Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 195/08.5BEPDL |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 05/28/2020 |
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Relator: | ANA CELESTE CARVALHO |
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Descritores: | PROCESSO DISCIPLINAR, SUBTRAÇÃO DE DINHEIROS PÚBLICOS, PROPORCIONALIDADE DA SANÇÃO DISCIPLINAR |
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Sumário: | I. Não incorre em violação do princípio da presunção da inocência, nem do princípio in dubio pro reo a decisão que sanciona a prática de desvio de dinheiros públicos por parte de uma funcionária, com as funções de Tesoureira, a quem competia a movimentação de dinheiros públicos, recebendo, registando, contabilizando, depositando e pagando, sendo comprovadas as discrepâncias entre os movimentos das quantias recebidas e as que deram entrada nos cofres do serviço, se além de essas discrepâncias não serem negadas, não são apresentadas razões que as justifiquem e existe o pagamento voluntário da quantia desviada, mediante desconto no vencimento. II. Não se mostra violado o princípio da proporcionalidade na aplicação da pena disciplinar de suspensão de 240 dias, descontado o período da suspensão, considerando que o desvio de dinheiros públicos integra a previsão legal do disposto no artigo 26.º, n.º 4, d) do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo D.L. n.º 24/84, de 16/01, na pena de demissão, a qual não foi aplicada por consideração de circunstâncias atenuantes. |
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Votação: | UNANIMIDADE |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I – RELATÓRIO
C........................, devidamente identificada nos autos, veio interpor recurso jurisdicional do acórdão proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, datado de 05/03/2015, que no âmbito da ação administrativa especial de impugnação de ato administrativo, instaurada contra o Instituto de Gestão de Regimes da Segurança Social, julgou a ação improcedente, absolvendo a Entidade Demandada do pedido, de declaração de nulidade da decisão de aplicação da pena disciplinar de suspensão efetiva de 240 dias. * Formula a aqui Recorrente nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que infra e na íntegra se reproduzem: “1.º Vem a A. recorrer do acórdão proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada que absolve o IGRSS do pedido de declaração de nulidade da decisão do Conselho de Administração desse instituto que aplica à A. uma pena de suspensão efectiva de 240 dias. 2.º Na decisão recorrida, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, norma que viola, porquanto o princípio da presunção de inocência do arguido, em primeiro lugar, isenta a A. do ónus de provar a sua inocência, a qual é imposta pela lei e, em segundo lugar, do referido principio da presunção de inocência do arguido (embora não exclusivamente dele) decorre um princípio in dubio pro reo, princípio que determina, que na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido seja absolvido. 3.º Não ficou provado que a recorrente tivesse feito seu o dinheiro em falta ou que o tivesse utilizado em proveito próprio. 4.º Como tesoureira, a A. exerce funções que envolvem essencialmente quantias monetárias e que, apesar de todas as cautelas que sempre empregou e emprega no exercício da sua profissão, a verdade é que as funções por si desempenhadas são particularmente susceptíveis de gerar falhas contabilísticas em operações de recebimentos e pagamentos, sem que, diante de uma falha, se possa retirar, contrariamente ao que fez o Tribunal a quo, que a A. se tenha apropriado do dinheiro. 5.º A diferente natureza e finalidade das sanções aplicáveis nos processos criminal e disciplinar não justifica que, no processo disciplinar, se desconsidere o princípio da presunção da inocência, tanto mais quando o fundamento de direito aduzido o despacho de arquivamento do processo crime - a saber, a total ausência de indícios que possam fundamentar uma acusação contra a arguida -é justamente o mesmo que motivou, no processo disciplinar, uma condenação. 6.º O acórdão recorrido viola também os artigos 3.º, n.º 1, e 65.