Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 72/12.5BELLE |
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Secção: | CT |
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Data do Acordão: | 05/26/2022 |
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Relator: | TÂNIA MEIRELES DA CUNHA |
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Descritores: | IVA DEDUÇÃO OPERAÇÕES ATIVAS PROVA AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA RESERVA DE LEI PARLAMENTAR FUNDAMENTAÇÃO APROVEITAMENTO DO ATO |
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Sumário: | I - O TJUE tem considerado, para efeitos de IVA, ser admissível o direito à dedução, ainda que haja alguns requisitos formais por cumprir nas faturas, desde que a situação material seja demonstrada. II - O não cumprimento escrupuloso das formalidades exigidas em termos de emissão de faturas pode não comprometer o exercício do direito à dedução, desde que as exigências de fundo tenham sido cumpridas e que a AT disponha de todos os elementos para substantivamente caraterizar a operação, sendo certo que o ónus da prova caberá ao sujeito passivo. III - Não tendo sido efetuada prova de que determinadas atividades levadas a cabo pelo sujeito passivo correspondem a operações tributadas em sede de IVA, não pode ser deduzido o imposto suportado com as aquisições de bens ou serviços utilizados para a realização dessas atividades. IV - O DL n.º 102/2008, de 20 de junho, foi visto e aprovado em Conselho de Ministros de 27.03.2008, dentro do prazo conferido pela autorização legislativa constante do art.º 91.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro. V - No que toca aos impostos, a reserva relativa de lei abrange tudo o que respeite à sua criação, determinação da incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes. VI - A determinação do órgão com competência para a emissão de liquidações adicionais não se enquadra no âmbito da reserva de lei parlamentar mencionada em V. VII - Em casos como o referido em VI., o Governo dispõe de competência própria para legislar. VIII - Tendo um ato de liquidação sido praticado na sequência de inspeção tributária, em cujo relatório reside a sua fundamentação, esta última existe, ainda que a notificação da liquidação não contenha expressa remissão para o mencionado relatório, estando sempre disponível ao contribuinte o mecanismo previsto no art.º 37.º do CPPT. IX - Tendo sido apreciada, em sede impugnatória, toda a prova produzida pela Impugnante, documental e testemunhal, e da mesma resultando provada a factualidade, no sentido de se verificarem os pressupostos de facto da atuação da AT em sede inspetiva, a falta de realização da inquirição de testemunhas, em sede de reclamação graciosa, revela-se irrelevante e sem força invalidante, na medida em que os pressupostos de facto da tributação já foram apreciados pelo Tribunal. X - Demonstrada, junto do Tribunal, a conformidade substancial do ato praticado, uma solução distinta da mencionada em IX conduziria a um resultado antijurídico. |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | I. RELATÓRIO
I…, E.M. (doravante Recorrente ou Impugnante) veio apresentar recurso da sentença proferida a 24.04.2015, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, na qual foram julgadas improcedentes as impugnações por si apresentadas, que tiveram por objeto os indeferimentos das reclamações graciosas que versaram sobre as liquidações adicionais de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), relativas aos anos de 2007 e 2009. O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos: “A) O presente recurso vem interposto da Sentença proferida, em 24 de Abril de 2014, no processo que correu os seus termos junto da 2.a Unidade Orgânica, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, sob o n.° 72/12.5BELLE e Apenso n.° 74/12.1BELLE a qual julgou improcedente o pedido de anulação dos actos tributários impugnados, referentes a IVA e a juros compensatórios do ano de 2007 e 2009; B) Contrariamente ao entendimento veiculado pelo Tribunal a quo, os actos de liquidação padecem de falta de fundamentação, porquanto não foi feita qualquer remissão para a fundamentação do Relatório de Inspecção; C) Tal falta de fundamentação determina, conforme pacificamente aceite pela jurisprudência, e contrariamente ao que pretende fazer crer o Tribunal a quo, a anulação dos actos de liquidação, por violação do disposto nos artigos 268.° n.° 3 da Constituição da República Portuguesa e 17° da Lei Geral Tributária, disposições legais também violadas na Sentença recorrida; D) De igual modo, os actos de liquidação em apreço são ilegais por violação do disposto nos artigos 268.° n.° 3 da Constituição da República Portuguesa e 71.° da Lei Geral Tributária pois, não contêm todos os elementos necessários à sua compreensão, designadamente por serem utilizados juízos conclusivos; E) No que se refere ao conteúdo da Sentença no segmento referente às restrições, ao nível do direito à dedução da RECORRENTE, não esteve bem o Tribunal a quo ao ter recusado tal direito, com base no argumento de que não foram apresentadas facturas que demonstrem que foram prestados os serviços aos Clientes que não fossem serviços de abastecimento de água e de recolha e tratamento de resíduos e drenagem de águas residuais, atendendo a que ficou provado que nas tarifas facturadas aos Clientes estavam a ser cobrados, também, os serviços não relacionados apenas com os serviços de água, recolha de lixo e esgotos, mas também todos os outros serviços, como os relacionados com a iluminação, manutenção dos passeios, ponte pedonal e observatório das aves; F) Como bem se demonstrou, não pode um tal entendimento proceder, sendo certo que o entendimento perfilhado pelo TJUE, entende, pacificamente, que o direito à dedução não pode ser limitado por razões de incongruência formal quer das facturas, quer da contabilidade dos sujeitos passivos, porquanto o direito à dedução é um elemento essencial no mecanismo inerente ao funcionamento do IVA, e no cumprimento do princípio da neutralidade; G) Com efeito, em face da jurisprudência do TJUE, restringir a dedução de IVA incorrido inequivocamente relacionado com operações no âmbito das quais foi liquidado imposto, sempre representaria uma quebra injustificada do princípio da neutralidade, porquanto tal entendimento representa a impossibilidade de dedução de imposto efectivamente liquidado pelos respectivos fornecedores, contrariando, assim, o mecanismo de funcionamento do imposto, que se pretende que incida USBOA ROR apenas sobre os consumidores finais; H) No caso ora em apreço, é reconhecido - e bem - pelo Tribunal a quo que a RECORRENTE não praticou quaisquer operações isentas de IVA ou não sujeitas, razão pela qual não pode a RECORRENTE aceitar que seja restringida a sua capacidade de dedução; I) Com efeito, as normas e princípios que norteiam o direito à dedução em sede de IVA visam evitar que os sujeitos passivos que pratiquem operações isentas, possam deduzir o imposto incorrido tendo em vista a prossecução dessas mesmas operações, sob pena de se desvirtuar o princípio da neutralidade; J) O próprio regime legal aplicável às empresas municipais e, bem assim, os estatutos da RECORRENTE, impedem que esta preste serviços aos seus clientes sem que os respectivos custos sejam acautelados; K) Na verdade, todos os custos inerentes aos serviços prestados encontram acolhimento nos valores cobrados pela RECORRENTE, sobre os quais foi liquidado IVA; L) A estipulação dos montantes cobrados atenta a expectativa dos clientes, e a tradição dos serviços prestados aos residentes pela anterior entidade gestora (Q…, S.A.), foi feita tendo em vista o ressarcimento de todas as actividades levadas a cabo pela ora RECORRENTE; M) Atenta a preocupação pelo seu equilíbrio financeiro, a RECORRENTE apresentou anualmente Orçamentos anuais de Receitas e Despesas onde previu um equilíbrio orçamental tendo presente todos os proveitos decorrentes dos serviços prestados aos seus clientes, e bem assim, os correspondentes custos, não tendo necessitado de quaisquer transferências financeiras por parte da Câmara Municipal de Loulé para equilibrar as suas contas, nem de qualquer contrato programa para subsidiar quaisquer custos que não fossem cobertos por receitas próprias; N) Os actos de liquidação são também ilegais por violação do disposto no artigo 82.°, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, devendo a Sentença recorrida ser anulada em conformidade, também com esse fundamento, ou declarada nula a notificação (cf. artigo 39.°, n.° 9, do Código de Procedimento e de Processo Tributário); O) Com efeito, nos termos do Decreto-Lei n.° 102/2008, de 20 de Junho, a competência para a prática de actos de liquidação adicional de IVA passa a ser cometida à Direcção-Geral dos Impostos (sendo que na anterior redacção da referida disposição legal essa mesma competência estava atribuída ao Chefe do Serviço de Finanças da área de residência do contribuinte ou à Direcção de Serviços de Cobrança do IVA); P) Sucede, porém, que o Decreto-Lei n.° 102/2008, de 20 de Junho foi elaborado ao abrigo da autorização legislativa constante das alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 91.° da Lei n.° 67-A/2007, de 31 de Dezembro (aprova o Orçamento de Estado para o ano de 2008), que era válida por 90 dias e não conferia autorização para alterar a entidade competente para a liquidação adicional de imposto; Q) Ora, tendo o diploma em causa sido promulgado por Sua Excelência O Senhor Presidente da República apenas em 5 de Junho de 2008, desde já invoca a respectiva inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 165.°, da Constituição da República Portuguesa; R) De igual modo, tendo o Decreto-Lei n.° 102/2008, de 20 de Junho extravasado os termos da autorização legislativa ao abrigo da qual foi aprovado, o mesmo é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 112.°, e 165.°, da Constituição da República Portuguesa; S) Neste sentido, já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, afirmando que A competência para apurar o IVA em resultado de correcções efectuadas nas declarações dos contribuintes é atribuída ao Serviço de Administração do IVA (ou de Cobrança, a partir da vigência do DL 100/95, de 19.5), na situação descrita no art. 87°/3 do CiVA, sem prejuízo da competência que assiste ao Chefe de Repartição de Finanças, nos termos do art. 82° do citado diploma (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 30 de Abril de 2003, Processo n.° 1640/02); T) No que respeita ao segmento da ilegalidade dos despachos de indeferimento da reclamação graciosa, não tendo havido, por parte do Tribunal a quo, qualquer apreciação desta questão, deve a Sentença recorrida ser declarada nula, nos termos do disposto nos artigos 125.° do Código do Procedimento Tributário e do 668.° Código do Processo Civil; U) Por fim, da anulação dos actos de liquidação sub judice, na parte mantida pela Sentença recorrida, deverá também resultar, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 171.°, n.ºs 1 e 2, do Código do Procedimento e do Processo Tributário, 53.°, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da Lei Geral Tributária, indemnização pela garantia indevidamente prestada, pelo tempo em que a garantia foi prestada e, bem assim, o reconhecimento do reembolso à RECORRENTE do valor pago em 20 de Dezembro de 2013 - € 121.658,77 e € 106.960,99 - acrescido de juros indemnizatórios calculados à taxa legal em vigor. NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DETERMINANDO-SE A REVOGAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA E, CONSEQUENTEMENTE, A ANULAÇÃO DOS ACTOS DE LIQUIDAÇÃO DE IVA E DE JUROS COMPENSATÓRIOS EM APREÇO, PRATICADOS COM REFERÊNCIA AOS ANOS DE 2007 E 2009, 0 RECONHECIMENTO DA DIREITO DA ORA RECORRENTE A INDEMNIZAÇÃO POR GARANTIA INDEVIDAMENTE PRESTADA E, BEM ASSIM, O REEMBOLSO DO VALOR PAGO EM 20 DE DEZEMBRO DE 2013, ACRESCIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS CALCULADOS À TAXA LEGAL EM VIGOR”. A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações. Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso. Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.
