Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1259/21.5BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:10/10/2024
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA SOBRE O SECTOR ENERGÉTICO
Sumário:I. A contribuição extraordinária sobre o sector energético é uma contribuição financeira, destinada a compensar o Estado pelos custos da regulação do sector energético, pelo que é devida pelos operadores de mercado em causa, em razão do impacto que a sua actividade tem nas necessidades de regulação do sector.

II. O princípio da especificação orçamental das receitas não é posto em crise, na medida em que a receita em referência é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético, sede onde pode ter lugar, com mais eficácia, o escrutínio público da recolha e emprego de tais receitas.

Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO
I- Relatório
R……….-Armazenagem, S.A., deduziu impugnação judicial peticionando a anulação do acto tributário de autoliquidação da contribuição extraordinária sobre o sector energético [CESE] n.º ………………230, referente ao ano de 2020, no montante de €1.536.838,16, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o acto de autoliquidação reclamado, pedindo ainda a restituição da CESE indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios.O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, por sentença proferida a fls.671 e ss., Sitaf, datada de 21/03/2022, julgou a presente impugnação judicial improcedente e, em consequência, manteve na ordem jurídica a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e a autoliquidação de CESE sindicadas.
Inconformada com o decidido, apelou a Sociedade Impugnante para este Tribunal Central Administrativo, tendo com a alegação, inserta a fls.723 e ss., Sitaf, apresentado as seguintes conclusões:
A. A Sentença recorrida apreciou a CESE de 2020 por simples remissão, directa ou indirecta, para a jurisprudência do TC já conhecida sobre a CESE, sendo que, porém, essa jurisprudência não é adequada a dirimir a questão dos autos, na medida em que se debruçou sobre a vigência do tributo em períodos que vão apenas de 2014 até 2017 – anos (bastante) anteriores ao que aqui está em causa (2020). Relativamente a qualquer ano posterior a 2017 – incluindo, portanto, 2020 –, o TC ainda não se pronunciou.
B. No que tange à apreciação da alegada violação do princípio da discriminação e da regra da especificação orçamental, a mesma jurisprudência do STA convocada a dirimir o litígio não poderá ser aplicada no presente, uma vez que se escuda, por um lado, na qualificação da CESE como contribuição financeira, no que não se concede, e, por outro, chama à colação jurisprudência do TC que não poderá ser aplicada com o alcance e o significado utilizado no Acórdão em referência. Por tudo isto a sentença recorrida incorre em erro de julgamento.
C. A CESE foi estabelecida com a intenção de constituir uma medida extraordinária (conforme decorre, aliás, da sua própria designação), no âmbito e a propósito da negociação e cumprimento do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado entre o Estado português, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, que vigorou entre 2011 e 2014 (vulgo “programa da Troika”). Assim sendo, era suposto que a CESE vigorasse por um período transitório e limitado. Porém, desde que foi criada, a medida tem vindo a ser prorrogada anualmente, até ao presente, estando já no nono ano de vigência (quase uma década). O período em causa nos presentes autos, 2020, foi o sétimo ano em que a CESE esteve em vigor.
D. Quer agora, em 2022, quer no ano aqui em questão, 2020, estamos a falar de momentos por reporte aos quais foram há muito ultrapassadas as circunstâncias que justificaram a permanência excepcional e transitória da CESE na nossa ordem jurídica. De acordo com a jurisprudência mais recente do TC, essas circunstâncias reconduzem-se à situação de emergência financeira que a República Portuguesa atravessou entre o início e meados da década passada. Com efeito, apesar de até ao momento o Tribunal se ter colocado do lado da validade da CESE, não só teve apenas em conta o tributo vigente entre 2014 e 2017 como, das decisões conhecidas, é possível retirar como consequência que, a partir de 2018, a medida deixou de ter justificação constitucional para vigorar (extraordinariamente) no nosso ordenamento.
E. A essa luz, tanto os actuais nove anos de duração da CESE quanto os sete que ela já levava em 2020 configuram uma situação óbvia de uso excessivo e inconstitucional do poder do Estado, que requer com urgência uma intervenção que o limite – pelo menos, como última ratio, uma intervenção judicial. É essa intervenção que se requer a este Tribunal, enquanto garante dos princípios constitucionais em que se baseia a ordem jurídico-política portuguesa.
F. Segundo o TC, a conformidade da CESE com a Constituição mantém-se apenas enquanto ela puder ser considerada uma medida extraordinária, pelo que saber se ela ainda merece ou não essa qualificação é uma questão central, um critério fundamental que deve orientar a apreciação da sua validade ou invalidade. Ora, à luz da jurisprudência, não faz sentido que, no sétimo ano de vigência da medida, ainda se possa considerar admissível a permanência da CESE na ordem jurídica. É que não é só a urgência da receita gerada que despareceu (em 2020, Portugal não estava já na situação financeira de há onze anos. Nessa altura, aliás, o Governo inclusivamente celebrava há muito o facto de termos ultrapassado essa situação); desapareceu também a urgência de o tributo existir naquelas condições – condições essas que, lembre-se, o TC aceitou porque eram «de fácil implementação e aplicação para um período de aplicação transitório e certo, onde não se justificaria a implementação de critérios, porventura mais adequados (…), mas muito complexos e com elevados custos de cumprimento, ou seja, totalmente desajustados à urgência do caso pretendido».
G. Pois bem: para o TC (por exemplo, no Acórdão n.º 532/2021), saber se a CESE reveste ou não natureza extraordinária é uma pergunta cuja resposta tem de ser determinada por um “critério conjuntural”, em cada ano de vigência, à luz da “verificação periódica de um certo estado de coisas”.
H. No entanto, esta circunstância de a validade da CESE tem de ser apreciada ano a ano, de acordo com a manutenção ou não do contexto que justificou a sua criação, implica que não nos possamos desviar de alguns princípios essenciais. Em primeiro lugar, sob pena de se abrir a porta à maior arbitrariedade possível, ao configurarem-se as razões que justificam a continuidade do tributo na ordem jurídica, não podemos estar permanentemente a pesquisar razões novas que sustentem, por exemplo, a natureza extraordinária da CESE.
I. É verdade que, potencialmente e em abstracto, em todos anos, até à eternidade, existirão por certo no Estado português circunstâncias (por exemplo, de índole orçamental) que poderão justificar a necessidade de receitas tributárias acrescidas, de natureza extraordinária; todavia, quando nos debruçamos sobre uma determinada medida concreta, para averiguar se ela é (ou ainda permanece) constitucionalmente válida – desde logo à luz da sua eventual natureza extraordinária – , não nos podemos afastar dos motivos que levaram o legislador a criá-la: é que, se optarmos por esse afastamento, estamos a aceitar que pode deixar de haver – ou deixar de ser impossível averiguar – qualquer correspondência entre a razão de ser do tributo e a necessidade de o exigir especificamente aos operadores económicos que são os seus sujeitos passivos.
J. Em vez de estarmos sempre a justificar a CESE com razões novas, ou com razões que, mesmo existindo à data da criação do tributo, não consta dos documentos legislativos ou de qualquer elemento do contexto da sua criação que tenham sido levadas em conta, aquilo a que estamos adstritos é a perguntar se as razões que presidiram à implementação do tributo se mantêm ou não, ou se foram cumpridas com a receita gerada pela medida. Caso contrário, estaremos perante uma medida violadora do princípio da proporcionalidade, por não existir correspondência entre a sua suposta necessidade e os objectivos determinados pelo legislador.
K. Nesse caso, só há duas hipóteses: ou a CESE tem de ser expurgada da ordem jurídica ou as suas regras têm de ser alteradas, com – nas palavras do TC – “a implementação de critérios, porventura mais adequados” à vigência do tributo posterior ao momento extraordinário da sua criação.
L. De resto, diga-se também, em segundo lugar, que não se pode dar justificações para a CESE que alterem natureza do tributo, a não ser que daí se retirem as devidas consequências, por exemplo e desde logo, considerando que não se trata de uma contribuição financeira, mas sim de um imposto. Lembre-se que a qualificação da CESE como uma contribuição, estabelecida no Acórdão n.º 7/2019, tinha por pressuposto que a actividade dos sujeitos passivos dava causa aos problemas que o tributo visava ajudar a resolver e/ou beneficiavam da actuação do Estado na resolução desses problemas. Porém, se a CESE passar a ser justificada sem apelo a essa ideia de bilateralidade, então é porque é um imposto e tem de ser tratada como tal, de acordo com os princípios que conformam a constitucionalidade da criação de impostos.
