Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:118/18.3BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/21/2019
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
TRIBUNAL ARBITRAL
RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR
PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA
Sumário:i) A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorrectos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objectiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.

ii) A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjectiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.

iii) Tendo um simpatizante/adepto da ora Recorrida, desferido um pontapé no peito – agressão física da qual não resultou lesão de especial gravidade – a um agente da PSP, presente dentro do estádio e à entrada para um jogo oficial, ficou preenchido o elemento objectivo do tipo da norma disciplinar do art. 182.º, nº 2, do RDLPFP, sendo que não ficou demonstrado que a ora Recorrida tivesse, por referência ao caso concreto, desenvolvido uma actividade de prevenção do ilícito, em observação dos deveres que regularmente lhe são impostos nos termos do art. 35.º, nº 1, al. a), b), f), l) e o) do RCLPFP e no art. 6.º, al.s c) e p) do Regulamento de Prevenção da Violência, constante do Anexo VI do RCLPFP (na redacção aplicável).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

....................................................... – Futebol, SAD., apresentou junto do Tribunal Arbitral do Desporto, contra a Federação Portuguesa de Futebol e a contra-interessada Liga Portuguesa de Futebol Profissional, pedido de arbitragem necessária contra o acórdão de 20.03.2018 da secção profissional do Conselho de Disciplina daquela Federação, que, no âmbito do processo nº .........../18, condenou a Demandante em multa no valor de EUR 5.738,00, pela prática da infracção p. e p. pelo art. 182.º, nº 2, do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, referente a “agressões graves a espectadores e outros intervenientes”.

Por decisão arbitral do colégio arbitral do Tribunal Arbitral do Desporto, datada de 4.10.2018, foi revogada a decisão recorrida.

Com aquela não se conformando, veio a Federação Portuguesa de Futebol dela interpor recurso jurisdicional para este Tribunal Central, tendo na sua alegação formulado as seguintes conclusões:


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Contra-alegou o ....................................................... – Futebol, SAD., concluindo do modo que segue:

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Por despacho do Relator de 6.12.2018, foi determinado ao Tribunal Arbitral do Desporto para juntar o processo administrativo instrutor.


Neste Tribunal Central Administrativo, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta não emitiu pronúncia.


Com dispensa dos vistos do colectivo, importa agora, em conferência, apreciar e decidir.




I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar:

- Se o acórdão recorrido é nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615.º, nº 1, al. c) do CPC);

- Se o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento ao ter anulado a multa aplicada pelo Conselho de Disciplina no processo que correu termos sob o nº RHI nº .........../2018, por aplicação do art. 182.º, nº 2, ado Regulamento Disciplinar da LPFP.



II. Fundamentação

II.1. De facto

O tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos, em decisão que aqui se reproduz ipsis verbis:


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Foi autonomamente exarada a fundamentação da decisão da matéria de facto, como segue:

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II.2. De direito

Começa o Recorrente por imputar à decisão arbitral recorrida a sua nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, o que torna esta ambígua. Alega que o “acórdão do TAD impossibilita o Conselho de Disciplina de punir quem quer que seja por estas infracções e consente a desresponsabilização completa e total dos clubes pelos atos de violência dos seus adeptos” e ao ignorar a repartição do ónus da prova, contém contradições entre os fundamentos e a decisão tomada, tornando-a ambígua.

As nulidades da decisão, previstas no artigo 615.º do CPC, são – à semelhança do que sucedia com as previstas no artigo 668.º do CPC. de 1961 – deficiências da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável.

E estão circunscritas aos casos previstos no n.º 1 do art. 615.º do CPC, pelo que não se verificando nenhuma das situações aí contempladas não haverá nulidade da decisão; haverá, outrossim, erro de julgamento (eventualmente) e não deficiência formal da decisão, se o tribunal decidiu num certo sentido, embora mal à luz do direito.

A sentença será, por isso, nula apenas quando:

«(…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

(…)»

A nulidade da sentença, por “contradição entre os fundamentos e a decisão”, só ocorrerá quando a construção da sentença é viciosa, isto é, quando “os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto” (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 141). Dito por outras palavras, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta à que logicamente deveria ter extraído.

Nas palavras de Amâncio Ferreira “a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento” (cfr. Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª ed., p. 56).

Ora, escalpelizando a decisão em apreço, pode desde já adiantar-se que não se vislumbra que exista na sentença em crise contradição ou ilogicidade alguma. A sentença recorrida depois de analisar e juridicamente balizar o thema decidendum e depois de ter fixado a factualidade tida por relevante, extraiu uma conclusão jurídica contida nesses parâmetros.

Toda a fundamentação acolhida na decisão recorrida apontava logicamente no sentido da procedência do recurso para o TAD e com base na violação do princípio constitucional da presunção da inocência.

A Recorrente não concorda com a decisão, nem com a sua fundamentação, mas isso não significa que não a tenha compreendido em toda a sua extensão. A evidência de que não existe nulidade alguma na decisão recorrida é-nos dada, aliás, pela própria alegação recursória, onde se faz crítica circunstância ao decidido e se aponta os erros de direito encontrados, indicando de modo esclarecido as razões da discordância e as normas jurídicas tidas por violadas. Não há, portanto, qualquer ambiguidade.

Pelo que não se verifica a suscitada nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, apresentando-se esta como expressa, clara e inequívoca.

Improcede, portanto, o recurso nesta parte.

Vejamos agora o invocado erro de julgamento sobre a matéria de direito, o qual, em boa verdade, esgota o objecto do recurso.

Entende a Recorrente que o conteúdo do Relatório de Policiamento, elaborado por autoridades policiais cujos documentos têm presunção de veracidade, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, constituem prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de a Recorrida incumpriu os seus deveres de vigilância. E, de acordo com a sua alegação, a Recorrida nada alegou, nem demonstrou, que havia cumprido com todos os deveres que sobre si impendem de modo a prevenir o evento em questão, designadamente no que se refere aos deveres de formação (de adeptos e de GOA), bem como de medidas concretamente tomadas, tendo em vista a prevenção da violência.

A Recorrida, por sua vez, defende o acerto do acórdão arbitral recorrido, reiterando que o Conselho de Disciplina não carreou prova suficiente de que a autoria do comportamento era de sócio ou seu simpatizante, não existindo qualquer conduta culposa pelo ....................................................... – Futebol, SAD. Defende, portanto, a validade da aplicação do princípio da presunção da inocência e que nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º-f) do RD permite sustentar a sua culpa.

Vejamos.

Sobre a matéria decidenda existe já jurisprudência formada no STA, da qual se extraí que (cfr. o recentíssimo ac. de 21.02.2019, proc. nº 033/18.0BCLSB):

I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.

II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

III - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.

IV - A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.

Escreveu-se, ao que aqui releva, neste aresto:

“(…)

21. Insurge-se a recorrente quanto ao juízo firmado pelo «TCA/S» no segmento em que no mesmo se julgou procedente o recurso jurisdicional, revogou a decisão do «TAD» e se anulou a decisão disciplinar punitiva, para o efeito se considerando que esta padecia de ilegalidade já que não se mostravam apurados os factos e preenchidos os tipos dos ilícitos disciplinares imputados à «FC…., SAD», ocorrendo, assim, infração, nomeadamente, do que se mostra disposto nos arts. 13.º, al. f), 127.º, n.º 1, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em conjugação com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do Anexo VI do RPV/RC/LPFP-2017.