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar, conquanto a punição disciplinar tem de assentar em factos que permitam um juízo de certeza sobre a prática da infracção pela recorrente e a verdade é que não existem prova que esta tenha utilizado em proveito próprio o dinheiro. Por outro lado, 7.º o acórdão recorrido viola o artigo 24.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar, conquanto, não se tendo provado, como não se provou, que a recorrente tenha agido com negligência grave ou manifesto desinteresse pelo cumprimento dos deveres, não podia ter confirmado a aplicação desta pena disciplinar, que foi assim aplicada sem estarem preenchidos os requisitos para a sua aplicação. Acresce que, 8.º o despacho viola o artigo 33.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar, ao não explicitar por que razão e por que fundamentos a Administração não atenuou especialmente a pena para, então, e uma vez ponderadas todas estas circunstâncias, a Senhora Instrutora do processo disciplinar poder concluir pela não atenuação da pena nos termos do citado artigo, 9.º bem assim como o artigo 33.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar, viola os artigos 3.º, 12.º, n.º 3 e 4, 24.º, n.º 1, e 28.º, todos do Estatuto Disciplinar, e o artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que a pena de suspensão aplicada à ora A. não foi feita obedecendo ao critério de proporcionalidade que a lei e a Constituição impõem, padecendo de erro grosseiro por manifesta desproporção entre a sanção e a falta cometida. 10.º O acórdão recorrido viola os artigos 3.º, n.º 1, 12.º, n.º 3 e 4, 24.º, n.º 1, 28.º, 33.º, n.º 1, e 65.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar, e os artigos 32.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.”. Pede a procedência do recurso, a revogação do acórdão recorrido e a declaração de nulidade do processo disciplinar, com a consequente anulação da decisão e aplicação da pena disciplinar. * O ora Recorrido, notificado da admissão do recurso, apresentou contra-alegações, tendo concluído do seguinte modo: “1. Não houve violação do principio "in dubio pro reo", acontece é que, pelo o facto de estar provado de que a arguida estava encarregue de receber os pagamentos devidos à Segurança Social, de os registar. de os contabilizar devidamente e de os depositar, ressalvando os períodos que estava ausente, “justifica que se formule um juízo probatório no sentido de” a arguida “se ter apropriado da quantia em causa, uma vez que não se vislumbra qualquer outra explicação plausível”, conforme as regras da vida e experiência comum. 2. Não houve erro nos pressupostos de facto sobre os quais recaiu a acusação, pois, todas as quantias foram entregues à arguida, porem, a esta não justificou, como era seu dever, o destino do dinheiro público. 3. A pena aplicada não padece de vicio de violação de lei, nem viola o art.º 24º n.1 do Estatuto Disciplinar, pois, o comportamento da arguida manifestou-se de forma grave e negligente e com manifesto desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres como tesoureira, não dando o destino que era devido ao dinheiro que lhe foi entregue. 4. A pena aplicada à arguida/recorrente é adequada e proporcional à gravidade do comportamento desta, porquanto, esta fez seus os montantes que lhe foram entregues, não cumprindo de forma diligente, leal e zelosa os procedimentos normais e inerentes á sua categoria profissional. 5. Foram aplicados os critérios atenuantes (os anos de trabalho, a personalidade da arguida e a restituição voluntária das quantias em Falta) suficientes de modo a que. apenas se aplicando os critérios de adequação e proporcionalidade é que se optou, no caso “sub judice”, pela pena de suspensão em detrimento da pena de demissão, não havendo qualquer violação dos artigos 3º; 12º n.ºs 3 e 4; 24° n.º 1 e 28º do Estatuto Disciplinar e 266° n.º 2 do CRP. 6. O que a arguida/recorrente demonstrou com o seu comportamento foi uma falta grave aos seus deveres de lealdade. isenção e zelo, todos previstos no n.º 4 do art. 3° do DL 24/84 de 16 de Janeiro, actual nº 2 do art.º 3 da Lei 58/2008 de 9 de Setembro, e dos quais tinha, pleno conhecimento. 