São as seguintes as questões decidir (cfr. art.º 639.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT): a) A sentença recorrida padece de nulidade, por não ter sido apreciada a ilegalidade dos despachos de indeferimento da reclamação graciosa? b) Há erro de julgamento, uma vez que os atos de liquidação padecem de falta de fundamentação? c) Verifica-se erro de julgamento, por inexistirem restrições à capacidade de dedução? d) Verifica-se erro de julgamento, dada a inaplicabilidade do art.º 20.º do Código do IVA (CIVA)? e) Verifica-se erro de julgamento, dada a violação do art.º 82.º do CIVA?
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto: “ 1. I…, E.M., requereu, no período 2009-01, o reembolso de IVA no montante de € 250.000,00 – facto admitido por acordo. 2. Entre 21 de Abril e 27 de Julho de 2010, para controlo daquele pedido de reembolso, foi realizada acção inspectiva de âmbito parcial no âmbito da qual foi elaborado o Relatório de Inspecção de fls. 89-110 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido e que, no que ora interessa, tem o seguinte teor: “(…) III. Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas (…) No âmbito da análise (por amostragem) aos documentos de suporte ao IVA dedutível, identificaram-se aquisições de bens e/ou serviços que não têm correspondência em termos das operações activas realizadas pelo contribuinte, apresentando-se de seguida alguns exemplos elucidativos desta realidade (…). Concentrando-nos em alguns exemplos apresentados (que foram identificados numa análise por amostragem), verifica-se que o Centro de Observação de Aves não gera quaisquer receitas, a Ponte Pedonal é uma infra-estrutura de acesso à praia que também não gera quaisquer proveitos, não são debitados aos residentes (onde se incluem empreendimentos hoteleiros) quaisquer consumos e/ou tarifas de iluminação/electricidade, sendo que no respeitante à pavimentação de estradas haverá situações em que sob as mesmas foram colocados tubos/manilhas tanto para passagem de água, como para esgotos, mas outras haverá, em que de facto resulta apenas da construção/manutenção de uma infra-estrutura rodoviária. Assiste-se assim a uma situação em que uma Sociedade (I…) se substitui a uma Câmara (Câmara Municipal de Loulé), em todas as funções que genericamente são efectuadas por esta, como sejam esgotos, águas, iluminação, rodovias, passeios pedonais, etc. Neste contexto, e em resumo, a I… procede à dedução do IVA de todas as aquisições que efectua (independentemente da sua natureza), sendo que apenas liquida este imposto no que concerne a fornecimentos de água / taxas de esgoto e residualmente nos outros pequenos serviços que no âmbito do seu volume de negócios não são relevantes. Estabelece o artigo 20.º do Código do IVA (operações que conferem direito à dedução) que só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização de operações que consistam (entre outras) na transmissão de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas, pelo que a conduta que tem vindo a ser adoptada pela I… não obedece a esta disposição legal, conforme a seguir se fundamenta mais pormenorizadamente: 1.Caracterização do sujeito passivo Conforme já referido, a sociedade em causa é uma Empresa Municipal (…). Atendendo à legislação em vigor e aos estatutos, uma parte considerável das competências da Câmara Municipal, relativas ao planeamento, à gestão e à realização de investimentos de uma área restrita do Concelho, incluindo competências que, quando exercidas pela Câmara, se enquadram no âmbito do exercício dos poderes de autoridade. A questão que se coloca reporta-se ao facto de a Empresa Municipal deduzir todo o IVA suportado nas aquisições de bens e prestações de serviços, efectuadas pela empresa e apenas liquidar IVA em algumas das operações praticadas, nomeadamente as relacionadas com prestações de serviços aos munícipes de abastecimento de água, recolha de resíduos sólidos, um parque de estacionamento e outras. (…) Face ao exposto, tendo em consideração a possibilidade prevista na actual legislação que estabelece o quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais e o regime jurídico do sector empresarial local, somos no entender que relativamente às operações em causa e ao facto de tais operações “não gerarem receitas”, face às condições estabelecidas nos “contratos” celebrados entre a Empresa Municipal e a Câmara Municipal, estaremos perante operações que não decorrem do exercício de uma actividade económica, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, encontrando-se, por esse motivo, não sujeita à liquidação de IVA e, consequentemente, não conferem direito à dedução do imposto suportado, nos termos do artigo 20.º do CIVA, nas aquisições de bens e serviços utilizados na realização destas operações. Perante o exercício de operações que não decorrem do exercício de uma actividade económica, a Empresa Municipal deverá proceder à afectação real, em conformidade com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º do CIVA. Importa ainda referir que, consultado o cadastro do sujeito passivo, se constatou que o enquadramento em vigor em IVA é “Normal Mensal”, constando no tipo de operações como “Misto com afectação real de parte dos bens”, tendo-se verificado que o mesmo decorre da alteração de cadastro efectuada em 2004.01.09, o que revela que o tipo de operações praticadas não confere o direito de dedução integral do imposto suportado. QUANTIFICAÇÃO DAS CORRECÇÕES PROPOSTAS: Face ao exposto e com base em elementos fornecidos pela sociedade, nomeadamente extractos de contabilidade analítica onde constam os diversos Centros de Custos, foram identificadas, nos anos de 2006, 2007, 2008 e de 2009, as aquisições relacionadas em anexo 1, cujo IVA foi deduzido indevidamente, porquanto não originaram operações activas, ie, não contribuíram para a realização de operações que consistissem na transmissão de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas. Assim, para efeito de produção das competentes liquidações de IVA, são elaborados os Documentos de Correcção com base nos valores de Imposto, repartidos por períodos – periodicidade mensal -, de acordo com a data de contabilização, discriminados em Anexo 2 e que atingem os seguintes valores por anos: (…) 2007 - € 121.658,77 (…) 2009 - € 106.960,99 (…) VIII. OUTROS ELEMENTOS RELEVANTES Face à ilegitimidade do reembolso de IVA em apreciação (cujo pagamento se encontra confirmado), o mesmo é nesta data indeferido. (…)” 3. I…, E.M., exerceu o seu direito de audição prévia no âmbito da acção de inspecção – cfr. fls. 71-76 do procedimento de Reclamação Graciosa junta ao processo 72/12. 4. Em 5 de Outubro de 2010, foram emitidas as seguintes liquidações pelo Director-Geral dos Impostos (actos impugnados): a) N.º 10300……., relativa a IVA de Março de 2007, no valor de € 4.889,77; b) N.º 1030……., relativa a juros compensatórios de Março de 2007, no valor de € 643,57; c) N.º 10300…., relativa a IVA de Abril de 2007, no valor de € 4.819,92; d) N.º 10300……, relativa a juros compensatórios de Abril de 2007, no valor de € 617,48; e) N.º 1030……., relativa a IVA de Maio de 2007, no valor de € 645,62; f) N.º 103……, relativa a juros compensatórios de Maio de 2007, no valor de € 80,66; g) N.º 103……., relativa a IVA de Junho de 2007, no valor de € 1.833,83; h) N.º 1030…., relativa a juros compensatórios de Junho de 2007, no valor de € 222,87; i) N.º 103….., relativa a IVA de Julho de 2007, no valor de € 1.005,90; j) N.º 10……, relativa a juros compensatórios de Julho de 2007, no valor de € 118,83; k) N.º 103……., relativa a IVA de Agosto de 2007, no valor de € 11.712,96; l) N.º 103001……, relativa a juros compensatórios de Agosto de 2007, no valor de € 1.345,23; m) N.º 1030019….., relativa a IVA de Setembro de 2007, no valor de € 7.187,25; n) N.º 10300….., relativa a juros compensatórios de Setembro de 2007, no valor de € 799,46; o) N.º 103001….., relativa a IVA de Outubro de 2007, no valor de € 7.408,50; p) N.º 10300….., relativa a juros compensatórios de Outubro de 2007, no valor de € 801,34; q) N.º 103001….., relativa a IVA de Novembro de 2007, no valor de € 1.948,80; r) N.º 1030019….., relativa a juros compensatórios de Novembro de 2007, no valor de € 204,17; s) N.º 1030019….., relativa a IVA de Dezembro de 2007, no valor de € 80.206,22; t) N.º 103001……, relativa a juros compensatórios de Dezembro de 2007, no valor de € 8.121,70; u) N.º 103001…., relativa a IVA de Janeiro de 2009, no valor de € 151,20; v) N.º 10300….., relativa a IVA de Fevereiro de 2009, no valor de € 7.330,64; w) N.º 10300….., relativa a juros compensatórios de Fevereiro de 2009, no valor de € 399,27; x) N.º 103001……, relativa a IVA de Março de 2009, no valor de € 16.860,85; y) N.º 103001…., relativa a juros compensatórios de Março de 2009, no valor de € 866,60; z) N.º 103001….., relativa a IVA de Abril de 2009, no valor de € 6.688,86; aa) N.º 103001….., relativa a juros compensatórios de Abril de 2009, no valor de € 320,33; bb) N.º 10300……, relativa a IVA de Maio de 2009, no valor de € 10.539,20; cc) N.º 1030……., relativa a juros compensatórios de Maio de 2009, no valor de € 472,39; dd) N.º 10300……., relativa a IVA de Junho de 2009, no valor de € 2.972,80; ee) N.º 10300……., relativa a juros compensatórios de Junho de 2009, no valor de € 123,15; ff) N.º 10300……., relativa a IVA de Agosto de 2009, no valor de € 4.908,00; gg) N.º 10300.., relativa a juros compensatórios de Agosto de 2009, no valor de € 169,43; hh) N.º 10300….., relativa a IVA de Setembro de 2009, no valor de € 647,28; ii) N.