Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:161/09.3BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:06/05/2019
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CASO JULGADO FORMAL;
CASO JULGADO MATERIAL;
AUTORIDADE DE CASO JULGADO;
TRANSPARÊNCIA FISCAL.
Sumário:I. O caso julgado material ocorre quando a decisão transitada recai sobre o mérito da causa, sendo que a definição dada à relação material controvertida tem força dentro e fora do processo.
II. Uma das vertentes do caso julgado é a autoridade do caso julgado, através da qual se obsta a que a situação jurídica material definida por sentença ou acórdão transitados em julgado possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença ou acórdão, impondo-se à segunda decisão de mérito o decidido na primeira como sendo seu pressuposto indiscutível, subjacente a uma relação de prejudicialidade entre o objeto de ambas as decisões.
III. Quando a decisão proferida recaia apenas sobre a relação processual, forma-se caso julgado formal, cuja força obrigatória é apenas circunscrita ao processo – valor intraprocessual do caso julgado formal.
IV. Uma decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide não forma caso julgado material, dado ser uma decisão de forma e, logo, não se pronunciar sobre a relação material controvertida.
v. O Tribunal a quo ao ter apreciado os vícios imputados a liquidação adicional de IRS emitida em nome de sócia de sociedade sujeita ao regime da transparência fiscal não violou o caso julgado material no que toca à mensuração da matéria coletável, uma vez que esse nunca se formou com a decisão de inutilidade superveniente da lide.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 27.09.2016, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Almada, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por H..... (doravante Recorrida ou impugnante), que teve por objeto a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), relativa ao ano de 2004.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“1. Pela douta sentença ora sob recurso, veio o Tribunal “a quo” julgar procedente a presente impugnação judicial, anulando a liquidação de IRS, respeitante ao ano de 2004, no valor global de € 10.352,43, e reconhecer o direito da impugnante a uma indemnização por prestação indevida de garantia.

2. Consequentemente, ao decidir como decidiu, o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento.

3. E é com esta decisão que, e salvo o devido respeito, que é muito, não nos conformamos nem concordamos, pelos motivos e fundamentos que se passam a expor.

4. Decisão que, desde logo, enferma de vício formal de contradição entre as suas premissas, de facto e de direito.

5. Isto porque se, por um lado, no saneador, se acolhe, e bem, que “… em sede de correcções efectuadas a uma sociedade sujeita ao regime de transparência fiscal a legitimidade processual para discutir a legalidade das mesmas circunscreve-se na esfera do sujeito passivo a quem são imputadas as correcções (…).

6. Por outro, na decisão, permite, à ora Impugnante, sócia da X.....,RL,NIPC 5039….., vir por em causa matéria consolidada por decisão, de 7-05-2009, do Tribunal Tributário de Lisboa, no processo de impugnação n.º 1299/07.7BELSB, desde há muito transitada em julgado, que não obstante julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, manteve a matéria colectável fixada de € 174.840,46.

7. Cumprindo, desde já, salientar que a X.....,RL,NIPC 50390…., é uma sociedade de profissionais tributada pelo regime de transparência fiscal previsto no artigo 6.º do CIRC (antigo artigo 5.º) cuja matéria colectável, determinada nos termos do mesmo Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, é imputada aos sócios, integrando-se no seu rendimento tributável, in casu, para efeitos de IRS.

8. E aconteceu que a sociedade (Sujeito Passivo-SP) não entregou a declaração modelo 22, respeitante ao exercício de 2004.

9. Por essa razão, foi elaborada uma declaração oficiosa de rendimentos, com uma matéria colectável no montante de € 174.840,46, tendo sido emitida, no âmbito da competência da então DGCI, prevista na alínea b), do artigo 82.º, de acordo com as regras definidas na alínea b), do n.º 1, do artigo 83.º, do CIRC, liquidação oficiosa nº 2006 831001…., de 12-04-2006, no montante de € 48.081,12;

10. Salientando-se, ainda, que a matéria colectável, objecto da sobredita declaração oficiosa de rendimentos, foi a mesma que serviu de base à quantificação do imposto, determinada pelo sujeito passivo, para o exercício de 2003, ou seja, € 174.840,46, último exercício com matéria colectável conhecida.

11. Seguindo-se, por parte da sociedade (SP), em 30-06-2006, a apresentação de declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, em falta, respeitante ao exercício de 2004, da qual constava um resultado liquido do exercício de € - 40.235,04, um prejuízo para efeitos fiscais de € 30.738,41 e um total a pagar de € 2.230,37.

12. Tendo o SP, em 10-08-2006, apresentado reclamação graciosa da dita declaração oficiosa de rendimentos, no montante de € 174.840,46, seguida de impugnação judicial decorrente do indeferimento tácito desta.

13. E por se tratar de uma sociedade de profissionais tributada pelo regime transparência fiscal, a administração fiscal anulou a antedita liquidação oficiosa nº 2006 831001…., de 12-04-2006, no montante de € 48.081,12, emitindo nova liquidação a 0,00, com o n.º 2006 8910036495, de 16-08-2006, a 0,00, mas mantendo a matéria colectável, anteriormente fixada, em € 174.840,46.

14. Daí a já referida decisão, de 7-05-2009, do Tribunal Tributário de Lisboa, no Processo de Impugnação 1299/07.7BELSB - quando confrontado com anulação, em 17-08-2006, da liquidação oficiosa nº 2006 831001…., de 12-04-2006, no montante de € 48.081,12, e com a nova liquidação n.º 2006 8910…., de 16-08-2006, a 0,00, mas mantendo-se a matéria colectável fixada em € 174.840,46 – de declaração de inutilidade superveniente da lide.