7. O processo disciplinar é autónomo do processo criminal, uma vez que são diversos os fundamentos e fins das respetivas penas, bem como os pressupostos da respetiva responsabilidade, podendo ser diversas as valorações que cada uma delas faz dos mesmos factos e circunstâncias. De modo que, um ilícito disciplinar não está prejudicado ou condicionado pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a se tomada em processo penal. Eis que o arquivamento ou uma eventual absolvição em processo criminal, não é fator impeditivo de a mesma conduta vir posteriormente a ser dada como demonstrada em procedimento disciplinar e se apresente violadora de determinados deveres gerais ou especiais decorrentes do exercício da atividade profissional exercida e, por isso. suscetível de integrar um comportamento disciplinarmente punível (vide Ac. C.A. 03670199 de 26-062008) 8. Não houve, pois, qualquer violação da Lei, do Estatuto Disciplinar ou da Constituição como alega a recorrente, assim, Deve a ação ser julgada improcedente, absolvendo-se o R. do pedido, mantendo se o douto acórdão recorrido.”. * Notificado o Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso. Sustenta que atenta a prova produzida e as circunstâncias apuradas não assiste razão à Recorrente. Não releva a circunstância de o processo crime ter sido arquivado, por os processos serem autónomos, sendo a recolha de prova e a sua valoração efetuada de forma independente. Defende que não se verifica o alegado erro nos pressupostos de facto, tal como julgou o Tribunal a quo, nem qualquer erro de direito, além de o desvio de dinheiros públicos ser um comportamento grave que justifica a aplicação de uma pena expulsiva, a qual nem sequer foi aplicada à arguida. Pugna por dever ser negado provimento ao recurso. * O processo vai, com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.
II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
Segundo as conclusões do recurso, as questões suscitadas pelo Recorrente, resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento de direito, por violação: 1. do princípio da presunção da inocência do arguido, previsto no artigo 32.º, n.º 2 da CRP e do princípio in dubio pro reo, por não ter ficado provado que a Recorrente tivesse feito seu o dinheiro em falta ou que o tivesse utilizado em proveito próprio e ainda dos artigos 3.º, n.º 1 e 65.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar, por a punição disciplinar ter de assentar em factos que permitam um juízo de certeza sobre a prática da infração disciplinar; 2. do artigo 24.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar por não se ter provado que a Recorrente tenha agido com negligência grave ou manifesto desinteresse pelo cumprimento dos deveres; 3. do artigo 33.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar por não se explicitar a razão porque a pena não foi especialmente atenuada e por violação do princípio da proporcionalidade decorrente da pena de suspensão aplicada.
III. FUNDAMENTOS
DE FACTO O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos: “1. Por despacho do Senhor Presidente do Conselho de Administração do Instituto de Gestão de Regimes da Segurança Social de 16/09/2008, foi aplicada à Autora a pena disciplinar de suspensão efectiva de 240 dias, à qual é descontado o período de 90 dias em que a Autora já esteve suspensa. 2. A Autora é funcionária pública há cerca de 30 anos, exercendo as funções correspondentes às de técnico profissional de Segurança Social - Especialista Principal do Quadro da Ilha de São Miguel, afecta ao Centro de Prestações Pecuniárias de Ponta Delgada. 3. A 09/04/2008, foi deduzida nota de culpa contra a Autora, na qual a Senhora Instrutora do Processo Disciplinar lhe imputa, em síntese, a prática dos seguintes factos: a) Enquanto tesoureira do Serviço Concelhio da Lagoa, recebeu, no dia 25/09/2005, a quantia de € 3 1 .591,05, que consta do movimento financeiro e depositada à ordem da Segurança Social; b) Nestes movimentos não estão incluídos os recebimentos de 18 entidades relevantes, que montam em € 2.295,36, quantia esta em falta nos cofres da Segurança Social; c) Cabe aos tesoureiros zelar pelos fundos públicos colocados sob a sua responsabilidade e guarda, no exclusivo interesse público; d) A Autora locupletou-se indevidamente de dinheiros públicos, desconhecendo-se, em concreto, qual o destino dado àquelas quantias; e) A Autora, com a sua conduta, violou dolosamente os deveres disciplinares de isenção, zelo e lealdade previstos no Estatuto disciplinar. 