Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul
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I – RELATÓRIO
A........, Lda., NIPC ..........62, com os demais sinais dos autos, impugnou judicialmente as liquidações oficiosas de contribuições relativas a abril de 2004 a novembro de 2006, inclusive, no valor de € 8.874,91, acrescida de juros de mora no valor de € 3.342,73, no valor total de € 12.217,64.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, por sentença de 28/02/2021 julgou a impugnação procedente.
O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., não se conformando com a decisão, veio da mesma interpor recurso jurisdicional.
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O Recorrente, nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
“(texto integral no original; imagem)”




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A Recorrida, devidamente notificada, apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
“DAS CONCLUSÕES
I. Vem a sentença recorrida concluir: “Verifica-se assim, a falta de notificação das liquidações exequendas o que importará a sua anulação, devendo ser devolvido à Impugnante o valor pago indevidamente na secção de processo de Setúbal do IGFSS, I.P.” (sublinhado nosso).
II. É especialmente censurável acusar um Tribunal de que “andou mal” – como se faz neste Recurso - quando apenas cumpriu a lei e a função soberana a que é chamado.
III. Estamos, portanto, perante uma sentença insuscetível de qualquer censura e que se deve manter na ordem jurídica.
IV. Como fundamentos do recurso, a Recorrente invoca os ofícios de notificação à Recorrida de deferimento do pedido de aplicação das taxas correspondentes às remunerações de duas funcionárias portadoras de deficiência e invoca que não houve liquidações por não ter havido qualquer processo de fiscalização prévia (!).
V. V. Estas conclusões estão completamente fora da realidade e da lei porque, caso assim fosse, nem sequer teria sido instaurado processo executivo.
VI. A Recorrente sempre autoliquidou as contribuições para a segurança social e efetuou o pagamento das mesmas, como se conclui pelas declarações de remunerações e respetivos pagamentos juntos à petição inicial.
VII. E como vem refere o Tribunal a quo: “Todos os atos ou decisões que criam deveres ou encargos para os destinatários ou lhes restringem ou negam direitos que aqueles entendem ter, como era o caso da Impugnante que durante três anos e meio declarou e procedeu ao pagamento das contribuições relativas aquelas trabalhadoras com a redução, configuram decisões suscetíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes, que exigem a sua notificação e possibilidade de compreensão ou impugnação por parte dos contribuintes.” (sublinhado nosso).
VIII. No que respeita à alusão de que a Recorrida facilmente teria sabido o motivo da dívida pelas datas indicadas na citação para o processo executivo é, além de carente de sentido, ilegal, por violação direta dos direitos em matéria tributária.
IX. E nem para tal fim pode ser invocada a defesa da Recorrida [“defesa” que se reporta aos presentes autos pois a citação não foi precedida de nenhum procedimentos ou notificação em que a Recorrida pudesse apresentar defesa!] bastando para tanto reproduzir a petição inicial destes autos em que é invocado à saciedade o facto de a Recorrente desconhecer os motivos da dívida – o que se comprova pela ausência de notificação dos mesmos, o que não é uma simples forma de retórica, mas um facto violador dos direitos da Recorrida, ilegal.
X. Acresce a este argumentário, e como fundamento do Recurso, uma lamentável confusão entre o que são atos em matéria tributária que afetam direitos dos seus destinatários e processos de inspeção e “ato administrativo declarativo de liquidação de um tributo” (?).
XI. A Segurança Social não pode atuar potestativamente instaurando processos de execução fiscal sem cumprir os requisitos que a lei exige para o efeito sendo que, na situação concreta, foi emitindo sucessivas certidões de situação contributiva regularizada que se encontram juntas à petição inicial. Esta é uma forma conhecida de atuar da Segurança Social, perante a qual os sujeitos passivos ficam totalmente desprotegidos e totalmente censurável, sob pena de perversão dos fundamentos do Estado de Direito.
XII. O Recurso demonstra-se, assim, totalmente infundado e a Recorrida apela a tudo quanto articulou na petição inicial e para a total insusceptibilidade de censura – seja a que título for – da sentença proferida, a qual é cristalina, clara e se limitou à aplicação da lei ao caso concreto.