Analisemos.

22. No processo disciplinar, à semelhança do que sucede no processo penal, o ónus da prova dos factos constitutivos da infração cabe ao titular do poder disciplinar, não sendo o arguido que tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, pelo que perante um non liquet em matéria de prova o mesmo terá de ser resolvido em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do in dubio pro reo.

23. E na fixação dos factos que funcionam como pressupostos de aplicação das penas disciplinares a Administração não detém um poder insindicável em sede contenciosa, porquanto nada obsta a que o julgador administrativo sobreponha o seu juízo de avaliação àquele que foi adotado pela Administração, mormente por reputar existir uma situação de insuficiência probatória [cfr., entre outros, os Acs. deste Supremo de 24.01.2002 - Proc. n.º 048147, de 18.04.2002 (Pleno) Proc. n.º 033881, de 07.10.2004 - Proc. n.º 0148/03, de 07.06.2005 - Proc. n.º 0374/05, de 14.04.2010 - Proc. n.º 0803/09, de 28.06.2011 - Proc. n.º 0900/10, de 13.07.2016 - Proc. n.º 0516/14].

24. Temos, ainda, que a condenação em pena disciplinar deve assentar ou estribar-se em provas que permitam um juízo de certeza, ou seja, uma convicção segura, que esteja para além de toda a dúvida razoável, de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados [cfr., entre outros, Acs. deste Supremo de 07.10.2004 - Proc. n.º 0148/03, 28.04.2005 - Proc. n.º 0333/05, de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10, de 28.06.2011 - Proc. n.º 0900/10, de 15.03.2012 - Proc. n.º 0426/10, de 23.01.2013 (Pleno) - Proc. n.º 0772/10, de 14.01.2016 - Proc. n.º 01546/14, de 28.01.2016 - Proc. n.º 0404/14, de 13.07.2016 - Proc. n.º 0516/14].

25. É que no processo sancionador a prova da prática da infração que é exigida deve ser conclusiva e inequívoca no sentido de que o sancionado é o autor responsável, não podendo impor-se uma sanção disciplinar com base em simples indícios ou conjeturas subjetivas.

26. Na verdade, como afirmado no acórdão deste STA de 07.06.2005 [Proc. n.º 0374/05] a «“prova dos factos integrantes da infração disciplinar cujo ónus impende sobre a entidade administrativa que exerce o poder disciplinar, através do instrutor do processo, tem de atingir um grau de certeza que permita desferir um juízo de censura baseado em provas convincentes para um apreciador arguto e experiente, de modo a ficar garantida a segurança na aplicação do direito sancionatório”», segurança essa que não se encontra garantida se «a prova coligida no processo disciplinar não legitimar uma convicção segura da materialidade dos factos imputados ao arguido».

27. Note-se, todavia, que a condenação do arguido em processo disciplinar não exige que a certeza tenha de ser «absoluta, férrea ou apodítica da sua responsabilidade» [cfr., entre outros, os Acs. deste Supremo de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10, de 15.03.2012 - Proc. n.º 0426/10, de 07.01.2016 - Proc. n.º 0131/13], dado o preenchimento do grau de certeza exigido se bastar com existência de elementos probatórios coligidos no processo e que o «demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável».

28. Com efeito, a prova dos factos não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado «a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática» [cfr. o citado Ac. deste Supremo de 07.01.2016 - Proc. n.º 0131/13], uma «verdade histórico-prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida» [cfr. J. Figueiredo Dias, in: «Direito Processual Penal», I, 1981, pág. 194], bastando, por isso, que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.

29. É que «nos juízos de facto a emitir num processo disciplinar, é lícito à Administração, e até obrigatório, usar das presunções naturais que se mostrem adequadas», porquanto «é legítimo, e obrigatório, usar de presunções naturais na realização dos julgamentos de facto. Esse é, aliás, um exercício quotidiano nos tribunais, permitido pelo art. 351º do Código Civil; e de igual metodologia se serve a Administração nos juízos que emita sobre a prova produzida» [cfr. o citado Ac. deste Supremo de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10].

30. Presentes os considerandos antecedentes e revertendo ao caso sub specie temos que as questões que no mesmo se mostram suscitadas não constituem novidade neste Supremo [cfr. as pronúncias já firmadas nos citados Acs. de 18.10.2018 - Proc. n.º 0144/17.0BCLSB, e de 20.12.2018 - Proc. n.º 08/18.0BCLSB].

31. Tal como afirmado nas pronúncias já emitidas o conhecimento em sede de recurso de revista mostra-se reconduzido a matéria de direito, porquanto o recurso de revista «só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual» e aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o «tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado», cientes de que o «erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» [cfr. arts. 12.º, n.º 4, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) - na redação que lhe foi introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos daquele Estatuto sem expressa referência em contrário -, e 150.º, n.ºs 2 a 4, do CPTA].

32. Assente este pressuposto temos que o juízo formulado pelo «TCA/S» quanto à matéria de facto apenas pode ser censurado na medida em que se traduza numa questão de direito, questão essa que, como vimos, efetivamente se mostra colocada face aos termos do recurso de revista sob apreciação dado que, mormente, está em causa uma alegada infração de vários comandos normativos [cfr., nomeadamente, os insertos nos arts. 13.º, al. f), 222.º, n.º 2, e 250.º, do RD/LPFP-2017, 349.º do CC, 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP] naquilo que foi, no contexto de processo disciplinar, o apelo ou recurso a presunções judiciais na fixação da factualidade tida por relevante e que foi pressuposto da imputação e responsabilização disciplinar.

33. Em apreciação da matéria objeto de discussão nos autos afirmou este Supremo nos acórdãos citados, em linha, como vimos, com o que constitui entendimento deste Tribunal, que aqui se secunda e reitera, que «no domínio do direito disciplinar, a que se aplicam subsidiariamente os princípios do direito penal, é lícito o uso das presunções judiciais».

34. E que aliada a tal afirmação importa ter, ainda, como «indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa” [art. 13.º, al. f), do RD]», sendo que «[e]sta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado».

35. Ora, ao invés do que se sustenta no acórdão do «TCA/S» aqui objeto de impugnação, a decisão do «TAD» não incorreu em erro de julgamento ao haver mantido incólume o quadro factual que havia sido fixado como provado na decisão disciplinar punitiva.

36. O juízo na mesma firmado nessa sede louvou-se ou socorreu-se não apenas do princípio da presunção de veracidade dos factos nos termos que se mostram previstos na al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017, mas, também, de presunções naturais radicadas em circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência [cfr. art. 349.º do CC] que enuncia, nomeadamente, sob o ponto «iii) “Do alegado erro na apreciação da prova”», tal como o havia feito, aliás, a decisão disciplinar punitiva impugnada.