º 103001…., relativa a IVA de Outubro de 2009, no valor de € 4.114,00; jj) N.º 10300…., relativa a juros compensatórios de Outubro de 2009, no valor de € 115,42; kk) N.º 1030……., relativa a IVA de Novembro de 2009, no valor de € 200,00; ll) N.º 10300……, relativa a IVA de Dezembro de 2009, no valor de € 52.548,16; mm) N.º 10300……, relativa a juros compensatórios de Dezembro de 2009, no valor de € 1.117,19; – cfr. fls. 64-83 dos autos e 64-82 do apenso. 5. Cada uma das liquidações de IVA contém um quadro intitulado «Fundamentação» do qual constam os valores corrigidos, o valor da liquidação correctiva, o valor da liquidação anterior e o valor da liquidação adicional, além do período a que respeita – cfr. fls. 64-83 dos autos e 64-82 do apenso. 6. Cada uma das liquidações de juros compensatórios contém um quadro intitulado «Fundamentação» do qual consta o imposto em falta sobre o qual incidem juros, o período a que se aplica a taxa de juro, a taxa de juro aplicável e o valor dos juros, além do período a que respeita e a menção de que os juros foram “liquidados nos termos do n.º 1 do art. 86.º do Código do IVA e do art. 35.º da Lei Geral Tributária, por ter sido retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto, por facto imputável ao sujeito passivo” – cfr. fls. 64-83 dos autos e 64-82 do apenso. 7. No dia 10 de Janeiro de 2010, I…, E.M., apresentou duas Reclamações Graciosas, uma contra as liquidações relativas ao ano de 2007 e outra contra as relativas ao ano de 2009 – cfr. fls. 2 da Reclamação Graciosa junta ao processo 72/12 e da junta ao processo 74/12. 8. Em 28 de Fevereiro de 2011, naquelas Reclamações, foram elaboradas as Informações de fls. 333-336 do procedimento junto ao processo 7…/12 e de fls. 349-351 do procedimento junto ao processo 7…/12, as quais se dão aqui por integralmente reproduzidas e que, no que ora interessa, têm o seguinte teor: “(…) Conforme consta do relatório de inspecção, verifica-se que a sociedade reclamante se encontra enquadrada em IVA no regime normal (periodicidade normal) constando no tipo de operações como “Misto com Afectação Real de Parte dos Bens”, o que revela que o tipo de operações praticadas não confere o direito de dedução integral do imposto suportado. Ora a reclamante deduz a totalidade do IVA suportado, quando de facto muitas das aquisições referem-se a bens e serviços que não originam operações activas. Os serviços de inspecção identificaram as aquisições que não estão relacionadas com as operações activas praticadas pela reclamante e cujo IVA não conferia direito à dedução, tendo procedido às necessárias correcções aos elementos constantes das respectivas DPs, mediante o processamento dos respectivos Documentos de Correcção com vista à emissão das respectivas liquidações adicionais que no ano de 2007 [2009] ascendem ao montante de 121.658,77€ [110544,77€], e consequentemente a respectiva liquidação de juros compensatórios. (…) A reclamante procede à dedução do IVA de todas as aquisições que efectua (independentemente da sua natureza), contrariando desta forma o disposto no artigo 20.º do CIVA, o qual refere que «só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização de operações que consistam (entre outras) na transmissão de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas», sendo que apenas liquida este imposto no que concerne a fornecimento de água/taxas de esgoto e residualmente em outros pequenos serviços que no âmbito do seu volume de negócios não são relevantes. A reclamante apesar de desenvolver actividades que revestem a natureza de serviço público, está sujeita «à tributação directa e indirecta, nos termos gerais», em resultado do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro, conjugado com o n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei 300/2007, de 23 de Agosto, não se enquadrando no conceito de «pessoa colectiva de direito público» na acepção do n.º 2 do artigo 2.º do CIVA. (…) As liquidações adicionais foram efectuadas, tal como consta da respectiva notificação, com base em correcções efectuadas pelos serviços de inspecção tributária, sendo a entidade competente para praticar os actos de liquidação, de acordo com o artigo 87.º do CIVA, o Sr. Director-Geral dos Impostos. (…)”. 9. No dia 21 de Março de 2011, o Director de Finanças de Faro exarou na Informação relativa ao ano de 2007 o seguinte despacho: “Confirmo. Indefiro a Reclamação com base na presente Informação. Notifique-se.” – cfr. fls. 333 da Reclamação Graciosa junta ao processo 72/12. 10. No mesmo dia 21 de Março de 2011, o Director de Finanças de Faro exarou na Informação relativa ao ano de 2009 o seguinte despacho: “Confirmo, pelo que indefiro a presente Reclamação, com base na presente Informação. Notifique-se.” – cfr. fls. 348 da Reclamação Graciosa junta ao processo 7…/12. 11. Em 27 de Setembro de 2011, o substituto do Director-Geral dos Impostos deferiu os Recursos Hierárquicos que I…, E.M., havia deduzido contra as decisões das Reclamações, por ter sido preterido o direito de audição prévia – cfr. fls. 637-648 do procedimento junto ao processo 7…/12 e de fls. 666-677 do procedimento junto ao processo 7…/12. 12. No dia 3 de Novembro de 2012, I…, E.M., exerceu o seu direito de audição prévia nos procedimentos de Reclamação Graciosa, alegando que os projectos de decisão nada diziam quanto aos motivos pelos quais deviam as reclamações ser indeferidas, sustentando a falta de fundamentação dos actos de liquidação e a incompetência do autor do acto – cfr. fls. 655-663 do Recurso Hierárquico junto com o processo 7…/12 e fls. 683-692 do Recurso Hierárquico junto com o processo 7…/12. 13. Em 5 de Janeiro de 2012, nas Reclamações 1…/2011 (IVA 2007), foram elaboradas as «Informações Sucintas» de fls. não numeradas do Recurso Hierárquico junto ao processo 7…/12 e de últimas fls. do Recurso Hierárquico junto ao processo 7…/12, as quais se dão aqui por integralmente reproduzidas e que, no que ora interessa, têm o seguinte teor: “(…) 5 – Da análise ao alegado pela reclamante no exercício do direito de audição, constata-se que em relação à fundamentação das liquidações reclamadas, já no projecto de decisão foi referido que tiveram por base as razões de facto e de direito constantes do Relatório de Inspecção Tributária, o qual foi notificado à reclamante em 30/08/2010. 6 – No que concerne à fundamentação da decisão, igualmente foram expostas as razões de facto e de direito que levaram a Administração Fiscal a considerar que as liquidações não padecem de qualquer ilegalidade. Não procede portanto a alegada falta de fundamentação, sendo certo que nos termos do artigo 77.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária e do artigo 125.º do CPA, a fundamentação pode consistir em mera declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que neste caso constituirão parte integrante do respectivo acto, pelo que tendo a reclamante tido conhecimento das razões de facto e de direito explanadas no relatório da inspecção e sendo as liquidações reclamadas uma consequência das correcções efectuadas, é manifesto que não há qualquer vício de falta de fundamentação das liquidações, nem da decisão da reclamação graciosa. 7 – Quanto à questão suscitada da incompetência do autor do acto, importa referir que não foi declarada a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 102/2008, de 20 de Junho, pelo que a Administração Fiscal, no respeito pelo princípio da legalidade tributária a que está vinculada (artigo 8.º da LGT), teria sempre de actuar de acordo com as normas de procedimento constantes naquele Decreto-Lei. (…) 9 – Considerando os factos e fundamentos invocados no projecto de decisão constante de fls. (…) dos autos, propõe-se que o mesmo se converta em definitivo, indeferindo-se o pedido, no entanto, submete-se à consideração de V. Exa. que superiormente decidirá.” 14. No mesmo dia 5 de Janeiro de 2012, o Director de Finanças de Faro exarou naquelas Informações os seguintes despachos: “Concordo.” (actos impugnados) – cfr. fls. não numeradas do Recurso Hierárquico junto ao processo 7…/12 e fls. finais do junto ao 7…/12. 15. I…, E.M., é uma empresa municipal de capitais maioritariamente públicos, com participação do Município de Loulé e de Q…, SA, que tem como objecto social “a realização de quaisquer obras e trabalhos, nomeadamente de reparação, manutenção ou adaptação de infra-estruturas, bem como a prestação de quaisquer outros serviços públicos que hajam, nos termos da lei, sido delegados pelo município de Loulé” – cfr. os artigos 2.º e 3.º dos seus Estatutos, a fls. 182 dos autos. 16. No âmbito da sua actividade, I…, E.M., presta serviços de abastecimento de água, recolha de resíduos sólidos, manutenção das centrais elevatórias e da rede de esgotos, manutenção da rede pluvial, limpeza geral da urbanização, manutenção da rede viária, manutenção dos espaços verdes públicos e manutenção de vários equipamentos públicos (rede de iluminação pública, ponte de acesso à praia, equipamentos de controlo ambiental, entre outros), na área da urbanização Q… e outras urbanizações adjacentes – facto admitido por acordo. 17. Antes da constituição da I…, E.M., aqueles serviços eram prestados pela Q… sem intervenção do Município de Loulé, como se se tratasse de um condomínio – cfr. os depoimentos de J… e de Jo…. 18. Como a natureza jurídica da I…, E.M., limitava a possibilidade de financiamento e as necessidades orçamentais eram conhecidas pela Q… que desempenhou as mesmas funções, as tarifas cobradas por aquela de acordo com o estipulado no seu Regulamento de Tarifas suportavam financeiramente não só os serviços de água, recolha de lixo e esgotos que eram a justificação directa da cobrança, mas também os restantes serviços efectuados – cfr. o depoimento de J…. 19. Em 2007 e em 2009, toda a facturação da I…, E.M., era apenas relativa às tarifas cobradas – cfr. o depoimento de Jo…. 20. As facturas das tarifas cobradas pela I…, E.M., tinham IVA incluído – cfr. os depoimentos de J… e de M…. 21. I…, E.M., prestou, através do M… BCP, garantia bancária no valor de € 588.710,31 para garantir a suspensão do processo de execução fiscal n.º 1082-2010/011……. – cfr. fls. 278 dos autos. 22. Em 20 de Dezembro de 2013, I…, E.M., efectuou o pagamento de € 428.481,02 relativos às liquidações impugnadas – cfr. fls. 641-642 dos autos. 23. I…, E.M., está enquadrada no “regime normal mensal de IVA”, constando o tipo de operações como “ misto com afectação real de parte dos bens” – cfr. fls. 216 do processo administrativo apenso à Impugnação 7…/12”.
