Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:202/23.1BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:06/19/2024
Relator:SUSANA BARRETO
Descritores:EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário:I -A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objeto do processo.
II - A lide torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito.
III - Não tendo sido apreciada no processo de impugnação a questão prejudicial que terá motivado a suspensão do processo penal (artigo 47.º do RGIT), nos termos do artigo 7.º n.º 4 do CPP, a mesma terá ali de ser decidida, ao abrigo do princípio da suficiência do processo penal (artigo 7.º n.º 1 do CPP).
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Tributária Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:


I - Relatório

S… - I…, S.A., veio recorrer da sentença proferida em 2023.12.12, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que na impugnação judicial intentada contra o ato de liquidação adicional de IVA respeitante ao mês de novembro de 2010, no montante global de € 48 395,61, julgou extinta a instância quanto ao pedido de anulação do ato tributário impugnado e improcedente quanto ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

Nas alegações de recurso apresentadas, a Recorrente formula as seguintes conclusões:

I. O presente recurso vem interposto da douta decisão proferida nos autos que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT.
II. A Recorrente não se pode conformar com tal entendimento por entender e sustentar que essa inutilidade se não verifica.
SENÃO VEJAMOS,
III. A Recorrente foi no dia 17/10/2022 notificada da liquidação adicional em sede de IVA por referência ao período de tributação de 201011M e respetivos juros compensatórios – liquidação essa, efetuada a coberto do procedimento de inspeção tributária credenciada pela OI201204772.
IV. Por discordar com a liquidação ali efetuada, a Recorrente apresentou a competente impugnação judicial que originou os presentes autos e onde sinteticamente suscitou vários vícios a liquidação em crise, designadamente, (i) falta de notificação da eventual decisão do procedimento de inspeção – preterição de formalidades essenciais; (ii) falta de fundamentação da liquidação adicional; (iii) caducidade do direito à liquidação; (iv) impugnação da factualidade subjacente à liquidação adicional entre outras desconformidades como resultam abundantemente descritas na impugnação apresentada – pedindo, a final, a anulação da liquidação adicional de IVA e respetivos juros compensatórios.
V. Citada, veio a Administração Fiscal proceder à junção do PA do qual consta a informação elaborada pelos serviços onde além do mais consta a revogação do ato de liquidação adicional de IVA 201001M e respetivos juros compensatórios, porquanto, “não houve a notificação do RIT, nem, naturalmente, se procedeu à emissão das Notas de Liquidação; ocorreu um erro informático central, que viabilizou a emissão da liquidação em apreço;
(…) corrigir esta situação, criada por um desajuste informático (…)”
VI. Atenta a informação prestada pela Administração Fiscal, veio a ser proferida sentença que julgou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
VII. Para escorar tal entendimento, a decisão em mérito considerou “Decorre do probatório supra que o pedido formulado pelo impugnante de ver anulado o acto de liquidação de IVA para o exercício de 2010 foi satisfeito pela AT, em face da revogação do acto de liquidação.”
VIII. Como é sabido a inutilidade superveniente da lide ocorre quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de ter todo o interesse e utilidade, conduzindo, por isso, à extinção da instância (art.º 287º, al. e), do Código de Processo Civil).
IX. A inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou se encontra fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio - José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol 1, anotação 3 ao art. 287.º, pág. 512
X. No entanto, efeitos há que foram produzidos pela liquidação adicional (revogada) e que mantêm a sua vigência e produção dos seus efeitos ainda hoje na ordem jurídica em absoluta transgressão dos normativos reguladores da matéria em causa nos autos, violando de forma grosseira os direitos e interesses legalmente tutelados da Recorrente.