15. Tudo porque não era possível anular um acto de liquidação, que já não existia na ordem jurídica.

16. Matéria colectável essa a que, a X....., RL, nada contrapôs.

17. Não obstante as partes terem, naturalmente, sido ouvidas (conforme o artigo 3.º, nº3, do CPC) nada opuseram.

18. Decorrendo, desta norma, que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

19. Ou seja, no caso, o SP, ao não impugnar a sobredita decisão, acabou por acatar a matéria colectável fixada em € 174.840,46, porquanto não consta dos autos que haja recorrido da decisão.

20. Efectivamente, é o que resulta desta decisão, que não obstante a liquidação ter sido totalmente anulada pela Administração fiscal, em 17/08/2006, e efectuada nova liquidação (nº2006 8910036495, de 16/08/2006), a € 0,00, manteria, no entanto, a matéria colectável fixada em € 174.840,46 .

21.Decisão tomada no âmbito do referido processo de impugnação judicial, na qual também é dito que a alteração dos valores liquidados com base na mesma matéria colectável assenta na tributação ao abrigo do regime de transparência fiscal, ao invés da tributação pelo regime geral que originara a primitiva liquidação.

22.Sublinhando, ainda, a dita decisão, que o objecto da reclamação graciosa, no seguimento de cuja presunção de indeferimento tácito foi deduzida a impugnação, era o acto de liquidação nº 2006 831001…., de 12/04/2006, o qual havia sido objecto de revogação anulatória.

23. Assim sendo, a questão que ora se coloca, À QUAL A DOUTA SENTENÇA NÃO RESPONDE, é a de saber se pode vir agora, o TAF de Almada, a pedido da ora impugnante, na qualidade de sócia da X....., RL, NIPC 50390…., por em causa a decisão, de 7-05-2009, tomada pelo Tribunal Tributário de Lisboa, no processo de impugnação n.º 1299/07.7BELSB, já transitada em julgado.

24. Decisão que, não obstante ter declarado a inutilidade superveniente da lide, manteve a matéria colectável fixada em € 174.840,46, sem oposição das partes, designadamente do SP, a X… , RL.

25. Com o devido respeito, mas entendemos que não, desde logo porque a decisão, desde há muito, transitou em julgado e, consequentemente, consolidando, em definitivo, o apuramento da matéria colectável então fixada.

26. Em consequência, o pedido de anulação da liquidação de IRS, ora posto em crise nos presentes autos de impugnação judicial (proc.º N.º 161/09.3BEALM), bem como o pedido de indemnização por prestação indevida de garantia bancária, carecem naturalmente de fundamento.

27. Assim, ao invés do requerido, deve a mesma improceder, já que, como referido, com o transito em julgado da decisão, de 7-05-2009, decorrente do processo n.º 1299/07.7BELSB, as denominadas correcções oficiosas consolidaram-se em definitivo na ordem jurídica.

28. Sendo, por imperativo de regime de transparência fiscal, tal como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), Processo n.º 1508/13, 2.ª Secção, de 15-06-2016, – IRC – Transparência fiscal, consultável em www.dgsi.pt, a matéria colectável da sociedade, embora determinada segundo as regras do CIRC, imputada ao rendimento dos sócios para efeitos de IRC ou IRS, consoante os casos.

29. O que foi feito.

30. Daí que, com o devido respeito, que é muito, a Meritíisisma Juiz, ao julgar procedente a presente impugnação judicial haja incorrido em erro de julgamento.

31. Tudo, porque, no regime de transparência fiscal, e é disso que se trata, os rendimentos gerados pela sociedade transparente, são imputados aos rendimentos pessoais dos seus sócios, ou membros, não sendo aquela tributada em IRC.

32. Consequentemente, como decidido no Acórdão do STA, proc.º 01508/13, 2.ª Secção, de 15 de Junho de 2006, consultável em www.dgsi.pt, - “I - No regime de transparência fiscal a matéria colectável da sociedade sujeita a tal regime, embora determinada segundo as regras do CIRC, é imputada ao rendimento dos sócios para efeitos de IRC ou IRS, consoante os casos.

II - Daí que os sócios e a sociedade como sujeitos passivos que são tenham de ser notificados da correcção da matéria colectável quando efectuada pela AT nos termos do artigo 111 do CIRC em vigor à data dos factos e 66 nº 2 al c) e 67 do CIRS (…).”

33. E pago o correspondente imposto, extingue-se a respectiva relação jurídica por tal pagamento, como estabelecido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo (TCA) do Sul, in proc.º 00694/05, de 11 de Agosto, consultável em www.dgsi.pt: - “- (…) 5. Pago o correspondente imposto, extinguiu-se a respectiva relação jurídica por tal pagamento, não podendo mais a mesma vir a ser extinta por outra causa…”

34. No mesmo sentido, vide sff, Acórdão do STA, proc.º 26823, 2.ª Secção, de 13 de Março de 2002, consultável em www.dgsi.pt“I - Nos termos das disposições combinadas do art.º 5° e 78° do CIRC, as correcções à matéria colectável dos Agrupamentos Complementares de Empresas que determinem alteração dos montantes imputados aos respectivos membros, consequenciam, de imediato, as correspondentes modificações na liquidação efectuada a estes (…)” Sublinhado, nosso.

35. Estabelecendo a lei, atento o exposto, que a principal característica das STF é a da “neutralidade fiscal”, a qual pressupõe a não tributação (isenção em IRC) da sociedade, pois são os sócios/membros que a compõem que são tributados na respectiva cédula – IRC no caso das pessoas colectivas e IRS no caso de pessoas singulares.