II.B. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto: “Os documentos referidos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade. O depoimento das testemunhas foi valorado, com excepção de J… que não demonstrou razão de ciência por ter deixado de ter ligação com a Impugnante no ano de 2005”.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Não obstante, nas conclusões formuladas, a Recorrente ter optado por uma ordem, no sentido de ter atentado, em primeiro lugar, em vícios de caráter formal e, adiante, em vícios de caráter substancial, a ordem de conhecimento das questões suscitadas será, primeiro, a do conhecimento da nulidade da sentença e, em seguida, a dos diversos vícios à mesma imputados, considerando a maior tutela que a sua eventual procedência confere à parte.
III.A. Da nulidade, por omissão de pronúncia Considera a Recorrente que a sentença recorrida padece de nulidade, por não ter sido apreciada a ilegalidade dos despachos de indeferimento da reclamação graciosa. Vejamos. Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há omissão de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar [cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC]. As questões de que o juiz deve conhecer são ou as alegadas pelas partes ou as que sejam de conhecimento oficioso. In casu, o Tribunal a quo, sobre as decisões das reclamações graciosas e os vícios às mesmas imputados, considerou que a sua apreciação já decorria da que fora feita a respeito dos vícios imputados a propósito do relatório de inspeção tributária (RIT), em termos de erro sobre os pressupostos de facto e de direito. Quanto à alegada falta de fundamentação e preterição do direito de audição, relacionadas com as reclamações graciosas, o Tribunal a quo considerou que o seu conhecimento resultava prejudicado, porquanto “as liquidações impugnadas sempre se manteriam na ordem jurídica e o novo acto que viesse a decidir as Reclamações sempre teria que obedecer ao efeito de caso julgado da decisão final da presente Impugnação”. Como tal, ao contrário do que defende a Recorrente, o Tribunal a quo expressamente tomou posição sobre os alegados vícios, motivo pelo qual inexiste omissão de pronúncia. Poderá, quando muito, haver erro de julgamento, o que vem igualmente suscitado nas alegações e será apreciado infra.
III.B. Do erro de julgamento, quanto ao direito à dedução Considera, por outro lado, a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por inexistirem restrições à capacidade de dedução. Entende, nesse sentido, que, estando reconhecido que as tarifas suportavam, além dos serviços de água, recolha de lixo e esgotos, os restantes serviços efetuados, o direito à dedução dos respetivos valores deveria ser aceite. Vejamos então. O IVA é um imposto plurifásico, que assenta numa estrutura de entrega e respetiva dedução, pelos vários intervenientes na cadeia, até ao consumidor final, que o suporta, sem o poder deduzir. O direito à dedução do IVA é um direito que assiste aos sujeitos passivos de IVA, desde que os bens e os serviços, a que respeita tal imposto a deduzir, sejam utilizados para os fins das próprias operações tributáveis. O IVA funciona, pois, pelo método indireto subtrativo, de acordo com o qual o sujeito passivo deduz, ao imposto liquidado nos seus outputs, o imposto liquidado nos respetivos inputs. Trata-se de um reflexo do princípio da neutralidade, subjacente a este imposto, que, no que toca ao direito à dedução em específico, se reflete na necessidade de o IVA não condicionar os produtores a alterar o seu processo produtivo. Assim, o exercício do direito à dedução, em sede de IVA, revela-se de importância fundamental na mecânica do imposto, sendo o mesmo que permite assegurar o respeito pelo princípio da neutralidade (1). Os requisitos desse direito à dedução podem ser de cariz subjetivo (relacionados com a qualidade de sujeito passivo), objetivo (relacionados com a tipologia de bens ou serviços), finalístico (atinentes ao fim dos bens ou serviços) e temporal (relacionados com a determinação do momento da exigibilidade) (2). O Código do IVA (CIVA), a este respeito, prevê as regras inerentes à dedução de IVA, que passam pela definição das suas linhas gerais nos art.ºs 19.º e 20.º e pela consagração expressa de situações de exclusão do direito à dedução (art.º 21.º). Nos termos do art.º 19.º do CIVA, especificamente do seu n.º 1, al. a), os sujeitos passivos de IVA podem deduzir, ao imposto incidente sobre as suas operações tributáveis, o imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos de IVA. A este propósito, há que atentar previamente no disposto no art.º 1.º, n.º 1, do CIVA, relativo à incidência objetiva deste imposto, nos termos do qual, designadamente, “[e]stão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado: a) As transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal”. Em termos de incidência subjetiva, referia a alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º do CIVA que: “1 - São sujeitos passivos do imposto: a) As pessoas singulares ou coletivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam atividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e as das profissões livres, e, bem assim, as que do mesmo modo independente pratiquem uma só operação tributável, desde que essa operação seja conexa com o exercício das referidas atividades, onde quer que este ocorra, ou quando, independentemente dessa conexão, tal operação preencha os pressupostos da incidência real de IRS e de IRC”. Por seu turno, o art.º 20.º, n.º 1, al. a), do mesmo código, determina igualmente que só é dedutível o imposto suportado relativo a bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados para a transmissão de bens e prestações de serviços sujeitas a IVA e dele não isentas. Não se coloca em causa que, atualmente, é pacífico que a existência de determinadas incorreções de cariz formal, designadamente nos documentos que sustentam o direito à dedução, não implica, sem mais, que tal direito seja coartado, demonstrada, de facto, que seja a reunião dos respetivos pressupostos. A este respeito, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem considerado ser admissível o direito à dedução, ainda que haja alguns requisitos formais por cumprir, desde que a situação material seja demonstrada. Assim, como referido no Acórdão do TJUE de 08 de maio de 2008, Ecotrade, C-95/07 e C-96/07, EU:C:2008:267, n.º 63, “o princípio da neutralidade fiscal exige que a dedução do IVA a montante seja concedida se as exigências de fundo foram cumpridas, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certas exigências formais”. Chama-se igualmente à colação o Acórdão do TJUE de 1 de março de 2012, Polski Trawertyn, C-280/10, EU:C:2012:107, no qual se refere: “… [O] Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Uma vez que a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das transações em causa, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito a dedução, requisitos adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito (v., no que respeita ao regime de autoliquidação, acórdão de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, Colet., p. I-10385, n.° 42). (…) 48 O Tribunal de Justiça declarou, por outro lado, que, embora uma fatura tenha efetivamente uma função documental importante pelo facto de poder conter dados controláveis, existem circunstâncias nas quais os dados podem ser validamente comprovados através de outros meios que não sejam uma fatura e em que a exigência de dispor de uma fatura em todos os pontos conforme com as disposições da Diretiva 2006/112 teria como consequência pôr em causa o direito a dedução de um sujeito passivo (v., neste sentido, acórdão de 1 de abril de 2004, Bockemühl, C-90/02, Colet., p. I-3303, n.os 51 e 52). 