XIII. Em resultado do que se considera ser de indeferir totalmente o recurso, o qual se demonstra totalmente infundado e ordenar a manutenção integral da sentença recorrida.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, DEVE O PRESENTE RECURSO SER TOTALMENTE INDEFERIDO, MANTENDO-SE INTEGRALMENTE A SENTENÇA RECORRIDA, ASSIM SE FAZENDO A ESPERADA JUSTIÇA.”
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A Exma. Procuradora-Geral Adjunto do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu parecer no sentido da improcedência do presente recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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Delimitação do objeto do recurso
Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, em consonância com o disposto no art. 639º do CPC e art. 282º do CPPT, são as conclusões apresentadas pelo recorrente, nas suas alegações de recurso, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer, ficando, deste modo, delimitado o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem.
No caso que aqui nos ocupa, as questões a decidir consistem em saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento ao ter considerado que era necessário que as liquidações em dissidio teriam de ter sido previamente notificadas à Recorrida, bem como se o pagamento da mesma configura o cumprimento duma obrigação natural pelo que não haveria lugar à sua restituição.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
- De facto
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
“III.1 De facto:
1. Em 8/11/2002, o Ministério de Saúde, Administração Regional de Saúde de Lisboa, Polo de Setúbal, emitiu o “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” constante do PEF apenso, no qual atesta que G.......... tem uma incapacidade permanente global de 61%.
2. Em 9/4/2003, o Ministério de Saúde, Administração Regional de Saúde de Lisboa, Polo de Setúbal, emitiu o “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” constante do PEF apenso, no qual atesta que M.......... tem uma incapacidade permanente global de 60%.
3. Em 14/12/2006, a Impugnante A.........., Lda. emitiu a declaração constante do PEF, na qual atesta que G.........., é sua colaboradora há mais de três anos.
4. Em 14/12/2006, a Impugnante A.........., Lda. emitiu a declaração constante do PEF, na qual atesta que M.........., é sua colaboradora há mais de três anos.
5. Em 18/12/2006, a Impugnante apresentou na Segurança Social o requerimento constante do PEF, de “Redução do pagamento de Contribuições” relativamente à trabalhadora G.........., com vinculo de Contrato Individual de Trabalho desde 1/4/1993.
6. Em 18/12/2006, a Impugnante apresentou na Segurança Social o requerimento constante do PEF, de “Redução do pagamento de Contribuições” relativamente à trabalhadora M.........., com vinculo de Contrato Individual de Trabalho desde 1/10/1978.
7. Em 16/3/2007, o Diretor da AFC do Instituto da Segurança Social, IP. proferiu o despacho de deferimento do requerimento de “Redução do pagamento de Contribuições” relativamente à trabalhadora G.........., nos termos constantes de fls. 3 do PEF.
8. Em 20/3/2007, a Segurança Social enviou à Impugnante o oficio n.º 035026, com a comunicação do despacho de deferimento descrito no ponto que antecede, com produção de efeitos a partir de 12/2006 (cf. oficio a fls. 2 do PEF).
9. Em 16/3/2007, o Diretor da AFC do Instituto da Segurança Social, IP proferiu o despacho de deferimento do requerimento de “Redução do pagamento de Contribuições” relativamente à trabalhadora M.........., nos termos constantes de fls. não numeradas do PEF.
10. Em 20/3/2007, a Segurança Social enviou à Impugnante o oficio n.º 035027, com a comunicação do despacho de deferimento descrito no ponto que antecede, com produção de efeitos a partir de 12/2006 (cf. oficio constante de fls. não numeradas do PEF).
11. Em 14/2/2008, a Secção de Processo Executivo de Setúbal do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social instaurou à Impugnante o processo executivo n.º ..., para cobrança de contribuições no valor de EUR 8.874,91, e do acrescido no valor de EUR 3.342,73, num total de EUR 12.217,64, relativo a contribuições em divida de 4/2003 a 10/2006 (cf. autuação e certidão de divida constante de fls. 1 a fls. 5 do PEF).
12. Em 26/2/2008, a Impugnante rececionou o oficio de citação para o processo executivo n.º ... (cf. oficio e print dos CTT, fls. 15 a fls. 17 do PEF).
