Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:941/18.9BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:12/13/2019
Relator:MÁRIO REBELO
Descritores:NOTIFICAÇÃO PARA CUMPRIMENTO DE CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE.
Sumário:A notificação prevista alínea b) do nº 4 do art.º 105.º do RGIT configura uma condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal, não constituindo notificação de decisão de aplicação de coima para efeito do disposto no artº 80º do RGIT.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

RECORRENTE: A......... - M........., LDA.
RECORRIDA: Fazenda Pública.
OBJECTO DO RECURSO: Sentença proferida pela MMª Juiz do TAF de Sintra que rejeitou o recurso judicial deduzido por A......... - M........., LDA, na sequência da notificação efectuada pelo Serviço de Finanças de Oeiras 2 “nos termos da alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT”, no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 35222018060000038...., por falta de pagamento de IVA, referente ao período de 2017/0…T, no valor de € 345.912,64.
CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES:
«I. No presente caso, discute-se a questão do meio mais adequado para reagir à notificação nos termos 105º nº4 alínea b) do RGIT.
II. Sendo que caso em concreto, a recorrente recorreu nos termos do artº 80º do RGIT.
III. Entendo o douto tribunal que tal não é admissível.
IV. Ora, na verdade, a dita comunicação feita, mencionava expressamente “efectuar pagamento (…) no prazo de 30 dias (…).”
V. Sendo de senso comum, que tal notificação é para notificar do pagamento, logo resulta de uma decisão de coima.
VI. A verdade é que se não fosse uma aplicação de coima, a comunicação bastava-se com a informação do valor me dívida, mas não!
VII. A comunicação é clara quanto à necessidade de pagamento.
VIII. A condição de punibilidade prevista no artº 105º nº4 do RGIT, não é a notificação que deve ser feita para pagamento, mas sim a atitude que o contribuinte toma perante esse procedimento (de notificação) que agora se exige.
IX. Parece-nos ser excessivamente formalista colocar a tónica na notificação; o que releva é a regularização, no todo, da situação tributária em prazo expressamente concedido para o efeito”
X. Assim sendo, mal andou o douto Tribunal ao entender que a notificação, visava a comprovação da aludida condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal.
XI. Aliás, denota-se um comportamento a roçar o abuso de direito, se entendermos como tal.
XII. Assim, mal anda o douto tribunal ao referir o seguinte “Mas, considerando o teor integral do ofício não restam dúvidas de que a notificação em causa não foi de uma qualquer decisão de aplicação da coima, mas antes ordenada com vista à comprovação da aludida condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal.
XIII. Mais, estamos perante uma situação de restrição de acesso ao Direito e violação grave da Igualdade de Armas e do principio basilar do Direito Democrático, o Princípio do Contraditório.
XIV. A rejeição do recurso, com base nos fundamentos expendidos, constitui uma grave sanção, altamente lesiva dos direitos da recorrente, por lhe coarctar o poder de acção e reação em processo judicial onde se discutem os seus direitos legítimos e legalmente atendíveis.
XV. Pois que, qualquer outra decisão ou tão-somente manutenção da decisão que antecede pode representar uma violação do direito do contraditório e princípio de igualdade de armas, previsto processualmente e dignificado constitucionalmente, enquanto garantia das partes e corolário de confiança e segurança jurídica.
Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se a Vª Exª a revogação da sentença que rejeitou o recurso e a sua substituição por decisão que dê provimento ao recurso apresentado pela recorrente, assim dignificando a tão douta e costumada JUSTIÇA!»

CONTRA ALEGAÇÕES.
Não houve.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste TCA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II QUESTÕES A APRECIAR.
O objecto do presente recurso consiste em saber se a decisão errou ao rejeitar o recurso interposto pela Recorrente contra a notificação do que foi entendido como decisão de aplicação de coima.