49 Ora, impõe-se salientar que (…) numa situação como a que está em causa no processo principal, os dados necessários para assegurar uma cobrança fiável e eficaz do IVA estão demonstrados” (sublinhado nosso). Como referido por Sérgio Vasques, designadamente a propósito deste acórdão (3): “[O] TJUE tem vindo a relativizar de algum modo os requisitos de forma para o exercício do direito à dedução e a função que nisso cabe às faturas (…). O tribunal admite que a substância das operações prevaleça sobre os vícios da factura, quando estejam em causa elementos previstos exclusivamente na lei interna dos estados-membros (…). E o tribunal admite mesmo que a substância das operações prevaleça sobre vícios das facturas relativos a elementos tipificados na Directiva IVA, posto que não se crie com isso risco de fraude. O objectivo desta abordagem ‘flexível’ (…) é o de garantir o direito à dedução a qualquer sujeito passivo que efectivamente tenha suportado o pagamento do imposto. (…) Foi assim que o TJUE acabou por desenvolver ‘uma variante do princípio da proporcionalidade’ ao lidar com estes casos, reiterando sempre que ‘as formalidades assim estabelecidas pelo estado-membro em causa e que devem ser respeitadas pelo sujeito passivo para poder exercer o direito a dedução do IVA não podem ultrapassar o estritamente necessário para controlar a aplicação correcta do procedimento de autoliquidação’”. Assim, e nas palavras de Cidália Lança (4): “… de acordo com a jurisprudência daquele Tribunal [TJUE], o princípio da neutralidade exige que a dedução do IVA seja concedida se os requisitos substantivos tenham sido cumpridos, mesmo se os sujeitos passivos tiverem negligenciado certos requisitos formais”. Chama-se ainda a este propósito à colação o Acórdão do TJUE de 15 de setembro de 2016, Barlis, C-516/14, EU:C:2016:690: “26 Em primeiro lugar, o artigo 226.º, n.º 6, da Diretiva 2006/112 exige que a fatura contenha a menção da extensão e natureza dos serviços prestados. A redação desta disposição indica assim que é obrigatório especificar a extensão e natureza dos serviços prestados, sem contudo precisar que é necessário descrever os serviços específicos prestados de forma exaustiva. 27 (…) [A] finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA. É, portanto, à luz desta finalidade que importa analisar se faturas como as que estão em causa no processo principal respeitam as exigências do artigo 226.°, n.° 6, da Diretiva 2006/112. 28 No processo principal, (…) a menção «serviços jurídicos prestados desde determinada data até ao presente» ou «serviços jurídicos prestados até ao presente» não parece indicar, de forma suficientemente detalhada, a natureza dos serviços em causa. Além disso, esta menção é tão genérica que não permite pôr em evidência a extensão dos serviços prestados, pelas razões referidas pela advogada-geral nos n.os 60 a 63 das suas conclusões. Por conseguinte, a dita menção não cumpre, em princípio, os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, n.° 6, da Diretiva 2006/112, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. 29 Em segundo lugar, o artigo 226.°, n.° 7, da Diretiva 2006/112 exige que a fatura contenha a data em que foi efetuada, ou concluída, a prestação de serviços. 30 Esta exigência também deve ser interpretada à luz da finalidade prosseguida pela imposição de menções obrigatórias na fatura, conforme previstas no artigo 226.° da Diretiva 2006/112, que é, como foi recordado no n.° 27 do presente acórdão, permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA. Para este efeito, a data da prestação dos serviços objeto da referida fatura permite controlar quando ocorreu o facto gerador do imposto e, portanto, determinar as disposições fiscais que devem, de um ponto de vista temporal, aplicar-se à operação a que respeita o documento. (…) 33 (…)[H]á que considerar que uma fatura que contenha apenas a menção «serviços jurídicos prestados até ao presente», sem especificar uma data de início do período de faturação, não preenche os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, n.° 7, da Diretiva 2006/112. 34 Cabe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio, se constatar que as faturas em causa não preenchem as exigências decorrentes do artigo 226.°, n.os 6 e 7, desta diretiva, verificar se os documentos anexos aduzidos pela Barlis contêm uma apresentação mais detalhada dos serviços jurídicos em causa no processo principal e podem ser equiparados a uma fatura nos termos do artigo 219.° da referida diretiva, na qualidade de documentos que alteram a fatura inicial e a ela façam referência específica e inequívoca. (…) 42 O Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da b do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, EU:C:2010:627, n.° 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. W¹siewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.° 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.os 58, 59 e jurisprudência aí referida). 43 Daqui resulta que a Administração Fiscal não pode recusar o direito a dedução do IVA pelo simples facto de a fatura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, n.os 6 e 7, da Diretiva 2006/112, se dispuser de todos os dados para verificar se os requisitos substantivos relativos a este direito se encontram satisfeitos. 44 A este respeito, a Administração Fiscal não deve limitar-se ao exame da própria fatura. Deve igualmente ter em conta informações complementares prestadas pelo sujeito passivo. Esta constatação é confirmada pelo artigo 219.° da Diretiva 2006/112 que equipara a fatura qualquer documento ou mensagem que altere a fatura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca. (…) 46 Neste contexto, há que sublinhar (…) que é ao sujeito passivo que solicita a dedução do IVA que incumbe provar que preenche os requisitos para dela beneficiar (v., neste sentido, acórdão de 18 de julho de 2013, Evita-K, C-78/12, EU:C:2013:486, n.° 37). As autoridades fiscais podem assim exigir ao próprio contribuinte as provas que considerem necessárias para apreciar se há ou não que conceder a dedução solicitada (v., neste sentido, acórdão de 27 de setembro de 2007, Twoh International, C-184/05, EU:C:2007:550, n.° 35)”. Atendendo a este entendimento do TJUE, de facto, o não cumprimento escrupuloso das formalidades exigidas em termos de emissão de faturas pode não comprometer o exercício do direito à dedução. No entanto, tal só ocorre desde que as exigências de fundo tenham sido cumpridas e que a AT disponha de todos os elementos para substantivamente caraterizar a operação, sendo certo que o ónus da prova caberá ao sujeito passivo. No caso dos autos, a questão não se coloca quanto à documentação das aquisições cujo IVA se pretendeu deduzir, mas sim com a prova de que tais aquisições estão relacionadas com a transmissão de bens ou a prestação de serviços sujeitas a IVA e dele não isentas. Feito este introito, cumpre apreciar. In casu, como resulta da matéria de facto assente, em sede de inspeção tributária, a administração considerou que foram identificados custos deduzidos que não tinham qualquer correspondência com operações ativas, concretamente os relacionados com o Centro de Observação de Aves, a Ponte Pedonal, a iluminação e a pavimentação. Ou seja, a posição da administração tributária (AT) não foi estritamente formal, mas substancial. Concluiu a AT que a Impugnante apenas liquidou IVA relativo ao fornecimento de água, taxas de esgotos, parque de estacionamento ou pequenos serviços materialmente irrelevantes em termos de volume de negócios. Assim, a AT entendeu que a situação descrita atentava contra o art.º 20.º do CIVA, considerando tratar-se de operações que não decorrem do exercício de uma atividade económica, prevista na alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º do mesmo código. Ficou ainda provado que a Impugnante, na área da urbanização Quinta do L… e outras urbanizações adjacentes, leva a cabo o abastecimento de água, a recolha de resíduos sólidos, a manutenção das centrais elevatórias e da rede de esgotos, a manutenção da rede pluvial, a limpeza geral da urbanização, a manutenção da rede viária, a manutenção dos espaços verdes públicos e a manutenção de vários equipamentos públicos [cfr. facto 16]. Resultou também provado que as tarifas cobradas pela Impugnante “suportavam financeiramente não só os serviços de água, recolha de lixo e esgotos que eram a justificação directa da cobrança, mas também os restantes serviços efectuados” [cfr. facto 18]. No entanto, da matéria de facto assente, ao contrário do que refere a Recorrente, não resulta que tudo o que não fosse serviços de água e de recolha de lixo e esgotos estivesse a ser cobrado nas faturas emitidas. O que resulta provado é que a única receita da I… era a decorrente da liquidação das tarifas e que a justificação direta da cobrança destas tarifas eram os serviços de água e de recolha de lixo e esgotos [cfr. factos 18 e 19], o que não foi impugnado pela Recorrente. Ficou, é certo, provado que era com a receita de tais tarifas que eram suportados todos os serviços realizados pela Recorrente. No entanto, trata-se de situação distinta da de se afirmar que todos os serviços realizados eram faturados aos clientes da Recorrente e sujeitos a IVA. Tal, reiteramos, não resulta da prova efetuada. Portanto, ao contrário do que defende a Recorrente, e independentemente de as faturas emitidas terem o descritivo circunscrito ao fornecimento de água, recolha de lixo e esgotos, da factualidade assente não decorre que tenha ficado provado que nas tarifas faturadas estivessem a ser cobrados, também, todos os outros serviços, como os relacionados com a iluminação, manutenção dos passeios, ponte pedonal e observatório das aves. Portanto, acompanhando-se o entendimento da Recorrente (e nisso nos distanciamos do Tribunal a quo), no sentido de que seria, em abstrato, possível que a mesma demonstrasse que sobre os referidos serviços liquidava IVA, a verdade é que não o fez, nos termos já enunciados, não se podendo, assim, concluir que estamos perante operações ativas para efeitos de IVA. Mais do que a questão da inexistência da fatura discriminada e do não cumprimento escrupuloso dos requisitos formais, o que releva é a inexistência de prova que sustente o entendimento da Recorrente, no sentido de, também sobre aqueles serviços, ter sido liquidado IVA. Como tal, com a presente fundamentação, não assiste razão à Recorrente nesta parte.
