Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:98/09.6BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:03/11/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IRS
AJUDAS DE CUSTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário:
I. Em regra, os valores pagos a título de ajudas de custo, dado o caráter compensatório que lhes é reconhecido (compensação por despesas que o trabalhador é obrigado a suportar, designadamente por motivo de deslocações), não se integram no conceito de remuneração, para efeitos de IRS.

II. Gozando as declarações de rendimentos apresentadas pelos contribuintes de uma presunção de veracidade, cabe à AT de forma sustentada afastar tal presunção, o que não ocorre quando a fundamentação do ato se consubstancia em afirmações genéricas e não especificadas.

III. A circunstância de terem sido pagos valores, a título de ajudas de custo, ao longo de todo o ano e com valores em parte aproximados não é suficiente para a caraterização de tais valores como remuneração para efeitos de IRS.

IV. A salvaguarda do interesse público, ao nível tributário, não se reduz ao interesse na mera arrecadação de receitas, configurando-se, sim, como salvaguarda desse interesse, uma atuação em respeito pelos princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade e em respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 09.01.2020, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por A..... (doravante Recorrido ou Impugnante), que teve por objeto as liquidações de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) atinentes aos anos de 2004 e 2005.

Para o efeito, apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“A. O presente recurso reage contra a douta sentença proferida nos presentes autos que julgou procedente a Impugnação Judicial apresentada por A....., das liquidações adicionais de IRS do ano de 2004 e 2005 com o número ..... e ....., no valor de € 6.389,92 e € 5.147,07.

B. Ora, as ajudas de custo (o seu caráter retributivo ou não retributivo) enquanto conceito jurídico, têm a sua génese no direito civil/laboral e foi densificado em termos doutrinários e jurisprudenciais por aquela jurisdição, existindo, a nosso ver, tanto quanto o conhecimento que este RFP tem (ou não tem) da matéria marcadas divergências de entendimento dignas de registo que contendem com a natureza ontológica e/ou dogmática, como seja, por exemplo, a natureza presuntiva do rendimento e da perceção regular e permanente dos montantes pagos ainda que se desconheçam os motivos que impedem o próprio direito tributário, as suas especificidades, e, os fins por este prosseguidos de aderir posição sufragada pela jurisdição comum.

C. Esta caraterística antiabusiva das tributações autónomas de que as ajudas de custo são um exemplo paradigmático, se verificadas, adere à natureza “anti-sistémica”, e presuntiva, apontada pelo Prof. Saldanha Sanches e pela jurisprudência do Colendo STA que o cita.

D. Ora, paradoxalmente, aquela jurisprudência que segue a posição sufragada relativamente às tributações autónomas (de que as ajudas de custo são um exemplo) e que comungam dos receios ali manifestados relacionados com a fraude e evasão fiscais por via de artificiosos mecanismos de redução do lucro tributável expressos na concessão de vantagens ou remunerações em espécie aos trabalhadores incrementando desta forma o rendimento destes com menor oneração da empresa e defraudando, assim, a Fazenda Pública e da necessidade sentida pelo legislador em prevenir estas situações…, é a mesma jurisprudência que relativamente à prova dos pressupostos relativos às ajudas de custo/remuneração e à sua natureza ressarcitória ou remuneratória, no fundo:

- menospreza o devido preenchimento dos mapas das ajudas de custo legalmente previstos no CIRC, permitindo que quem procede ao preenchimento dos boletins itinerários não precise de justificar o motivo que está na base da sua realização concedendo que a irregularidade dos mesmos, por si só, não descaracteriza a natureza compensatória dos mesmos, bastando-se, in casu, com documentos internos que se limitam a inscrever um montante e o nome do Impugnante (não há datas…, não há motivos…)

- se baste com a apresentação de uma mero documento interno impondo à AT que ouse provar a falsidade daquela documentação irregularmente preenchida entendendo, aliás, que aquela documentação prova uma despesa efetuada… e isto não obstante se evidenciar, dando por provado em D), para além do que já foi referido, que:

1) Parte significativa dos valores contabilizados a título de deslocações em viatura própria e ajudas de custo não se encontram devidamente documentadas – desconhecendo-se a que título o montante foi recebido.

2) No facto dos valores contabilizados a título de ajudas de custo e quilómetros em viatura própria serem em valor mensal fixo ou muito aproximado ao longos dos respetivos meses do ano

3) No mês de férias, a C..... tenha pago aos seus colaboradores ajudas de custo e quilómetro em viatura própria sendo o seu valor o dobro do que normalmente pagou num mês normal de trabalho E que na sequência da Reclamação Graciosa apresentada se tenha constatado perante a documentação trazida naquele momento que os recibos de remunerações, os documentos internos de despesa passados pela empresa e assinados pelo sujeito passivo e os recibos de despesas efetuadas em restaurantes e com táxis - não indiquem quem as pagou, e que se esperaria que fosse o Impugnante pois que foi ele quem alegou tratarem-se de despesas por si incorridas em nome da entidade patronal…

- Menospreze, finalmente, os juízos e regras de experiência comum que decorrem da anormalidade do carater permanente e regular que a natureza da própria ajuda de custo pressupõe.