4. A 03/04/2008, a Autora apresentou a sua resposta à nota de culpa, onde, para além de ter alegado a prescrição do procedimento disciplinar, pugnou pela não imputação dos factos constantes da nota de culpa. 5. A 15/05/2008, a Autora requereu ao Senhor Director do Centro de Prestações Pecuniárias de Ponta Delgada que se dignasse deferir o pedido de pagamento da quantia de € 2.295,36, o que foi autorizado através de desconto no seu vencimento. 6. A 02/06/2008, a Instrutora do Processo Disciplinar carreou para o processo factos novos. 7. A 13/06/2008, a Autora deduziu a sua defesa em resposta aos novos factos que lhe foram imputados. 8. A 09/09/2008, foi elaborado relatório final, onde a Senhora Instrutora formulou as seguintes conclusões: “a) As funções da arguida à altura dos factos eram de tesoureira, exigindo-se, portanto, um comportamento laboral diligente e zeloso de acordo com os procedimentos adoptados; b) À arguida, como tesoureira do Serviço Concelhio da Lagoa, competia a movimentação dos dinheiros públicos, recebendo, registando, contabilizando, depositando e pagando. Como qualquer funcionário público, a arguida conhecia e devia conhecer as normas e orientações superiores e acatá-las com rigor; c) A arguida não justificou, como era seu dever, o destino do dinheiro público em falta; d) Dentro do ónus de prova que lhe competia, com excepção do facto ocorrido a 9 de Agosto de 2004, a Acusação logrou provar os factos imputados à arguida, sendo certo que a esta cabia provar que o dinheiro em falta não foi utilizado em proveito próprio, tanto mais que a ela competia efectuar os depósitos que não foram feitos. Apesar de a arguida contestar o "proveito próprio", não conseguiu provar que não retirou vantagem pecuniária directa, tendo mesmo confirmando-a ao requerer a reposição do valor em falta; e) o facto de estar provado que a arguida estava encarregue de receber os pagamentos devidos à Segurança Social, de os registar, de os contabilizar devidamente e de os depositar, ressalvando os períodos em que estava ausente, "justifica que se formule um juízo probatório no sentido de" a arguida "se ter apropriado da quantia em causa, uma vez que não se vislumbra qualquer explicação plausível" [conforme se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo em Acórdão de 21.05.2008 proferido no Proc. 0989/07, in www.dgsi.pt)], conforme as regras da vida e da experiência comum; f) o comportamento da arguida é grave, reiterado e culposo; g) a arguida violou os deveres de Isenção, zelo e lealdade, ao retirar para si vantagem pecuniária directa, ao não exercer as suas funções com eficiência e correcção e ao não ter desempenhado as suas funções na perspectiva da prossecução do interesse publico; h) a conduta da arguida é especialmente agravada pela produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público e ao interesse geral e pela cumulação de infracções, conforme prescrevem as alíneas b) e g) do n.º 1, do artigo 31.º, do Estatuto Disciplinar; 1) A arguida beneficia da prestação de mais de 10 anos de serviço com exemplar comportamento e zelo (cf'r. Artigo 29.º, a), do Estatuto Disciplinar), bem como ter, no decorrer do processo, requerido a reposição em prestações da maior parte da quantia em falta, tendo, mesmo, já iniciado o pagamento das prestações em dívida no passado mês de Junho (cfr. Artigo 28.º, parte final, do Estatuto Disciplinar)”. 9. A 26/03/2009, o Ministério Público arquivou o inquérito crime que corria contra a Autora, o qual se iniciou com a participação efectuada pela entidade demandada. * B. Factos Não Provados Inexistem factos com interesse para a decisão da causa que importe dar como não provados. * Consigna-se que o Tribunal só atendeu aos factos que, tendo sido oportunamente alegados ou licitamente introduzidos na instrução, se mostraram relevantes para a resolução do litígio, não se pronunciado sobre factos que se mostraram inequivocamente desnecessários para tal efeito, nem sobre factos conclusivos. * C. Motivação de facto A prova dos factos resulta dos documentos juntos aos autos por ambas as partes e do processo instrutor apenso. Teve-se também em consideração a aceitação como verdadeiros de factos alegados pela Autora, conforme resulta do artigo 1° da contestação.”.