13. Em 24/3/2008, a Impugnante procedeu ao pagamento da divida em execução no o processo executivo n.º ..., no valor de EUR 12.217,64 (cf. comprovativo constante de fls. 14 dos autos e declaração emitida pelo IGFSS constante a fls. 216 dos autos).
14. Em 26/3/2008, a Impugnante apresentou no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., secção do processo de Setúbal, a oposição judicial ao processo de execução n.º ... (cf. carimbo a fls. 13 do PEF).
15. Em 30/12/2009, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, secção de processo de Setúbal emitiu a informação, constante de fls. 26 do PEF, cujo conteúdo se dá como reproduzido, com o assunto “Executado: A.......... Lda.” do qual consta em síntese:
“(…)
• A E.......... LDA NISS..........47 efectuou a entrega de DR à taxa de 23,5 em relação a M............ e G............ desde 200304. As DR foram validadas à taxa geral global 34,75 de acordo com a qualificação das trabalhadoras (05 - 000 - REGIME GERAL EM CONTRIB. C/ FINS LUCRATIVOS OU S/ FINS LUCRATIVOS SE A SIT. CONTRIB. PERANTE A SS NÃO ESTIVER REGULARIZAD);
• Em relação às referidas trabalhadoras, a EE requereu, em 18/12/2006, a redução da taxa contributiva ao abrigo do DL299/86, de 19 de Setembro, efectuando prova de que as mesmas eram portadoras de deficiência;
• Os processos foram deferidos por despacho do Director da AFC, de 16/03/2007;
• A EE foi notificada através dos ofícios 35027 de 20/03/2007 e 35026 de 20/03/2007 respectivamente, de que os requerimentos foram deferidos com efeitos a partir de 12/2006, data do requerimento. (…)”
*** A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:
“Inexistem factos não provados com interesse para a decisão em causa, atenta a causa de pedir..” * A decisão da matéria de facto fundou-se no seguinte:
“A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos, e especificados nos vários pontos da matéria de facto provada.”*** - De Direito
No presente salvatério vem o Recorrente advogar que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento ao ter considerado que impendia sobre o Recorrente o dever de notificar a Recorrida das liquidações adicionais efetuadas, bem como se ao julgar procedente o pedido de restituição das quantias pagas em sede executiva o fez com erro de julgamento em virtude de as mesmas terem sido pagas em cumprimento duma obrigação natural.
O Tribunal a quo após identificar o thema decidendum e de efetuar o enquadramento jurídico da redução da taxa contributiva nas situações de incapacidade dos trabalhadores, dissertou do seguinte modo:
“A Impugnante invoca ainda a falta de notificação da liquidação e em consequência a falta de fundamentação do ato de liquidação, uma vez que da certidão de divida que acompanhou o ato de citação, não resulta qualquer elemento esclarecedor sobre as razões de facto e de direito que originaram a liquidação oficiosa das quantias exequendas.
Por norma, as contribuições para a Segurança Social resultam da apresentação das declarações de remunerações pelo contribuinte, a quem compete também proceder à liquidação dos montantes a entregar, aplicando as percentagens legais às remunerações, numa figura próxima da autoliquidação. Mas nem sempre é assim. Casos há, como o previsto no artigo 33.º do Decreto-lei n.º 8-B/2002, em que a liquidação é oficiosa e resulta da iniciativa da Segurança Social em suprimento das obrigações dos contribuintes.
Nestas situações, a inscrição e a declaração de remunerações bem como o cálculo das contribuições que lhe correspondam, efectuados oficiosamente pela Segurança Social, constituem um verdadeiro acto administrativo declarativo de liquidação de um tributo.
Assim sendo, dispõe o artº 36º, nº 1 do CPPT “os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam validamente notificados”.
E o artº 38º, nº 1 do mesmo Código estabelece que “as notificações são efectuadas obrigatoriamente por carta registada com aviso de recepção, sempre que tenham por objecto actos ou decisões susceptíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes ou a convocação para estes assistirem ou participarem em actos ou diligências”.
Os atos e decisões suscetíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes são, não apenas os que efetivamente determinam uma alteração desta, mas também aqueles em que está em discussão a possibilidade de se concretizar essa alteração.
A essa luz, devem assim qualificar-se os atos ou decisões que criam deveres ou encargos para os destinatários ou lhes restringem ou negam direitos que aqueles entendem ter.