E. Parece, pois, no mínimo, incompreensível que os tribunais superiores aparentemente preocupados com o tipo de dispêndios sujeitos a tributação autónoma (assumidamente criada como norma anti-abuso) de que as ajudas de custo são um exemplo (não nos cansamos de o referir) sejam tão permissivos na hora de tomar posição sobre a realidade fiscal da pessoa singular que, tratando-se de uma realidade decorrente de uma relação bilateral – faz dela um interveniente indispensável na prefigurada fuga à tributação…

F. A RFP não se conforma com o entendimento vertido na douta sentença recorrida, por entender que a orientação deve reclamar, por um lado, uma qualificação jurídico-tributária distinta da julgada no Tribunal a quo, global e mais adequada aos receios que as alegadas ajudas de custo

G. E, portanto, com facilidade damos conta que aos tribunais superiores deve ser reclamada uma maior intervenção na salvaguarda do eventual interesse público que o legislador entendeu proteger mediante a introdução da tributação autónoma. Não se deixando cair num tipo de fundamentação alicerçada em motivos extrajurídicos, de natureza conjuntural e que perante a sua volatividade tendem rapidamente a ser foco de injustiças na apreciação do caso concreto impedindo, tal a malha apertada em termos probatórios, a Administração Fiscal de prosseguir as suas atribuições neste particular.

H. Alguma da jurisprudência dos nossos tribunais superiores aparentemente introduz uma variável ou faz uma opção de dar relevância não tanto à conduta ilegal (e aos efeitos de natureza ético-normativa que decorrem da violação das regras jurídicas) mas à competitividade económica e à proteção do rendimento a cargo do Estado como se de uma subvenção se tratasse.

I. A RFP insurge-se (com motivos que julga serem atendíveis) sobre a qualificação jurídica expendida, por entender que a materialidade dos pagamentos entre a C....., CRL e o Impugnante reclamaria um enquadramento jurídico-tributário distinto do que foi apresentado na sentença recorrida, ou, subsidiariamente, de uma apreciação da prova que, equilibradamente, se munisse, como deve ser, das regras da experiência comum e lograsse convencer-se mediante um juízo de certeza jurídica (que relembre-se, se basta com a suportada probabilidade) que os pagamentos existentes, o foram, como remuneração de trabalho dependente, para efeitos do Código do IRS.

J. Assume caráter de retribuição a prestação regular e periódica realizada pelo empregador ao trabalhador, em dinheiro ou em espécie, relacionada com o trabalho prestado pelo trabalhador, presumindo-se como tal qualquer prestação do empregador ao trabalhador.

K. As características da regularidade e da periodicidade consagradas pelo legislador na norma constante do n.º 2 do artigo 258.º do Código do Trabalho constituem manifestações de uma vinculação prévia da entidade patronal ao pagamento desses valores ao trabalhador. Visão partilhada pela jurisdição comum e pela jurisprudência do TCA Norte citada supra.

L. Os conceitos de “remuneração” e de “ajudas de custo” constantes do Código do IRS não podem ser interpretados desligados do contexto do Direito Laboral do qual provêm.

M. E à imposição legislativa de recorrer aos conceitos de outros ramos do Direito na interpretação da norma tributária que os preveja, nos termos do n.º 2 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária.

N. Nem de outra forma poderia ser, atendendo a que o Direito Tributário pretende tributar as operações materiais, atendendo à sua substância, não à sua forma, cf. o n.º 2 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária.

O. O procedimento inspetivo apurou valores contabilizados como sendo alegadas ajudas de custo tendo por base meros documentos internos irregularmente preenchidos, sem que se alcance os motivos da alegada despesa apenas constando o nome do Impugnante e o montante – afirmando-se impressivamente, dando-se por provado, a irregularidade do seu preenchimento, nomeadamente, a ausência do objetivo da deslocação impugnando-se a realização da suposta despesa.

P. Desprezando o Tribunal a quo a parte em que o próprio RIT alega, colocando em causa a realização da suposta despesa que: “Para legitimar a alteração do rendimento declarado, a Administração Tributária tinha de alegar e provar, em primeira linha, que o trabalhador não efetuou tais deslocações ou, caso admitisse as deslocações, teria de alegar e provar que delas não decorreram despesas que justificassem uma compensação ou que inexistia uma correspondência entre as quantias pagas e as despesas normais que as deslocações provocam de forma a convencer que as quantias pagas ao Impugnante cobrem largamente as despesas e que fazem, por isso, parte da retribuição. (penúltimo parágrafo da p. 9), a AT não se limitou a dar conta da mera irregularidade impugnando a realização daquele dispêndio.

Q. Na sentença recorrida, foi dado como matéria de facto assente como FACTO G, junção aos autos em sede de Reclamação Graciosa dos documentos de fls. 197 a 290 daquele apenso referente a supostos dispêndios a reembolsar pela entidade patronal, dando-se por provado como FACTO H que para além de meros recibos de remuneração e demais documentos internos passados pelo empregador e assinados pelo Impugnante os recibos ou faturas referentes eventualmente efetuadas em restaurantes, táxis, gasolina – não é indicado quem logrou pagar a mencionada despesa nem é indicado o NIF do Impugnante – fls. 203 a 205; 206 a 208; 210 a 212; 220 e 221; 223 e 224; 249; 253; 258 a 259; 266 e 290 da RG.

R. Pergunta-se, pois, com toda a legitimidade, como é possível que o tribunal se convença que estamos perante ajudas de custo? Baseado no quê? Quem nos garante que os dispêndios não tenham sido incorridos por amigos ou conhecidos? Aliás, em nenhum documento dito externo há evidência de que tenha sido o Impugnante a suportar o gasto sobre o qual alega ter sido ressarcido e muitos desses documentos titulam gastos referentes não a uma pessoa mas a várias.