36. Ou seja, os lucros/prejuízos fiscais ou a matéria colectável são imputados, para efeitos de tributação, aos respectivos sócios/membros, independentemente dos resultados (lucros/prejuízos) contabilísticos distribuídos.

37. Por isso, o que releva para efeitos de tributação em sede de IRS ou IRC, conforme a estrutura da sociedade e independentemente da sua forma jurídica (v.g. sociedades por quotas, sociedades anónimas), é, por assim dizer, o “resultado fiscal” (lucro/prejuízo fiscal ou matéria colectável) e não o resultado contabilístico.

38. Assim, e atentos os objectivos prosseguidos pelas STF, é da essência da transparência fiscal, que a sociedade funcione, no final do exercício, como um mero ente imputador de resultados, tributando-se os sócios/membros da STF como se esta não existisse, porque o que se pretende, é tributar os sócios/membros da STF como se esta não existisse, daí o art.º 12.º, do CIRC, prever a respectiva isenção.

39. Constata-se, deste modo, como refere Saldanha Sanches , a “desconsideração da personalidade jurídica” da STF para efeitos de tributação, reforçando: - “... e estamos pois perante um caso de não sujeição a IRC quanto à obrigação principal (dívida de imposto) e sujeição a IRC quanto às obrigações acessórias (deveres de cooperação).”.

40. Isto é, face ao previsto no art.º 12.º do CIRC, as STF apenas estão sujeitas às tributações autónomas de IRC (art.º 81.º) ou de IRS - art.º 73.º.

41. Neste quadro, atento todo o exposto, e salvo o devido respeito, que é muito, a decisão do Tribunal “a quo”:

a) Enferma de vício formal de contradição entre as suas permissas, vício que afecta a estrutura lógica da sentença e que constitui causa de nulidade prevista, designadamente, na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º, do do Novo Código do Processo civil (NCPC);

b) Coloca em causa a manutenção da matéria colectável apurada pelos Serviços, no montante de € 174.840, 46, matéria já consolidada na ordem jurídica, por decisão do Tribunal Tributário de Lisboa, de 7-05-2009, no processo de impugnação n.º 1299/07.7BELSB, desde há muito transitada em julgado, violando, designadamente do disposto, à data, na alínea b), do n.º 1, do artigo 83.º do CIRC;

c) Viola ainda, por colocar em causa decisão do Tribunal Tributário de Lisboa, de 7-05-2009, no processo de impugnação n.º 1299/07.7BELSB, desde há muito transitada em julgado, o disposto artigo 619.º NCPC, sob a epígrafe “Valor da sentença transitada em julgado””.

A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais extraiu as seguintes conclusões:

“I. A douta decisão recorrida não padece da causa de nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, porquanto não só não se prevê como tal a contradição entre as premissas da decisão, mas sim a oposição entre fundamentos e decisão, como, sobretudo, não ocorre na douta sentença recorrida qualquer contradição entre premissas.

II. A douta decisão recorrida, ao anular a liquidação adicional de IRS e de juros compensatórios de que a ora Recorrida foi objecto, com base na imputação da quota de 20% da matéria colectável apurada em relação à sociedade de advogados sujeita ao regime de transparência fiscal de que a Impugnante foi sócia no ano de 2004 não infringiu, em atenção ao decidido no proc. n.º 1299/07.7BELSB, o disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 83.º do CIRC nem no artigo 619.º do CPC, porquanto a decisão proferida neste processo 1299/07.7BELSB foi apenas a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, não havendo, pois, qualquer “consolidação” da matéria colectável apurada em relação à referida sociedade de advogados no ano de 2004.

III. A douta sentença recorrida, ao julgar procedente a impugnação deduzida pela ora Recorrida e ao decidir, por isso, a anulação da liquidação adicional de IRS do ano de 2004 por erro sobre os pressupostos de facto e de direito em que assenta a declaração oficiosa da matéria coletável e da inexistência de facto tributário, procedeu à devida realização do Direito, como era de Justiça”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 289.º, n.º 2, do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Há nulidade da sentença por “contradição entre as suas premissas, de facto e de direito”?

b) Há nulidade da sentença por omissão de pronúncia?

c) Há erro de julgamento, em virtude de a matéria coletável se ter consolidado em definitivo na ordem jurídica por força da decisão proferida nos autos n.º 1299/07.7BELSB do Tribunal Tributário de Lisboa (TTL), decisão essa não respeitada pelo Tribunal a quo?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

A. A Impugnante, no ano de 2004, encontrava-se coletada pela atividade de “advogados” e registada em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares pela categoria B-rendimentos profissionais, segundo as regras do regime simplificado (facto que se extrai do relatório de Inspeção Tributária a fls. 8 do Processo Administrativo Tributário-PAT apenso; facto não controvertido);

B. A Impugnante, no ano de 2004, era sócia da sociedade de Advogados “X….., RL” detendo uma participação social de 20% (facto não controvertido; facto que se extrai do relatório de Inspeção Tributária junto ao PAT apenso ; cfr. estatutos e alteração ao pacto social a fls. 27 a 36 do PAT apenso);

C. A Impugnante apresentou declaração modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2004, não tendo declarado quaisquer rendimentos da categoria B (facto não controvertido; facto que se extrai do relatório de Inspeção Tributária junto ao PAT apenso; facto não controvertido);

D. A sociedade de advogados “X…., RL” iniciou a sua atividade em 01 de maio de 1998, com a CAE 074110- Atividades Jurídicas, estando sujeita ao regime da transparência fiscal (facto que se extrai do relatório de Inspeção Tributária junto ao PAT apenso);

E. A 22 de setembro de 2005, a sociedade de advogados “X…., RL”, apresentou declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, respeitante ao IRC do exercício de 2003, tendo declarado os seguintes valores:

RESULTADO LÍQUIDO DO EXERCÍCIO: € 142.789,82

LUCRO TRIBUTÁVEL: € 174.840,46

TOTAL A PAGAR: € 1.237,72

(cfr. fls. 44 a 46 do PAT apenso);

F. A sociedade de advogados “X…., RL”, não apresentou declaração periódica de rendimentos de IRC, referente ao exercício de 2004, até 31 de maio de 2005 (facto não controvertido; facto que se extrai do relatório de Inspeção Tributária junto ao PAT apenso);

G. A 30 de novembro de 2005, e em resultado da falta de entrega da declaração de rendimentos modelo 22 referida na alínea antecedente, a Administração Tributária elaborou documento oficioso constando como matéria coletável a que serviu de base à autoliquidação do sujeito passivo no exercício de 2003, no valor total de € 174.840,46 (cfr. doc. de fls. 17 do PAT apenso);

H. E emitiu, em 12 de abril de 2006, liquidação oficiosa de IRC com o nº 2006 831 001…., respeitante ao IRC do exercício de 2004, no montante total de €49.045,37, tendo por base a matéria coletável de €174.840,37 declarada pela sociedade de advogados “X…., RL”, no exercício de 2003 (cfr. fls.42, 43 e 154 do PAT apenso; facto que se extrai da impugnação judicial deduzida pela sociedade de advogados e não impugnada a fls. 71 e seguintes dos autos);

I. A 30 de junho de 2006, a sociedade de advogados “X....., RL”, apresentou declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, respeitante ao IRC do exercício de 2004, assinalando no campo 7, do quadro 4, sob epígrafe “regimes de tributação dos rendimentos”, o regime de transparência fiscal, tendo declarado os seguintes valores:

RESULTADO LÍQUIDO DO EXERCÍCIO: € -40.235,04

PREJUÍZO PARA EFEITOS FISCAIS: € 30.738,41

TOTAL A PAGAR: € 2.230,37

(cfr. fls. 81 a 84 do PAT apenso);

J. A 21 de julho de 2006, e na sequência da receção da liquidação oficiosa referida na alínea H), a sociedade de advogados “X....., RL” apresentou requerimento solicitando a emissão de “certidão contendo os fundamentos da referida liquidação oficiosa de IRC, assim como toda a informação referente à mesma para cabal exercício dos seus direitos e garantias.” (cfr. doc. de fls. 47 do PAT apenso);

K. Em resposta ao pedido de certidão de fundamentos apresentado pela sociedade de advogados “X....., RL”, foi emitido pelo Serviço de Finanças de Lisboa 3, o ofício nº 99…., com data de 27 de julho de 2006, com o seguinte teor:

“ Em resposta ao requerimento apresentado por V. Exas em 21-07-2006, informa-se que a liquidação oficiosa de IRC do exercício de 2004 foi efetuada nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 83.º do CIRC em virtude de V. Exas não terem apresentado a declaração modelo 22 de IRC para o referido exercício. Esta alínea prevê que a liquidação oficiosa tem por base a matéria coletável do exercício mais próximo que se encontra determinada, que no V/ caso é o exercício de 2003, no qual a matéria coletável apurada foi de €174.840,46. Note-se, que esta fundamentação, consta na nota de liquidação rececionada por V. Exas em 08-05-2006.” (cfr. doc. de fls. 48 do PAT apenso);

L. A 10 de agosto de 2006, a sociedade de advogados “X....., RL”, apresentou reclamação graciosa contra o ato de liquidação oficiosa referido na alínea H), peticionando a sua anulação (cfr. petição de reclamação graciosa a fls. 2 e seguintes do PRG apenso cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);

M. A 17 de agosto de 2006, a Administração Tributária retificou a declaração oficiosa alterando apenas o regime de tributação dos rendimentos que passou a ser o da transparência fiscal, anulou a liquidação referida em H) e emitiu novo ato de liquidação com o nº 2006 891…., de 16 de agosto de 2006, no montante de 0,00, mantendo-se a matéria coletável fixada em €174.840,46 apurada ao abrigo do artigo 83.º, nº1, alínea b) do CIRC (cfr. informação a fls. 15 e 16 PAT apenso; facto que se extrai da sentença a fls. 133 e 134 dos autos);

N. De ofício nº 014765, de 16 de fevereiro de 2007, emitido pela Divisão de Justiça Administrativa, da Direção de Finanças de Lisboa, foi a sociedade de advogados “X....., RL” notificada para prestar esclarecimentos e documentação como se descreve:


(“texto integral no original;imagem”)

(cfr. fls. 126 do PAT apenso);

O. Na sequência da receção do ofício referido na alínea antecedente, a 8 de março de 2007, a sociedade de advogados “X....., RL”, apresentou cópia dos documentos que integram o processo de documentação fiscal, livro de atas, livros de inventário e balanços, livro de diários-razão balancete, demonstração de resultados do exercício de 2004 e mapa discriminativo dos acréscimos à matéria coletável, esclarecendo, designadamente, que:

“ Como se pode verificar pela demonstração de resultados existiu relativamente ao exercício de 2003 (que serviu de apuramento da liquidação oficiosa) um decréscimo significativo do montante dos serviços prestados em €322.561,92 (trezentos e vinte e dois mil quinhentos e sessenta e um euros e noventa e dois cêntimos) não acompanhado por igual decréscimo dos custos operacionais suportados.” (cfr. fls. 128 e seguintes do PAT apenso);

P. De ofício nº 026…, de 30 de março de 2007, emitido pela Divisão de Justiça Administrativa, da Direção de Finanças de Lisboa, foi a sociedade de advogados “X....., RL” notificada para juntar adicionalmente a seguinte documentação:


(“texto integral no original;imagem”)

(cfr. fls. 130 do PAT apenso);

Q. Na sequência da receção do ofício referido na alínea antecedente, a 18 de abril de 2007, a sociedade de advogados “X....., RL”, apresentou cópia dos documentos de suporte da contabilidade relativos ao exercício de 2004, bem como os relativos a dezembro de 2003, extratos de diários relativos a dezembro de 2003, incluindo os movimentos de encerramento, bem como o balancete analítico final relativo ao exercício de 2004 (cfr. fls. 132 e seguintes do PAT apenso);

R. A sociedade de advogados “X....., RL”, deduziu impugnação judicial do indeferimento tácito da reclamação graciosa melhor referida em L), junto do Tribunal Tributário de Lisboa, que correu termos com o nº 1299/07.7 BELSB

(cfr. fls. 71 e seguintes do PAT apenso);

S. A 07 de maio de 2009, foi proferida sentença no âmbito do processo nº 1299/07.7 BELSB, referido na alínea antecedente, tendo sido extinta a instância por inutilidade superveniente da lide em face da anulação referida em M) (cfr. fls. 133 e 134 dos autos);

T. A 25 de julho de 2008 e tendo por base a Ordem de Serviço nº OI2008…, a Impugnante foi objeto de ação inspetiva interna de âmbito parcial ao IRS de 2004 tendo sido elaborado projeto de relatório de Inspeção Tributária no âmbito do qual foram propostas correções técnicas aos rendimentos auferidos da categoria B, no valor de €34.968,09 (cfr. fls. 2 a 12 do PAT apenso);

U. Na sequência da receção do projeto de relatório de Inspeção Tributária referido na alínea antecedente, a Impugnante exerceu o direito de audição constando do seu teor, designadamente, o seguinte:


(“texto integral no original;imagem”)

(cfr. fls. 33 a 35 do PAT apenso);

V. Em resultado da ação da inspeção tributária referida em T), e após exercício de audição prévia, foi elaborado, em 16 de setembro de 2008, o Relatório Final de Inspeção Tributária, no âmbito do qual se mantiveram as correções meramente aritméticas aos rendimentos auferidos da categoria B no valor de €34.968,09, constando do seu teor, designadamente, o seguinte:


(“texto integral no original;imagem”)

( cfr. relatório da Inspeção Tributária a fls. 2 a 12 do PAT apenso );

W. Do Relatório a que alude a alínea anterior e relativamente ao item designado “Direito de Audição/Fundamentação” extrai-se o seguinte teor:


(“texto integral no original;imagem”)

( cfr. relatório da Inspeção Tributária a fls. 2 a 12 do PAT apenso );

X. Do Relatório da Inspeção Tributária a que alude a alínea V), consta o Parecer do Chefe de Equipa, do qual resulta, designadamente, o seguinte:

“ Proposta de correção

Imputação da quota parte correspondente à sócia H…., ou seja, 20% da matéria coletável apurada oficiosamente na sociedade “X....., RL” no montante de €174.840,09 correspondendo à sócia €34.968,09, a tributar como categoria B-artº 20.º, nº2 do CIRS. O rendimento líquido total é igual a €38.093,09 (€3.125,00+€34.968,09)”

( cfr. relatório da Inspeção Tributária a fls. 2 e 3 do PAT apenso );

Y. A 13 de outubro de 2008, foi proferido despacho pela Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Setúbal, por delegação do Diretor, com o seguinte teor:

“Concordo com os fundamentos de facto e de direito expressos no relatório de ação inspetiva e parecer elaborados para o efeito.

Notifique-se nos termos do art.º 77.º da LGT e art 62.º do RCPIT.” (cfr. despacho a fls. 2 do PAT apenso);

Z. De Ofício n.º 30…, da Direção de Finanças de Setúbal, foi a Impugnante, notificada do Relatório de Inspeção Tributária e respetivos anexos, entre eles, a Informação nº 9…./2006 da Direção de Finanças de Lisboa, integrando o Anexo 2 e com o seguinte teor:


(“texto integral no original;imagem”)

(cfr.doc. de fls. 14 a 16 do PAT apenso);

AA. Em 30 de setembro de 2008, e na sequência das correções referidas em V) supra, foi efetuada pela Direção-Geral dos Impostos, a liquidação de IRS referente ao ano 2004, n.º 2008 50046…., que se dá por integralmente reproduzida, apurando um valor de imposto a pagar de €9.376,14 e juros compensatórios de €1.168,49, tudo no valor global a pagar de € 10.544,63 (cfr. demonstração de liquidação de IRS a fls. 33 dos autos);

BB. A liquidação referida em AA), deu origem à demonstração de acerto de contas efetuada em 03 de outubro de 2008, com o nº 2008 00001…. que se dá por integralmente reproduzida, apurando um valor a pagar de €10.352,43, até 12 de novembro de 2008 (cfr. demonstração do acerto de contas, a fls. 34 dos autos);

CC. A 07 de dezembro de 2008, foi instaurado o processo de execução fiscal nº 340920080…., contra a Impugnante para cobrança coerciva da liquidação de IRS referida em AA), cuja quantia exequenda ascendia a €10.352,43 (cfr. fls. não numeradas do PAT apenso);

DD. A Impugnante deduziu a presente impugnação judicial junto do Serviço de Finanças de Almada 3, a 03 de fevereiro de 2009 (cfr. aposição a fls. 2 da p.i.);

EE. A 09 de março de 2009, a Impugnante prestou garantia bancária no valor de €13.436,18 visando a suspensão do processo de execução fiscal (facto expressamente assumido no requerimento de fls. 119 a 121 dos autos e não impugnado e facto que se extrai do print de tramitação informática junto do processo executivo a fls. não numeradas);