DE DIREITO Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional, segundo a sua ordem lógica e de precedência. 1. Erro de julgamento de direito, por violação do princípio da presunção da inocência do arguido, previsto no artigo 32.º, n.º 2 da CRP e do princípio in dubio pro reo, por não ter ficado provado que a Recorrente tivesse feito seu o dinheiro em falta ou que o tivesse utilizado em proveito próprio e ainda dos artigos 3.º, n.º 1 e 65.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar, por a punição disciplinar ter de assentar em factos que permitam um juízo de certeza sobre a prática da infração disciplinar Vem a Recorrente a juízo interpor recurso do acórdão que julgou a ação improcedente, mantendo a decisão punitiva na ordem jurídica, invocando o erro de julgamento de direito, por violação do princípio da presunção da inocência do arguido, previsto no artigo 32.º, n.º 2 da CRP e do princípio in dubio pro reo, por não ter ficado provado que a Recorrente tivesse feito seu o dinheiro em falta ou que o tivesse utilizado em proveito próprio. Defende que na dúvida, o arguido tem de ser absolvido, cabendo à Administração o ónus da prova dos factos constitutivos ou integrativos da infração. Não impende sobre o arguido do processo disciplinar o ónus de reunir as provas, antes recaindo sobre a Administração comprovar os factos imputadas à arguida. Além de defender que se encontram violados os artigos 3.º, n.º 1 e 65.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar, por a punição disciplinar ter de assentar em factos que permitam um juízo de certeza sobre a prática da infração disciplinar, sem que existam provas que a arguida tenha utilizado o dinheiro em proveito próprio. Vejamos. De imediato se impõe dizer não dirigir a Recorrente qualquer erro de julgamento da matéria de facto ao acórdão recorrido, conformando-se com os factos que nele foram dados por provados, nos seus exatos termos. Pelo que, importa analisar a factualidade julgada provada para, com base nela, se apreciar do invocado erro de julgamento de direito do acórdão recorrido. Na sequência da instauração de processo disciplinar à Autora, ora Recorrente, foi deduzida acusação, sendo imputado à arguida o facto de, enquanto tesoureira do Serviço Concelhio da Lagoa, do Centro de Prestações Pecuniárias da Segurança Social da ilha de São Miguel, no dia 25/09/2005, ter recebido a quantia de € 31.591,05 que consta do movimento financeiro e depositada à ordem da Segurança Social, assim como, nos movimentos realizados não estarem incluídos os recebimentos de 18 entidades relevantes, que importam a quantia de € 2.295,36, quantia esta que falta aos cofres da Segurança Social. A arguida era tesoureira e no respetivo exercício de funções cabia-lhe a movimentação de dinheiros públicos, recebendo, registando, contabilizando, depositando e pagando, sem que tivesse justificado o destino do dinheiro em falta. Cabia à arguida efetuar os depósitos que não foram efetuados. O que implica que a acusação tenha entendido que a arguida se tenha locupletado indevidamente de dinheiros públicos, em violação dolosa dos deveres disciplinares de isenção, zelo e lealdade, embora se desconheça, em concreto, qual o destino dado àquelas quantias. A arguida respondeu à nota de culpa, negando a imputação dos factos dela constantes e, posteriormente, veio a requerer o deferimento do pedido de pagamento da quantia de € 2.295,36, o que foi autorizado, mediante o respetivo desconto no vencimento. Seguiu-se o relatório final que concluiu pela prática da infração disciplinar, por violação dos deveres de isenção, zelo e lealdade, ao retirar para si vantagem pecuniária direta e ao não exercer as funções com eficiência e correção, assim como ao não desempenhar as suas funções na perspetiva da prossecução do interesse público. Em face dos factos que se dão como provados no julgamento da matéria de facto, assim como a versão dos factos apresentada pela Autora, ora Recorrente decorre que não se mostram questionados, os seguintes factos: (i) a arguida à data dos factos era tesoureira, integrando