M. Ora, o único argumento que o TC avança para justificar a validade da CESE até 2017 é o das condições de emergência financeira em que a República Portuguesa se encontrava. Em concreto, o TC justifica a CESE com a situação de rescaldo do PAEF, durante o qual Portugal permanecia num contexto de fragilidade das contas públicas, e a manutenção do procedimento por défice excessivo, previsto no artigo 126º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (relativamente à CESE dos anos de 2015 e 2016, podemos referir as Decisões Sumárias n.ºs 358/2021 e 422/2021 e os Acórdãos n.ºs 436/2021, 437/2021, 438/2021, 513/2021 e 532/2021. Quanto a 2017, podemos citar o Acórdão 736/2021).
N. Antes de mais, analisada a jurisprudência em apreço, o que importa sublinhar é que o TC dá apenas uma justificação para a CESE de 2015, 2016 e 2017 – e essa justificação é a necessidade de consolidação orçamental.
O. Esta circunstância implica necessariamente que a CESE deve ser considerada como um verdadeiro imposto, na medida em que, se serviu simplesmente para consolidação orçamental, constitui afinal um tributo cobrado para os fins gerais dos impostos, sem qualquer efeito no financiamento de medidas de sustentabilidade do sector energético, seja na redução da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional ou em qualquer outra. Assim, é indispensável a medida ser apreciada à luz dos princípios constitucionais que regem a criação de impostos.
P. Aliás, insista-se, a partir de 2018 a CESE perdeu até a ligação à emergência da consolidação orçamental, que nessa altura deixou de se verificar, o que acarreta que deixou de existir qualquer correspectividade especial entre a CESE e uma necessidade do Estado que pudesse justificar, mesmo que temerariamente, a sua vigência extraordinária. Também por este facto se deve concluir, então, que falar hoje da CESE como um tributo bilateral –designadamente uma contribuição especial – é um erro.
Q. Com efeito, levando em linha de conta a jurisprudência do TC, tem de se concluir que a CESE deixou de ser uma medida extraordinária em 2018, pois que nesse ano Portugal não só já tinha há muito deixado para trás o PAEF como havia fechado o procedimento por défice excessivo. Por reporte a 2017, o último ano analisado pelo TC, este já só teve como pressuposto da natureza extraordinária da CESE a existência do procedimento por défice excessivo: se este terminou, terá de se concluir que com ele terminou igualmente a validade transitória e excepcional da CESE. Ao contrário do que sucedeu de 2014 a 2017, em 2018 e nos anos seguintes Portugal (incluindo 2020, aqui em apreço) já não estava obrigado pela União Europeia à adopção de medidas orçamentais extraordinárias. Em 2018, o défice foi de 0,5% do PIB, que na altura o Governo celebrou como um «resultado histórico e virtuoso».
R. Sendo verdade que em 2020 o défice ultrapassou os 3%, isso ficou a dever-se única e exclusivamente à necessidade de financiar a resposta urgente do Estado à pandemia da COVID-19: ou seja, as necessidades circunstanciais de financiamento não só não resultaram de qualquer factor estrutural como, não tendo elas por responsáveis as empresas do sector energético, não podiam justificar uma medida que sobre estas incidisse especialmente.
S. Portanto, se a jurisprudência do Tribunal Constitucional é a que é, nada pode justificar a vigência da CESE em 2020. O Tribunal sinaliza claramente uma aproximação da CESE ao limite do aceitável, já que a razão com a qual o tem identificado a justificação da validade temporária da medida – a emergência financeira de Portugal – não se verifica nos anos seguintes àqueles sobre os quais se debruçou a jurisprudência conhecida. O limite do aceitável, segundo o TC, foi ultrapassado em 2018.
T. É por isso que, a partir desse ano, o Governo foi dando sinais formais – nas sucessivas leis orçamentais – de que pretende uma revogação faseada da medida. Fê-lo mediante autorizações legislativas, para sinalizar uma alegada vontade do Estado português de, mais tarde ou mais cedo, remover a CESE do ordenamento jurídico. E fê-lo porque teve a noção do risco de constitucionalidade de o não fazer.
U. Porém, ao desaproveitar sistematicamente essas autorizações legislativas, o que o Governo demonstrou é que, em bom rigor, a sua intenção é fazer letra-morta da natureza extraordinária da CESE, que deste modo permanece ainda na ordem jurídica basicamente como foi aprovada em 2014.
V. Do exposto resulta que a CESE tem de ser apreciada como aquilo que verdadeiramente é – ou que verdadeiramente era já em 2018: um imposto especial sobre o sector da energia, sem natureza extraordinária.
W. Trata-se, sem dúvida, de uma medida inconstitucional.
X. A inconstitucionalidade decorre, antes de mais, de a CESE ser um imposto cujas bases de tributação subjectiva e objectiva violam o princípio da capacidade contributiva, concretização do princípio da Igualdade (artigo 13º da Constituição), desenvolvido também, no que respeita à base objectiva, pelo princípio da tributação das empresas pelo lucro real (n.º 2 do artigo 104º).
Y. Sobre isso, deve começar-se por sublinhar que a Recorrente não exerce qualquer actividade no sector electroprodutor, nem sequer em qualquer outro subsector da electricidade, pelo que em nada contribui para o problema da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional (SEN) – que é o principal problema regulatório que o regime da CESE declara pretender resolver –, não beneficiando, pois, de nenhuma forma directa ou especial, da actividade do Estado exercida no âmbito do problema em causa (o mesmo acontecendo com grande parte dos sujeitos passivos do tributo).
Z. Não tendo qualquer relação com a dívida tarifária do SEN, a Recorrente não contribuiu ou beneficiou das circunstâncias que geraram esse problema, pelo que não tem também relação com o consequente desequilíbrio orçamental que o Estado português assumiu igualmente como objectivo anular ou atenuar (o mesmo acontecendo, também aqui, com grande parte dos sujeitos passivos da CESE). A Recorrente não é parte da causa de tal desequilíbrio, nem retirará da actuação estadual nesse aspecto qualquer benefício que não seja partilhado, em princípio na mesma medida, por todos os particulares.
AA. Quanto ao financiamento de outras políticas sociais e ambientais do sector energético, em geral, que o legislador também inscreveu formalmente no regime como justificação da CESE, não se conhecem, com um grau mínimo de probabilidade objectiva, qual a natureza, o conteúdo e a importância das mesmas, razão pela qual nunca poderemos dar por demonstrada a sua indispensabilidade e, portanto, que os sujeitos passivos do tributo poderão em princípio, alguma vez, ser efectivos beneficiários de uma ou mais das políticas em causa.
BB. Aliás, mesmo que pudéssemos estabelecer uma ligação entre um benefício decorrente das políticas em questão e a actividade das empresas energéticas que não actuam no sector da produção de electricidade – no qual se gerou o problema da dívida tarifária do SEN e o consequente desequilíbrio orçamental –, sempre essa ligação seria insuficiente para assegurar a legitimidade da CESE, na medida em que aquelas empresas continuariam a suportar um tributo cuja receita (a restante receita) é afecta a um objectivo com o qual nada têm a ver (a redução da dívida tarifária do sector electroprodutor) e a um outro cuja solução beneficia de igual modo, geral e indiscriminadamente, todos os particulares – para além de ser ele próprio, em parte, uma consequência daquela dívida tarifária (a consolidação orçamental).
CC. Em face do exposto, a CESE não cabe no campo dos tributos bilaterais ou sinalagmáticos (taxas ou contribuições financeiras), por não respeitar o princípio da equivalência: os montantes exigidos não o são para o exercício de uma actividade do Estado de que os sujeitos passivos concretamente em causa beneficiem (directa ou indirectamente, efectiva ou presumivelmente, de modo suficientemente distinto da generalidade dos particulares não abrangidos pela incidência do tributo), não sendo sequer possível dizer que a actividade a financiar é originada, específica ou genericamente, pela daqueles sujeitos passivos.
DD. A CESE é, pois, um verdadeiro imposto – um imposto especial sobre alguns operadores de um sector de actividade específico, em razão da sua alegada capacidade contributiva particular.