S. A partir destes factos dados como provados, e contrariamente ao entendido pela sentença recorrida temos por evidente que a AT logrou colocar em causa a realização do gasto.

T. Por outro lado, afirma a sentença recorrida que a inspeção tributária refere que os valores em causa apresentam alguma regularidade ao longo dos períodos em que são imputados em cada ano. Ora, na verdade no RIT diz-se muito mais.

U. Para além da natureza permanente e regular do rendimento auferido que o tribunal a quo entende não ser determinante no que concerne à prova do caráter remuneratório dos montantes contabilizados o que não podemos é “virar o bico ao prego” perdendo de vista que não sendo determinante, por si só, a imprevisibilidade e a ocasionalidade não deixam de constituir, em termos gerais, elementos caracterizadores das ajudas de custo. (vide § 152º)

V. E, portanto, mais uma vez e de forma conjugada (algo que o tribunal a quo simplesmente se demitiu de fazer, debitando, como é seu apanágio, jurisprudência deixando à recorrente o labor de conjugar a prova menosprezando inclusivamente o que é afirmado no RIT) perante os indícios recolhidos tendemos a aproximarmo-nos da legalidade dos fundamentos que estiveram na base da correção e que, manifestamente, o Impugnante não veio colocar em crise.

W. Por último, logo se afirmou no RIT, dando-se por provado no FACTO G que: “(…) - No mês de férias, a C..... também pagou aos seus colaboradores ajudas de custo e quilómetros em viatura própria, sendo o seu valor o dobro do que normalmente pagou num mês normal de trabalho.”. Elemento, aliás, apurado em sede inspetiva que simplesmente não logrou sequer ser apreciado pelo tribunal a quo.

X. é o próprio tribunal a quo quem recorrendo à jurisprudência do Venerando TCA Norte, produzida em 24-02- 2005 no processo 00145/2004 vem admitir que a prova dos pressupostos da correção se possa fazer mediante sólidos indícios, mas que não deixam de ser indícios.

Y. O próprio Impugnante reconhece que “(…) o facto de os valores mensais pagos a título de deslocações e ajudas de custo serem praticamente iguais durante o ano deve-se ao facto de o ora impugnante ser Professor e ter um horário igual durante todo o ano lectivo que o obrigava a deslocações aos vários pontos do país e mesmo ao estrangeiro onde a sua entidade patronal detinha sucursais do estabelecimento de ensino, ou programas de intercâmbio. – FACTO F

Z. Então mas dá por provada esta factualidade (que, aliás, foi levada ao probatório por mera alegação), onde se procura dar a ideia abstrata de uma certa rotina horária que contende com a função de “Professor” e não repara que esta justificação se mostra contraditória com o facto de ter sido apurado (dando-se por provado FACTO G) que no mês em que se encontrava de férias (onde supostamente e, no mínimo, as regras da experiência dir-nos-ão que o Impugnante não esteve ao serviço da entidade empregadora durante pelo menos metade dos dias daquele mês) os montantes ali contabilizados ascendem ao dobro do que foi contabilizado nos meses que não esteve de férias tendo a sua prestação de trabalho ocupado todos os dias do mês?

AA. Não era suposto então, à luz dessa alegada rotina, que o montante contabilizado a título de “ajudas de custo” ascendesse a metade dos montantes contabilizados nos meses em que não esteve de férias?

BB. Então, e como explicar que se tenham apurados mensalmente montantes certos e regulares nos períodos de interregno do ano letivo? Natal? Páscoa? Férias de Verão? Isso não provocaria divergências sobre a invocada rotina que pretende fazer transparecer?

CC. É inegável perante os indícios e elementos apurados em sede inspetiva (levados ao probatório) que não lograram ser contrariados pelo Impugnante e perante as contraditórias alegações do Impugnante - que a AT logrou cumprir com o ónus que sobre si impendia de evidenciar a falta de pressupostos que presidem à atribuição das ajudas de custo, cuja efetividade, aliás, não se mostra, provada.

DD. Impondo-se, neste particular, inverter o ónus da prova fazendo recair sobre o Impugnante a prova de que aqueles montantes respeitam efetivamente a ajudas de custo por si incorridas à luz do art. 75º, nº 1 e 2, da LGT.

EE. Ora, as alegações produzidas pelo Impugnante para além de não provadas ofendem as regras da experiência comum que deve presidir à apreciação do objeto dos autos, note-se, que ao Impugnante não estava coartado o direito à produção dos meios gerais de prova; sendo certo perante a insipiência da prova documental apresentada em que não há um único documento externo que titule uma despesa que demonstre ter sido incorrida pelo Impugnante e tendo sido impugnada que a mesma tenha sido realizada na esfera patrimonial do próprio Impugnante então a sorte do autos contra si terá de reverter.

FF. Inexistindo motivo para anular as liquidações que têm por fundamento o carácter remuneratório daquelas verbas.

GG. A sentença recorrida, ao entender de forma diferente, enferma de erro na apreciação da prova e em manifesto rota de colisão com a jurisprudência produzida pelos Venerandos TCA Norte e TCA Sul cuja factualidade melhor se adequa à dos presentes autos, estando em causa a violação ao disposto nos artigo 2.º do CIRS, art. 75º, nº 1 e 2, da LGT e arts. 607º, nº 4 e 5 do CPC, aplicável ex vi da alínea e), do art. 2º, do CPPT não merecendo, por isso, a sua confirmação”.