o seu conteúdo funcional, estar encarregue de receber os pagamentos devidos à Segurança Social, de os registar, de os contabilizar e de os depositar, tendo o dever da sua guarda; (ii) através de diversos movimentos realizados por 18 entidades, deu entrada nos serviços a quantia de € 2.295,36, encontrando-se esse dinheiro em falta nos cofres da Segurança Social, por não terem sido feitos os respetivos depósitos; (iii) que a arguida requereu o pagamento da citada quantia, o que foi autorizado mediante o respetivo desconto no vencimento. Toda esta citada factualidade se encontra inteiramente afirmada no âmbito do processo disciplinar, foi dada como provada no relatório final e considerada no ato punitivo e não foi negada pela Autora, nem no processo disciplinar, nem em juízo, seja na petição inicial, seja no presente recurso. O que se mostra alegado pela arguida na resposta à nota de culpa é que não se recordava de ter verificado qualquer desconformidade de valores entre o somatório constante das folhas entregues e com o montante de dinheiro deles recebido, contado e depositado, o que, em rigor, não se traduz numa negação por si dos factos relativos às apontadas desconformidades entre o dinheiro recebido e o depositado. Além de ainda invocar na resposta à nota de culpa não poder agora justificar uma eventual falta de lançamento das indicadas guias, nem o paradeiro dos respetivos valores. A defesa apresentada pela arguida não negou a discrepância entre os valores recebidos e os registados e depositados, do mesmo modo que não negou que exercesse as funções descritas. Pelo que, ao contrário do alegado no presente recurso, não pode deixar de se entender que a arguida foi sancionada pela violação de deveres funcionais e que os factos que subjazem a esses ilícitos disciplinares se encontram integralmente demonstrados no âmbito do processo disciplinar, por nem sequer terem sido negados pela arguida. Os factos descritos foram valorados como traduzindo a violação dos deveres gerais de lealdade, isenção e zelo, a que estão obrigados os trabalhadores da função pública, nos termos do artigo 3.º do Estatuto Disciplinar. Assim, é de entender no sentido de não assistir razão à Recorrente, por os factos descritos permitirem a sua integração na violação dos deveres gerais imputados e, consequentemente, nas infrações disciplinares correspondentes, preenchendo os tipos de ilícito disciplinar pelos quais a arguida, ora Recorrente, foi sancionada. Em face do que resulta do teor do Relatório Final, carece totalmente de sentido o alegado pelo Recorrente no presente recurso, pois resulta provada a prática dos atos ilícitos e, atenta a gravidade dos factos, também uma forte intensidade no grau de culpa da arguida. A ora Recorrente não só não só não conseguiu abalar a prova produzida no âmbito do procedimento disciplinar, como nenhum facto ou prova alega, de forma a pôr em causa a factualidade pelo qual foi sancionada. Segundo o n.º 1 do artigo 3.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, em vigor à data dos factos, aprovado pelo D.L. n.º 24/84, de 16/01, “Considera-se infracção disciplinar o facto, ainda que meramente culposo, praticado pelo funcionário ou agente com violação de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce.”. Nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do citado Estatuto Disciplinar, são deveres gerais dos trabalhadores: “a) O dever de isenção; b) O dever de zelo; (…) d) O dever de lealdade; (…)”. O dever de isenção consiste em não retirar vantagens directas ou indirectas, pecunárias ou outras, das funções que exerce, actuando com independência em relação aos interesses e pressões particulares de qualquer índole, na perspectiva do respeito pela igualdade dos cidadãos, segundo o n.º 5 do artigo 3.