XI. Pois, apesar da anulação da liquidação adicional em crise, a verdade é que derivado dessa mesma liquidação foi instaurado o processo de execução fiscal tendente à cobrança coerciva do tributo o qual, supostamente, também ele anulado.
XII. No entanto, não podemos ignorar que apesar das anulações efetuadas, quer quanto à liquidação adicional, quer quanto ao processo de execução fiscal – ambas as situações produziram efeitos na ordem jurídica e afetaram a esfera jurídica da Recorrente.
XIII. Nesse circunstancialismo, a simples anulação da liquidação adicional sindicada não poderá por si só conduzir à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, não sem antes, aquilatar dos efeitos produzidos pela mesma no decurso da sua vigência.
XIV. O que importará, a anulação, em igual medida, dos efeitos entretanto produzidos como o sejam, os atos insertos na normal tramitação do processo de execução fiscal ou até mesmo aqueles que foram despoletados pela liquidação adicional sindicada – os juros compensatórios.
XV. Daí que, ressalvado o respeito devido, a decisão em mérito ao não aquilatar de todas as circunstâncias e efeitos subsequentes ao ato de liquidação sindicado, enferma de nulidade nos termos do artigo 615.º, nº 1, alínea d) do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPC.
SEM PRESCINDIR,
XVI. mas ainda que assim não fosse, os fundamentos que estiveram subjacentes à revogação do despacho deviam ter sido descortinados em Tribunal.
XVII. Na verdade, não se mostra plausível que a Administração Tributária se escude num erro informático para se retratar de uma liquidação que sabe ser errada e cuja quantia apurada sabe não ser devida.
XVIII. Tanto assim é que o fundamento subjacente à anulação da liquidação supostamente não se aplica a outras liquidações de idêntica natureza e que emergem precisamente do mesmo facto – a mesma ação inspetiva.
XIX. Daí, sermos levados a questionar - se umas liquidações são anuladas, qual a razão das restantes não o serem?
XX. A esta questão a Administração Tributária não consegue dar resposta.
POR OUTRO LADO,
XXI. Não será despiciendo referir que atento os fundamentos expostos na impugnação judicial aqui deduzida a mesma, assume-se como uma questão prejudicial à resolução do processo penal tributário.
XXII. Porquanto, relativamente ao mesmo período de tributação em discussão nos autos, contra o Impugnante foi instaurado processo-crime, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e fraude fiscal, processo que corre termos no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 5, Proc. nº 189/12.6TELSB.
XXIII. O despacho de acusação proferido naquele processo-crime estriba-se, quase que exclusivamente no relatório de inspeçaõ tributária de onde advém a liquidação adicional aqui em mérito.
XXIV. Ou seja, o ponto nevrálgico, quer do processo-crime, quer dos presentes autos de impugnação emerge da mesma situação fáctica – relatório de inspeção tributária.
XXV. E, como tal, existindo liquidação adicional, e sendo sindicada por via da impugnação judicial – tal implica, forçosamente, o escrutínio de toda a situação por banda do Tribunal não podendo, contudo, demitir-se de tal função.
XXVI. Porquanto, o desfecho dos presentes autos, pela prejudicialidade que assume relativamente ao processo-crime, inelutavelmente se haveriam de refletir neste.
XXVII. Daí que, ressalvado o respeito devido, andou mal o Tribunal a quo ao não julgar o mérito da causa, atenta a prejudicialidade dos presentes autos, nos termos e para os efeitos do artigo 47.º do RGIT.
SEM PRESCINDIR,
XXVIII. A interpretação desenvolvida na douta decisão recorrida à alínea e) do artigo 277.º do CPPT, quando interpretada no sentido do não conhecimento do mérito da causa, em decorrência de uma ulterior anulação da liquidação sindicada, no caso da mesma constituir causa prejudicial relativamente ao processo penal nos termos do artigo 47.º do RGIT, deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, ínsito no artigo 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e por violar os direitos de defesa artigo 32.º (garantias de processo criminal) ambos da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade que desde já se deixa aqui invocada, nos termos e para os efeitos do artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

TERMOS EM QUE,
- Concedendo provimento ao recurso agora interposto e revogando a douta sentença recorrida, farão Vossas Excelências a habitual
JUSTIÇA!!»


A Recorrida não apresentou contra-alegações.