III.C. Do erro de julgamento, atinente à aplicação do art.º 20.º do CIVA Considera, ademais, a Recorrente que o art.º 20.º do CIVA não é aplicável in casu, porquanto liquidou IVA sobre todas as suas operações ativas e não praticou qualquer operação isenta. Refira-se, antes de mais, a este respeito, que, ao longo das suas alegações, a Recorrente vai fazendo menção a depoimentos das testemunhas. No entanto, não foi dado cumprimento ao disposto no art.º 640.º do CPC. Com efeito, considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão (5). Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC]; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC]. Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC: “2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”. Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo-se-lhe os ónus já mencionados (6). Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus não foram cumpridos, o que implica que, não se podendo falar em efetiva impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nada haja a apreciar a este respeito, sendo de considerar a decisão proferida sobre a matéria de facto transcrita em II. do presente Acórdão. Prosseguindo. In casu, desde já se refira que não está em causa a realização de operações isentas. Está, sim, em causa a realização de atividades que não tiveram qualquer tipo de correspondência em termos de atividade sujeita e não isenta, o que é questão diferente. Veja-se que o art.º 20.º do CIVA determina a dedutibilidade do IVA que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas. Ou seja, não é dedutível o IVA quando o mesmo respeite, designadamente, a atividades sobre as quais não foi liquidado qualquer IVA, porquanto não se trata sequer de operações sujeitas. Ora, considerando a decisão proferida sobre a matéria de facto, a que já nos referimos, não resulta da mesma que, dentro das operações ativas, estivessem incluídas as identificadas no RIT e já referidas, o que, à falta de prova, permite concluir não estarmos sequer perante operações sujeitas a IVA, porque não estão na origem de qualquer prestação de serviço debitada a qualquer adquirente. Ou seja, nada nos permite concluir que estivéssemos perante qualquer prestação de serviços a título oneroso. O facto de o regime legal aplicável às empresas municipais e, bem assim, os estatutos da Recorrente, impedirem que esta preste serviços aos seus clientes sem que os respetivos custos sejam acautelados, carece de pertinência, atenta a ausência de prova a que nos referimos. Ademais, do que resultou provado, os tais custos eram acautelados, mas, sim, pelo valor cobrado pela prestação de serviços de abastecimento de água, recolha de lixo e esgotos. Assim sendo, trata-se de situação que, não se enquadrando no art.º 20.º do CIVA, impede o exercício do direito à dedução dos custos correspetivos. Como tal, não assiste razão à Recorrente nesta parte.
III.D. Do erro de julgamento, por violação do art.º 82.º do CIVA Considera, por outro lado, a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, atenta a violação do disposto no art.º 82.º do CIVA, uma vez que, nos termos do DL n.º 102/2008, de 20 de junho, a competência para a prática de atos de liquidação adicional de IVA passa a ser cometida à Direção-Geral dos Impostos (sendo que, na anterior redação da referida disposição legal, essa mesma competência estava atribuída ao Chefe do Serviço de Finanças da área de residência do contribuinte ou à Direção de Serviços de Cobrança do IVA). No entanto, tal diploma foi elaborado ao abrigo da autorização legislativa constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 91.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2008), que era válida por 90 dias e não conferia autorização para alterar a entidade competente para a liquidação adicional de imposto, padecendo, por isso, de inconstitucionalidade, por violação do disposto no art.º 165.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Vejamos então. O DL n.º 102/2008, de 20 de junho, no uso da autorização legislativa concedida pelo art.º 91.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, alterou e republicou, entre outros, o CIVA. A Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2008), no seu art.º 91.º, determinou que: “1 — Fica o Governo autorizado a rever e a republicar, integrando todas as alterações que lhe tenham sido introduzidas até à data de publicação da presente lei, com as correções que, por isso, forem exigidas, os seguintes diplomas: a) O Código do IVA, aprovado pelo Decreto –Lei n.º 394 -B/84, de 26 de Dezembro; (…) 2 — Para efeitos da autorização legislativa conferida no número anterior, deve o Governo: a) Dotar os diplomas em causa de melhor sistematização e coerência interna, através da alteração, fusão, eliminação e organização de capítulos, secções e subsecções, da transferência de números ou da fusão entre artigos, sem alteração do sentido substancial dos preceitos vigentes; b) Corrigir incongruências remissivas; c) Proceder a renumerações no quadro legal em causa, nos casos em que se revele adequado. 3 — A presente autorização legislativa tem a duração de 90 dias”. O mencionado DL n.º 102/2008 começou por conferir a seguinte redação ao art.º 82.º do CIVA: “1 — Sem prejuízo do disposto no artigo 84.º, a Direção-Geral dos Impostos procede à retificação das declarações dos sujeitos passivos quando fundamentadamente considere que nelas figure um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando adicionalmente a diferença”. Com a renumeração operada ao CIVA pelo mesmo diploma, este artigo passou a ser o art.º 87.º do código em causa. Até esta alteração, o então art.º 82.º do CIVA referia que tal competência era do chefe de repartição de finanças [sem prejuízo, designadamente, do entendimento plasmado, entre outros, no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.06.2019 (Processo: 0493/09.0BESNT)]. As questões aqui suscitadas prendem-se com, por um lado, a ultrapassagem do prazo conferido pela autorização legislativa e, por outro, a circunstância de a alteração da competência para proceder às liquidações adicionais não resultar da mencionada autorização legislativa. Comecemos pela análise da alegada ultrapassagem do prazo conferido pela autorização legislativa. No caso, o DL n.º 102/2008 foi visto e aprovado em Conselho de Ministros de 27.03.2008, promulgado a 03.06.2008 e referendado em 05.06.2008. Sobre a questão da duração da autorização legislativa, já se tem pronunciado o Tribunal Constitucional, no sentido de ser momento relevante para esse efeito o da aprovação do diploma em Conselho de Ministros. Chama-se à colação, a este respeito, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2004, de 14.01.2004, e ampla jurisprudência no mesmo citada. Aí se refere: “[C]omo se salientou, por exemplo, no Acórdão n.º 249/2002, deste Tribunal (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “desde, pelo menos, o Acórdão n.º 150/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1992), que o Tribunal Constitucional firmou jurisprudência no sentido de que ‘o momento a ter em consideração, para se aferir se a autorização legislativa foi usada em tempo, é o da aprovação em Conselho de Ministros’ – Acórdão n.º 387/93, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Outubro de 1993 (cfr., também, a mais dos indicados no Acórdão recorrido, o Acórdão n.º 324/93, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Outubro de 1993).” Naquele Acórdão n.º 387/93, por exemplo, disse-se: «(…) 4. O problema ligado com a questão de saber qual o momento relevante para se aferir, relativamente a um diploma governamental, da tempestividade do uso de uma autorização legislativa tendo em atenção as diferentes fases do processo de produção legislativa, tem sido objecto de variadas posições doutrinais e de algumas posições jurisprudenciais, mesmo perante o primitivo texto da Constituição segundo o qual – cfr. artigo 122º, n.º 4 – era juridicamente inexistente o acto legislativo não objecto de publicidade. 4.1. É assim que, a propósito, se citam Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 1977, 150, VI, Jorge Miranda, A Constituição de 1976, n.º 29, Funções, Órgãos e Actos do Estado, 1986, 281, nota 1, e no estudo intitulado “Autorizações Legislativas” na Revista de Direito Público, ano I, n.º 2, 18, nota 46, Isaltino Morais, Ferreira de Almeida e Pinto Leite, Constituição da República Portuguesa Anotada e Comentada, 331, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1ª edição, 1978, 336, e 2ª edição, 2º Vol., 205, António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, 252 e segs., e Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 2ª edição, 305 e 356, 4ª edição, 635, e 5ª edição, 865, Pareceres da Comissão Constitucional números 23/80 e 4/81, em Pareceres da Comissão Constitucional, 13º e 14º volumes, págs. 99 e segs. e 205 e segs., respectivamente, Acórdãos 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 165, 212, 293, 401 e 402, publicados nos Apêndices ao Diário da República de 6 de Junho de 1977, 25 de Outubro de 1977, 16 de Abril de 1981 e 22 de Dezembro de 1981, e Acórdãos do Tribunal Constitucional números 37/84, 59/84, 60/84 e 80/84, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º volume, págs. 69 e segs., 309 e segs e 317 e segs., e 4º volume, págs. 217 e segs., 400/89 e 150/92, no Diário da República, 2ª Série, de 14 de Setembro de 1989 e 28 de Julho de 1992. Nos citados pareceres da Comissão Constitucional números 23/80 e 4/81 (e a partir do também citado Acórdão n.