37. Esta não viu radicar, pois, o juízo punitivo numa qualquer presunção de culpa da «FC…., SAD», antes se mostrando o mesmo juízo alicerçado, ao invés, naquilo que foi a prova lograda coligir e produzir no processo disciplinar e o uso de presunções, considerando e fazendo apelo, inclusive, daquilo que são decorrências do cumprimento das obrigações que impendem sobre os clubes no decurso e participação nas competições em que estão envolvidos [cfr., nomeadamente, os arts. 34.º a 36.º do RC/LPFP-2017, e arts. 06.º, 07.º 08.º, 09.º, 10.º e 11.º do RPV/RC/LPFP-2017] e em que a designada «bancada topo Sul» do Estádio do …….., indicada expressis verbis no relatório como local onde os ilícitos ocorreram, é consabidamente um local ocupado por adeptos, sócios, apoiantes ou simpatizantes afetos ao clube «FC….»/«FC….., SAD», revelada, nomeadamente, «através da ostentação de camisolas, bandeiras, cachecóis ou da entoação de determinados cânticos».

38. A aqui recorrida, «FC…., SAD», verdadeiramente não nega ou põe efetivamente em causa a ocorrência dos factos registados no «relatório do delegado» da LPFP ao jogo, já que a impugnação, ou a discussão se centra, no fundo, que tenham sido adeptos seus os autores dos factos em causa nos presentes autos.

39. Ocorre, contudo, que pese embora a mesma teça diversas considerações sobre hipotéticas possibilidades no que respeita à autoria das sobreditas «ocorrências», a aqui recorrida, nem no processo disciplinar, nem na impugnação deduzida quanto à decisão disciplinar punitiva, não conseguiu infirmar, com plausibilidade, o que foi redigido no referido relatório, mediante a alegação de factos perfeitamente ao seu alcance e a produção de meios probatórios que, fazendo a contraprova [cfr. art. 346.º do CC], permitissem ilidir a mera presunção de veracidade de que o mesmo relatório goza [cfr. al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017], presunção esta que não corresponde a uma qualquer presunção legal, ou a uma regra de dispensa, liberação ou de inversão do ónus da prova [cfr. art. 344.º do CC], que seria, aliás, inadmissível no plano constitucional e legal no âmbito de matéria sancionatória.

40. O considerar-se que a aqui recorrida não conseguiu destruir os factos que lhe foram imputados mediante a alegação de factos e a apresentação de provas apenas significa que a prova coligida durante a instrução do processo não foi infirmada na subsequente fase de defesa de que a mesma dispôs, não sendo possível inferir de uma tal afirmação a conclusão de que era àquela que, enquanto arguida, competia fazer a prova a inexistência dos factos e da sua não culpa, não ocorrendo, por conseguinte, uma qualquer infração ao princípio de presunção de inocência do arguido [cfr., entre outros, o Ac. do STA de 10.03.1998 - Proc. n.º 040528], nem sequer a situação, no contexto apurado de efetiva existência de culpa da arguida, permite o operar do princípio do in dubio por reo.

41. De referir ainda que do facto de nem as autoridades policiais, nem os delegados da «LPFP», ou o árbitro, terem identificado pessoalmente quem, em concreto, fez uso dos engenhos pirotécnicos ou proferiu as expressões/cânticos reportados, tal não invalida ou impossibilita a fixação da factualidade nos termos que se mostram realizados.

42. É que para o que constitui o objeto de incriminação e tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram [no decurso de um jogo de futebol e em que os adeptos e simpatizantes estavam numa bancada afeta a adeptos do «FC…..», mostrando-se portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao respetivo clube, nomeadamente, as referidas bandeiras, cachecóis e camisolas] a circunstância de, no meio daquela imensa mole humana, não ter sido efetuada a identificação pessoal dum concreto sujeito ou dos concretos sujeitos, tem-se como de todo em todo desnecessária, já que a imputação não é feita aos concretos adeptos, mas ao clube de que os mesmos são apoiantes ou simpatizantes, adeptos esses que, refira-se, não estão sequer sujeitos ou abrangidos pelo âmbito do «RD/LPFP» [cfr., nomeadamente, seus arts. 03.º, 04.º, n.º 1, al. b), e 187.º].

43. Ressuma do exposto que o juízo posto em crise mostra-se, assim, em consonância com o entendimento e jurisprudência convocada, não padecendo, como tal, de qualquer erro de julgamento, nem das apontadas inconstitucionalidades.

44. Como afirmado por este Supremo nos seus acórdãos de 18.10.2018 e de 20.12.2018, supra citados, o estabelecimento e previsão de uma tal presunção de veracidade «não se vê que … seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (…), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário» e de que como o mesmo TC entendeu «para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (…) cremos que a presunção de veracidade em causa - que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza - não acarreta qualquer presunção de culpabilidade suscetível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art. 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP)», já que «o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percecionados pelos delegados e não aos demais elementos da infração, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva, mas só prima facie ou de interim, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio in dubio pro reo, a sua absolvição».

45. A decisão disciplinar punitiva não radicou, pois, numa qualquer presunção de culpa da «FC…., SAD», decorrente duma inversão do ónus probatório [cfr. art. 344.º do CC] estribado no art. 13.º, al. f) do RD/LPFP-2017, antes se mostrando alicerçada naquilo que, levando a consideração em matéria desportiva os princípios enformadores do processo disciplinar, foi a prova coligida no mesmo processo e o uso lícito e legítimo das aludidas presunções [cfr. art. 349.º do CC], tudo em observância e sem entorses aos princípios e comandos normativos [constitucionais e legais] convocados [cfr. arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP, 13.º al. f), 127.º, 187.º e 258.º do RD/LPFP-2017].

46. Não pode, pois, manter-se neste segmento o juízo firmado pelo «TCA/S» já que, contrário, àquele que se acaba de produzir.

(…)

48. Constitui uma incumbência do Estado, em colaboração, nomeadamente, com as associações e coletividades desportivas [in casu, os clubes de futebol] a prevenção e combate à violência no desporto [cfr., no quadro internacional a «Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das Manifestações Desportivas e nomeadamente de Jogos de Futebol» vulgo «Convenção ETS n.º 120» (aprovada, por ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 11/87, de 10.03, e que cessou a sua vigência em 01.01.2019 - cfr. Aviso n.º 90/2018 publicado DR 26.07.2018) e a «Convenção sobre uma Abordagem Integrada da Segurança, Proteção e Serviços por Ocasião de Jogos de Futebol e Outras Manifestações Desportivas» (ETS n.º 218 - vigente na nossa ordem jurídica desde 01.08.2018 - cfr. Aviso n.º 91/2018 publicado DR 26.07.2018); no quadro normativo interno, nomeadamente, os arts. 79.º, n.º 2, da CRP, 03.º, n.º 2, 05.º da Lei n.º 5/2007, de 16.01 (Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto - doravante LBAFD), 01.º, 05.º, 07.º, 08.º, 09.º, 16.º a 18.º, 23.º a 25.º, da Lei n.º 39/2009, de 30.07 (diploma que veio estabelecer o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança - com as alterações introduzidas pela Lei n.º 52/2013, de 25.07)], pugnando-se para que a atividade desportiva seja «desenvolvida em observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes» [cfr. o art. 03.º, n.º 1, da LBAFD].