III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A sentença fixou os seguintes factos provados e respetiva motivação:
A. Em 15.03.2018, com base no auto de notícia n.º 20180089…/2018, foi instaurado no Serviço de Finanças de Oeiras - 2, contra a ora Recorrente, o processo de contra- ordenação n.º 35222018060000038...., com fundamento na falta de pagamento de IVA, relativo ao período de 2017…6T, no valor de € 345.912,64 – cfr. fls. 5 e 6 dos autos (referências ao suporte físico);

B. Através do ofício datado de 19.04.2018, foi a ora Recorrente notificada, no âmbito do processo de contra-ordenação referido na alínea antecedente, “nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias - RGIT” para “efetuar o pagamento da(s) prestação(ões) em falta, acrescida(s) dos respetivos juros de mora e coima aplicável no prazo de 30 dias”, indicando que “O valor da coima é de € 45.000,00, quantificado nos termos dos artigos 105º, n.º 4, alínea b), 114º e 26º do RGIT” (cfr. ofício, a fls. 10 dos autos);

C. Por e-mail datado de 03.08.2018, a Recorrente deu entrada no Serviço de Finanças de Oeiras - 2 do presente recurso judicial – cfr. fls. 13 a 20 dos autos.

IV FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Em 15/3/2018 foi instaurado no Serviço de Finanças de Oeiras 2 o processo de contraordenação com fundamento na falta de pagamento de IVA relativo ao período 2017…6T, no valor de € 345.912,64.
Mediante ofício de 19.04.2018, foi a ora Recorrente notificada, “nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias - RGIT” para “efetuar o pagamento da(s) prestação(ões) em falta, acrescida(s) dos respetivos juros de mora e coima aplicável no prazo de 30 dias”, indicando que “O valor da coima é de € 45.000,00, quantificado nos termos dos artigos 105º, n.º 4, alínea b), 114º e 26º do RGIT”.

Aparentemente, a arguida Recorrente interpretou esta notificação como sendo a notificação da decisão de aplicação de coima e dela recorreu para o TAF de Sintra.

O TAF de Sintra rejeitou o recurso com fundamento em não haver nenhuma coima aplicada nos autos de contra ordenação mas sim a notificação referida na alínea b) do n.º 4 do art.º 105º RGIT aditada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2007), [que] estabeleceu, assim, uma nova condição objectiva de punibilidade, para além da que já resultava da actual alínea a), referindo o ac. do STA n.º 01180/17, de 3/5/2018 em abono da decisão.

A Recorrente discorda. Reitera que se não fosse uma aplicação de coima, a comunicação bastava-se com a informação do valor em dívida, mas não! E que a condição de punibilidade prevista no art.º 105º n.º 4 do RGIT, não é a notificação que deve ser feita para pagamento, mas sim a atitude que o contribuinte toma perante esse procedimento (de notificação) que agora se exige.
E acrescenta que colocar a tónica na notificação é excessivamente formalista. O que releva é a regularização, no todo, da situação tributária em prazo expressamente concedido para o efeito.
Entender-se que a notificação visava a comprovação da condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal é um comportamento que roça o abuso de direito.
E constitui uma restrição de acesso ao Direito e violação grave do princípio da igualdade de armas, do contraditório, da confiança e segurança jurídicas.
Concluiu que a rejeição do recurso com estes fundamentos é altamente lesiva dos direitos da Recorrente, por lhe coartar o poder de ação e reação em processo judicial onde se discutem os seus direitos legítimos e legalmente atendíveis.

Não tem razão a Recorrente, como tentaremos demonstrar.

O artº 105º do RGIT tipifica como crime de abuso de confiança fiscal a conduta daquele que não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

Este ilícito criminal é composto pelos seguintes elementos típicos: (i) que o agente esteja obrigado a entregar ao credor tributário (administração fiscal) determinada prestação tributária de valor superior a € 7.500; (ii) que essa prestação tributária tenha sido deduzida nos termos da lei tributária e (iii) que o agente não proceda à entrega de tal prestação e que o faça dolosamente.