EE. Posto isto, a CESE é um imposto materialmente inconstitucional, por violação do princípio da capacidade contributiva, subprincípio em que se concretiza no campo dos impostos o princípio constitucional da Igualdade (artigo 13º da Constituição), porque a sua base de incidência subjectiva atinge contribuintes que pouco ou nada têm a ver com os fins declarados da “contribuição” (não são de todo beneficiados com as actividades estaduais que a receita pretende financiar nem deram origem aos problemas que aquela é suposto colmatar) – designadamente todos aqueles que não actuam no âmbito do sector da produção de electricidade, como é caso da ora Recorrente.
FF. Vista como um imposto sobre o rendimento, a CESE viola ainda o princípio da capacidade contributiva por, ao ter como base objectiva o valor dos activos das empresas abrangidas, constituir uma aproximação indirecta ou presumida aos lucros das mesmas – uma aproximação ou presunção fantasiosa, puramente conjecturada do rendimento real, que facilmente conduzirá a resultados arbitrários: com efeito, a CESE permite ao Estado apurar uma colecta sobre lucros ainda que nenhuma capacidade contributiva se revele efectivamente nessa forma, ou uma colecta igual ou superior aos lucros efectivamente obtidos, caso em que representará uma taxa de 100% ou mais de tributação do rendimento e, nessa medida, um imposto confiscatório.
GG. Além disso, a CESE tem um efeito de dupla tributação e sobreposição ao IRC que é inaceitável, acentuado pela decisão do legislador de impedir que aquela seja dedutível em sede do referido imposto, o que define com especial clareza a violência do tributo e a sua inconstitucionalidade, mesmo se considerado como um imposto sobre o património ou uma contribuição financeira, pelo menos por violação do princípio da proporcionalidade.
HH. E, na verdade, a CESE apresenta problemas inultrapassáveis também ao nível do respeito devido pelo princípio da proporcionalidade.
II. Este princípio é violado, em primeiro lugar, na sua dimensão de idoneidade ou adequação, porque a CESE não é um instrumento tendente a resolver o problema da dívida tarifária do SEN – um dos objectivos legislativamente declarados da medida, ao qual é consignado uma parte importante da respectiva receita: não se trata de uma medida que possa assegurar a eliminação ou sequer uma atenuação séria, estrutural, dessa dívida tarifária (mediante uma alteração das regras vigentes em que assenta a sua existência), mas antes, simplesmente, de uma fonte de receita obtida a fim de o Estado continuar a assegurar o objectivo político central quanto à matéria em causa, ou seja, proteger os consumidores finais de electricidade do esforço de redução da dívida tarifária, impedindo o aumento dos preços em medida pelo menos aproximada à exigida por aquela redução.
JJ. Neste sentido, a CESE é uma medida inócua e indiferente, tendo por referência a sua aproximação ao fim visado, e até contraproducente, porque produz o efeito negativo de adiar a resolução dos desequilíbrios do SEN e, assim, prolongar e acentuar o problema.
KK. Depois, a CESE viola o princípio da proporcionalidade também porque é consignada em parte ao financiamento de políticas sociais e ambientais no mesmo ano em que, por exemplo e desde logo, foi reduzida a taxa de IRC em dois pontos percentuais, perdendo-se uma receita pública, já existente, que poderia obviamente servir para aquele fim (não está, assim, cumprida a dimensão da necessidade ou exigibilidade em que assenta a regra da proporcionalidade), e ainda porque, apesar de os objectivos declarados do legislador serem importantes, nunca poderão ser considerados como pretextos suficientes para justificar o prejuízo económico e patrimonial que a CESE inflige nos seus sujeitos passivos, ainda para mais de modo tão violador do princípio da igualdade: na incidência, lembre-se, são incluídas entidades – como a Recorrente – que pouco ou nada têm a ver com as causas dos problemas que suscitaram a criação do tributo ou que pouco ou nada beneficiarão, directa e especialmente, com a solução de tais problemas (desrespeita-se, assim, a dimensão da proporcionalidade em sentido estrito ou do equilíbrio).
LL. Finalmente, ao que antecede acresce que a receita da CESE – tendo em conta a sua relevância orçamental e a sua natureza – não se encontra devida e suficientemente orçamentada à luz do princípio da discriminação orçamental, previsto pelo disposto no artigo 105.º, n.º 1, da CRP, e da regra da especificação orçamental, decorrente do artigo 105.º, n.º 3 da CRP e do artigo 17.º da LEO, quer - para o que aqui releva – na Lei do Orçamento do Estado de 2014, quer na Lei do Orçamento do 2020.
MM. Com efeito, a receita da CESE, na Lei do Orçamento do Estado para 2014, não é mencionada, especificamente, nem nos mapas orçamentais, nem nos desenvolvimentos orçamentais, concluindo-se que não se encontra inscrita de modo desagregado em nenhum mapa orçamental, do que decorre que, (i) no Orçamento do Estado para 2014 não é possível encontrar a receita da CESE no meio das demais receitas tributárias; (ii) não é, de todo, possível apurar o montante da receita que se previa arrecadar com a CESE; (iii) não foi cumprido o desiderato para o qual foi criada a CESE, isto é, a sua transferência, ainda que parcial, para o FSSSE.
NN. Já no que respeita à Lei do Orçamento do Estado para 2020, de acordo com o Tribunal de Contas, a receita da CESE encontra-se englobada no Mapa I, em “impostos diretos diversos”, não sendo, porém, possível, extrair o valor concreto previsto arrecadar com a cobrança deste tributo. Tal valor revela-se apenas extrapolável a partir da referência feita à receita global do FSSSE, no Mapa V – 132 milhões e 140 mil euros. No entanto, a CESE não é a única fonte de receita do FSSSE, pelo que não é possível, sem mais informação, apurar o valor da CESE efetivamente orçamentado neste ano.
OO. Nestes termos, é indubitável que ocorreu violação grosseira do princípio da discriminação da regra da especificação orçamental, pois que, embora a receita decorrente da CESE em causa se presuma prevista nas aludidas Leis do Orçamento do Estado – neste caso, por referência aos anos de 2014 e 2020 –, a especificação e o desdobramento orçamental desta receita não respeitam, categoricamente, o disposto na CRP e na LEO.
PP. Esta situação (i) permitiu a existência de um crédito orçamental secreto, resultado esse cujo impedimento constitui a razão de ser da previsão do princípio da especificação orçamental; (ii) potenciou a aprovação do orçamento sem que os Srs. Deputados tivessem conhecimento do montante da receita cuja cobrança autorizavam; (iii) não permite a fiscalização da execução orçamental, que compete também aos Srs. Deputados realizar, sacrificando o fator de accountability, também inerente à aprovação parlamentar do orçamento anual.
QQ. Nesta medida, a receita escapou, inevitavelmente, ao crivo parlamentar, uma vez que a votação dos dois orçamentos em crise – e de todos os Orçamentos entre 2014 e 2021 -, foi efetuada sem pleno e cabal conhecimento do montante de receita previsto cobrar a título de CESE, o que é passível de permitir a utilização de verbas públicas para finalidades não previstas na Lei – o que é proibido pela CRP e, também, pela LEO, que determina, quer na redação de 2001, quer na de 2015, a nulidade dos créditos que possibilitem a existência de dotações para utilização confidencial ou para fundos secretos (ainda que essa utilização não se verifique). Assim, a não especificação da receita em crise, concreta e individualizada, nos termos da CRP e da LEO, equivale, em termos práticos, à sua não inscrição – e, portanto, à sua não autorização – no correspondente Mapa da Lei do Orçamento do Estado.
RR. Com a entrada em vigor do Código de Procedimento Administrativo (CPA), publicado em 7 de janeiro de 2015, pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, o legislador procedeu à anulação da antiga cláusula geral de nulidade do antigo CPA, passando a prever quatro novos casos de nulidade no atual artigo 161.º daquele diploma, de entre os quais a alínea k), onde se dispõe que são nulos “Os atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei”. Assim, o ato de (auto)liquidação da CESE aqui em apreço enferma de um vício gerador de ilegalidade abstrata, porquanto a sua liquidação e cobrança não terão sido devidamente autorizados em conformidade com a CRP e a LEO, o que está para além da mera inexigibilidade da dívida, sendo mesmo equiparável ao vício de inexistência do tributo.