O Recorrido apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“A- O ora Recorrido era à data dos factos Professor Universitário contratado pela C..... para ministrar aulas em vários pontos do país.

B- Foi convidado para dar palestras no estrangeiro em nome da C.....

C- Estes factos encontravam-se devidamente comprovados na C....., sendo o ora Recorrente quem não solicitou a devida documentação.

D- Os valores em crise nos presente autos foram pagos como Ajudas de Custo, pelo que não são passiveis de ser tributados.

E- A Sentença proferida pelo Douto Tribunal “a quo” concluiu que o Relatório emitido pela Administração Tributária não demonstrou que os valores recebidos pelo ora Recorrido não representavam o pagamento de ajuda de custo;

F- Cabia a Administração Tributária o ónus da prova quanto ao por si alegado de que os valores recebidos como ajudas de custo pelo ora Recorrido encapotavam um verdadeiro rendimento”.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:
a) Há erro de julgamento, na medida em que administração tributária (AT) reuniu indícios suficientes de que os valores em causa não se tratavam de efetivas ajudas de custo?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

A) Relativamente aos anos de 2004 e 2005 o ora Impugnante apresentou as respetivas declarações modelo 3 de IRS, fazendo constar em cada uma delas, além do mais, o anexo A onde fez constar os valores de € 26.396,24 e € 24.019,98 relativos a rendimentos de trabalho dependente por si auferidos em 2004 e 2005, respetivamente, ao serviço da entidade com o NIPC ....., correnpondente à sociedade “C....., CRL” – cf.

B) As declarações referidas em A) foram objeto de liquidação, resultando em reembolsos nos montantes de € 2.845,95 e 2.200,90 em relação a cada um dos anos de 2004 e 2005, respetivamente – cf.

C) Em ação de fiscalização e inspeção tributária à sociedade “C....., CRL”, foi determinado efetuar correções ao impugnante, em sede de IRS relativamente aos exercícios de 2004 e 2005, considerando como rendimentos da categoria A os valores entregues ao Impugnante a título de ajudas de custo – cf. os Relatórios de Inspeção Tributária (RIT), a fls. 24 a 27 e 39 a 42 dos autos.

D) A coberto das Ordens de Serviço n.º .....e ....., procedeu-se à ação inspetiva interna com referência aos rendimentos do impugnante e respetivo agregado familiar nos anos de 2004 e 2005, tendo sido elaborados, em 05.06.2008, os respetivos relatórios finais de inspeção, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos, dos quais consta, além do mais, o seguinte:

“[…]

3.2 Descrição dos factos que originaram as correcções de natureza meramente aritméticas, em sede de IRS:

- No relatório resultante das acções inspectivas que decorreram ao sujeito passivo C....., CRL, NIPC .....aos exercícios de 2004 e 2005, foi descrito:

- "Parte significativa dos valores contabilizados a título de deslocações em viatura própria e ajudas de custos, não se encontram devidamente documentadas, por não relevarem a que título foi recebido o respectivo valor, identificando apenas o nome do beneficiário e o respectivo valor recebido.

- Outros valores foram contabilizados tendo por base um boletim de itinerário, que não cumpre com os requisitos previstos na alínea f) do n.º 1 do artigo 42º do CIRC, nomeadamente quanto ao objectivo da deslocação, e à sua realização efectiva.

- Os valores contabilizados a título de ajudas de custo e quilómetros em viatura própria, em alguns casos, serem em valor mensal fixo ou muito aproximado ao longo dos respectivos meses do ano.

- No mês de férias, a C..... também pagou aos seus colaboradores ajudas de custo e quilómetros em viatura própria, sendo o seu valor o dobro do que normalmente pagou num mês normal de trabalho.”

[…]

3.3 - Descrição das correcções

Pelo exposto nos pontos anteriores, as deslocações em viatura própria e ajudas de custos deverão ser considerados como remunerações do trabalho dependente nos termos do artigo 2.º do CIRS, no total de [€ 16.797,31 em 2004 e € 13.993,78 em 2005] e irão ser tributadas na esfera patrimonial do respectivo beneficiário, conforme consta do Anexo 1.

Tendo em conta os valores declarados pelo sujeito passivo inerente ao agregado familiar no Anexo A da declaração de rendimentos de [2004 e 2005], acrescem-se a esses rendimentos os valores das correcções discriminadas no quadro seguinte:

[…]

5 - Direito de Audição

[…] o sujeito passivo foi notificado do projecto de conclusões do relatório de inspecção, a qual teve o nº de saída .....em 14-04-2008 em carta registada sob o nº ....., cuja expedição foi confirmada em 15-04-2008. Os correios iniciaram o processo de distribuição, mas esta não foi conseguida visto que o sujeito passivo não se encontrava na morada e volvido o período do aviso para ser reclamada a carta registada, no posto dos CTT, esta entidade devolveu à procedência, com a indicação de entrega não conseguida em virtude de não ser reclamada.

[…]» – cf. os RIT, a fls. 24 a 27 e 39 a 42 dos autos.

E) Atos Impugnados: Em 16.10.2008 foram emitidas as liquidações n.ºs ..... e ....., relativas aos anos de 2004 e 2005, respetivamente, das quais resultou a pagar, após compensação com as liquidações inicialmente emitidas para os períodos em apreço, as quantias de € 6.389,92 e € 5.147,07 – cf. fls. 81 a 99 do PAT apenso.