Após se pronunciar no sentido da não verificação das alegadas nulidades da sentença, o recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo

O Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Fundamentação

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, as quais são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, que fixam o objeto do recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme previsto nos artigos 635/4 e 639/1.2 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 281 CPPT, sendo as de saber, se a decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia ou de erro de julgamento, na interpretação dos factos e aplicação do direito.
Em caso de resposta negativa, se esta interpretação deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, e por violar os direitos de defesa, comandos consagrados nos artigos 20.º 32.º da CRP.


II.1- Dos Factos

O Tribunal recorrido considerou como provada a seguinte factualidade:

A) «Em 14.10.2022, foi emitida em nome da Impugnante a liquidação adicional de IVA n.º 22000372, referente ao mês de Novembro de 2010, no valor de € 48.295,61, com data limite de pagamento 31.12.2022 (cfr. doc. de fls. 65 e 381 dos autos);
B) A presente impugnação judicial deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada em 31.03.2023 (cfr. doc. de fls. 1 a 3 dos autos);
C) Em 10.04.2023, foi elaborado pela Direcção de Finanças de Setúbal “Parecer” sob o assunto “Revisão do Acto Tributário – n.º 4 do art 78º da LGT – Processo n.º 2208202302000571”, em que concluiu, no que ora releva, o seguinte:

Encontram-se, pois, reunidas as condições para a revisão do ato tributário por iniciativa da Administração Tributária, sob a forma de Revisão Oficiosa, com enquadramento na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e no n.º 1 do artigo 98.º do CIVA.
Não tendo o sujeito passivo sido notificado dos Relatórios de Inspeção tributária pelos motivos expostos, entendemos que as liquidações de IVA emitidas e não impugnadas e os respetivos juros compensatórios Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada dos períodos constantes do quadro supra, referentes às Ordens de Serviço OI201204772 e OI201605671, no valor total de €2.206.249,87, devem ser anuladas, não sendo devidos juros indemnizatórios por não se verificarem os requisitos do disposto no artigo 43.º da LGT.
Remeta-se o presente Procedimento de Revisão à DSIVA, para apreciação e decisão, face ao valor da causa.” - (cfr. doc. de fls. 373 a 378 dos autos);

D) Em 12.04.2023, sobre o Parecer referido na alínea que antecede, recaiu o Despacho da Directora de Finanças de Setúbal com o seguinte teor: “Concordo. Remeta-se à DSIVA para apreciação e superior decisão” (cfr. doc. de fls. 373 dos autos);
E) Em 15.05.2023, foi elaborada Informação pela Direcção de Serviços do IVA, sob o assunto “RO N.º 2208202302000571 – S… I…, S.A.”, e que, no que ora releva, tem o seguinte teor:

(…)
10. Reportando-nos à situação sub judice, verifica-se que a S… foi objeto de um procedimento inspetivo externo, de âmbito geral, levado a efeito pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto, ao abrigo das Ordens de Serviço 01201204772 e 01201605671, relativas aos anos de 2010/2011 e 2012, respetivamente.
11. E que, devido a um automatismo introduzido no Sistema Informático da AT (SIIIT), decorrente da desmaterialização do procedimento inspetivo, ocorreu um erro informático central, o qual despoletou o encerramento das suprarreferidas Ordens de Serviço, originando, assim, que fossem, erradamente, efetuadas as notificações das liquidações de IVA e dos correspondentes juros compensatórios, relativas aos períodos dos anos em causa.
12. Será, contudo, de registar, que a S… já reagiu, através da interposição da Impugnação Judicial n.° 780/22.2BEALM, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, contra a liquidação n.° 2022 22000356 relativa ao período 2010.01 M, no valor de € 5.930,79 (entretanto já anulada).