SS. No plano normativo, a violação do princípio da especificação orçamental localiza-se, por referência à CESE, em dois momentos fundamentais (i) no momento da criação do Regime jurídico da CESE, com a aprovação do artigo 228.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014, e (ii) no momento em que a sua vigência foi, prorrogada, para o ano 2020, por via do artigo 376.º, n.º 1, da Lei do Orçamento do Estado para esse ano (e em todos os outros anos, por via das sucessivas Leis do Orçamento do Estado ou de diplomas autónomos de autorização da sua cobrança, como ocorrido em 2016 e 2021).
TT. Assim, a violação do princípio da especificação orçamental apresenta-se como uma doença congénita que contamina, em rigor, todas as normas que instituem e regulam a CESE. Do que antecede, suscita-se a inconstitucionalidade e a ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado, (i) da norma que instituiu o regime jurídico da CESE, i.e. da norma resultante do artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013; (ii) da norma que manteve em vigor, no ano 2020, o regime jurídico da CESE, i.e. da norma contida no artigo 376.º, n.º 1, da Lei n.º 2/2020, de 31 de março; (iii) da norma que se retira do artigo 1.º do regime jurídico da CESE e que define o objeto do tributo; (iv) da norma que se retira do artigo 2.º do regime jurídico da CESE e que determina a incidência subjetiva do tributo; (v) da norma que se retira do artigo 3.º do regime jurídico da CESE e que determina a incidência objetiva do tributo; (vi) a norma que se retira do artigo 6.ºdo regime jurídico da CESE e que determina a taxa aplicável; (vii) a norma que se retira do artigo 11.º do regime jurídico da CESE e que determina a consignação da receita ao FSSSE, bem como (viii) da norma que se retira do artigo 12.º do regime jurídico da CESE e que determina a não dedutibilidade da CESE.
UU. Como se crê ter demonstrado, e se escusa de repetir, o alcance e o propósito da previsão de tal princípio e de tal regra são muito mais largos do que julgou – por remissão – o Tribunal a quo, servindo o próprio princípio de Estado de Direito Democrático. Depois, vimos já que, mesmo que a CESE se tratasse de uma contribuição financeira (no que não se concede), tal circunstância não é apta a aligeirar as exigências dos princípios e regras em causa, porque quer a CRP, quer a LEO, apenas se referem a receitas, e depois porque a sua natureza de receita consignada sempre implicaria, pelo contrário, uma maior exigência discriminativa e especificativa. Assim, e contrariamente ao pugnado pelo STA – e, por remissão, pelo Tribunal a quo – da conjugação da (eventual) classificação da CESE como contribuição, da autonomia do FSSSE, dos critérios de incidência da CESE e da previsão das receitas globais do FSSSE do Mapa V, não resulta a suficiência da discriminação e da especificação realizada no Orçamento em questão, primeiro porque ela é absolutamente inexistente e depois porque, acrescentando a esta equação o facto de estarmos perante receita consignada, as exigências são mais – e não menos – apertadas.
VV. Em face de tudo quanto antecede, mal andou a sentença recorrida ao decidir no sentido do julgado.
Pugna pela procedência do recurso, pela revogação da sentença recorrida e pela procedência da impugnação.
X
Não foram apresentadas contra-alegações.
X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal notificado para o efeito, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
X
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
X
II- Fundamentação
2.1. De Facto.
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:
1) R……….. Armazenagem, S.A., ora impugnante, tem sede em território nacional e desenvolve a atividade de armazenamento subterrâneo de gás natural e acessoriamente, a de construção, exploração e manutenção das infraestruturas e instalações necessárias à sua atividade, de acordo com a concessão de serviço público de que é titular, regulada nos termos do Decreto-Lei n.º 30/2006, de 15 de fevereiro e o Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho – facto não controvertido e cfr. informação constante do documento 1 da reclamação graciosa, de fls. 622 e 623 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
2) No dia 30 de outubro de 2020, a impugnante efetuou a autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (“CESE”) n.º …………230, no montante de € 1.536.838,16, com referência ao período de 2020 – cfr. documento 1 junto com a reclamação graciosa, de fls. 623 e 624 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
3) No dia 30 de outubro de 2020, a impugnante procedeu ao pagamento voluntário da autoliquidação referida em 2), no montante de € 1.536.838,16 – cfr. documento n.º 2 junto com a reclamação graciosa, de fls. 625 da paginação eletrónica;
4) No dia 1 de março de 2021, a impugnante apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação referida em 2) junto do Serviço de Finanças de Pombal 1) - cfr. documento de fls. 244 e seguintes da paginação eletrónica (processo administrativo) e cfr. informação constante de fls. 634 da paginação eletrónica (processo administrativo);
5) Através do ofício n.º 193-DJT/2021, de 10 de maio de 2021, enviado por correio registado sob o n.º RF…………….PT, a impugnante foi notificada do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa e para, querendo, exercer o direito de audição, no prazo de 15 dias – cfr. documento de fls. 640 a 642 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
6) A impugnante não exerceu o direito de audição – facto não controvertido e cfr. informação constante de fls. 645 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
7) A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, datado de 4 de junho de 2021 – cfr. documento de fls. 643 da paginação eletrónica (“processo administrativo”).
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Factos não provados// Com relevância para a decisão de mérito, inexistem factos não provados.”
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Motivação e análise crítica da prova produzida //Na determinação do elenco dos factos considerados provados, o Tribunal considerou e analisou, de modo crítico e conjugado, os documentos e informações constantes não só dos presentes autos, mas também do Processo Administrativo, conforme o especificado nas várias alíneas da factualidade dada como provada, documentos esses que não foram impugnados e que, pela sua natureza e qualidade, mereceram total credibilidade por parte do Tribunal”
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2.2. De Direito.
2.2.1. A presente intenção recursória centra-se sobre os alegados vícios da sentença seguintes:
i) Erro de julgamento quanto à não subsistência das razões conjunturais que determinaram a instituição do tributo em apreço, o que leva à sua consideração como imposto inconstitucional, incidente sobre o sector energético [conclusões A) a CC)].
ii) Erro de julgamento por referência à asserção de que o tributo em exame corresponde a um imposto cujo regime de incidência subjectiva e objectiva colide com o princípio da capacidade contributiva [conclusões DD) a GG)].
iii) Erro de julgamento porquanto o regime da CESE incorre na preterição do princípio da proporcionalidade [conclusões HH) a KK)].
iv) Erro de julgamento atendendo a que o regime em referência não observa as exigências postas pelo princípio da especificação orçamental [demais conclusões de recurso)].
A sentença julgou improcedente a presente impugnação, relativa à contribuição extraordinária sobre o sector energético [CESE] 2020. Considerou que se trata de uma contribuição financeira, a qual não enferma das inconstitucionalidades orgânicas e materiais que lhe são apontadas pela impugnante. Baseou-se na jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, do STA, e dos TCAs.
Com as alegações de recurso, a recorrente juntou parecer, o qual é de admitir, ao abrigo do disposto no artigo 651.º/2, do CPC.
Antes de entramos na apreciação do objecto do recurso, cumpre proceder ao enquadramento seguinte.
2.2.2. A contribuição extraordinária sobre o sector energético [CESE] foi criada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Lei que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2014). O regime legal em apreço (constante do artigo 228.º desta lei) estabelece que o objetivo da contribuição é o de «financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético» (n.º 2). O preceito do artigo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, determinou a manutenção do regime da CESE [RCESE] para o exercício de 2020. A recorrente tem sede em território nacional e desenvolve a atividade de armazenamento subterrâneo de gás natural e acessoriamente, a de construção, exploração e manutenção das infraestruturas e instalações necessárias à sua atividade, de acordo com a concessão de serviço público de que é titular, regulada nos termos do Decreto-Lei n.º 30/2006, de 15 de fevereiro e o Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho (1).
No que se refere à incidência subjectiva, de acordo com o artigo 2.º/d), do RCESE (2) , a contribuição incide sobre as pessoas singulares ou coletivas que «[s]ejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, alterado pelos Decretos-Leis n.os 65/2008, de 9 de abril, 66/2010, de 11 de junho, e 231/2012, de 26 de outubro» (3).