FF. O processo de execução fiscal nº 34092008011….. encontra-se suspenso até à decisão dos presentes autos (facto expressamente assumido no requerimento de fls. 119 a 121 dos autos e não impugnado e facto que se extrai do print de tramitação informática do processo executivo a fls. não numeradas);

GG. A sociedade de advogados “X....., RL”, elaborou demonstração de resultados apresentando em resumo os seguintes valores:

(cfr. demonstração de resultados a fls. 135 do PAT apenso cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);

HH. A sociedade de advogados “X....., RL”, elaborou balanço em 31 de dezembro de 2004, do qual resulta um passivo de €455.940,20 e um valor total do capital próprio e passivo no montante de €1.260.901,07 (cfr. fls. 136 a 138 do PAT apenso cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);

II. A sociedade de advogados “X....., RL”, em anexo ao balanço e à demonstração de resultados apresentou no que para os autos releva, designadamente, o seguinte:







(cfr. demonstração de resultados a fls. 139 a 143 do PAT apenso cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);

JJ. A 10 de janeiro de 2005, a sociedade de advogados “X....., RL”, lavrou a ata número sete onde foi deliberado o seguinte:


(“texto integral no original;imagem”)

(cfr. ata a fls. 184 e 185 do PAT apenso)”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Não existem factos alegados não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto efetuou-se com base no exame das informações oficiais e dos documentos, não impugnados, juntos aos autos e constantes do processo administrativo tributário, e do processo administrativo referente ao processo de reclamação graciosa apresentado pela sociedade de advogados “X....., RL”, contra a liquidação oficiosa referida na alínea H) da factualidade assente, tudo conforme se refere em cada uma das alíneas do probatório. Relativamente ao depoimento das testemunhas o mesmo não conferiu uma mais valia para os presentes autos, uma vez que nenhuma das testemunhas arroladas tinha conhecimento da realidade profissional e do decréscimo de trabalhos realizados no ano de 2004 e que levou ao apuramento do prejuízo fiscal declarado. Ambas as testemunhas ouvidas revelaram conhecer os documentos contabilísticos juntos pela sociedade de advogados e os prejuízos fiscais declarados, porém só conseguem afirmar o que neles consta, mas não a realidade fáctica societária subjacente a eles.”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da nulidade da sentença por “contradição entre as premissas” da sentença

Entende, desde logo, a Recorrente que se verifica nulidade da sentença, por “vício formal de contradição entre as suas premissas”, que, na perspetiva da Recorrente, afeta a estrutura lógica da sentença e constitui nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. c), do CPC.

Vejamos.

Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, constitui nulidade da sentença a oposição dos fundamentos com a decisão (cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. c), do CPC).

Esta nulidade consubstancia-se na contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença(1), ou seja, na circunstância de o iter constante da sentença, na sua motivação, estar em contradição com a decisão a final proferida (2).

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.11.2014 (Processo: 0308/14), “… esta nulidade ocorre quando a construção da sentença é viciosa, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas ao resultado oposto. Isto é, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma oposta à que logicamente deveria ter extraído: a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.

Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, o que a Recorrente perspetiva como nulidade na verdade poder-se-á configurar em abstrato como erro de julgamento, mas não nulidade.

Com efeito, a Recorrente refere que, em sede de saneamento, o Tribunal a quo considerou que “em sede de correções efetuadas a uma sociedade sujeita ao regime de transparência fiscal a legitimidade processual para discutir a legalidade das mesmas circunscreve-se na esfera do sujeito passivo a quem são imputadas as correções” e, em sede de apreciação do mérito, permitiu à impugnante a discussão da legalidade da liquidação, pondo em causa matéria consolidada por decisão do TTL proferida no âmbito dos autos de impugnação n.º 1299/07.7BELSB.

Cumpre desde já salientar que o que resulta do saneamento, a propósito da apreciação da existência de causa prejudicial, alegada pela FP em sede de contestação, é que o Tribunal a quo considerou que a mesma nunca se verificaria, porquanto quem tem legitimidade processual para discutir a legalidade das correções é o sujeito passivo a quem as mesmas são imputadas (ou seja, in casu, a impugnante – cfr. art.º 6.º, n.º 1, do CIRC – pois que apenas em relação a ela há, por força do próprio regime, liquidação de imposto), o que está em perfeita consonância com a posição assumida em sede de apreciação da situação material controvertida.

Aliás, todo o discurso fundamentador da sentença é coerente, explicando de que forma e por que motivo a impugnante detém legitimidade, o que, aliás, nem sequer foi posto em causa.

Logo, não se verifica qualquer oposição dos fundamentos com a decisão, nos termos invocados pela Recorrente.

III.B. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Entende o Recorrente que ocorreu omissão de pronúncia do Tribunal a quo, uma vez que, na sua perspetiva, este não se pronunciou sobre questão que devia apreciar, concretamente não respondeu à questão atinente à possibilidade de a Recorrida poder pôr em causa a decisão proferida a 07.05.2009, no TTL, no âmbito dos autos n.º 1299/07.7BELSB.

Vejamos.

Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há omissão de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar (cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC).

As questões de que o juiz deve conhecer são ou as alegadas pelas partes ou as que sejam de conhecimento oficioso.

In casu, desde já se refira que não se verifica a mencionada nulidade. Com efeito, o Tribunal recorrido pronunciou-se, desde logo, em sede de saneamento, sobre a existência de causa prejudicial, alegada pela ora Recorrente em sede de contestação, desde logo afirmando não existir tal causa prejudicial, por considerar assistir legitimidade à Recorrente para discutir a legalidade das correções. Em sede de apreciação do mérito da impugnação, os termos em que essa legitimidade se consubstancia estão claramente explanados.