F) Em 10.11.2008 o ora impugnante apresentou reclamação graciosa contra as liquidações adicionais identificadas em E), nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 2 a 4 do PAT apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, invocando, no essencial que:

¾ os valores pagos em causa foram-lhe pagos a título de deslocações e estadas ao serviço e por conta da entidade patronal, estando em causa o ressarcimento de valores por si despendidos;

¾ a correção feita pela administração fiscal baseou-se no facto de algumas ajudas de custo não se encontrarem devidamente documentadas;

¾ o facto de os valores mensais pagos a título de deslocações e ajudas de custo serem praticamente iguais durante o ano deve-se ao facto de o ora impugnante ser Professor e ter um horário igual durante todo o ano lectivo que o obrigava a deslocações aos vários pontos do país e mesmo ao estrangeiro onde a sua entidade patronal detinha sucursais do estabelecimento de ensino, ou programas de intercâmbio.

– cf. fls. 2 a 4 do PAT apenso.

G) Em 03.12.2008, na sequência de notificação para o efeito, o Impugnante juntou ao processo de reclamação graciosa os elementos a que respeitam as fls. 197 a 290, respeitantes a documentos de despesas realizadas em 2004 e 2005, recibos de vencimento, cheques de pagamento de vencimentos e documentos relativos a despesas a reembolsar pela sua entidade patronal, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos – cf. fls. 115 a 118 e 197 a 291 do PAT apenso.

H) Por despacho de 08.01.2009 a reclamação graciosa foi indeferida com os fundamentos contantes da informação dos serviços da mesma data, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, onde, depois da descrição da factualidade antecedente relativa à situação tributária do ora impugnante em sede de IRS nos anos de 2004 e 2005, incluindo as conclusões das ações de inspeção que conduziram às liquidações objeto da reclamação, se conclui do seguinte modo:

“[…]

- Em 2008.12.05 foram recebidos nestes Serviços de Finanças os recibos de remunerações, acompanhados de documentos de despesas passados pela empresa assinados pelo sujeito passivo e de recibos, referentes despesas efectuadas em restaurantes e com táxis, onde não é indicado quem as pagou.

- Por força do já anteriormente enunciado e da legislação já referida, bem como da análise dos documentos fornecidos pelos Serviços de Inspecção verifica-se então que os elementos exibidos pelo sujeito passivo não contrariam de forma clara e inequívoca as razões apontadas para a alteração dos rendimentos, pelo que, se me afigura ser de Indeferir o pedido […]” – cf. doc. 4 junto com a p.i.

I) Em 19.01.2009 o ora Impugnante foi notificado da decisão que antecede – cf. fls. 307/308 do PAT apenso.

J) A presente Impugnação Judicial deu entrada neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, via fax e mail, em 02.02.2009 – cf. fls. 12 dos autos”.

II.B. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do tribunal, quanto aos factos provados, formou-se com base no teor dos documentos referidos em cada uma das alíneas supra”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, porquanto, na sua perspetiva, e em síntese, a AT reuniu indícios suficientes de que os valores em causa não se tratavam de efetivas ajudas de custo.

Antes de mais refira-se que carece de qualquer pertinência o paralelismo efetuado pela Recorrente em torno do regime das tributações autónomas (e posição jurisprudencial respetiva) e o regime da tributação em sede de IRS. Com efeito, trata-se de tributações com teleologias absolutamente distintas e, por esse mesmo motivo, determinantes de análise de pressupostos também eles distintos. Carece igualmente de qualquer pertinência a análise das afirmações de cariz exclusivamente subjetivo em torno da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, que não merecerá da nossa parte qualquer observação, porque irrelevante; o que releva é a análise do regime jurídico pertinente e naturalmente das regras aplicáveis em termos de ónus da prova.

Feito este introito, cumpre apreciar.

Estão, in casu, em exame as correções efetuadas pela AT, nos termos das quais os valores pagos ao Recorrido, a título de ajudas de custo e deslocações em viatura própria, foram considerados como retribuição, logo, objeto de tributação em sede de IRS.

Assim, considerando os dois relatórios de inspeção tributária (RIT), mencionados em D) do probatório, uma vez que é neles, e exclusivamente neles, que radica a fundamentação do ato, verifica-se que a AT sustentou a sua posição no seguinte:
a) No âmbito de ações inspetivas ao sujeito passivo C....., CRL (doravante, C.....), a AT verificou que:
a.1. Parte significativa dos valores contabilizados a título de deslocações em viatura própria e ajudas de custos não se encontra devidamente documentada, não se revelando a que título foi recebido o respetivo valor, identificando apenas o nome do beneficiário e o valor recebido, ou sendo a sua contabilização feita com base em boletim de itinerário que não cumpria dos requisitos do art.º 42.º, n.º 1, al. f), do CIRC;
a.2. Os valores contabilizados a título de ajudas de custo e quilómetros em viatura própria, em alguns casos, eram de valor mensal fixo ou muito aproximado ao longo dos respetivos meses do ano;
a.3. No mês de férias, a C..... também pagou aos seus colaboradores ajudas de custo e quilómetros em viatura própria, sendo o seu valor o dobro do que normalmente pagou num mês normal de trabalho;
b) Logo, os valores pagos ao Recorrido a título de deslocações em viatura própria e ajudas de custo devem ser considerados como remuneração de trabalho dependente.

Foi exclusivamente esta a fundamentação dos atos de liquidação impugnados e é exclusivamente nela que se deve centrar a nossa apreciação.