No que concerne à incidência objectiva, determina o artigo 3.º do RCESE (4), que a contribuição «incide sobre o valor dos elementos do ativo dos sujeitos passivos que respeitem, cumulativamente, a: // a) Ativos fixos tangíveis; // b) Ativos intangíveis, com exceção dos elementos da propriedade industrial; e // c) Ativos financeiros afetos a concessões ou a atividades licenciadas nos termos do artigo anterior».
Determina o artigo 6.º/2 (“Taxas”), do RCESE (5) que, «[n]o caso da produção de eletricidade por intermédio de centrais termoelétricas de ciclo combinado a gás natural, a taxa da contribuição extraordinária sobre o setor energético, aplicável à base de incidência definida no artigo 3.º, é de: // a) 0,285 % para as centrais com uma utilização anual equivalente da potência instalada inferior a 1500 horas; // b) 0,565 % para as centrais com uma utilização anual equivalente da potência instalada superior ou igual a 1500 e inferior a 3000 horas; // c) 0,85 % para as centrais com uma utilização anual equivalente da potência instalada superior ou igual a 3000 horas».
No que se reporta ao procedimento e forma de liquidação, a contribuição em causa é liquidada pelo sujeito passivo, através de declaração de modelo específico, que deve ser remetida por transmissão eletrónica de dados até 31 de outubro de 2020, em regra (artigo 7.º/1, do RCESE (6)). No que se refere ao pagamento, a contribuição extraordinária deve ser paga até ao último dia do prazo estabelecido para o envio da declaração referida, nos locais de cobrança legalmente autorizados (artigo 8.º/1 do RCESE).
Por referência à afectação da receita, «[a] receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do setor energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional decorrentes de custos de interesse económico geral (CIEG), designadamente resultantes dos sobrecustos com a convergência tarifária com as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, e para o SNGN» (artigo 11º/1, do RCESE].
Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 296/2023, de 25/05/2023,
«Foi entendimento adotado no [Acórdão n.º 7/2019] que a CESE escapa ao conceito (e regime jurídico próprio) do imposto (por não constituir tributo destinado a satisfazer toda a despesa pública) e da taxa (que se entende contrapartida de uma prestação pública de que beneficia o obrigado tributário), sendo qualificável como contribuição financeira a entidades públicas (v. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 539/2015) e, como tal, inserindo-se num tertium genus que não partilha o regime jurídico de nenhuma daquelas duas classes de tributos (v. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 152/2013, 365/2008 e 613/2008). É a unidade de interesses de grupo, a responsabilidade de grupo e o benefício de grupo, com relação à CESE e aos operadores no setor energético abrangidos pelo âmbito de incidência subjetiva (artigo 2.º do RJCESE), que suportam a conceptualização do tributo em causa como contribuição financeira inserida na lógica comutativa de aquisição de benefício difusa pela ação pública, esta por sua vez assente em responsabilidade de grupo pela situação carecida da atividade que a contribuição é chamada a financiar. // De facto, porque a CESE está legalmente alocada ao financiamento de Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (artigo 11.º, n.º 1 do regime jurídico da CESE) e destinada a financiar “mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético” (artigo 1.º, n.º 2), o tributo compreende-se de acordo com uma ótica interna de despesa, justificando a incidência contributiva sobre os operadores no setor energético por a atividade financiada se repercutir positivamente na sua atividade (bilateralidade genérica, potencial ou difusa). // A atividade do FSSSE está legalmente dirigida à “promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 55/2014 de 9 de abril e artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 do RJCESE), o que caracteriza o espetro de vantagens para os operadores económicos do setor enquanto benefício grupal decorrente da ação pública financiada (artigo 81.º, alínea m) da Constituição da República Portuguesa). Por sua parte, também a necessidade de intervenção estadual tendo em vista garantir o equilíbrio ambiental e a racionalização na exploração de recursos (artigo 66.º, n.º 2, alíneas d) e f) da Constituição da República Portuguesa), ambos integrados no programa de atividade do FSSSE (cfr. artigo 2.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 55/2014 de 9 de abril), constitui essencialmente uma forma de responder à pressão que a atividade económica dos operadores sujeitos à CESE coloca no respetivo domínio setorial e que, por esse motivo, igualmente lhes aproveita, reforçando a subsunção do tributo à figura da contribuição financeira» (7) .

Tendo por base o regime jurídico descrito, a jurisprudência fiscal e constitucional não acolheu a tese da inconstitucionalidade material do tributo em causa, considerando que o mesmo configura uma contribuição financeira. Assim, por exemplo, no Acórdão do STA, de 18/05/2022, P. 0994/20.0BEPRT, afirma-se que «o entendimento segundo a qual o CESE é uma contribuição financeira e as normas que modelam o respetivo regime jurídico não violam os princípios da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real, da proporcionalidade, da igualdade na repartição dos encargos públicos e da proteção da confiança, segurança jurídica e não retroatividade da lei fiscal, foi reafirmado em diversos outros acórdãos deste tribunal (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16/09/2020, de 16/12/2020, de 23/06/2021, de 13/07/2021, de 8/09/2021, de 6/10/2021, de 10/11/2021, de 2/02/2022, processos n.ºs 0387/17.6BEMDL, 0415/16.1BEVIS 0314/18.3BEVIS, 03037/16.4BELRS, 0545/19.9BEPRT e 01587/18.7BEPRT, 01676/19.0BEPRT, 01471/17.1BEPRT, 0810/18.2BESNT). No sentido da não inconstitucionalidade do artigo 12.º do Regime Jurídico da CESE e do artigo 23.º, n.º 1, alínea q), do Código do IRC se pronunciaram, entretanto, os acórdãos do Tribunal Constitucional de 7 de junho de 2021, de 24 de junho de 2021, de 9 de julho de 2021, e de 22 de Setembro de 2021 (n.ºs 395/2021, 463/2021 e 465/2021, 506/2021 e 732/2021). No sentido da não inconstitucionalidade das normas dos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º do regime jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, nas redações de 2014 e de 2016, se pronunciaram, entretanto, os acórdãos do Tribunal Constitucional de 22 de Setembro de 2021 (n.ºs 735/2021 e 736/2021)».
Feito o presente enquadramento, importa aferir do bem fundado da presente intenção rescisória.
2.2.3. No que respeita ao fundamento do recurso referido em i), a recorrente invoca o carácter de medida de tributação unilateral, sem justificação aparente do tributo em apreço, cujo carácter extraordinário foi socavado pelo decurso do tempo.
Apreciação.