Para além dos elementos típicos do crime, o n.° 4 do artigo 105.° exige a verificação de duas condições objectivas de punibilidade:
- que o agente não proceda à entrega da prestação após terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação [alínea a];
- que a prestação, que tiver sido comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, não seja paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito [alínea b].

A Recorrente foi notificada através do ofício referido na al. b) do probatório, nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT, para "efetuar o pagamento da(s) prestação(ões) em falta, acrescida(s) dos respetivos juros de mora e coima aplicável no prazo de 30 dias .... ", mais se referindo que "[o] valor da coima é de € 45.000,00, quantificado nos termos dos artigos 105°, n.º 4, alínea b), 114° e 26° do RGIT.”

Resulta também daquela notificação que «os factos que deram origem à instauração do processo acima identificado são susceptíveis de consubstanciar indícios da prática do crime de abuso de confiança fiscal».

Na sequência de tal notificação a recorrente interpôs recurso ao abrigo do artº 80º do RGIT.

Porém, atento todo o teor do ofício não restam dúvidas de que a notificação em causa não foi de uma qualquer decisão de aplicação da coima, mas antes ordenada com vista à comprovação da condição objetiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal.

Ora esta notificação da Administração Tributária, prevista alínea b) do nº 4 do art.º 105.° do RGIT, configura uma condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal. E a redacção do preceito é clara quando se refere à coima aplicável e não à coima aplicada.

Nos termos do art.º 80º do RGIT, as decisões de aplicação das coimas e sanções acessórias podem ser objecto de recurso para o tribunal de 1ª instância, no prazo de 20 dias após a sua notificação, a apresentar no serviço tributário onde tiver sido instaurado o processo de contraordenação.

Ou seja, pressuposto essencial para que seja admissível recurso de aplicação de coima, é que tenha sido aplicada uma coima.

Não tendo sido ainda aplicada qualquer coima à Recorrente, nos termos e para os efeitos do art. 80.º do RGIT, o recurso judicial é inadmissível, como bem rematou a MMª juiz "a quo"[1].

A sentença não merece censura.

Também não se verifica por outro lado qualquer violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva, da igualdade de armas, restrição de acesso ao Direito, violação grave do princípio da igualdade de armas, do contraditório, da confiança e segurança jurídicas. Em primeiro lugar, a notificação não constitui em si qualquer decisão lesiva dos direitos do Recorrente, ainda que potencial.

Em segundo lugar, a lei ao permitir apenas o recurso da decisão de aplicação de coima impede o tribunal de apreciar neste processo qualquer notificação que não seja a notificação de uma decisão de aplicação de coima.
E essa não existiu.

Por conseguinte, improcedendo todas as conclusões de recurso, a sentença deverá ser confirmada.

V DECISÃO.

Termos em que acordam, em conferência, os juízes da segunda sub secção de contencioso Tributário deste TCA em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 13 de dezembro de 2019.




(Mário Rebelo)



(Patrícia Manuel Pires)



(José Vital Brito Lopes)


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[1] No mesmo sentido, além do ac. do referido ac. do STA n.º 01180/17, de 3/5/2018, o ac. 00611/08.6BEVIS – AVEIRO de 04-03-2010
Sumário: I - Pela alínea b) do n.º 4 do art. 105.º, do RGIT, o legislador veio adicionar uma segunda condição objectiva de punibilidade ao crime de abuso de confiança fiscal, prescrevendo que a não entrega da prestação tributária só será punível se não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.
II - À notificação efectuada ao abrigo dessa disposição legal não subjaz, pois, a aplicação de qualquer coima.
III - Consequentemente, dessa notificação e da decisão que lhe está subjacente não cabe recurso judicial ao abrigo do art. 80.º do RGIT, meio processual adequado para impugnar a decisão administrativa que fez a aplicação de uma coima.