49. Em decorrência do que neste domínio constituem as obrigações e deveres legais enunciados no referido quadro normativo, que impendem, também, sobre os clubes e as sociedades desportivas, vieram, entretanto, a ser aprovados e publicitados pelas entidades responsáveis e organizadores das competições desportivas diversos regulamentos internos em matéria não apenas da organização daquelas competições, mas, também, de prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos, e, bem assim, de disciplina, nomeadamente, dos clubes de futebol e sociedades desportivas e dos agentes desportivos [cfr., no que aqui releva, o RD/LPFP-2017 - seus arts. 04.º, n.º 1, als. a) e b) 19.º, 66.º, 80.º, 94.º a 96.º, 105.º, 113.º, 131.º, 132.º, 145.º, 151.º a 154.º, 157.º a 159.º, 173.º, 178.º a 187.º - e o RC/LPFP-2017 - seus arts. 03.º, als. a) e d), 34.º, 35.º, 36.º e Anexo VI ao mesmo Regulamento].

50. Assim, no contexto do futebol, extrai-se do art. 06.º do RD/LPFP-2017 que o regime disciplinar desportivo é autónomo e independente da «responsabilidade civil ou penal, assim como do regime emergente das relações laborais ou estatuto profissional, os quais serão regidos pelas respetivas normas em vigor» [n.º 1], bem como da «responsabilidade disciplinar de natureza associativa decorrente da qualidade de associado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional» [n.º 2], sendo que a «aplicação de sanções criminais, contraordenacionais, administrativas, cíveis ou associativas não constitui impedimento, atento o seu distinto fundamento, à investigação e punição das infrações disciplinares de natureza desportiva» [n.º 3], prevendo-se, no que releva, quanto ao âmbito subjetivo de aplicação das normas disciplinares que os «clubes são responsáveis pelas infrações cometidas nas épocas desportivas em que participarem nas competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional e no âmbito dessas competições» [cfr. art. 07.º, n.º 2].

51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no n.º 1 do art. 17.º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos seus arts. 29.º e 30.º o leque de sanções disciplinares [principais e acessórias] e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.

52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RD/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» [cfr. subsecção I, arts. 62.º a 83.º], «graves» [cfr. subsecção II, arts. 84.º a 118.º] e «leves» [cfr. subsecção III, arts. 119.º a 127.º], seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espectadores», resultando enunciado no art. 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» [n.º 1] e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial da equipa visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» [n.º 2] [sublinhado nosso].

53. Também as «infrações dos espectadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» [cfr. subsecção II, arts. 173.º a 178.º], «graves» [cfr. subsecção III, arts. 179.º a 184.º] e «leves» [cfr. subsecção IV, arts. 185.º a 187.º], estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art. 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» [n.º 1].

54. Decorre, por outro lado, do art. 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» [n.º 1], e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado; … d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» [n.º 2].

55. Resulta do art. 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (…) k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» [n.º 1], e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis» [n.º 2], sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» [n.º 6] [sublinhados nossos].

56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência [cfr. art. 36.º daquele RC] a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP - adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art. 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art. 04.º que «[c]ompete à Liga e aos seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art. 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» [cfr. art. 06.º do mesmo Regulamento].

57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art. 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos [cfr. art. 11.º] se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art. 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.

58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.

59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afeto ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.

60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas. [sublinhado nosso]

61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.

62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade. [sublinhado nosso]

63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.

64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido. [sublinhado nosso]

65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.

66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/» e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos arts. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18.08 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que «[n]ão é, pois, (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».

67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.

68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos arts. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam. [sublinhado e carregado nossos]

69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar [cfr. arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD/LPFP-2017] que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».

70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.

71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.

72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.

73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra, ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.

74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o primeiro princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio. [sublinhado nosso]

75. Assiste, por conseguinte, razão à recorrente, não podendo, assim, manter-se o juízo firmado neste segmento no acórdão recorrido.

(…).”

Já no domínio da prevenção da violência no desporto, o Tribunal Constitucional teve oportunidade de firmar jurisprudência, concretamente no acórdão nº 730/95, proc. nº 328/91, ainda que por referência ao Regulamento Disciplinar aprovado na assembleia geral extraordinária da Federação Portuguesa de Futebol de 18.08.1984, com alterações introduzidas na assembleia geral extraordinária de 4.08.1990.

Afirmou-se no citado acórdão do Tribunal Constitucional:

“ (…)

Subjacente à criação deste diploma, no dizer do seu preâmbulo, está a necessidade de tornar efectivas as medidas preconizadas pela Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das Manifestações Desportivas e nomeadamente de Jogos de Futebol, de modo a que as "manifestações decorram em ambiente de dignidade e correcção baseada no respeito mútuo e num salutar espírito de competição" (é a Convenção nº 120, datada de 19 de Agosto de 1985, já ratificada e entrada em vigor no nosso Pais em 14 de Agosto de 1987, cujo artigo 3º, nº 1, prevê em especial "medidas, destinadas a prevenir e dominar a violência e os excessos dos espectadores", referindo-se o nº 4 a "legislação adequada que inclua sanções por desobediência ou outras medidas apropriadas, de forma a que as organizações desportivas, os clubes e, se for caso disso, os proprietários dos estádios e autoridades públicas, no âmbito das competências definidas pela legislação interna, tomem medidas concretas, dentro e fora dos estádios, para prevenir ou dominar a violência e os seus excessos").

Mas também subjacente às disposições agora introduzidas está ainda, no dizer do preâmbulo, a experiência dos últimos anos e os trabalhos parcelares desenvolvidos em paralelo com a preparação da Lei de Bases do Sistema Desportivo (a Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro).

Efectivamente, esta lei, publicada pouco depois do Decreto-Lei nº 270/89, estabelece no nº 3 do seu artigo 5º que, "na prossecução da defesa da ética desportiva, é função do Estado adoptar as medidas tendentes a prevenir e a punir as manifestações antidesportivas, designadamente a violência (...)".

Considerando que o problema da violência não pode, porém, ser eficazmente resolvido apenas pela acção do Estado, vem o diploma de 1989 declaradamente afirmar que às organizações desportivas se atribuem amplas competências e responsabilidades (cfr. ainda o seu preâmbulo).

(…).”

E em particular sobre o art. 106.º desse Regulamento, disse-se:

"106º (Dos distúrbios)

1- Os clubes que não assegurem a ordem e a disciplina dentro da área dos recintos ou complexos desportivos, antes, durante e após a reali­zação dos jogos, da natureza dos previstos no Art. 42º e desde que se verifique qualquer distúrbio provocado por espectador ou espectadores seus adeptos ou simpatizantes, serão sempre por estes responsáveis e punidos nos termos seguintes:

a) Sempre que se verifique perturbação da ordem ou disciplina, designadamente arremesso de objectos, agressões, ameaças ou tentativas, incitamentos grave contra espectadores, agentes da autoridade em serviço, dirigentes, médicos, treinadores, secretários, técnicos, auxiliares técnicos, empre­gados, componentes da equipa de arbi­tragem, jogadores ou ainda amotinação, sua ameaça ou tentativa, invasão de campo, sua ameaça ou tentativa, seja ou não com o propósito de protestar ou molestar os referidos intervenientes, os Clubes serão punidos com a multa de 10 000$00 (dez mil escudos) a 25 000$00 (vinte e cinco mil escudos).

b) Se qualquer dos factos enunciados na alínea anterior causar interrupção não definitiva no jogo ou originar dificuldades especiais ao seu início, reinício ou prosseguimento, os Clubes são punidos com a pena de interdição de um a dois jogos do seu campo ou como tal considerado e com multa de 25 000$00 (vinte e cinco mil escudos) a 100 000$00 (cem mil escudos).