A este propósito, cumpre referir, na esteira do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 296/2023, de 25/05/2023, o que segue:
«O Acórdão do TC n.º 101/2023 apresenta uma argumentação que se pode dizer convergir com esta alegação, ao menos em parte, conquanto, referindo-se à situação financeira do Estado no ano de lançamento da contribuição sob fiscalização (exercício de 2018), alude à alteração dos pressupostos de facto em que teria assentado a introdução da CESE no ordenamento jurídico para fundamentar a descaracterização das empresas do SNGN como compreendidas na lógica de grupo característica das contribuições financeiras (“esta alteração do destino típico das receitas da CESE ocorreu num contexto significativamente diverso daquele em que o tributo foi criado. Com efeito, superados os condicionamentos impostos pela execução do PAEF e pelo procedimento de défice excessivo, findo em 2017, observava-se já em 2018 uma «tendência de diminuição da dívida tarifária do SEN, iniciada em 2015”). // Em primeiro lugar, é difícil de compreender como a conjuntura económico-financeira estadual influiria na qualificação de dado modelo tributário como imposto ou contribuição, ou como poderia participar na compreensão do respetivo âmbito de incidência subjetiva: a situação de folga ou estrangulamento financeiro do Estado não constitui parâmetro para a qualificação jurídica de um programa normativo de natureza jurídico-tributária, tanto menos participa no juízo sobre a consistência da relação de grupo de que depende a figura da contribuição financeira. Em todos os casos, importa a adequada avaliação da caracterização estrutural do programa no plano dogmático. // Dito de outra forna, enfim, não se divisa como seria possível que a qualificação de uma figura jurídico-tributária pudesse variar em função da linha final da conta geral do Estado. // De outra parte, é de notar que o regime jurídico da CESE tem vindo a ser objeto de atos legislativos anuais e sucessivos, cada um deles aprovando a sua vigência para um ano e alguns dos quais introduzindo alterações sensíveis de disciplina legal. A contribuição foi primeiro introduzida no ordenamento pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013 de 31.12, sendo depois lançada para o ano de 2015 pelo artigo 237.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31.12, para o ano de 2016 pelo artigo 6.º da Lei n.º 159-C/2015, de 30.12, para o ano de 2017 pelo artigo 264.º da Lei n.º 42/2016 de 28.12, para o ano de 2018 pelo artigo 280.º da Lei n.º 114/2017 de 29.12, para o ano de 2019 pelo artigo 313.º da Lei n.º 71/2018 de 31.12, para o ano de 2020 pelo artigo 376.º da Lei n.º 2/2020 de 31.03, para o ano de 2021 pelo artigo 415.º da Lei n.º 75-B/2020 de 31.12, para o ano de 2022 pelo artigo 6.ºda Lei n.º 99/2021, de 31.12 e para o ano de 2023 pelo artigo 261.º da Lei n.º 24-D/2022, de 30.12. // Não falta, de resto, quem defenda que as alterações introduzidas por alguns destes diplomas importaram a criação de tributos inteiramente novos face aos predecessores, destacando pelo menos três figuras de contribuição financeira distintas entre si (v., neste sentido, F. VASCONCELOS FERNANDES, A Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, Regime Fiscal e Constitucional, 2019, Gestlegal, pp. 51-57; o autor autonomiza a CESE aprovada pela Lei n.º 83-C/2013 de 31.12 no regime vigente até à Lei n.º 42/2016 de 28.12 [CESE 1 – vigência 2014-2016]; a CESE com o recorte conferido por este diploma até às alterações introduzidas pela Lei n.º 71/2018 de 31.12 [CESE 2 – vigência 2017-2018]; e a CESE que passou a vigorar com o figurino adotado por este último ato legislativo [CESE 3 – 2019]). // Em face do exposto e como vem entendendo a jurisprudência constitucional, cada ano merecerá uma análise própria e individualizada à contraluz da dogmática tributária e constitucional colocada e, se não há dúvidas que boa parte das conclusões alcançadas pelo Tribunal Constitucional bem cedo são transponíveis e aplicáveis ao regime jurídico da CESE em anos subsequentes (mormente quanto a conformidade constitucional), considerações a propósito de iniciativas legislativas anteriores ou posteriores, como é evidente, não possuem relevância no juízo a formular nestes autos, porque cingidos a um quadro legal cuja vigência surgiu apenas no ano de 2018. // Mais se diga, se é inegável que a CESE foi considerada “extraordinária” pelo Legislador fiscal e permaneceu vigente no ordenamento pelos anos que se seguiram a 2014, não vemos como, por esse motivo, se pudesse entender convertida em imposto, ou devesse ser assim qualificada desde o início de vigência. A transitoriedade ou excecionalidade não constitui um atributo peculiar a nenhuma das duas figuras jurídico-tributárias, razão por que as conclusões extraídas pela recorrente a este propósito denotam um vazio de fundamento num ponto central da sua lógica argumentativa. // Em qualquer caso, há que sublinhar que o intervalo temporal por que uma medida tributária esteja em vigor não se pode entender o critério mais importante para aferir do seu caráter (substancialmente) excecional, antes interessará saber se, pelo hiato por que se manteve em vigência, a medida se justifica pela persistência do problema extraordinário a que oferece resposta, ou se, por oposição, em alguma altura ficou convertida num instrumento de captação de receita que servisse necessidades gerais de financiamento público. // Cabe relembrar que um dos principais problemas setoriais que a CESE se dirigiu a resolver (e não o único, como já vimos) respeita à necessidade de assistência financeira a um problema transitório e excecional relativo ao setor energético, a dívida tarifária acumulada (cfr. artigo 2.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 55/2014 de 9 de abril). No pressuposto – que, imaginamos, será incontroverso – que a dívida tarifária continuou a constituir um problema grave no setor da energia, que se prolongou no tempo e mesmo conheceu agravamento face a 2014 em alguns dos anos posteriores (2015 e 2016), não vemos, pois, como seja possível afirmar com propriedade no segundo dos sentidos possíveis: no ano de lançamento da contribuição (2014), a dívida tarifária ascendia a € 4.690 M, em 2017 (ano em que foi aprovada a norma sob sindicância), cifrava-se em € 4.397 M e, no encerramento do exercício de 2018 (ano a que respeita a incidência), fixava-se em € 3.654 M. Se se denota uma ligeira amortização – ao que não será estranha, na conta do ano de 2018, a receita angariada pela contribuição cuja constitucionalidade aqui se discute –, não merece dúvidas que a sujeição a CESE no ano em referência continuou a compreender-se também por este problema transitório, já que o stock de dívida tarifária continuou a ensombrar o setor energético português. // De maior importância, ainda que se acedesse a que a contribuição adquiriu estabilidade, que foi desprovida de natureza extraordinária e que deve hoje ser considerada uma componente permanente do sistema tributário, daqui apenas resultaria que o seu regime jurídico se converteu em algo mais próximo, face ao inicialmente consagrado, daquele que caracteriza as demais contribuições financeiras do ordenamento jurídico português. O princípio geral é o da revisibilidade da legislação e não se divisa princípio constitucional que impusesse, sem outras considerações, imobilismo ou estaticidade ao legislador a respeito do regime contributivo do setor energético, como não vemos qualquer contexto que pudesse ter sedimentado expectativas jurídicas sobre a não-implementação (ou cessação de efeitos a prazo) de um tributo com os carateres daquele que está sob fiscalização. // Para além de, no contexto colocado, o nomen iuris da contribuição financeira (CExtraordináriaSE) se mostrar francamente insuficiente para constituir, só por si, fonte de uma expectativa jurídica que merecesse outras considerações, o ponto de essência reside agora, como sempre residiu, na qualificação dogmática da CESE e nos parâmetros que a fundamentam. Quanto a estes e como já vimos, não se observa qualquer forma de rutura com o estatuto constitucional: o caráter transitório desta contribuição financeira será, pois, entendido como meramente conjuntural, não importando considerações de maior para efeitos de tutela de expectativas legítimas ou, por inerência, de constitucionalidade: // “não se afigura decisivo o elemento da excecionalidade para um julgamento de não inconstitucionalidade do regime jurídico da CESE. Tal caraterística reforça a argumentação plasmada no Acórdão n.º 7/2019, mas está longe de constituir o seu único pilar de sustentação. Para o juízo de não inconstitucionalidade então proferido – e que agora se renova – contribui, sobretudo, a caraterização dogmática do tributo como contribuição financeira, e o objetivo de financiamento de mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor da energia, já que este permite afirmar a sinalagmaticidade do tributo, ainda que não referida a uma contraprestação específica” (v. acórdão do TC n.º 437/2021, também chamado à colação no acórdão do TC n.º 736/2021, que procedeu à fiscalização da norma do artigo 264.º da Lei n.º 42/2016 de 28.12 [vigência da CESE em 2017])».

Em síntese, a alegação do carácter extraordinário do tributo em exame não põe em causa a sua configuração como contribuição financeira, cujo afectação à função de regulação do mercado energético justifica a incidência sobre o grupo de operadores económicos do sector, como sucede com a recorrente. Tal regulação serve de garante ao exercício da actividade económica da mesma, o que demonstra a existência do sinalagma de grupo.
Ao julgar no sentido referido, a sentença recorrida não merece censura, devendo ser confirmada na ordem jurídica.
Termos em que se julgam improcedentes as presentes conclusões de recurso.
2.2.4. No que se reporta ao fundamento do recurso referido em ii), a recorrente sustenta que a CESE contraria o princípio da capacidade contributiva, dado que, atendendo ao regime da incidência subjetiva e da incidência objectiva, impõe-se concluir que constitui um imposto incidente sobre o património ou sobre o rendimento presumido da mesma.