º 212) e nos referidos Acórdãos do Tribunal Constitucional números 37/84, 59/84, 60/84 e 400/89, ficou expressa a ideia de que não implicava inconstitucionalidade orgânica a circunstância de um decreto-lei emitido ao abrigo de uma autorização legislativa ter sido publicado em data posterior ao termo do prazo ali concedido, pois que o acto de publicação não poderia ser visto como um elemento constitutivo necessário à aferição da existência jurídica do diploma. 4.2. Mas, se o requisito da publicação é, face aos ensinamentos extraíveis daqueles arestos e das considerações e da doutrina em que se suportaram, arredado como elemento de validade de um diploma, questão diferente é a de saber qual o item, de entre os demais que constituem o processo de produção legislativo – e para os efeitos que agora relevam, isto é, para se apurar se um decreto-lei foi emitido dentro do prazo autorizado pela Assembleia da República – a que se deverá atender. A este respeito, o Tribunal Constitucional, por intermédio da sua 2ª Secção, tomou já posição no aludido Acórdão n.º 150/92, posição essa que agora se reitera e segundo a qual o momento a ter em consideração, para se aferir se a autorização legislativa foi usada em tempo, é o da aprovação em Conselho de Ministros. Disse-se, então e além do mais, no referido Acórdão: “Por um lado, não constituindo a promulgação um acto da competência do Governo, não é de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo para legislar em determinada matéria. Por outro lado, e quanto à possibilidade de o Governo antedatar os diplomas, sempre se poderia estabelecer a presunção de que a sua aprovação ocorreu na data que deles consta (com admissão de prova em contrário). Finalmente, deve entender-se que o decreto-lei aprovado dentro do prazo da autorização legislativa «existe» para o efeito de se considerar respeitado esse prazo, como «existe» qualquer decreto do Governo enviado ao Presidente da República para promulgação e que este resolve enviar ao Tribunal Constitucional para efeitos de apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas”.» Mais recentemente, podem ver-se, no mesmo sentido, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 146/96 (in Diário da República, de 7 de Maio de 1996) 928/96, 461/99, e o citado Acórdão n.º 249/2002 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Não se encontram na argumentação dos recorrentes fundamentos novos que justifiquem a alteração da posição assumida nestes arestos, podendo remeter-se para a sua fundamentação. 7.Ora esta solução conduz a uma conclusão de não inconstitucionalidade das normas em questão. Com efeito, considerando que as autorizações legislativas conferidas pelas Leis n.ºs 4/89, de 3 de Março, e 13/95, de 5 de Maio, tinham, respectivamente, a duração de 180 e de 90 dias (v., respectivamente, os artigos 4º e 5º daquelas Leis), e que os Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de Setembro, e 244/95, de 14 de Setembro, foram aprovados em Conselho de Ministros, respectivamente, em 31 de Agosto de 1989 e 27 de Julho de 1995, não restam dúvidas de que a intervenção do Governo ocorreu dentro do prazo que lhe foi fixado, não interferindo no exercício da sua competência delegada o acto subsequente de promulgação, da responsabilidade de outro órgão de soberania, ou da publicação daqueles decretos-leis em Diário da República”. Aderindo a este entendimento e considerando que o diploma em causa foi aprovado em Conselho de Ministros a 28.03.2008, foi respeitado o prazo de 90 dias previsto na lei de autorização. Por outro lado e em consonância, cumpre atentar no alcance da reserva de lei parlamentar em matéria de impostos, aspeto relevante para apreciar ambas as vertentes da alegada inconstitucionalidade da norma em causa (7). Assim, como resulta do art.º 165.º, n.º 1, al. i), da CRP, entre os diversos tributos previstos no nosso ordenamento, encontram-se os impostos, definidos como uma prestação pecuniária unilateral, imposta coativa ou autoritariamente pelo Estado ou por uma entidade pública, sem caráter sancionatório, visando angariar receita ou a prossecução de outras finalidades públicas. No nosso ordenamento, a tributação é regida por um conjunto de princípios, com assento na nossa lei fundamental, princípios esses que definem quer limites de natureza formal quer de natureza material. Do ponto de vista dos limites de natureza formal, surge-nos o princípio da legalidade fiscal, na perspetiva da reserva (relativa) de lei parlamentar, espelhando o paradigma do no taxation without representation (8). Assim, o art.º 165.º, n.º 1, al. i), da CRP, prevê que seja da competência relativa da Assembleia da República (AR) legislar em matéria de impostos e sistema fiscal e sobre o regime geral das taxas e contribuições financeiras. Portanto, no que toca aos impostos, a reserva relativa de lei abrange tudo o que respeite à sua criação, determinação da incidência (nas suas diversas vertentes – objetiva, subjetiva, temporal e territorial) (9), da taxa, dos benefícios fiscais e das garantias dos contribuintes, em consonância com o que resulta do n.º 2 do art.º 103.º da CRP. O princípio da legalidade fiscal comporta, por outro lado, uma vertente material, de tipicidade fiscal. Significa tal vertente que os elementos essenciais dos impostos têm de ser consagrados de forma rigorosa e definida, atento o disposto no já referido art.º 103.º, n.º 2, da CRP. Ora, no caso dos autos, a norma em causa respeita à determinação do órgão com competência para a emissão de liquidações adicionais, aspeto que não se enquadra no âmbito da reserva de lei parlamentar. Com efeito, nem todos os aspetos relacionados com a tributação estão sujeitos a tal reserva de lei e o caso da determinação da competência do órgão liquidador, não tendo relação com a criação, incidência, taxa, benefícios fiscais e garantia dos contribuintes, é justamente um dos casos em que o Governo dispõe de competência própria para legislar (art.º 198.º, n.º 1, da CRP). Foi exatamente neste sentido que o Tribunal a quo decidiu, posição com a qual se concorda, motivo pelo qual não assiste razão à Recorrente nesta parte.
III.E. Do erro de julgamento, quanto ao vício de falta de fundamentação Entende, ademais, a Recorrente que a decisão sob apreciação padece de erro, porquanto os atos de liquidação padecem, em seu entender, de falta de fundamentação. Entende igualmente que tal vício se verifica no âmbito das reclamações graciosas. Quanto ao dever de fundamentação dos atos administrativos em geral, o mesmo insere-se no princípio constitucionalmente consagrado, no art.º 268.º, n.º 3, da CRP, nos termos do qual “os atos administrativos (…) carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”. Ao nível dos atos tributários, o dever de fundamentação formal encontra-se especificamente previsto no art.º 77.º da Lei Geral Tributária (LGT), cujos n.ºs 1 e 2 determinam que: “1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária. 2 - A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”. “A fundamentação deve consistir, no mínimo, numa sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a decisão…” (10), para que o respetivo destinatário consiga perceber o iter cognoscitivo e para que, por outro lado, seja possível o controlo, quer administrativo, quer jurisdicional, do ato em causa. Deve ser, pois, clara, expressa, congruente e suficiente, de maneira a esclarecer inteiramente o seu destinatário, cumprindo, dessa forma, o desiderato constitucionalmente consagrado. Do ponto de vista estritamente formal, a falta de fundamentação configura-se como um vício de forma e não de substância. No entanto, a par do dever de fundamentação formal, pode ainda falar-se em dever de fundamentação substancial, tendo este a ver com a questão da verificação dos pressupostos de facto e/ou de direito. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.02.2019 (Processo: 0775/02.2BTVIS): “[U]ma coisa é saber se a AT deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem distinta e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa (Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina, 2003, pág. 231.). Na verdade, as características exigidas quanto à fundamentação formal do acto tributário são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor a proferir a decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a actuação administrativa no caso concreto (ou seja, esta deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico)”. Portanto, quando se fala em fundamentação do ato, há que atentar na dicotomia existente entre a sua vertente formal e a sua vertente substancial. Como referido por Vieira de Andrade (11), “[a] diferença entre a dimensão formal e a dimensão substancial do dever de fundamentação está, então, em que o dever formal se cumpre pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis, enquanto a fundamentação substancial exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo”. Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.