O facto de o Tribunal a quo ter um entendimento distinto daquele que é advogado pelo Recorrente e de não retirar da decisão proferida nos autos n.º 1299/07.7BELSB as consequências retiradas pela Recorrente não consubstancia omissão de pronúncia, mas, quando muito, erro de julgamento.

Logo, não se verifica qualquer omissão de pronúncia, nos termos invocados pela Recorrente.

III.C. Do erro de julgamento no que respeita à matéria coletável no montante de 174.840,46 Eur.

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo laborou em erro, na medida em que o montante de 174.840,46 Eur. atinente à matéria coletável já está consolidado na ordem jurídica, por decisão do TTL de 07.05.2009, nos autos de impugnação n.º 1299/07.7BELSB, decisão essa não posta em causa pela sociedade aí impugnante.

Vejamos então.

Invoca a Recorrente, ainda que inominadamente, a autoridade de caso julgado, adveniente, em seu entender, do decidido nos autos de impugnação n.º 1299/07.7BELSB.

Nos termos do art.º 619.º, n.º 1, do CPC:

“1 - Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.

Respeita a norma contida nesta disposição legal ao caso julgado material, que ocorre quando a decisão transitada recai sobre o mérito da causa(3). Assim, a definição dada à relação material controvertida tem força dentro e fora do processo(4).

As exigências de segurança jurídica têm sido apontadas como fundamento primordial do caso julgado material(5), sendo um garante da tendencial imutabilidade das decisões transitadas em julgado, fundamental até em termos de manutenção da paz social.

O caso julgado material pode refletir uma dupla função, negativa ou positiva(6). Assim, a função negativa do caso julgado material está inerente à exceção de caso julgado, consubstanciando-se no impedimento de a mesma causa ser apreciada pelo Tribunal numa nova ação. Já a função positiva respeita à chamada autoridade do caso julgado, através da qual se obsta a que a situação jurídica material definida por sentença ou acórdão transitados em julgado possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença ou acórdão(7). Ou seja, a autoridade do caso julgado impõe à segunda decisão de mérito o decidido na primeira como sendo seu pressuposto indiscutível, subjacente a uma relação de prejudicialidade entre o objeto de ambas as decisões(8).

Distinto do caso julgado material é o caso julgado formal, que encontra acolhimento no art.º 620.º do CPC, nos termos de cujo n.º 1 “[a]s sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo”. Assim, quando a decisão proferida recaia apenas sobre a relação processual, forma-se caso julgado formal, cuja força obrigatória é apenas circunscrita ao processo – valor intraprocessual do caso julgado formal(9). Daí que a estabilidade inerente à figura do caso julgado seja menos intensa em situações de caso julgado formal(10).

Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, desde já se adiante que carece de qualquer sustentação o alegado pela Recorrente, desde logo e antes de mais em virtude de a decisão proferida nos autos de impugnação n.º 1299/07.7BELSB ter apenas formado caso julgado formal, que, como já referimos, tem efeitos exclusivamente intraprocessuais.

Detalhando, consideremos os factos pertinentes, que não são controvertidos nem foram impugnados:

a) A sociedade de advogados X....., RL, da qual a Recorrida era sócia, não apresentou declaração periódica de rendimentos de IRC, referente ao exercício de 2004 (cfr. factos B. e F.);

b) Nessa sequência, a AT emitiu liquidação oficiosa de IRC n.º 2006 831….., respeitante ao exercício de 2004, no montante total de 49.045,37 Eur., tendo por base a matéria coletável de 174.840,37 Eur. (cfr. facto H.);

c) A 30.06.2006 a mesma sociedade de advogados apresentou declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, atinente ao exercício de 2004, onde, para além de ter indicado estar sujeita ao regime da transparência fiscal, declarou resultado líquido do exercício negativo e prejuízo para efeitos fiscais (cfr. facto I);

d) A sociedade de advogados referida apresentou em 10.08.2006 reclamação graciosa da liquidação oficiosa de IRC relativa ao exercício de 2004, no âmbito da qual prestou esclarecimentos e juntou documentação; na sequência do seu indeferimento tácito, deduziu impugnação judicial junto do TTL, à qual foi atribuído o n.º 1299/07.7BELSB (cfr. factos L. e N. a R.);

e) Entretanto, a Administração Tributária (AT) anulou a liquidação oficiosa n.º 2006 831 ….e emitiu liquidação n.º 2006 89…., no montante de 0,00 Eur., mantendo-se a matéria coletável fixada em 174.840,46 Eur. apurada ao abrigo do art.º 83.º, n.º 1, alínea b) do CIRC (cfr. facto M.);

f) Em virtude da anulação da liquidação referida, foi proferida sentença no âmbito dos autos n.º 1299/07.7 BELSB, nos quais foi declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide (cfr. facto S.);

g) Em 2008, foi a Recorrida objeto de ação inspetiva interna de âmbito parcial ao IRS de 2004, no âmbito da qual foram efetuadas correções meramente aritméticas aos rendimentos auferidos da categoria B no valor de 34.968,09 Eur., calculadas considerando uma matéria coletável da sociedade de advogados sujeita ao regime de transparência fiscal fixada em 174.840,46 Eur., tendo vindo a ser emitida a liquidação de IRS impugnada, no valor global de 10.544,63 Eur. (cfr. factos T. a AA.).

O Tribunal a quo considerou, em síntese, que a liquidação impugnada padecia de erro sobre os pressupostos de facto, porquanto a AT não considerou os elementos facultados pela sociedade de advogados em sede de reclamação graciosa apresentada pela sociedade transparente e após ter apresentado ela própria declaração de rendimentos modelo 22 da qual resultava uma situação de prejuízo fiscal.