Apreciação. Relativamente a esta questão, importa convocar de novo o Acórdão do TC n.º 296/2023, de 25/05/2023, no que a seguir se refere:
«O princípio da tributação das empresas pelo rendimento real e sua associação ao princípio da capacidade contributiva dependeria que estivessemos, não apenas perante um imposto, mas perante um imposto sobre o rendimento, o que, está bom de ver, não é de todo o caso. Também a caracterização da CESE como imposto ou tributo discriminatório, abrogante do princípio da igualdade material, fica precludida pelas conclusões já alcançadas a propósito da relação entre a contribuição e os especiais interesses grupais que a CESE está destinada a financiar e que suportam a sua incidência subjetiva. // Afasta-se, pois, o pretendido juízo de reprovação constitucional com fundamento no disposto nos artigos 104.º, n.º 2 e 13.º, ambos da Constituição da República Portuguesa. // Não obstante, no âmbito das contribuições financeiras o princípio da igualdade possui especial importância ao impor obrigação de equivalência (justiça fiscal na incidência e quantificação da contribuição – v. acórdão do TC n.º 344/2019) e também nesta dimensão o acórdão n.º 7/2019 deste Tribunal concluiu que a CESE não colide com a Lei Fundamental, essencialmente pelos motivos já expostos. A contribuição compreende-se por ter abrangido os operadores no setor energético como uma forma especial de participação nos custos de estabilização do sistema coevo ao ramo económico em que operam. A constituição de uma entidade administrativa (o FSSSE), dotada de órgão executivo autónomo, que tem por única missão obter e preservar a estabilidade do setor energético e que, para esse propósito, absorve todas as receitas libertadas pela CESE, é, de si, não apenas evidente penhor do caráter comutativo e bilateral da contribuição, mas também adequada trave estrutural de equilíbrio, acentuando a importância do objetivo que preside ao tributo. // Esta questão relaciona-se também com a defesa da recorrente sobre a desproporção da CESE, no que reclama por juízo de inconstitucionalidade autónomo com esse fundamento: defende a recorrente que um operador nas suas condições se acha sobrecarregado com carga tributária, assim em violação de critérios de necessidade (ou, talvez, de proibição de excesso): à incidência de IRC sobre os lucros que obtenham, diz-se, os agentes no setor vêm acrescer um regime contributivo adicional que assenta no valor dos seus ativos fixos como critério principal de incidência objetiva (artigo 3.º do RJCESE), não os incrementos patrimoniais obtidos em cada exercício, situação penalizadora que se defende ultrapassar o limiar da equidade por, ao mesmo passo, não ser permitido a esses operadores abater o encargo tributário da CESE a lucros (artigo 12.º do RJCESE). // Ora, de modo algum os artigos 3.º e 12.º do RJCESE podem ser entendidos como achando-se em rutura com princípios constitucionais e, bem vistas as coisas, da consagração deste regime legal depende a efetividade da conexão entre a CESE e os parâmetros que a justificam (factores de responsabilidade de grupo e de vantagem de grupo). // A CESE responde à necessidade de oferecer estabilidade ao setor energético (que a recorrente integra) e, como se viu, resulta claro que os operadores nesse campo disso extraem vantagem: o benefício de não se acharem confrontados com um setor instável (desorganizado ou em rutura, fosse para com o contexto económico, social ou ambiental, que os envolve) é, sem dúvida, uma mais-valia económica para as entidades que nele operam, daí se compreendendo a chamada a financiamento da ação pública nesse domínio. // Veja-se que a forma de definição de base de incidência objetiva da CESE pelos ativos fixos dos operadores (artigo 3.º, compreendido no pedido de fiscalização) foi avaliada pelo Acórdão n.º 7/2019 e, também aqui, não vemos que a crítica da recorrente se mostre fundada: // “A titularidade dos ativos tributáveis por parte das empresas que as normas legais sujeitam à CESE, cuja justificação radica na sustentabilidade sistémica do setor energético, torna-as presumíveis beneficiárias das políticas públicas de energia e da sua regulação. Os ativos não surgem como manifestação meramente hipotética da capacidade contributiva, que fosse exigida como receita para despesas gerais do Estado, mas como indicador que permite presumir a potencial utilidade das prestações públicas que aos operadores aproveitam, e os custos presumidos que provocam, já que os ativos são elementos essenciais ao desenvolvimento da atividade, sendo suficientemente adequados para diferenciarem aquele impacto. Também por esta razão, não pode ligar-se a sujeição do ativo ao tributo a qualquer demonstração de que estaríamos perante um imposto sobre o património das empresas. // Na lógica do legislador, a titularidade de ativos em certa área da economia é um dado que permite aferir da suscetibilidade da empresa para ser causa de ou beneficiar de políticas de sustentabilidade, o que a distingue dos demais operadores de outras áreas e dos cidadãos. Não é, assim, uma forma de arrecadar receita, indistintamente. É, por isso, uma base de incidência adequada.” // Conquanto a receita da CESE está dirigida, como já tantas vezes repetimos, a conferir estabilidade ao setor energético, resulta líquido que o benefício que cada operador extrai dessa atividade pública dependerá da dimensão da sua atividade, mais que do rendimento líquido que extrai da aplicação dos seus capitais: de uma parte, grandes operadores colocarão mais pressão no setor energético do que operadores de atividade mais modesta, ainda que estes últimos possuam uma atividade mais rentável ou libertem maiores lucros anuais que os primeiros; por outra parte, porque o investimento em capitais fixos dos primeiros é mais elevado, serão esses agentes mais sensíveis a situações de rutura setorial que, no limite, a atividade do FSSSE pretende poder prevenir. // Também não merecerá discussão que o valor do investimento em capitais fixos (líquido de amortizações e depreciações) que cada operador apresente será o indicador mais direto para avaliar a dimensão da atividade das entidades sujeitas a CESE, tendo em vista aferir a partir daí qual a medida de benefício que extrairão da atividade reguladora do FSSSE. // De facto, pela situação do imobilizado e de investimentos financeiros associados à exploração (cfr. artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) a c) e n.º 5, do RJCESE – v. g., participações sociais em sociedades agrupadas que participam na atividade sujeita a incidência) exprime-se o universo de recursos alocados à atividade por cada um dos operadores no setor económico. No caso de comercializadores do SNGN, é ainda estabelecido um ajustamento financeiro referente ao valor económico dos contratos de aprovisionamento de longo prazo em regime «take or pay» e respetivo excedente (artigo 3.º, n.ºs 2 e 3, do RJCESE), por forma a melhor exprimir o valor real da estrutura e evitar omissões relativas a ativos financeiros inerentes à atividade não-contabilizados, assim prevenindo «injustiças relativas» face a operadores do setor que operem noutras áreas. // (…) // Não se trata, pois, de tributar empresas pelo seu património (o parâmetro de incidência cinge-se às componentes do seu ativo afetos à atividade com caráter estrutual e não-circulante, excluindo todos os demais elementos patrimoniais – cfr. artigo 3.º do RJCESE), nem de lançar um imposto sobre o rendimento normalizado (tributando o lucro que o sujeito passivo estaria em condições de obter da sua constelação de ativos em condições médias de gestão). Noutro sentido, bastante mais elementar, mas mais adequado face à natureza do tributo, o quadro de incidência objetiva está definido de modo a ser apto a aferir a dimensão da atividade do sujeito passivo, já que o registo de capitais fixos e de investimentos financeiros associados à atividade representará o investimento estrutural do agente económico e, como dissemos, constituirá o melhor critério para compreender (i) a medida por que cada empresa extrairá benefício da ação pública do FSSSE e (ii) a medida por que essa ação pública se pode entender imputável à atividade da empresa sujeita a CESE. // Assim, não se vê que as normas de incidência objetiva da CESE (artigo 3.º do RJCESE) se encontrem em rutura com qualquer norma ou princípio da Constituição tributária ou que possuam o alegado caráter penalizador ou de efeito cumulativo (dupla tributação) para com o IRC. // De seu lado, caso se admitisse a dedutibilidade da CESE como custo fiscal em imposto sobre o rendimento (afastando as normas dos artigos 12.º do RJCESE), o encargo inerente à contribuição seria, em parte, transferido destas entidades para o Estado, então na medida por que importasse redução de receita em IRC (cfr. artigos 15.º, n.º 1 e 17.º, n.º 1, ambos do CIRC). Por outras palavras, caso se afastasse o caráter definitivo da CESE ou se permitisse que concorresse (negativamente, como custo) para o apuramento da matéria coletável em sede de IRC, teríamos que o FSSSE seria em parte financiado, não pelos beneficiários da ação reguladora, mas pelo orçamento da República. Sobre este ponto, a jurisprudência deste Tribunal Constitucional já fez ver: // “se o encargo da CESE pudesse ser deduzido ao lucro tributável de modo a reduzir a coleta de IRC, o impacto financeiro deste tributo para os seus sujeitos passivos poderia ser efetivamente menor, resultando numa diminuição da respetiva «taxa efetiva». Contudo, a impossibilidade de atenuação do impacto financeiro deste tributo através da dedução dos respetivos encargos ao lucro tributável em IRC constitui um aspeto extrínseco a essa correlação relevante para a configuração da CESE e que não pode ser adequadamente apreciado à luz do princípio da equivalência, nem sequer como expressão do princípio da proporcionalidade.” (v. acórdão do TC n.º 301/2021) // Sobre esta matéria e mais exatamente, há que levar em conta a operatividade da CESE enquanto instrumento tributário de captação de receita: a conexão necessária entre contribuição e benefício (difuso) obtido (tributo comutativo) apenas se pode entender alcançável se a CESE participar na sustentabilidade do setor energético sem implicar um alívio das demais obrigações fiscais dos obrigados (seja exemplo o IRC), como seria o caso se fosse admitida como gasto a abater a proveitos no exercício fiscal, já que isso significaria a geração de despesa pública».