Igual pena será aplicada aos Clubes em caso de grave tentativa de agressão ou graves actos intimidatórios organizados contra as entidades e elementos referidos na alínea a), bem como quando forem causados graves danos patrimoniais;

c) Se o distúrbio der causa a que as pessoas referidas na alínea a) sejam molestadas, mas não levar à interrupção do jogo nem originar dificulda­des especiais ao seu início, reinício ou prosseguimento, os Clubes serão punidos com a pena de interdição do seu campo ou considerado como tal, por um a seis jogos e multa de 30 000$00 (trinta mil escudos) a 120 000$00 (cento e vinte mil escudos);

d) Se o distúrbio der causa a que as pessoas referidas na alínea a) sejam molestadas e levar o árbitro a interromper o jogo e originar dificuldades especiais ao seu início, reinício ou prosseguimento, os Clubes serão punidos com interdição do seu campo ou considerado como tal por dois a oito jogos e a multa de 50 000$00 (cinquenta mil escudos) e 150 000$00 (cento e cinquenta mil escudos);

e) Se o distúrbio der ou não causa a que as pessoas referidas na alínea a) sejam molestadas, e levarem o árbitro justificadamente a não dar início ou reinício ao jogo ou dá-lo por findo antes do tempo regulamentar, os Clubes serão punidos com a interdição do seu campo ou considerado como tal por três a doze jogos e multa de 70 000$00 (se­tenta mil escudos) a 200 000$00 (du­zentos mil escudos);

2- Quando, dos factos previstos nas alíneas d) e e) do nº 1, resultarem graves consequências para as pessoas referidas na alínea a) do mesmo número ou sempre que o campo de jogos seja invadido colectivamente em atitude de protesto ou com a intenção de agredir, por espectadores, simpatizantes ou adeptos de um ou ambos os Clubes, este ou estes serão ainda punidos com a medida de segurança de vedação do campo de jogos.

3- Quando o árbitro não dê início ao jogo ou lhe ponha termo antes do tempo regulamentar, será instaurado processo disciplinar contra os autores dos distúrbios.

4- Se, em face de tal, se provar que os distúrbios foram praticados por associados ou adeptos de um Clube, a este será aplicada a pena de derrota; e se provar que aqueles foram praticados por associados ou adeptos de ambos os Clubes, a estes será aplicada a referida pena de derrota, sem a consequente atribuição de pontos a qualquer deles.

5. Se se vier a provar que não foi justificada a decisão do árbitro de não dar início ao jogo ou de lhe pôr termo antes do tempo regulamen­tar, aplicar-se-ão as sanções previstas nas alíneas a) e d) do número 1, deste Artigo, conforme os casos, e mandar-se-á complementar o tempo de jogo que faltar para a sua conclusão, respeitando-se o resultado que se verificava no momento da sua interrupção.

(…)

Estamos no domínio do ilícito disciplinar ou disciplinar desportivo. E, por isso, são de aplicar aqui, "em tudo quanto não esteja expressamente regulado", "os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo": "assim, a culpa [...] deve, ao menos em princípio, ser pressuposto da punição" (Eduardo Correia, Direito Criminal, com a cola­boração de Figueiredo Dias, I, reimpressão, 1971, § 2º, nº 9).

E o que se diz é que as normas em causa, isto é, os artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89, ao permitirem a punição dos clubes desportivos com a sanção (disciplinar) de interdição dos recintos desportivos e uma sanção pecuniária de carácter disciplinar, por faltas praticadas por espectadores - as descritas nos nº 1. 2 e 3 do artigo 3º -, e na medida em que, na linguagem do requerente, tais disposições contemplam um inequívoco regime de responsabilidade objectiva, deverão considerar-se materialmente inconstitucionais (de penas disciplinares fala Michel Zen-Ruffinen, in ZStr R/ RPS - Revue Pé­nale Suisse, Fasc. 3, 1991, págs 344).

Por aqui vai começar então a análise da questão da inconstitucionalidade.

Interessa, porém, como nota preambular, fazer uma breve incursão, fundamentalmente de raiz sociológica, no fenómeno da violência associada ao desporto, com destaque para a violência no futebol, de que são trágicos exemplos, de todos conhecidos, entre muitos outros, o Estádio de Heysel, na Bélgica, e o Estádio de Hillsborough, Sheffield, na Inglaterra, matéria que nestes últimos anos tem sido versada por alguns especialistas (por exemplo, a temática do futebol na Grã-Bretanha tem sido objecto de investigação na Universidade de Leiscester, com financiamentos do órgão governamental The Football Trust); em vários países, publicam-se revistas periódicas de direito desportivo, como, por exemplo, em Espanha, com o patro­cínio do Conselho Superior de Despor­tos, a "Civitas - Revista española de Derecho Deportivo", em Itália a "Rivista di Diritto Sportivo").

Assim, e passando pela análise da subcultura do holiganismo e da violência que lhe está ligada (na Bélgica chamam-se "sides" os grupos de jovens que constituem o núcleo duro das claques desportivas, fenómeno estudado na época de 1989/1990 pelo psicólogo Manuel Comeron, in Revue de Droit Pe­nal et de Criminologie, Setembro/Outubro de 1992, págs. 829 e segs.), pode ler-se, a título meramente exemplificativo, o que escreveram, a tal propósito:

(…)

- P. Murphy, J. Williams e E. Dunning, no livro "O Futebol no Banco dos Réus", CELTA EDITORA, 1994, com um retrato exaustivo da realidade britânica e do fenómeno do holiganismo, fazendo um juízo prospectivo nestes termos:

"Não restam dúvidas de que - tanto a nível nacional como europeu - é necessária uma acção decisiva que abarque os múltiplos aspectos da actual crise vivida pelo futebol. Em particular, é preciso actuar em relação às práticas de jogo violento e fraudulento. No entanto, muito mais urgente é a tomada de medidas em relação à violência dos espectadores, bem como relativamente ao padrão dos relatos da comunicação social, os quais, com excessiva frequência, geram pontos de vista distorcidos sobre os aspectos subjacentes a essa violência. Se não se tomarem medidas efectivas nestas duas esferas, o futebol, sem dúvida a mais civilizada e, quando devidamente organizado e jogado de acordo com as regras, a potencialmente mais civilizadora das invenções sociais, ficará irremediavelmente desfavorecido na competição com o seu rival norte-americano, o qual é intrinsecamente mais violento mas também mais apoiado pelo capital e pelos meios de comunicação social" (pág. 22).

Ora, parece evidente que tudo isto - tudo o que vinha acontecendo e toda esta preocupação destes últimos 20/30 anos em analisar, estudar, dissecar nos seus vários aspectos o desporto, nomeadamente o futebol e o lado trágico que a ele se tem ligado nos locais mais dispersos do Mundo - não podia deixar de ter influência nos Estados, sobretudo no plano legiferante, prosseguindo, como devem prosseguir, fins públicos relacionados com a segurança dos cidadãos e com os objectivos culturais que devem presidir à prática desportiva.

Influência que, por exemplo, entre nós, levou o legislador constitucional, na revisão de 1989, a atribuir ao Estado a incumbência de "prevenir a violência no desporto" (artigo 79º, nº 2, da Constituição), consagrando, assim, constitucionalmente, uma linha do legislador ordinário que, como já se viu, desde 1980 se vinha ocupando dessa matéria, embora com um acento tónico na fase repressiva do fenómeno da violência (e isto independentemente de normas regulamentares, ainda que incipientes, das associações desportivas e federações, como era o caso do Regulamento da F.P.F.).