Conforme refere, o Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, in CPPT anotado e comentado, ed. 2006, pág. 345, “Serão, pois, de efectuar por carta registada com aviso de recepção, entre outras e em princípio, as notificações de actos de liquidação de tributos que concretizem uma alteração da situação tributária e as de actos que recusem o reconhecimento de benefícios fiscais”.
Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 26/2/2014, no processo n.º 1481/13, disponível para consulta em www.dgsi.pt., do qual consta e se acompanha:
“(…) todavia, por imperativo legal, é ao contribuinte que incumbe apresentar as declarações de remunerações e correspondentes quantitativos e pagar as contribuições até ao dia 15 do mês seguinte àquele que disserem respeito (vejam-se as Leis referidas nas certidões executivas). O contribuinte tem assim pleno conhecimento da quantia que mensalmente tem que liquidar, ou melhor, tem que “auto-liquidar” não existe, portanto, qualquer ónus para a Segurança Social traduzido num “facere”, no que à liquidação da taxa social única diz respeito; os serviços da Segurança Social, emitem avisos de débito e notificam, em regra, através de aviso postal simples, o contribuinte.
Consequentemente, o que é determinante para o caso é saber se estamos perante uma situação em que o contribuinte tivesse procedido à auto-liquidação das contribuições em causa ou, antes, perante uma liquidação oficiosa levada a cabo pela Segurança Social, nos termos do disposto nos artºs dos diplomas mencionados nas certidões executivas.
Isso aconselha a que se teçam algumas considerações sobre a tipologia da liquidação tributária segundo o critério orgânico ou da qualidade do sujeito competente para a realizar, face ao qual existe a liquidação administrativa levada a efeito pela AT, e a liquidação efectuada pelos particulares, que abrange a denominada autoliquidação e a liquidação por terceiro ou liquidação em substituição.
Assim, a liquidação, lato sensu, é o conjunto de todas as operações tendentes ao apuramento do imposto, compreendendo o lançamento subjectivo destinado a determinar ou identificar o contribuinte ou sujeito passivo da relação fiscal e o lançamento objectivo por meio do qual se determina a matéria colectável ou tributável do imposto e, bem assim, se determina a taxa a aplicar, no caso de pluralidade de taxas, a liquidação stricto sensu traduzida na determinação da colecta através da aplicação da taxa à matéria colectável ou tributável e as (eventuais) deduções à colecta.
A chamada Taxa Social Única (TSU) foi uma designação introduzida pelo DL nº 140-D/86, de 14 de Junho, que operou a integração das então denominadas quotizações para o Fundo de Desemprego nas contribuições obrigatórias para a Segurança Social por forma a unificar a taxa contributiva para a segurança social dos trabalhadores por conta de outrem, sendo regulada ao tempo dos factos pelo DL nº 199/99, de 8 de Junho e constituída, relativamente aos trabalhadores dependentes, por dois tipos de quotizações: por um lado, as quotizações a cargo das entidades patronais e, por outro, as quotizações a cargo dos trabalhadores.
Ora, no que tange à liquidação e cobrança da TSU, verifica-se uma autoliquidação em relação às contribuições das entidades patronais, e uma liquidação por terceiro (liquidação em substituição) no que se refere às contribuições dos trabalhadores, dado que estas são objecto de retenção na fonte a título definitivo pelas entidades patronais. (…)”
No caso dos autos, a Impugnante entre 2003/03 a 2006/11, apresentou a declaração de contribuições relativas a estas duas trabalhadoras e procedeu ao seu pagamento a taxa reduzida, convencida que a redução por deficiência anunciada era reconhecida automaticamente, desde que preenchidos os pressupostos.
Ora, como já analisado a propósito da legalidade das liquidações exequendas, verifica-se que o legislador faz depender o beneficio, de requerimento e despacho de deferimento para o efeito.
Contudo, a Segurança Social ao proceder à alteração das declarações contributivas autoliquidadas pela Impugnante ao fim de três anos e meio, tinha que lhe dar disso conhecimento através da notificação de liquidação devidamente fundamentada, para que a Impugnante apreendesse os motivos da liquidação oficiosa e querendo exercer os direitos de defesa e esclarecimento.