Em síntese, a contribuição extraordinária sobre o sector energético corresponde a uma contribuição financeira, cujo regime de incidência subjectiva e objectiva, obedece à ideia estruturante dos tributos comutativos, da qual deriva a necessidade de fazer repercutir sobre o sujeito beneficiário da acção pública os custos incorridos com a mesma, corrigindo as eventuais externalidades que o sector de mercado em causa apresente.
Ao julgar no sentido referido, a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento, pelo que deve confirmada na ordem jurídica.
Termos em que se julgam improcedentes as presentes conclusões de recurso.
2.2.5. No que se reporta ao fundamento do recurso referido em iii), a recorrente invoca que o regime da CESE incorre na violação do princípio da proporcionalidade.
Apreciação. Para além do referido no ponto anterior, cumpre sublinhar o carácter sinalagmático do tributo em causa, o qual é devido pelos operadores do sistema energético nacional; estes beneficiam da regulação económica do referido sector de actividade. O que significa que a criação da contribuição financeira em exame decorre do princípio da equivalência ou da contrapartida entre o seu pagamento e as utilidades derivadas para o grupo em que se insere o sujeito passivo com a regulação económica do sector, a qual garante a redução tarifária do SEN, e-ou a promoção da sustentabilidade do setor energético, factores que se repercutem, de forma directa, no exercício da actividade económica da recorrente. Note-se que a mesma tem sede em território nacional e desenvolve a atividade de armazenamento subterrâneo de gás natural e acessoriamente, a de construção, exploração e manutenção das infraestruturas e instalações necessárias à sua atividade, de acordo com a concessão de serviço público de que é titular, regulada nos termos do Decreto-Lei n.º 30/2006, de 15 de fevereiro e o Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho (8) .
Nesta medida, não se vê que a contribuição em exame viole ou contenda com o princípio da proporcionalidade, nas suas três dimensões, de idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Por outro lado, uma vez assente que a mesma observa o princípio da equivalência jurídica, não se descortina ofensa do princípio da igualdade tributária, dado que o recorte da incidência subjectiva tem em conta os sujeitos beneficiados pela medida de regulação económica em causa (v. artigo 2.º, relativo à incidência subjectiva, do RCESE). Por outro lado, o regime da incidência objectiva do tributo tem em conta o impacto da actividade dos sujeitos passivos sobre a estabilidade do sistema energético nacional, medida através dos activos detidos, relevantes no âmbito do sector energético (artigo 3.º do RCESE).
Ao julgar no sentido referido, a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento, pelo que deve ser mantida na ordem jurídica.
Termos em que se julgam improcedentes as presentes conclusões de recurso.
2.2.6. Por referência ao item iv), a recorrente alega a violação do princípio da especificação orçamental por parte do RCESE.
A este propósito, constitui orientação jurisprudencial assente a de que as normas que regulam o regime jurídico da contribuição extraordinária sobre o sector energético não violam o princípio da especificação orçamental (9). No que respeita «ao facto de a CESE e as respectivas receitas não estarem alegadamente orçamentadas nos termos exigidos pelo artigo 17.º da Lei de Enquadramento Orçamental (Lei n.º 151/2015, de 11 de Setembro) e, como tal, daí resultar, consequentemente, um vício de inconstitucionalidade por violação do artigo 105.º da CRP», o STA observou, relativamente ao decidido por tribunal a quo:
«(…) sustentou-se a decisão recorrida nos seguintes argumentos. // Primeiro, no princípio da plenitude orçamental ou da plenitude do Orçamento do Estado. De acordo com este princípio, o que as regras da alínea a) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 105.º da CRP pretendem impedir é a desorçamentação de verbas e não eventuais desacertos quanto às respectivas rubricas de inscrição. E apoiou-se, para o efeito, no acórdão do TC n.º 414/2011. // Segundo, invocou a suficiência da conjugação dos critérios da classificação do tributo como contribuição, da autonomia do FSSSE decorrente do seu regime legal (Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril), dos critérios legais de incidência objectiva da CESE e da previsão das receitas (globais) do FSSSE no Mapa V do orçamento, e assim fundamentou, in casu, o respeito pelo princípio da suficiência da especificação orçamental. // Cumpre sublinhar que o que a Recorrente pretende essencialmente questionar com este argumento é a conformidade constitucional e legal, no plano orçamental, da circunstância de estas contribuições serem cobradas pela AT, não obstante a lei as configurar como receitas consignadas do FSSSE. E reconduz depois a complexidade deste circuito tributário-financeiro e a sua configuração no plano orçamental a uma violação do princípio constitucional da especificidade orçamental. // Ora, para além de acompanharmos os fundamentos da decisão recorrida, aditamos ainda uma terceira razão pela qual o recurso há-de também improceder quanto a este fundamento. Um argumento extraído da jurisprudência constitucional sobre a interpretação do princípio da especificidade orçamental, segundo a qual, para efeitos constitucionais (designadamente do exercício de poderes reservados ao Parlamento no âmbito do orçamental), este princípio é relevante, sobretudo, para efeitos de despesas e não tanto de orçamentação de receitas. Neste sentido v. acórdão n.º 206/87, (…) // Ora, mantendo-se hoje em vigor, quer uma redacção semelhante das normas constitucionais em matéria de exigência constitucional quanto à discriminação de receitas e despesas do Estado [a actual alínea a) do n.º 1 do artigo 105.º da CRP)], quer uma formulação normativa idêntica quanto à admissibilidade em sede de LEO de liquidação e cobrança de receitas para além do previsto na respectiva inscrição orçamental, devemos considerar que se mantém válida a interpretação jurisprudencial veiculada no aresto antes mencionado quanto à relativa desconsideração para efeitos jurídicos das exigências de especificação orçamental em matéria de receitas» (10) .

Em síntese, o regime da contribuição extraordinária sobre o sector energético não viola o princípio constitucional da especificação orçamental, desde logo, porque a consignação da receita ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), retira ao argumento grande parte da sua relevância, porquanto o escrutínio público far-se-á no plano da aferição da aplicação concreta das receitas assim obtidas.
Ao julgar no sentido referido, a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento, pelo que deve ser mantida na ordem jurídica.
Termos em que se julgam improcedentes as presentes conclusões de recurso.

Dispositivo
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da subsecção do juízo comum da secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe.
Notifique.
(Jorge Cortês - Relator)

(1ª. Adjunta- Isabel Silva)

(2ª. Adjunta – Maria da Luz Cardoso)

(1) N.º 1 do probatório.
(2) Versão conferida pela Lei n.º 33/2015, de 27 de abril.
(3) Artigo 2.º/alínea d), do RCESE.
(4) Versão conferida pela Lei n.º 33/2015, de 27 de abril.
(5) Versão conferida pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro.
(6) Redação da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro.
(7) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 296/2023, de 25/05/2023.
(8) N.º 1 do probatório.
(9) Acórdão do STA, de 13-12-2023, P. 0240/20.6BELRA.
(10) Acórdão do STA, de 08-09-2021, P. 0545/19.9BEPRT.