Influência também que, a nível europeu, levou o Conselho da Europa e o Parlamento Europeu, na década de 1980, a tomarem posições e a adoptarem medidas, com vista a prevenir e a diminuir a violência e os distúrbios dos espectadores por ocasião de manifestações desportivas, sendo de destacar a Convenção Europeia atrás referida (pode ver-se a Convenção e demais instrumentos, como resoluções, directivas, recomendações, tanto do Conselho, como do Parlamento, em "A Violência Associa­da ao Desporto", de José Manuel Meirim, Ministério da Educação, 1994; e é curioso registar os seguintes considerandos daquela Convenção: "Considerando que tanto as autoridades públicas como as organizações desportivas independentes têm responsabilida­des, distintas mas complementares, na luta contra a violência e os excessos dos espectadores; tendo em conta o facto de as or­ganizações desportivas terem também responsabilidades matéria de segurança e em geral deverem assegurar o bom andamento das manifestações que organizam; considerando por outro lado que estas autoridades e estas organizações devem, para esse efeito, conjugar os seus esforços a todos os níveis; Considerando que a violência é um fenómeno social actual de vasta envergadura cujas origens são essencialmente exteriores ao desporto e que o desporto é frequentemente palco de explosões de violência").

É, pois, primacialmente, um objectivo final de prevenção que perpassa nas medidas repressivas adoptadas pelo legislador português, por via das normas ora questionadas, ciente como tem de estar de que o desporto é, neste século XX, um fenómeno social, um fenómeno de massas, atraindo progressivamente mais espectadores e preenchendo cada vez mais o espaço dos meios de comunicação social, sendo que, por um lado, escas­seiam ou não têm resultados as campanhas de informação destinadas a promover o "fair play" no desporto, e, por outro lado, as autoridades desportivas revelam-se incapazes de tomar medidas drásticas, desde logo por não possuírem recursos para o fazer (cfr. o relatório do Parlamento Europeu sobre o vandalismo e a violência no desporto, citado por José Manuel Meirim, loc. cit., págs. 109 e seguintes).

9. Retomando agora o ponto em que se anunciou começar a análise do mérito do pedido do requerente pela perspectiva da "responsabilidade objectiva" que, no seu discurso, decorre dos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89, ora questionados, há que obter a resposta à questão de saber em que medida um clube desportivo pode ser punido disciplinarmente por factos praticados por agentes que sejam seus sócios ou simpatizantes. Por outras palavras: em que medida é conforme à Constituição um sistema, como é o daquele Decreto-Lei, que permite, além do mais, a punição dos clubes desportivos com a sanção (disciplinar) de interdição dos recintos desportivos e uma sanção pecuniária de carácter disciplinar, por faltas praticadas por espectadores, as descritas nos nºs 2 e 3 do artigo 3º. [sublinhado nosso]

(…)

Ora, sendo isto assim, convém reter que as sanções referidas nos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89 são aplicadas aos clubes desportivos, por condutas ilícitas e culposas das respectivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz.

Deveres que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando, decorrendo nomeadamente de condutas (v.g. declarações) dos dirigentes do clube, a quem cabe velar, mesmo no plano pedagógico, pelo "fair play" desportivo dos sócios ou simpatizantes do clube (podendo falar-se aqui de uma certa intenção comunitária), sendo aceitável que a estes dirigentes possam substituir-se como centros éticos-sociais de imputação jurídica, as suas obras ou realizações colectivas (cfr. o citado Acórdão nº 302/95). [sublinhado nosso]

Aos clubes desportivos, com efeito, cabe o dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas, como forma de garantir a realização do direito cultural consagrado no artigo 79º da Constituição.

(...)

Estamos, assim, em condições de responder afirmativamente à questão da punição dos clubes desportivos, como foi posta a título introdutório, pois, pode encontrar-se um fundamento de censura por culpa, na imputação dos factos aos clubes.

Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilidade objectiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabilidade objectiva pelo facto de o artigo 3º exigir, para a aplicação da sanção da interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes. E no mesmo sentido milita a referência que nesse mesmo preceito (nº 7) e no artigo 6º (nº 1. 1 e 2) é feita ao clube responsável (pelos distúr­bios). Por fim, o processo disciplinar que se manda instaurar (artigo 4º) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infracção, sendo que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube). [sublinhado nosso]

Com o que não pode dar-se como verificada a tese sustentada pelo requerente da violação do princípio da culpa (cfr. neste sentido José Manuel Meirim, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc. 1, págs. 85 e seguintes, afirmando: "Não vemos, pois, como, e concluindo mesmo levando às últimas consequências a exigência de culpa neste domínio, se pode ter como inconstitucional a aplicação da sanção agora em causa").

(…)

E, para finalizar, quanto aos termos em que o questionado artigo 3º coloca a imputação das faltas ao clube desportivo, é bom de ver que o núcleo essencial da violência associada ao desporto radica, na economia do diploma, e como realçam os sociólogos, nos espectadores, mas estes - e não se discutindo a responsabilidade individual de cada um deles - são normalmente os sócios, adeptos ou simpatizantes dos clubes em presença (as chamadas claques desportivas, que se identificam com o respectivo clube desportivo) e, por consequência, o sujeito passivo da aplicação das medidas sancionadoras não é só o clube visitado. Em regra, assim acontecerá, na medida em que sobre ele recai um conjunto de deveres que lhe são impostos por lei, no sentido de assegurar que não ocorram distúrbios de espectadores (e não só dos seus sócios, adeptos ou simpatizan­tes) no recinto desportivo, mas não podem marginalizar-se situações em que é o clube visitante a desrespeitar deveres relativamente ao comportamento dos seus sócios, adeptos ou simpatizantes (por alguma razão, é do conhecimento comum a prática generalizada - prevista no artigo 12º, nº 1, alínea b) do mesmo diploma - de separar por diferentes sectores dos recintos desportivos as claques desportivas, que hoje são perfeitamente localizáveis através dos elementos exteriores, como sejam, bandeiras, panos, roupas, pinturas faciais, de que se servem, sendo que, para além de normas legais e regulamentares tendentes a concretizar essa separação, há recomendações e medidas emitidas pela Comissão Nacional de Coordenação e Fiscalização, criada pelo mesmo Decreto-Lei nº 270/89, relativamente a "antes do dia do jogo", "durante o dia do jogo" e "depois do dia do jogo" - cfr. a publicação "Organização de Espectáculos Desportivos", da dita Comissão). [sublinhado nosso]

Daí que se possa dizer que há sempre uma relação de imputação das faltas cometidas ao clube a punir, ainda que este seja o visitante (outra é a postura de José Manuel Meirim, loc. cit., pág. 92, que sustenta não poder "ser imputada ao clube não responsável pela organização de determinada competição desportiva o desrespeito dos deveres relativos à segurança das instalações nem as acções ilícitas de espectadores").

Também o acórdão do Tribunal Constitucional que vimos de citar, a propósito da culpa e do princípio da presunção da inocência, enfaticamente conclui:

“Por último, importa apreciar a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 106º do Regulamento, sujeita, como ficou assente, à sindicabilidade deste Tribunal Constitucional.