Vejamos então.

O IRS tem como âmbito, como o próprio nome indica, todas as importâncias auferidas pelas pessoas singulares que se possam designar de rendimento, maxime rendimento de trabalho dependente.

A este propósito, é pertinente chamar à colação o disposto no art.º 2.º do Código do IRS (CIRS), nos termos do qual:

“1 - Consideram-se rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular provenientes de:

a) Trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado;

b) Trabalho prestado ao abrigo de contrato de aquisição de serviços ou outro de idêntica natureza, sob a autoridade e a direção da pessoa ou entidade que ocupa a posição de sujeito ativo na relação jurídica dele resultante;

c) Exercício de função, serviço ou cargo públicos;

d) Situações de pré-reforma, pré-aposentação ou reserva, com ou sem prestação de trabalho, bem como de prestações atribuídas, não importa a que título, antes de verificados os requisitos exigidos nos regimes obrigatórios de segurança social aplicáveis para a passagem à situação de reforma, ou, mesmo que não subsista o contrato de trabalho, se mostrem subordinadas à condição de serem devidas até que tais requisitos se verifiquem, ainda que, em qualquer dos casos anteriormente previstos, sejam devidas por fundos de pensões ou outras entidades, que se substituam à entidade originariamente devedora.

2 - As remunerações referidas no número anterior compreendem, designadamente, ordenados, salários, vencimentos, gratificações, percentagens, comissões, participações, subsídios ou prémios, senhas de presença, emolumentos, participações em coimas ou multas e outras remunerações acessórias, ainda que periódicas, fixas ou variáveis, de natureza contratual ou não.

3 - Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente:

(…) d) As ajudas de custo e as importâncias auferidas pela utilização de automóvel próprio em serviço da entidade patronal, na parte em que ambas excedam os limites legais ou quando não sejam observados os pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado e as verbas para despesas de deslocação, viagens ou representação de que não tenham sido prestadas contas até ao termo do exercício”.

Portanto, especificamente no que respeita às ajudas de custo, e reportando-nos à redação do CIRS à época em vigor, as mesmas eram consideradas como remuneração, a partir do valor que excedesse os limites legais. O mesmo sucedia com as verbas para despesas de deslocação, viagens ou representação de que não tivessem sido prestadas contas até ao termo do exercício [cfr. art.º 2.º, n.º 3, al. d)].

Ou seja, em regra, os valores pagos a título de ajudas de custo, dado o caráter compensatório que lhes é reconhecido (compensação por despesas que o trabalhador é obrigado a suportar, designadamente por motivo de deslocações), não se integram no conceito de remuneração, para efeitos de IRS.

Como referido por José Guilherme Xavier de Basto[1], “[a]s ajudas de custo, bem como as importâncias auferidas pela utilização de automóvel próprio em proveito da entidade patronal, são, pela sua própria natureza e em princípio, compensações por despesas incorridas pelo trabalhador mas a favor da entidade patronal, pelo que só tem sentido tributá-las quando extravasem essa funções e passarem a constituir verdadeira ‘vantagem económica’. Enquanto se limitarem a compensar o trabalhador por despesas efectivamente incorridas a favor da entidade patronal, as somas recebidas não são sequer um rendimento líquido do trabalhador. A lei presume que isso acontece quando as ajudas de custo e as importâncias recebidas pela utilização de viatura própria se mantêm dentro dos limites legais previstos para os servidores do Estado e sempre que sejam observados os pressupostos da sua atribuição as esses mesmos servidores”.

Apenas nos casos em que lhes seja conferido caráter remuneratório, referidos no então art.º 2.º, n.º 3, al. d), do CIRS, as mesmas eram tributadas, como se de rendimento de trabalho dependente se tratassem (cfr. Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 08.11.2006 – Processo: 01082/04).

Como referido por João Ricardo Catarino («Ajudas de Custo – algumas notas sobre o regime substantivo e fiscal», Fisco, 97/98, p. 79), “… sendo claro que o pagamento de ajudas de custo é susceptível de constituir um rendimento, no quadro da consagração do conceito de rendimento acréscimo, a lei não as considera como tal sem mais, adoptando antes, uma postura pela qual só é de considerar rendimento o quantitativo pago a título de ajuda de custo se o seu montante exceder certo limite anualmente actualizado…”.

Portanto, e como mencionado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.01.2015 (Processo: 0901/14) e ampla jurisprudência no mesmo citada:

“Resulta daqui claro que as ajudas de custo só têm natureza remuneratória na parte em que excederem os apontados limites, tendo natureza compensatória na parte que os não exceda.

A tributação das ajudas de custo como rendimentos do trabalho, pode ainda decorrer da inobservância dos pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado, ou da não prestação de contas até ao termo do exercício”.

Face a este enquadramento, podemos desde já afirmar que carece de pertinência o invocado ao longo das alegações de recurso, a propósito da noção de retribuição no âmbito da legislação laboral.

Sendo certo que o art.º 11.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (LGT), prevê que “[s]empre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm”, também é certo que essa disposição legal, in fine, refere “salvo se outro decorrer diretamente da lei”.

Ora, como já deixamos explanado supra, o CIRS, concretamente o seu art.º 2.º, densifica o que se entende por rendimento de trabalho dependente, prevendo, em situações como a dos autos, claramente o regime a aplicar em matéria de ajudas de custo, pelo que não há por que recorrer à aplicação subsidiária da legislação laboral.