Todos os atos ou decisões que criam deveres ou encargos para os destinatários ou lhes restringem ou negam direitos que aqueles entendem ter, como era o caso da Impugnante que durante três anos e meio declarou e procedeu ao pagamento das contribuições relativas aquelas trabalhadoras com a redução, configuram decisões suscetíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes, que exigem a sua notificação e possibilidade de compreensão ou impugnação por parte dos contribuintes.
Verifica-se assim, a falta de notificação das liquidações exequendas o que importará a sua anulação, devendo ser devolvido à Impugnante o valor pago indevidamente na secção de processo de Setúbal do IGFSS, I.P.”
Adiantamos, desde já, que o Tribunal a quo decidiu com total acerto.
Na verdade, quando estejamos, como é o caso dos autos, perante liquidações efetuadas pelo Recorrente em virtude dum inadequado enquadramento contributivo efetuado pelos sujeitos passivos, estas liquidações mais não são do que liquidações adicionais corretivas. Em consequência, e uma vez que se trata de atos em matéria tributável que afetam os direitos e interesses legítimos dos contribuintes, estes só produzem efeitos quando lhes sejam validamente notificados, nos termos do disposto no artigo 36º do CPPT, aplicável ao caso.
Ora, não tendo ficado provado nestes autos, nem tal tendo sido sequer alegado pelo Recorrente, que, antes da instauração dos processos executivos, havia procedido à notificação da Recorrida das liquidações por si emitidas para corrigir as declarações anteriormente entregues por esta, e sendo certo que essa prova, nos termos do disposto no artigo 74º da LGT, impendia sobre si, o presente recurso está votado ao insucesso, pelo que se impõe a confirmação da decisão recorrida.
Se bem se entendeu a conclusão X das alegações de Recurso, defende a Recorrente que não pode ser condenada à restituição, como se decidiu na sentença sob escrutínio, pois o pagamento efetuado pela Recorrida foi feito no âmbito do cumprimento duma obrigação natural.
Apreciando.
De acordo com o disposto no artigo 402º do Código Civil Português, as obrigações naturais são aquelas que se fundam num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça, sendo que esta é uma figura de carácter geral.
Uma das características destas obrigações é a sua não coercibilidade, ou seja, a impossibilidade do credor acionar o devedor para o seu cumprimento. Geralmente, a doutrina e a jurisprudência dão como exemplos o cumprimento duma obrigação prescrita ou do dever legal que haja caducado, bem como o da percentagem remitida pelos credores ao devedor concordado, e não um simples pensamento de piedade, de caridade, de cavalheirismo ou a um sentimento de escrúpulo de carácter individual.
Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 304º do Código Civil, uma vez completada a prescrição da obrigação, o devedor tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito do exequente. No entanto, o nº 2 do mesmo preceito estabelece que não pode ser repetida a prestação realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita, ainda quando feita com ignorância da prescrição. Assim, se o cumprimento da obrigação prescrita é feito com conhecimento da prescrição, há renúncia tácita, nos termos do n.º 2 do artigo 302.º. Já se o devedor ignorava que a dívida estava prescrita, não há renúncia, mas a lei não permite a repetição da prestação, como se não fosse devida (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, vol. 1, 2.ª edição revista e aumentada, em anotação ao artigo 304.º).
Como ensinam em Pires de Lima e Antunes Varela, na obra citada, em anotação ao artigo 402.º “O dever de ordem moral ou social em que se funda a obrigação não é definido por lei, nem o podia ser. Cabe, portanto, um largo arbítrio aos tribunais. Eles deverão determinar, em relação a cada caso, se existe ou não um dever que justifique a qualificação da obrigação como natural. Alguns casos estão expressamente previstos na lei. Assim, o n.º 2 do artigo 304.º refere-se às dívidas prescritas, sujeitando-as a um regime que se harmoniza com o preceituado nesta secção”.
No caso do presente recurso, como aliás já ocorria em sede de contestação, nunca adianta a Recorrente em que factos fundamenta esta sua alegação de que estaríamos perante o cumprimento duma obrigação natural. Como decorre do acima explanado seria necessário que a obrigação já não pudesse ser coercivamente exigível. Ora, a Recorrente nunca sustenta tal inexigibilidade.