Com efeito, atento o regime da transparência fiscal, é imputada aos sócios, integrando-se no seu rendimento tributável para efeitos de imposto sobre o rendimento, a matéria coletável da sociedade transparente (cfr. art.º 6.º, n.º 1, do CIRC). Tal circunstância redundará na emissão de liquidações de imposto sobre o rendimento na esfera jurídica dos sócios, per se impugnáveis, sendo, em sede impugnatória, possível aferir do erro sobre os pressupostos, maxime do excesso na matéria coletável ou da inexistência de facto tributário.

Foi neste seguimento que o Tribunal a quo considerou que a sociedade de advogados transparente, ainda em sede administrativa, demonstrou a existência dos prejuízos fiscais que declarara em momento ulterior ao da emissão da liquidação oficiosa. Conclui, a final, pela verificação de erro sobre os pressupostos de facto e de direito e pela inexistência de facto tributário, conducente à anulação da liquidação impugnada.

Ora, relativamente ao itinerário cognoscitivo do Tribunal a quo, aqui sumariamente descrito, a Recorrente nada disse, nunca pondo em causa a legitimidade processual da impugnante nem o constante da decisão recorrida a propósito dessa mesma legitimidade (atendendo às particularidades atinentes à transparência fiscal).

Com efeito, a Recorrente limita-se a defender que foi posta em causa a decisão proferida no âmbito dos autos n.º 1299/07.7BELSB, que, no entender da FP, consolidou “em definitivo, o apuramento da matéria colectável então fixada”.

Este entendimento, no entanto, não tem qualquer acolhimento.

Com efeito, como já se referiu, os autos n.º 1299/07.7BELSB foram instaurados na sequência do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela sociedade transparente que, por seu turno, versou sobre a primitiva liquidação oficiosa de IRC emitida.

Por força da circunstância de esta liquidação ter sido anulada, foi proferida decisão nos mencionados autos no sentido da inutilidade superveniente da lide, conducente à extinção da instância, decisão essa que nada decide quanto à matéria coletável, limitando-se a concluir nos termos já referidos, em face da mencionada anulação, fazendo apenas uma menção ao facto de ter sido emitida a liquidação 2006 89100…, com valor 0,00 Eur. e matéria coletável de 174.840,46 Eur.

Ora, nos termos do art.º 277.º, al. e), do CPC, a impossibilidade ou a inutilidade superveniente da lide é uma causa da extinção da instância e sucede quando “… a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida”(11).

Assim, uma decisão judicial que se pronuncie sobre a ocorrência da impossibilidade ou a inutilidade superveniente da lide é uma decisão de forma, na medida em que não é apreciada e decidida a relação material controvertida.

Pretender extrair de afirmação contida na decisão proferida nos autos n.º 1299/07.7BELSB [segundo a qual “[e]ssa liquidação foi totalmente anulada pela Administração fiscal em 17/08/2006 e efectuada nova liquidação (n.º2006 8910…., de 16/08/2006), no montante de € 0,00, mantendo-se a matéria colectável fixada em € 174.840,46”] uma decisão de mérito sobre a relação controvertida é ostensivamente uma extrapolação sem qualquer fundamento.

Como tal, tratando-se de situação de decisão relativamente à qual apenas se forma caso julgado formal, a sua eficácia é intraprocessual, nos termos já explanados anteriormente.

Logo, o alegado pela Recorrente não tem qualquer sustentação, não estando, de modo algum, coberta pela autoridade do caso julgado a determinação da matéria coletável, que não foi objeto de qualquer apreciação de mérito.

Assim, bem andou o Tribunal a quo ao apreciar de mérito a questão controvertida como apreciou.

Face ao exposto, não assiste razão à Recorrente, não padecendo a sentença recorrida dos vícios que lhe são assacados.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.

Lisboa, 05 de junho de 2019

(Tânia Meireles da Cunha)

(Anabela Russo)

(Vital Lopes)

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(1) Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, 6.ª Edição, Vol. II, Áreas Editora, Lisboa, 2011, pp. 361 e 362; José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 333.
(2) V., exemplificativamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.04.2013 (Processo: 0969/12) e de 15.09.2010 (Processo: 01149/09) e o Acórdão deste TCAS, de 18.06.2013 (Processo: 06121/12
(3) Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. V, p. 156.
(4) A este respeito, v. Manuel de Andrade, Noções Elementares de processo Civil, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1956, p. 285.
(5) A este respeito, v. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. III, p. 94, Manuel de Andrade, Noções Elementares de processo Civil, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1956, pp. 286 e 287, e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, 1985, Coimbra Editora, Coimbra, p. 705.
(6) V. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. III, p. 93. Distinguindo as situações consoante a relação entre o objeto da decisão transitada e o do processo posterior e, nesse seguinte, discernindo entre situações com relação de identidade, situações com relações de prejudicialidade e situações com relações de concurso, v. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, 2.ª Ed., Lex. Lisboa, 1997, pp. 574 a 577.
(7) Cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.11.2018 (Processo: 4263/16.1T8VCT.G1.S1), 27.02.2018 (Processo: 2472/05.8 TBSTR.E1)
(8) V. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.02.2019 (Processo: 4043/10.8TBVLG.P1.S1), de 13.11.2018 (Processo: 4263/16.1T8VCT.G1.S1), e Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 28.02.2019 (Processo: 2143/05.5BELSB).
(9) Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, 2.ª Ed., Lex. Lisboa, 1997, pp. 569 e 570.
(10) Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. V, p. 157.
(11) José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 546.