13. Constituem, assim, objeto do presente pedido as liquidações adicionais de IVA e as liquidações dos correspondentes juros compensatórios, no valor total global de €2.206.249,87, a seguir identificadas:
(…)
17. Atendendo a que está em causa, como já referido, um “erro imputável aos serviços’’ a que se alude na segunda parte do n.° 1 do art,° 78.° da LGT, estão reunidos os pressupostos para a revisão dos atos tributários por iniciativa da administração tributária, não podendo esta legalmente demitir-se de o fazer. (…)
19. A administração tributária está, pois, obrigada a eliminar da ordem jurídica todos os atos de liquidação injustos, como, aliás, decorre da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, mas tal dever não deve depender da existência de um ato tributário manifestamente ilegal ou de erro imputável aos serviços.
20. Este dever de rever atos injustos é, assim, um verdadeiro poder dever estribado no dever de a administração tributária atuar segundo o princípio da justiça, constitucionalmente consagrado. (…)
21. Nesta conformidade, verificando-se os pressupostos para se proceder a revisão oficiosa, com fundamento na segunda parte do n.° 1 do art.° 78.° da LGT, por estarem em causa liquidações, não devidas, resultantes de um erro imputável aos serviços, impõe-se que se proceda à revisão dos atos tributários prevista no art.° 78.° da LGT.
III- PROPOSTA DE DECISÃO

22. Diante do exposto, propõe-se o deferimento do presente pedido de revisão.
23. Por conseguinte, merecendo a presente informação despacho superior concordante, deverá proceder-se à revisão dos suprarreferidos atos tributários de liquidação de IVA e dos correspondentes juros compensatórios, no valor total de €2.206.249,87, com as demais consequências legais.”
(cfr. doc. de fls. 388 a 393 dos autos);

F) Em 18.05.2023, sobre a Informação a que se refere a alínea que antecede, recaiu o Despacho do Subdirector Geral com o seguinte teor: “Concordo, pelo que defiro a presente Revisão Oficiosa, nos termos e com os fundamentos expostos” - (cfr. doc. de fls. 388 dos autos).


Quanto a factos não provados, na sentença exarou-se o seguinte:

«Não resultou provado que:
i. A Impugnante tenha procedido ao pagamento da quantia mencionada na alínea A).»


E quanto à motivação da decisão de facto, consignou-se:

«Quanto ao facto não provado, o mesmo resultou da total ausência de prova nesse sentido.
Importa ter presente que o pagamento de impostos em montante que exceda os € 500,00 não pode ser feito em numerário, nos termos do artigo 63.º-E, n.º 5, da LGT. Assim, a prova deste facto apenas poderia ser feita através de documentos. Não tendo a Impugnante junto aos autos qualquer documento para prova deste facto e impendendo sobre si o respectivo ónus da prova (vide artigo 74.º, n.º 1, da LTG), impõe-se dar o mesmo como não provado.»


II.2 Do Direito

A Impugnante e ora Recorrente impugnou judicialmente a liquidação adicional de IVA nº 22000372 relativa ao mês de novembro de 2010.

No prazo da contestação deu entrada requerimento em que o I Representante da Fazenda Pública (RFP), invocando o disposto no artigo 112/4 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), informou que, por despacho de 2023.05.18, a liquidação impugnada tinha sido anulada e requereu a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide.

Seguidamente, o Tribunal a quo proferiu a sentença recorrida que julgou: (a) extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, na parte respeitante ao pedido de anulação do acto tributário impugnado; (b) improcedente o pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios.

Notificada da sentença a Impugnante e ora Recorrente recorreu da mesma.

No recurso, alega a ora Recorrente que a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia, ao não aquilatar de todas as circunstâncias e efeitos subsequentes ao ato de liquidação sindicado (cf. conclusão XV das alegações de recurso)

Vejamos, pois, em primeiro lugar se a sentença é nula por omissão de pronuncia, como alega.

Diz o artigo 125/1 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), sob a epígrafe Nulidades da sentença:
1. - Constituem causas de nulidade da sentença a falta de assinatura do juiz, a não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, a oposição dos fundamentos com a decisão, a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer.”