Ainda assim, e porque o conhecimento da prescrição pode ser oficiosamente conhecido pelo Tribunal, sempre se dirá que as dívidas pagas no âmbito de processos executivos em causa nestes autos não se encontravam prescritas, pois o prazo de prescrição, à data dos factos, era de dez anos, por força do disposto no art.14º, do Dec. Lei 103/80, de 9/3 e, mais tarde do art. 53º, nº 2, da Lei 28/84, de 14/8, e contava-se o seu decurso a partir da data em que a obrigação deveria ser cumprida, sendo que a prescrição se interrompe com a prática de qualquer diligência administrativa, realizada com conhecimento do responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou cobrança da dívida, designadamente, a instauração de processo de execução fiscal (cfr.artº.63, nºs.2 e 3, da Lei 17/2000, de 8/8; artº.49, nºs.1 e 2, da Lei 32/2002, de 20/12; artº.60, da Lei 4/2007, de 16/1; artº.187, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei 110/2009, de 16/09).
Ora, sendo as dívidas referentes aos períodos de 04/2003 a 10/2006 e tendo a Recorrida sido citada no âmbito do processo executivo em 26/02/2008, nem a dívida mais antiga se encontrava prescrita, pelo que não era possível invocar o regime das obrigações naturais no que ao regime do seu cumprimento respeita.
Acresce que, como doutrina Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6ª edição, 2011, Anotado e comentado, 3º vol., em nota 10. ao artigo 175º, “(…) se depois de transcorrido o prazo de prescrição, a execução prossegue, sendo praticados actos tendentes a concretizar o seu objectivo de cobrança coerciva (como, por exemplo, a citação, a penhora, ou a preparação para venda) não será adequado entender que o pagamento é efeito espontaneamente, mesmo que se trate de um pagamento qualificável como voluntário, para efeitos dos arts. 264º a 269º do CPPT, pois o devedor será pressionado por esses actos a efectuar o pagamento, para evitar as consequências lesivas que deles advêm. (…) O conceito jurídico de “prestação espontânea” é dado no art. 403º, nº 2 do CC, referindo-se a “a prestação considera-se espontânea, quando é livre de toda a coacção”. Esta referência a “toda a coacção”, parece abranger não só a ilícita como a lícita, pois é esse o significado natural da expressão “toda”. (…) De todo o modo, mesmo que se entenda que aquele conceito de espontaneidade utilizado no art. 403º, nº 2 do CC apenas se reporta a coacção ilícita, não poderá deixar de entender-se que integra este conceito a prática de actos de execução fiscal depois de decorrido o prazo de prescrição, pois a prescrição, no processo de execução fiscal é de conhecimento oficioso, nos termos do art. 175º do CPPT e, por isso, decorrem desta norma deveres legais para a administração tributária de declarar a prescrição e de se abster da prática de actos executivos, deveres estes cuja omissão constitui um facto ilícito, à face do conceito de ilicitude aplicável em matéria de actos de gestão pública, que é dado no art. 6º do DL nº 48051, de 21-11-1967 e no art. 9º do RRCEE, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro. Consubstanciando o prosseguimento indevido da execução um acto ilícito, está-se perante um acto gerador de responsabilidade civil extracontratual (…) Porém, esta possibilidade de o lesado obter indemnização não dispensa a administração tributária do dever de devolver, oficiosamente ou a requerimento do interessado, aquilo que indevidamente foi cobrado, como lhe impõe o princípio da legalidade, que deve observar a toda a sua actuação (arts. 266º, nº 2 da CRP e 55º da LGT)(…)”
Consequentemente, tendo a decisão recorrida condenado a Recorrente ao pagamento do indevidamente pago, a mesma não enferma do erro de julgamento que lhe vem assacado, pelo que o presente recurso tem também de naufragar quanto a este argumento, mantendo-se na ordem jurídica a sentença recorrida.
* CUSTAS
No que diz respeito à responsabilidade pelas custas do presente Recurso, atendendo ao total decaimento do recorrente, as custas são da sua responsabilidade. [cfr. art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT].
*** III- Decisão
Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2024
Cristina Coelho da Silva - Relatora
Ana Cristina Carvalho
Maria da Luz Cardoso |