O regime tributário dá cabal resposta à situação controvertida e não se trata, sequer, ao contrário do alegado, de uma questão atinente à prevalência da substância sobre a forma; trata-se, sim, como veremos melhor adiante, de regime de distribuição do ónus da prova e da forma como esse ónus da prova é ou não cumprido.

É assim, por conseguinte, pertinente abordar in casu a disciplina atinente ao âmbito e alcance do ónus da prova em casos como o dos autos.

Nos termos do art.º 75.º da LGT:

“1 - Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.

2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:

a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo…”.

Está, pois, consagrado o princípio da verdade declarativa.

Caberá, nestes casos, em primeira linha, à AT pôr em causa de forma sustentada esta presunção de veracidade das declarações apresentadas pelos contribuintes. Afastada que seja tal presunção, passa a competir ao contribuinte o ónus da prova de que o declarado corresponde à realidade.

Portanto, em situações como a dos autos, em que a declaração de rendimentos do Recorrido goza da presunção de veracidade que lhe é conferida pelo n.º 1 do art.º 75.º da LGT, caberá, antes de mais, à AT afastar essa presunção de veracidade, coligindo elementos que o façam de forma sustentada e sólida.

Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, decorre que o Recorrido apresentou, relativamente aos anos de 2004 e 2005, as declarações modelo 3 de IRS referidas em A) do probatório, onde declarou valores auferidos a título de rendimento de trabalho dependente pagos pela C......

Como referimos supra, estas declarações gozam de uma presunção de veracidade, que cabe à AT afastar, sendo, pois, desta o ónus da prova de elementos que, de forma sustentada, afastem tal presunção e que demonstrem a reunião dos pressupostos da norma negativa de incidência em causa.

Cumpre, então, aferir se, no caso em concreto, tal ocorreu.

Adiante-se, desde já, que a AT não logrou ilidir a presunção de veracidade das declarações do Recorrido.

Explicitando.

Compulsados os RIT, verifica-se que a AT afirmou o seguinte:
a) Em sede de fiscalização à C....., verificou que havia irregularidades documentais relativas aos valores contabilizados a título de deslocações em viatura própria e ajudas de custo, verificou, em alguns casos, que os valores eram de valor mensal fixo ou muito aproximado e verificou que, “no mês de férias”, a C..... também pagou aos seus colaboradores valores a título de ajudas de custo e quilómetros em viatura própria no dobro do que normalmente paga;
b) Logo, os valores pagos ao Recorrido a título de deslocações em viatura própria e ajudas de custo devem ser considerados como remuneração de trabalho dependente.

As primeiras caraterísticas a apontar a esta fundamentação são, desde logo, o caráter de generalidade e a insuficiente densificação.

Com efeito, a AT menciona que detetou irregularidades documentais, que não especifica, não densifica, não carateriza exaustivamente, ficando mesmo por esclarecer se esta situação sequer é aplicável ao Recorrido – uma vez que foram irregularidades detetadas junto da C..... e, aparentemente, relativas a vários trabalhadores desta entidade.

Por outro lado, se, em momento ulterior ao da emissão das liquidações, houve algum tipo de apresentação de documentação, tal trata-se de circunstância perfeitamente irrelevante, sob o ponto de vista de aferição da fundamentação pertinente do ato de liquidação – isto é, não são os novos elementos pedidos ao Recorrido em sede de reclamação graciosa e a respetiva análise que fundam o ato de liquidação.

Com efeito, a fundamentação do ato tem de ser sua contemporânea, não sendo, pois, admissível a sua fundamentação a posteriori.

Logo, a circunstância de a AT, em sede de reclamação graciosa, ter pedido elementos documentais ao Recorrido e de este lhe ter apresentado tais documentos, não tem o relevo que a Recorrente lhe atribui, porquanto, a montante, em sede de RIT, não houve se não uma fundamentação genérica, não densificada e, logo, não concretizadora, em termos de alegadas irregularidades documentais. Como tal, não pode ser valorada a fundamentação constante da decisão proferida em sede de reclamação graciosa, naquilo em que ultrapasse a fundamentação dos RIT e em aspetos que logo em momento anterior ao da emissão das liquidações deveriam estar suficientemente densificados.

Consequentemente, reiteramos, só nos podemos centrar na fundamentação constante do RIT e essa é genérica e insuficiente, no tocante às alegadas irregularidades documentais.

Quanto à questão da periodicidade da prestação e à situação de, “no mês de férias”, haver um pagamento do dobro do normalmente pago, apesar de o teor do RIT ser, também nesta parte, eminentemente genérico, consegue-se algum grau de especificação pela análise do Anexo 1 de cada um dos relatórios.

Através dessa análise, também se conclui que as afirmações proferidas no RIT não têm o grau de adesão que deveriam ter aos tais anexos 1.

Desde logo, não está sustentado o que se entende por “mês de férias” e não está evidenciado em que mês o Recorrido gozou férias. Aliás, como é facto notório e de conhecimento geral, cada vez mais as instituições de ensino superior têm atividades ao longo dos 12 meses do ano, pelo que a afirmação proferida pela AT é puramente conclusiva e baseada num pressuposto que não está sustentado em qualquer prova.