Também a alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (CPC), invocada pelo ora Recorrente, dispõe que é nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

A nulidade por omissão de pronúncia prevista no artigo 615/1.d) do Código de Processo Civil (CPC), apenas ocorre quando o Tribunal não tenha decidido alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra questão submetida à apreciação do Tribunal.

Por questões submetidas à apreciação do Tribunal deve entender-se aqui as que se referem aos pedidos formulados, atinentes à causa de pedir ou às exceções alegadas, não se confundindo, pois, com as razões jurídicas invocadas pelas partes em defesa do seu juízo de valoração, porquanto as mesmas correspondem a simples argumentos e não constituem verdadeiras questões para os efeitos preceituados na norma citada.

Nas palavras de Alberto dos Reis (1-Aut Cit, CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: anotado, I Vol. pág. 284, 285 e V Vol. pág. 139), são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer questões de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal qualquer questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão

A sentença recorrida considerou que a ação intentada perdeu o seu objeto com a anulação da liquidação impugnada, e “tendo o processo de impugnação judicial como objecto actos tributários (cfr. artigo 97.º do CPPT), o desaparecimento do seu objecto não pode deixar de ter como consequência a satisfação da pretensão de anulação daquele acto.”.

Não sofre de nulidade a decisão recorrida que em face da anulação do ato impugnado considerou satisfeita a pretensão do Impugnante e ora Recorrente e improcedente quanto ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios. Quanto muito poderá padecer de erro de julgamento, nomeadamente quanto à verificação e ponderação dos respetivos pressupostos.

Não tem, pois, razão a ora Recorrente, improcedendo a arguida nulidade da sentença por omissão de pronúncia.


Vejamos agora quanto ao também alegado erro de julgamento de direito, ao julgar aplicável ao caso o regime previsto na alínea e) do artigo 277º CPC, de inutilidade superveniente da lide.

A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objeto do processo.

A lide torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito.

Na decisão recorrida considerou-se que em face da anulação da liquidação impugnada pela Autoridade Tributária e Aduaneira o efeito pretendido pela Impugnante foi alcançado por outra via, tendo a decisão deixado assim de ter qualquer efeito útil.

Alega a ora Recorrente que apesar da liquidação adicional impugnada ter sido anulada, a mesma produziu efeitos que ainda subsistem na esfera jurídica da Impugnante, nomeadamente os respeitantes aos juros compensatórios e os decorrentes da instauração do processo de execução fiscal.

Mas sem razão, porquanto a anulação da liquidação impugnada acarreta consigo a anulação de todos os atos subsequentes e dele dependentes, nomeadamente, a liquidação de juros compensatórios.

Efetivamente e quanto ao ato de liquidação de juros é a própria Recorrente que nos dá notícia de esta ter sido também anulada [cf. conclusão xi) das alegações de recurso]. E, também de o processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva da dívida tributária ter sido também ele extinto [cf. conclusões xi) e xii) das alegações de recurso].

A ora Recorrente alega também a prejudicialidade da presente impugnação relativamente ao processo crime contra si instaurado.

A questão colocada pela ora Recorrente não é nova e foi já apreciada em vários acórdãos deste TCAS, dos quais citamos os acórdão de 2024.05.29 proferido no processo nº 192/23.0BEALM, de 2024.05.16 proferido no processo nº 193/23.9BEALM, de 2020.04.24 proferido no processo nº 195/23.5BEALM, de 2024.05.16 proferido no processo nº 196/23.3BEALM, de 2024.05.16 proferido no processo nº 197/23.1BEALM, de 2024.05.29 proferido no processo nº 206/23.4BEALM, de 2024.05.16 proferido no processo nº 207/23.2BEALM, de 2024.05.29 proferido no processo nº 208/23.0BEALM e de 2024.04.24 proferido no processo nº 210/23.0BEALM, todos em sentido desfavorável à pretensão da Recorrente.