Só que, neste ponto, a tarefa está facilitada, na medida em que o Provedor de Justiça funda tal questão nas mesmas razões que adianta relativamente à questão da inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 270/89.

Segundo ele, "e de qualquer forma, o próprio art. 106º do Regulamento Disciplinar é, em si mesmo, inconstitucional, por assentar numa responsabilidade sem culpa e por actos de terceiros que não actuam em nome, ou em representação, ou por delegação do clube".

Mas, como ficou já analisado a propósito das normas daquele Decreto-Lei nº 270/89, não pode deixar de ser afirmativa a resposta à questão da punição dos clubes desportivos, pois, pode sempre encontrar-se uma ideia de censura a imputar aos clubes, não vingando in casu uma ideia de responsabilidade objectiva dos clubes ( e daí ter-se concluído que não pode dar-se como verificada a tese sustentada pelo re­querente da violação do princípio da culpa). [sublinhado nosso]

(…).”

E o Tribunal Constitucional, a propósito da responsabilidade criminal das pessoas colectivas já concluiu (cfr. acórdão nº 302/95):

“(…) o que importa considerar é que, sendo o Estado de Direito material um Estado de justiça (um Estado que está empenhado, em função de considerações axiológicas materiais de justiça, na promoção das condições económicas, sociais e culturais para o livre desenvolvimento da personalidade do homem, designadamente, na sua actuação social), deve ele dar combate (se necessário for, pelo recurso a sanções penais) às violações mais graves dos respectivos bens jurídicos. E, sendo tais violações cometidas, as mais das vezes, por pessoas colectivas, e não por pessoas individuais, as exigências de justiça que vão implicadas na ideia de Estado de Direito não podem deixar de legitimar, sub specie constitutionis, normas, como as que aqui estão sub iudicio, que consagram a responsabilidade criminal das pessoas colectivas. [Sobre o tema dos delitos antieconómicos, cf. ainda MANUEL DA COSTA ANDRADE, A Nova Lei dos Crimes Contra a Economia (Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro) à Luz do Conceito de "Bem Jurídico", in Ciclo de Estudos de Direito Económico cit., páginas 71 e seguintes]”.

Assim, como se afirmou a acórdão do STA citado, a previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo mostra-se legitimada, já que encontra os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção da violência no desporto, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitua um cumprimento negligente dos deveres supra enunciados E, sem que, de acordo com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que estes se encontram legalmente previstos, estando portanto garantidos.

A doutrina que emana deste acórdão do STA está em consonância com acórdãos anteriormente tirados pelo mesmo Supremo Tribunal, designadamente o acórdão de 18.10.2018, proc. nº 144/17.0BCLSB, no qual se exarou o seguinte discurso fundamentador:

As presunções judiciais, como ilações que o julgador tira de um facto conhecido para, através de um raciocínio lógico-dedutivo, afirmar um facto desconhecido (cf. art.º 349.º, do C. Civil), fundam-se nas regras da vida e da experiência comum, implicando essencialmente um juízo de facto, pelo que o Supremo só pode sindicar o seu não uso ou o juízo presuntivo efectuado pelas instâncias se esta actividade se traduzir num erro de direito, por ofensa de uma qualquer norma legal ou se padecer de ilogicidade (cf. Ac. do STJ de 25/11/2014 – Proc. n.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1).

No domínio do direito disciplinar, a que se aplicam subsidiariamente os princípios do direito penal, é lícito o uso das presunções judiciais que, no entanto, como juízo de facto, só pode ser censurado por este Tribunal nos estritos limites que ficaram referidos.

No caso em apreço, para anular as sanções que haviam sido aplicadas pelo CD, o TAD, com a concordância do TCA-Sul, entendeu que a circunstância de os comportamentos incorrectos terem ocorrido em bancadas ocupadas por adeptos do A……….., não permitia considerar provado, por presunção judicial, que os seus autores eram sócios ou simpatizantes deste clube, atento à necessidade de emissão de um juízo de certeza nesta área do direito e ao facto de dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP não se poder inferir um início de prova ou a inversão do ónus da prova que impendia sobre o acusador. Dado o princípio da presunção de inocência do arguido, era ao titular da acção disciplinar que cabia sempre o ónus de provar os factos constitutivos do ilícito disciplinar, não podendo haver lugar a um esforço probatório aliviado por via de recurso a presunções.

A esta apreciação probatória, a recorrente aponta um erro de direito, resultante de não se ter tomado em consideração a presunção de veracidade legalmente estabelecida para os mencionados relatórios.

E, com efeito, enquanto as decisões do CD se fundaram na referida presunção, tanto o TAD como o acórdão recorrido desconsideraram-na.

Porém, é indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percepcionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa” [art.º 13.º, al. f), do RD].

Esta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percepcionado.

E não se vê que o estabelecimento desta presunção seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (publicado no DR, II Série, de 16/11/2015), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário. [sublinhado e carregado nossos]

Aliás, tal como o Tribunal Constitucional entendeu para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (cf., entre muitos, o Ac. de 6/5/87 in BMJ 367.º-224; o Ac. de 9/3/88 in DR, II Série, de 16/8/88; o Ac. de 30/11/88 in DR, II Série, de 23/2/89; o Ac. de 25/1/89 in DR, II Série, de 6/5/89; o Ac. de 9/2/89 in DR, II Série, de 16/5/89; e o Ac. de 23/2/89 in DR, II Série, de 8/6/89), cremos que a presunção de veracidade em causa – que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza – não acarreta qualquer presunção de culpabilidade susceptível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art.º 32.º, nºs. 2 e 10, da CRP). Com efeito, o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percepcionados pelos delegados e não aos demais elementos da infracção, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva mas só “prima facie” ou de “ínterim”, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio “in dubio pro reo”, a sua absolvição.

Assim, o acórdão recorrido, ao manter a decisão do TAD que efectuou a apreciação probatória partindo do pressuposto que, dado o princípio da presunção de inocência do arguido, o ónus da prova recaia sempre sobre quem acusava, não se podendo atender a quaisquer presunções como a que resultava do citado art.º 13.º, al. f), para os relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP, incorreu no erro de direito que lhe é imputado, devendo, por isso, ser revogado.

De regresso ao caso concreto dos autos, considerando a factualidade que vem provada, temos que no jogo de futebol profissional realizado em 17.09.2017, entre o ....................................................... e o ..................................... (….ª jornada da Liga NOS), aquando da entrada de um grupo de adeptos/simpatizantes da Demandante pela porta 10, os quais se encontravam a causar desacatos vários, um homem, identificado como Rui .............., saiu do meio do grupo e num golpe repentino tipo artes marciais desferiu um pontapé no peito de um oficial da Polícia de Segurança Pública, tendo sido imediatamente ocultado pelo dito grupo (cfr. o provado em 1. e 2. supra). O referido individuo será adepto/simpatizante da equipa do ....................................................... (idem 4.).

Igualmente vem provado que a ora Recorrida procura sensibilizar os seus adeptos e simpatizantes, em particular os adeptos que integram claques de apoio ao clube, a evitar comportamentos violentos, físicos ou verbais (cfr. 6. supra).