Ademais, e começando pelo Anexo 1 relativo a 2004, se é certo que no mês de agosto foram pagos valores superiores a 2.000,00 Eur., a título de ajudas de custo ou deslocações em automóvel próprio, também é certo que foi pago valor superior a 2.000,00 Eur. nos meses de novembro e dezembro. Já quanto ao ano de 2005, verifica-se igualmente um valor superior a 2.000,00 Eur. em agosto, mas verifica-se igualmente um valor de 241,15 Eur. em setembro, refletindo-se diferenças assinaláveis nos diversos meses do ano. Ou seja, a tal periodicidade e regularidade, do ponto de vista dos valores, não se verifica, nos termos afirmados no RIT.

No entanto, ainda que tal periodicidade se verificasse, tal circunstância, per se, não é de molde a afastar a presunção de veracidade das declarações do Recorrido, como de forma reiterada tem sido afirmado na jurisprudência dos nossos tribunais superiores.

Chama-se a este propósito à colação o já mencionado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.01.2015 (Processo: 0901/14) e ampla jurisprudência no mesmo citada, onde se refere:

“Tratando-se, como se trata, de uma verdadeira norma de delimitação negativa de incidência ou de exclusão de tributação de IRS, competia à Administração Tributária alegar, para poder provar em seguida, ou, que as quantias pagas a título de ajudas de custo não se destinaram a reembolsar os recorridos de despesas decorrentes da sua deslocação, porque elas não tinham tido lugar ou não ocorreram com a extensão apresentada, o que não decorre simplesmente da verificação de que o seu valor se repete ao longo dos meses, ou, que ultrapassaram os limites legais estabelecidos para a exclusão da respectiva tributação, dado que estes elementos são ainda factos fundamentadores ou enformadores do ato tributário.

Nada disso foi sequer alegado. A Administração Tributária, como se constata das suas informações referenciadas na matéria dada como provada tendo verificado que vários dos trabalhadores da mesma empresa recebiam ajudas de custas em montantes repetidos ao longo dos meses, qualificadas como reembolso de despesas de deslocação, não curou de saber se efectivamente existiram deslocações, se as deslocações causaram despesas, se as despesas foram pagas pelos trabalhadores que as efectuaram, se, seguidamente foram pagas a estes pela empresa, se as que foram pagas excederam os limites legais para estarem contidas na exclusão de tributação, e, qual o excesso, concluindo, na ausência de todos estes elementos, que, se se repetiam, não tinham carácter compensatório e eram um estratagema da empresa para aumentar o salário dos seus trabalhadores de forma a privar o estado da tributação devida”.

Em sentido idêntico, vejam-se, ainda, exemplificativamente, os Acórdãos deste TCAS, de 08.10.2015 (Processo: 08317/15), de 11.07.2019 (Processo: 150/05.7BECTB), de 31.10.2019 (Processo: 588/13.6BEALM), de 14.01.2020 (Processo: 1027/08.0BEALM) e de 20.02.2020 (Processo: 212/07.6BEALM), bem como os Acórdãos do TCAN de 13.02.2014 (Processo: 00237/06.9BEBRG), de 10.11.2016 (Processo: 00764/13.1BEPNF), de 02.03.2017 (Processo: 00283/12.3BEPNF) e de 07.06.2018 (Processo: 01070/08.9BEBRG)

Portanto, in casu, não se trata situação de presunção inilidível de que os valores em causa não se tratam de rendimentos da categoria A. Trata-se, sim, de situação em que cabe à AT o ónus da prova de que se verificam os pressupostos da tributação, ónus da prova esse que exige circunstancialismo e c0ncretização das situações, o que não ocorreu in casu, onde a AT se limitou a socorrer-se de observações gerais, não especificadas quanto ao Recorrido e que de modo algum evidenciam o caráter remuneratório dos valores pagos. Portanto, não tendo a AT cumprido o seu ónus da prova, cai por terra tudo o alegado pela Recorrente a propósito do ónus da prova que impenderia sobre o Recorrido, uma vez que tal só seria pertinente se tivesse sido afastada a presunção de veracidade da declaração apresentada.

Acrescente-se que não se alcança de que forma o interesse público não é salvaguardado em casos como o dos autos. Desde logo, a salvaguarda do interesse público, ao nível tributário, não passa ou não se reduz ao interesse na mera arrecadação de receitas, configurando-se, sim, como salvaguarda desse interesse, uma atuação em respeito pelos princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade e em respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários (cfr. art.º 55.º da LGT). Daí que, aliás, não exista qualquer presunção de legalidade do ato tributário.

Assim, a existência de uma presunção que permita à AT afastá-la de modo algum é atentatória do interesse público, sendo sim reflexo das regras de repartição do ónus da prova, não sendo defensável a posição da Recorrente, que, ao arrepio do princípio da legalidade, pretende que sejam invertidas tais regras em casos como o dos autos.

Todas as interrogações colocadas pela Recorrente ao longo das suas alegações encontram, pois, resposta na própria atuação da AT: existe uma presunção de veracidade do declarado que a AT não logrou, no momento oportuno, afastar.

Refira-se, finalmente, que não se alcança o afirmado pela Recorrente quanto ao facto de a AT ter logrado colocar “em causa a realização do gasto”, uma vez que tal nunca esteve sequer em causa nos RIT (mas tão-só a qualificação).

Como tal, nada há a apontar à sentença recorrida, que considerou não ter a AT logrado ilidir a presunção de veracidade da declaração de rendimentos apresentada, socorrendo-se, aliás, de jurisprudência que cabalmente sustenta a sua posição.

Logo, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 11 de março de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores Susana Barreto e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha


___________________
[1] José Guilherme Xavier de Basto, IRS – Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 128 e 129.