Assim e considerando que as questões suscitadas pelo presente recurso, com matéria factual semelhante e idênticas alegações e conclusões de recurso, se pronunciou já esta Seção do Contencioso Tributário deste Tribunal Administrativo Sul, não vendo razão para divergir do decidido e a cuja fundamentação aderimos sem qualquer reserva.

Ora, atento o que dispõe o artigo 663/5 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 281º CPPT, bastaria a simples remissão para os fundamentos daquelas decisões. No entanto, em vez de juntarmos cópia da decisão, iremos transcrever, no essencial, o já supracitado acórdão deste TCAS de 2024.05.16, proferido no processo nº 196/23.3BEALM, relativo à mesma Recorrente e cujo teor da alegação recursória é absolutamente idêntico ao deste recurso. Aqui, está em causa o IVA de 2010, no acórdão citado, o IVA de março de 2012. Trata-se de aresto que, por sua vez, faz também ele apelo a diversa jurisprudência deste TCAS respeitante às mesmas questões aqui em apreciação, introduzindo apenas as alterações exigidas pela apreciação do caso concreto.

Assim:
(…)
«Ainda neste conspecto, há que evidenciar que não logra, outrossim, provimento o advogado quanto à prejudicialidade da presente lide face à penal, não só porque o artigo 47.º do RGIT não tem a abrangência que a Recorrente lhe pretende conferir, como também o facto de se decretar a anulação de um ato impugnado determina, como visto, a satisfação da pretensão, tendo, portanto, o julgador que julgar verificada a inutilidade superveniente da lide.

Com efeito, preceitua o artigo 47.º do RGIT sob a epígrafe de suspensão do processo penal tributário que:

“1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respetivas sentenças.”
O que significa que o visado preceito estatui a suspensão do processo penal tributário, fundada na pendência de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal, mas que a mesma só se justifica nos casos em que a existência da infração penal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal. Logo, não opera ope legis, carecendo, portanto, de uma apreciação casuística e despacho prévio onde se afira da coincidência de fundamentos e, no caso afirmativo, se os mesmos têm, em concreto, relevância para a questão suscitada no processo penal.

Daí resultando, por um lado, que o artigo 47.º do RGIT não tem o âmbito e abrangência que a Recorrente reclama para estes efeitos, -sendo certo que e sem embargo do exposto, nada nos presentes autos nos permitir inferir no sentido da concreta suspensão-e por outro lado, desvirtua o próprio princípio da suficiência do processo penal plasmado no artigo 7.º do CPP.

Com efeito, “o princípio da suficiência do processo penal, previsto no artigo 7° do CPP, impõe a competência do tribunal penal para decidir todas as questões prejudiciais penais e não penais que interessem à decisão da causa, assim consignando que o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e que nele se resolvem todas as questões relevantes, independentemente da sua natureza (5-Acórdão do TRP, proferido no processo nº 25/06, de 24.10.2012).”

Como lapidarmente se elucida na decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo nº 48/11.0IDPRT-A.L1-3, datada de 12 de junho de 2015:

“Como resulta do disposto no n.º 1 deste preceito, (1) o princípio geral nesta matéria é o da suficiência do processo penal, (2) constituindo a suspensão do processo para decisão de questão prejudicial uma exceção (n.º 2) e uma exceção apertada, exigente nos seus pressupostos, como desde logo resulta do poder/dever de fixação de prazo para paragem do processo, tendo em vista a decisão da questão prejudicial (n.º 4, 1.ª parte) e, mais do que isso, (3) o retorno ao principio geral da suficiência se o prazo fixado não for cumprido (n.º 4, 2.ª parte).
Em face deste regime legal dúvidas não há de que o tribunal de instrução, como o tribunal de julgamento, são competentes para apreciar todas as questões suscitadas nos autos, ainda que da área fiscal, e de que a reclamante pode impugnar as suas decisões, mas nos termos gerais, e de que até poderá requerer a suspensão do processo-crime para decisão de qualquer questão fiscal que repute prejudicial, mas o que não pode é prejudicar e muito menos inutilizar os fins prosseguidos pelo processo penal.”
Numa situação similar, chama-se, outrossim, à colação a doutrina vertida no Aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 30/98.0IDCBR.C1, de 17 de março de 2009, extratando-se, designadamente, o seguinte:

“Se a sentença se limitou a julgar extinta a instância impugnatória, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 287.º, alínea e) do CPC, ex vi do artigo 2.º, alínea e) do CPPT, por prescrição da obrigação tributária – não tendo, por isso, conhecido do objecto da impugnação –, em obediência ao princípio da suficiência do processo penal plasmado no artigo 7.º do CPP, as questões relevantes, maxime, as que se correlacionam com a simulação, devem ser decididas no domínio do processo penal.”

E por assim ser, não assiste razão à Recorrente quanto ao aludido erro de julgamento.

De relevar, in fine, que este foi também o sentido propugnado por este TCA, nos processos nºs 210/23, de 04.04.2024, 195/23 e 191/23, ambos de 24.04.2024, extratando-se, o sumário do primeiro dos Arestos citados:
“ I - No processo de impugnação judicial, de cariz objectivista, tendo por objecto um acto cuja legalidade se pretende apurar, podem ser cumulados com o pedido de anulação pedidos de pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida, que podem ser consequências da anulação, mas não pode ser regulada a situação jurídica substantiva subjacente ao acto impugnado;
II - Não tendo sido apreciada no processo de impugnação a questão prejudicial que terá motivado a suspensão do processo penal (art. 47.º do RGIT), nos termos do art. 7.º n.º 4 do CPP, a mesma terá ali de ser decidida, ao abrigo do princípio da suficiência do processo penal (art. 7.º n.º 1 do CPP).”

Uma última nota para evidenciar que tal interpretação em nada determina uma violação dos artigos 20.º e 32.º da CRP.

De relevar, neste âmbito, que não obstante a Recorrente não substanciar, como era seu ónus, a aludida inconstitucionalidade a verdade é que, não se vislumbra, de todo, que a mesma possa traduzir uma denegação de justiça, e violação dos direitos de defesa.

E isto porque, no âmbito tributário, quaisquer atos tributários adicionais que sejam emitidos na sequência e decorrência da ação inspetiva podem ser objeto de discussão graciosa e contenciosa por parte da Recorrente, e por outro lado, no âmbito do processo penal, a questão será objeto de análise e devida ponderação, em nada sendo, portanto, coartada qualquer tutela jurisdicional efetiva.

Ademais, tal decisão em nada poderia traduzir uma denegação de tutela e violação do artigo 20.º da CRP, porquanto não resulta desse normativo e bem assim da própria sujeição à reserva de lei das garantias dos contribuintes, plasmado no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que o Tribunal possa obviar formalidades, condições e cominações expressamente consignadas na lei.

Destarte, a sentença que assim o decidiu não padece dos erros de julgamento que lhe são assacados, mantendo-se, por conseguinte, na ordem jurídica.

Não tem, pois, razão a ora Recorrente.

Em face do exposto, improcedem todas as alegações do recurso.


Relativamente à condenação em custas importa considerar que nos termos dos artigos 527/1 CPC: a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa (…).

Assim, atento o princípio da causalidade, consagrado no artigo 527/2, do CPC, aplicável por força do artigo 2º, alínea e), do CPPT, as custas são pela Recorrente, que ficou vencida.


Sumário/Conclusões:

I - A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objeto do processo.
II - A lide torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito.
III - Não tendo sido apreciada no processo de impugnação a questão prejudicial que terá motivado a suspensão do processo penal (artigo 47.º do RGIT), nos termos do artigo 7.º n.º 4 do CPP, a mesma terá ali de ser decidida, ao abrigo do princípio da suficiência do processo penal (artigo 7.º n.º 1 do CPP).


III - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes da Subsecção Tributária Comum deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Lisboa, 19 de junho de 2024

Susana Barreto

Ângela Cristina da Silva Cerdeira

Teresa Costa Alemão