O que desde logo se referencia e é matéria assente é o facto de que a agressão foi perpetrada por adepto/simpatizante do ........................................................ Sobre isso não há controvérsia.

E é também matéria estabelecida que, para além do provado em 6., nada mais de relevo se provou no que se refere à actividade desenvolvida pela ora Recorrida a título de prevenção de eventos violentos como os que ocorreram. Isto mesmo compulsado o processo administrativo que nada mais adianta neste capítulo.

Como consta do voto de vencido exarado no acórdão do tribunal arbitral recorrido, “ficou, a nosso ver, bem claro que o tal adepto tinha as cores da demandante, que o grupo que o protegeu e lhe deu condições de fuga era da claque da demandante, que a OLA não estava no local nem sequer em funções ligadas à protecção dos adeptos (conforme afirmou, estava na bilhética), que a demandada não controla, nem sanciona os seus adeptos mesmo os registados na claque (…).”

Ora, perante tão exuberante factualidade impunha-se à ora Recorrida abalar os fundamentos em que a presunção se sustentou, bastando para tanto abalar a sua certeza inicial por via da contraprova dos factos presumidos, não se exigindo, porém, a prova do contrário. A prova do contrário destina-se a tornar certo não ser verdadeiro um facto já demonstrado formalmente (como no caso seria por via do auto de notícia) e esta prova nada tem a ver com a contraprova, pois esta destina-se apenas a tornar incerto o facto visado, a criar a dúvida no espírito do julgador (um non liquet).

Mas o que os autos demonstram é que a ora Recorrida apenas demonstrou, em termos genéricos, que procura sensibilizar os seus adeptos e simpatizantes, em particular os adeptos que integram claques de apoio ao clube, a evitar comportamentos violentos, físicos ou verbais. Nada mais nos é dito, sequer acerca do evento em concreto; nenhuma conduta concreta vem alegada como tendo sido desenvolvida por referência ao constante do auto de notícia. E na ausência dessa demonstração permanece válida a presunção derivada do auto de notícia elaborado pela PSP.

E neste ponto teremos que sublinhar, como o faz o acórdão do Tribunal Constitucional citado, que aos clubes desportivos, cabe o dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas, como forma de garantir a realização do direito cultural consagrado no artigo 79º da Constituição.

Deste modo, temos que para nós que não tendo sido feita contraprova, dúvida não existindo – não ocorre um qualquer non liquet -, não é de aplicar o princípio da presunção da inocência, próprio do direito penal. Apenas se não for possível formular um juízo de certeza, mas apenas de mera probabilidade, é que valerá o princípio da presunção de inocência, já que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade.

Por outro lado, atente-se que o auto de notícia, integrador do relatório de policiamento policial, não foi posto em crise pela arguida nem por qualquer outro dos elementos constantes dos autos.

E o auto de notícia vale como documento autêntico quando levantado por autoridade judiciária, órgão de polícia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, fazendo prova dos factos materiais nele constantes nos termos dos art.s 363.º, n º 2, do C. C. e 169.º do CPP (cfr. o ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.10.2017, proc. nº 638/14.9SGLSB.L1-5). Também concluiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.07.2012, proc nº 115/03.3TBCCH.E1.S1, que é “jurisprudência assente que o auto de noticia constitui uma presunção da existência e verificação dos factos narrados pelo órgão investido de autoridade para relatar os factos ilícitos presenciados e proceder à sua comunicação à autoridade judiciária competente. Na verdade estabelece o artigo 169.º do Código Processo Penal que se “[consideram-se] provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa” e o artigo 243.º do Código Processo Penal que a autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade que presenciem qualquer crime de denúncia obrigatória “levantam ou mandam levantar auto de noticia” donde constem os elementos indicados nas alíneas a) a c) do n.º 1 do mencionado artigo”. Pelo que, continua o aresto citado, “o documento apresentado à autoridade judiciária, donde constem factos presenciados, relatados, narrados e descritos pela autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial, adquira um valor probatório de confiança e verosimilhança com a realidade que permite ao tribunal, na mensuração e ponderação das provas, atribuir-lhe um valor probatório superior ao que atribui a outros documentos em que as mesmas entidades procedem ao relato de ocorrências”. Ora, no nosso caso o auto de notícia foi também lavrado por agente que presenciou a factualidade em que assentou o posterior processo disciplinar aqui sancionado e a que se refere o art. 25.º, nºs 1 e 2, do Regulamento de Prevenção da Violência (aprovado na Reunião de Direcção da FPF de 29 de Abril de 2015, com as alterações aprovadas na Reunião da mesma em 6 de Janeiro de 2016).

Teremos que acompanhar a decisão punitiva, quando nesta se afirma que “não resulta que a arguida tem o ónus de demonstrar factos contrários aos imputados sob pena de, não podendo o seu silêncio ser contra si valorado, nem é uma cominação para a falta de provas/alegações que aqui se defende – não se desconhece que a culpa da arguida não se presume nem é irrelevante que esteja presente (responsabilidade objectiva), não lhe competindo a si demonstrar a sua inexistência. // Afirma-se sim que, havendo meios probatórios suficientes – como supra exposto em concreto – para comprovar os factos imputados numa acusação trazidos ao conhecimento do julgador (incluindo os relativos ao elemento subjectivo), na falta de indicações de sentido contrário que lancem dúvidas ou demonstrem ser outra a verdade, terá de considerar forçosamente que aqueles efectivamente ocorreram tal como aí são descritos, desde que bem descritos e documentados/comprovados (…)”.

Pelo que, tudo visto, no caso presente um simpatizante/adepto da ora Recorrida, desferiu um pontapé no peito – agressão física da qual não resultou lesão de especial gravidade – a um agente da PSP, presente dentro do estádio e no decurso de jogo oficial. O que preenche o elemento objectivo do tipo da norma disciplinar do art. 182.º, nº 2, do RDLPFP, sendo que não ficou demonstrado que a ora Recorrida tivesse, no caso concreto, desenvolvido uma actividade de prevenção do ilícito, em observação dos deveres que regularmente lhe são impostos nos termos do art. 35.º, nº 1, al. a), b), f), l) e o) do RCLPFP e no art. 6.º, al.s c) e p) do Regulamento de Prevenção da Violência, constante do Anexo VI do RCLPFP.

O que faz incorrer a arguida, ora Recorrida, na prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 182.º, nº 2, do RDLPFP, por violação dos deveres ínsitos no art. 35.º, nº 1, al. a), b), f), l) e o) do mesmo regulamento e art. 6.º, al. p) do Regulamento de Prevenção da Violência, constante do seu Anexo VI (na redacção aplicável), como decidido no acórdão de 20.03.2018 do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol.

Tanto basta para afirmar a procedência do recurso, com a revogação do acórdão do TAD recorrido, subsistindo o acórdão punitivo do Conselho de Disciplina da ora Recorrente.



III. Conclusões

Sumariando (adoptando-se o sumário do acórdão do STA de 21.02.2019 citado):

i) A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.

ii) A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão do TAD recorrido, subsistindo o acórdão de 20.03.2018 do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que condenou ora Recorrida numa multa no valor de EUR 5.738,00.

Custas a cargo da aqui Recorrida, ....................................................... – Futebol, SAD.

Lisboa, 21 de Março de 2019


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Pedro Marchão Marques


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Alda Nunes


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José Gomes Correia