III.E.1. Quanto aos atos de liquidação e RIT In casu, como decorre das alegações de recurso, a Recorrente considera que as liquidações em crise padecem de falta de fundamentação, em virtude de, das mesmas, não constar, nem sequer por remissão, a fundamentação constante do RIT. Sobre questão idêntica à suscitada in casu, já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão de 16.09.2020 (Processo: 0921/15.6BEPRT), no qual se refere: “[O] acto de liquidação em causa foi praticado (…) na sequência de uma inspecção tributária ao exercício de 2012 (…), cujo relatório foi notificado ao impugnante e aqui Recorrente (…) contendo a seguinte menção expressa: “Das correcções meramente aritméticas efectuadas à matéria tributável e/ou imposto, sem recurso a avaliação indirecta, cujos fundamentos constam do referido Relatório. A breve prazo, os serviços da AT procederão à notificação da liquidação respectiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento, se a ele houver lugar”. Por essa razão, o que o Recorrente questiona não é o desconhecimento em absoluto da qualificação e quantificação dos factos tributários que deram origem à liquidação impugnada, nem o seu fundamento de direito, mas tão-só se, atenta a factualidade em apreço – em especial a circunstância de no acto de liquidação de que veio posteriormente a ser notificado não se fazer referência expressa ao referido relatório de inspecção tributária – é possível considerar que se encontram preenchidas as exigências legais de fundamentação dos actos tributários. Ora, como a jurisprudência deste Supremo Tribunal administrativo tem afirmado à saciedade (v., por todos, acórdão de 12 de Março de 2014, proc. 01674/13) «[O] acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual». E essa fundamentação pode, como resulta da lei, ser uma fundamentação remissiva, por adesão às conclusões de um relatório de inspecção tributária (artigo 63.º, n.º 1 do RCPIT e 77.º, n.º 1 da LGT). É o que sucede neste caso, como se infere do confronto entre as conclusões do relatório de inspecção e a demonstração de liquidação do imposto para o ano de 2012 (…); confronto do qual é possível inferir que aquela liquidação resulta (…) [do que a] Administração Tributária (…) [concluiu no] relatório de inspecção(…). É certo que daquela demonstração de liquidação (i. e., do acto de liquidação) não constava a referência expressa ao relatório de inspecção tributária, mas, como se concluiu – e bem – na sentença recorrida, a notificação do relatório de inspecção (onde a “Administração Tributária identificou cabalmente os factos tributários, os montantes sobre os quais incidia o imposto, a taxa a aplicar, sustentando a sua decisão na legislação aplicável”) que pré-anunciava a emissão daquele acto e a sua posterior notificação, com um conteúdo em tudo correspondente ao que resulta do relatório, constituem elementos bastantes para que se considere preenchido, in casu, o dever de fundamentação do acto de liquidação. É que, nestes casos, o acto de liquidação tem de ser analisado e interpretado em conformidade com o relatório de inspecção e, como também se afirma na sentença recorrida, o “cumprimento defeituoso do dever de comunicação dos fundamentos não se podem reflectir na validade do acto comunicando”. Ora, no caso, a existir alguma irregularidade (mera irregularidade), ela atem-se à falta de referência expressa no acto de liquidação aos elementos identificativos do relatório de inspecção; irregularidade que não prejudicou a correcta compreensão pelo sujeito passivo da relação entre ambos (como atesta a presente acção), não sendo sequer necessário mobilizar: i) primeiro, o princípio da razoabilidade para sustentar que, atento o conteúdo de ambos (do relatório de inspecção, cuja notificação antecedeu a do acto tributário), qualquer declaratório normal teria objectivamente estabelecido aquela relação e, com isso, teria tido acesso à fundamentação da liquidação; ou ii) subsidiariamente, a aplicação do regime do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 37.º do CPPT no quadro de uma relação de colaboração leal e de boa-fé nas relações tributárias, para concluir que não existe a alegada falta de fundamentação”. Considerando este entendimento, ao qual se adere, decorre que, na verdade, as liquidações estão fundamentadas e tal fundamentação sustenta-se no RIT mencionado em 2 do probatório. Ainda que as mesmas não remetam expressamente para o mencionado RIT, tal não significa que a fundamentação não exista – aliás, como se refere no aresto citado supra, os contribuintes têm um expediente à sua disposição, consagrado no art.º 37.º do CPPT, justamente visando suprir situações como esta. Face ao exposto, carece de razão a Recorrente nesta parte.
III.E.2. Quanto aos atos de indeferimento da reclamação graciosa No tocante à decisão proferida em sede de reclamação graciosa, cumpre relembrar que, no caso, o recurso hierárquico mencionado em 11. do probatório deferiu o requerido pela ora Recorrente, por entender que fora preterido o direito de audição. Nesse seguimento, e após exercício do direito de audição (cfr. facto 12.), foram elaboradas as informações referidas em 13. do probatório. Da sua análise, e concordando-se com o Tribunal a quo, no sentido de que uma eventual falta de fundamentação da mesma não se reflete na legalidade da liquidação, a verdade é que a decisão administrativa proferida se sustenta nos mesmos fundamentos constantes do RIT (para o qual, aliás, remete expressamente), que, nos termos que já referimos, e, bem assim, quanto à alegada incompetência, consideramos suficientes, em termos de apreensão do itinerário cognoscitivo. O mesmo se refira quanto à fundamentação no sentido de não audição das testemunhas, dado que a AT sustentou o seu entendimento, no sentido de que considerou ser apenas relevante a prova documental. Portanto, correto ou não, o entendimento da AT está fundamentado. Como tal, não assiste razão à Recorrente nesta parte. Quanto ao alegado défice instrutório resultante de tal entendimento, a sua apreciação está consumida pela apreciação do mérito da pretensão da Recorrente, que fizemos supra. Com efeito, em sede impugnatória, foi produzida toda a prova requerida pela ora Recorrente em sede de reclamação graciosa, incluindo a prova testemunhal. O défice instrutório da AT só se verificaria se se concluísse que a prova produzida em sede impugnatória foi de molde a sustentar a posição da Recorrente, consumindo o eventual erro sobre os pressupostos tal potencial défice instrutório. Considerando que a Recorrente, em sede impugnatória, produziu toda a prova que pretendia e que a mesma não foi no sentido que preconiza, tal circunstância conduz à irrelevância da produção de prova em sede de reclamação graciosa, por evidenciar que, mesmo a prova, a ser produzida, não alteraria a posição da AT. Daí que, em situações como a presente, se revele pertinente apelar à teoria do aproveitamento do ato, acolhida já há muito entre a doutrina e a jurisprudência e atualmente até objeto de positivação legal (cfr. art.º 163.º, n.º 5, do Código do Procedimento Administrativo). Nos termos da mencionada teoria, verifica-se uma inoperância da força invalidante do vício que inquina o ato, em virtude da preponderância do conteúdo sobre a forma. Assim, quando em relação a um determinado ato, que padeça de ilegalidade formal ou externa, se possa afirmar inequivocamente que o ato só podia ter o conteúdo que teve em concreto, a essa invalidade não é operante, em virtude da conformidade substancial do ato praticado (12). Com efeito, uma solução em sentido diferente conduziria a um resultado antijurídico, na medida em que os pressupostos de facto da tributação já foram apreciados pelo Tribunal. Chama-se, a este respeito, à colação o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12.04.2012 (Processo: 0896/11), onde se refere: “[A]pós a sentença recorrida ter confirmado a validade do acto, no que toca à relação material subjacente, (…) não há dúvida que as liquidações adicionais correspondem à solução imposta pela lei para a situação concreta, pelo que a sua anulação criaria uma situação antijurídica. Para evitar tal situação, impõe-se aproveitar o acto, quanto ao vício de procedimento”. Em sentido idêntico, no qual, justamente, se colocava a questão de falta de inquirição, em sede administrativa, de testemunhas ouvidas em sede judicial, v. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.06.2012 (Processo: 01013/11). Ademais, qualquer vício da reclamação graciosa só atingiria a decisão ali proferida, não atingindo a validade das liquidações emitidas que, como já referimos, não padecem dos vícios que lhe são imputados. Como tal, também nesta parte não assiste razão à Recorrente. Nessa sequência, resulta prejudicada a apreciação do requerido quanto à indemnização pela garantia indevidamente prestada e quanto ao direito ao reembolso do valor, acrescido de juros indemnizatórios.
IV. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul: a) Negar provimento ao recurso; b) Custas pela Recorrente; c) Registe e notifique. Lisboa, 26 de maio de 2022
(Tânia Meireles da Cunha) (Susana Barreto) (Patrícia Manuel Pires) ______________________________ (1) V. a este respeito Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 6.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2014, pp. 228 a 230, Patrícia Noiret da Cunha, Imposto sobre o Valor Acrescentado, Instituto Superior de Gestão, Lisboa, 2004, p. 332. (2) Cfr. Sérgio Vasques, Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 336 a 340. (3) Sérgio Vasques, Imposto sobre o Valor Acrescentado, cit., p. 345. (4) «Artigo 36º», Código do IVA e RITI – Notas e Comentários (coord- Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos), Almedina, Coimbra, 2014, p. 340. (5) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169. (6) V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada. (7) Sobre as autorizações legislativas em matéria fiscal, v. Ana Paula Dourado, O princípio da legalidade fiscal, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 84 a 103. (8) V. a este propósito o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/2010, de 05.07.2010. (9) Cfr. a este respeito Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2014, p. 284. (10) Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Edição, Encontro da Escrita, Lisboa, 2012, p. 676. (11) O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina, Coimbra, 2003, p. 231. (12) Cfr. José Carlos Vieira de Andrade, O dever de fundamentação expressa de actos administrativos, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 329 a 336. V. a este propósito o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.03.2019 (Processo: 24/08.0BELRS). |