercadorias mas apenas uma aparência documentada dessa circulação.
23. Os requisitos legais para a efectiva isenção do IVA nas aquisições intracomunitárias, previstos no artigo 14.º, alínea a), do RITI, exigem que o transmitente e o adquirente sejam sujeito passivos de IVA no Estado-membro das respectivas residências, que o segundo utilize o seu número de identificação na aquisição e que se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens e que os bens sejam efectivamente expedidos do Estado-membro do transmitente para outro Estado-membro, com destino ao adquirente.
24. Não exigem, porém, que os bens entrem efectivamente no Estado-membro de residência do adquirente nem fazem recair sobre o transmitente o controlo do processo de envio, a não ser que as convenções contratuais lhe atribuam essa responsabilidade.
25. Todavia, recai sobre o expedidor dos bens a prova dos factos associados à expedição e à efectiva remessa dos bens e não à AT a prova de que essa remessa não se efectuou (cfr. artigo 74.º, n.º 1, da LGT e 342.º, n.º 1 e 2, do CC).
26. Nos casos em que avultam indícios sérios e credíveis de operações simuladas, à AT apenas cabe provar esses indícios, competindo ao sujeito passivo provar que as operações aparentemente simuladas efectivamente foram realizadas
27. Não é condição de liquidação oficiosa do IVA liquidado na fraude carrossel, que a AT prove que o montante de imposto não foi entregue ao Estado. Por força do artigo 19.º, n.º 3, do Código do IVA, o IVA relativo a operações simuladas não pode ser deduzido.
28. As alterações na composição do Governo são irrelevantes para a validade das delegações e subdelegações de competência quanto a actos de inspecção tributária.
29. Existe fundamentação de direito com a indicação das normas legais, independentemente da sua localização na narrativa fundamentadora, ou quando a fundamentação exarada permite perceber qual o quadro normativo aplicável.
30. Na audiência prévia relativa ao acto administrativo de derrogação do sigilo bancário, não é exigível nem sequer curial que sejam enviados ao contribuinte os documentos bancários que Administração pretende obter.

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3 - Dispositivo:

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em:

a) Anular a sentença recorrida no que concerne ao respectivo segmento probatório;

b) Consignar, em substituição, novo elenco de factos provados e não provados, com a respectiva motivação, tal como consta do ponto 2.2.2. supra;

c) Confirmar, no mais, a sentença recorrida, negando provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, com redução a 4/5 nesta instância, dado que a decisão sobre a nulidade parcial da sentença lhe foi favorável. A FP não responde por custas em ambas as instâncias.

D.n.

Lisboa, 2019-10-17

____________________________________ (Benjamim Barbosa, Relator)

____________________________________ (Ana Pinhol)

____________________________________ (Isabel Fernandes)



[1] De 11-07-2019, proc. n.º 42/18.0BCLSB
[2] Com a seguinte redacção:
“Estão isentas do imposto:
a) As transmissões de bens, efectuadas por um sujeito passivo dos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, expedidos ou transportados pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, a partir do território nacional para outro Estado membro com destino ao adquirente, quando este seja uma pessoa singular ou colectiva registada para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado em outro Estado membro, que tenha utilizado o respectivo número de identificação para efectuar a aquisição e aí se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens;”