º do Estatuto Disciplinar. O dever de zelo consiste em conhecer as normas legais regulamentares e as instruções dos seus superiores hierárquicos, bem como possuir e aperfeiçoar os seus conhecimentos técnicos e métodos de trabalho de modo a exercer as suas funções com eficiência e correção. O dever de lealdade consiste em desempenhar as suas funções em subordinação aos objetivos do serviço e na perspetiva da prossecução do interesse público. Analisados os factos, é de entender no sentido decidido pelo acórdão recorrido, de que, tal como resulta do ato impugnado, os factos dados como provados no processo disciplinar permitem concluir pela violação dos deveres gerais de isenção, de zelo e de lealdade. Por conseguinte, não assiste razão à Recorrente quando alega a violação do princípio da presunção da inocência, previsto no artigo 32.º, n.º 2 da CRP e do princípio in dubio pro reo, por não ter ficado provado que a arguida tivesse feito seu o dinheiro em falta ou que o tivesse utilizado em proveito próprio, pois encontra-se inteiramente demonstrado o desaparecimento do dinheiro, assim que a arguida era responsável por ele, considerando as funções exercidas, tendo o dever funcional de prestar contas das quantias que movimenta e que recebe, assim como de justificar qualquer discrepância entre as quantias recebidas e as quantias depositadas. Tanto mais, que segundo a factualidade apurada no processo disciplinar não se tratou da discrepância de uma única verba ou falta do depósito de um único movimento, mas antes de vários movimentos que não foram registados e depositados, relativos aos recebimentos de 18 entidades, cujos quantitativos estavam em falta no cofre da Segurança Social. Não se tratou, por isso, de uma falha cometida no exercício das funções, mas de um conjunto expressivo de atos que se vieram a traduzir na falta de zelo pelos fundos públicos colocados sob a responsabilidade e guarda da arguida e no locupletamento indevido de dinheiros públicos, ainda que se desconheça qual o destino dado a esse dinheiro. Mesmo que não se tenha provado qual o destino dado ao dinheiro, não deixaram tais valores monetários de ser desviados, sendo retirados ou subtraídos ilicitamente dos cofres da Segurança Social, a qual ficou privada do seu respetivo valor económico, estando em causa dinheiros públicos. Além de não se poder deixar de se considerar a factualidade demonstrada no probatório de, na pendência do processo disciplinar, a arguida ter requerido o pagamento da quantia em falta. Do mesmo modo, não incorre a decisão incorrida em erro quanto à interpretação e aplicação dos artigos 3.º, n.º 1 e 65.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar, em vigor à data dos factos, aprovado pelo D.L. n.º 24/84, de 16/01. Nos termos analisados, a decisão punitiva não assentou em meras ilações ou conjeturas, mas em factos concretos, que foram apurados sob o respeito das garantias de defesa da arguida, donde resulta a prática dos ilícitos disciplinares pela arguida, ora Recorrente. Termos em que, em face de todo o exposto, improcedem, por não provados, os fundamentos do recurso, não incorrendo o acórdão recorrido nos erros de julgamento invocados, quer no tocante à violação do princípio da presunção da inocência e do princípio in dubio pro reo, quer quanto à violação dos citados preceitos do Estatuto Disciplinar.
2. Erro de julgamento de direito, por violação do artigo 24.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar por não se ter provado que a Recorrente tenha agido com negligência grave ou manifesto desinteresse pelo cumprimento dos deveres Insurge-se a Recorrente contra o acórdão recorrido com o fundamento de incorrer na violação do artigo 24.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar por não se ter provado que a Recorrente tenha agido com negligência grave ou manifesto desinteresse pelo cumprimento dos deveres. Alega que a pena de suspensão é aplicável aos funcionários e agentes no caso de negligência grave ou de grave desinteresse pelo cumprimento de deveres profissionais, nomeadamente nos casos previstos nas alíneas a) a h) do referido preceito, tendo o acórdão recorrido se limitado a concluir que existe um comportamento culposo e grave da arguida. Vejamos. Nos termos antecedentes não podem existir dúvidas quanto à prática da infração disciplinar pela qual a arguida foi sancionada, a qual não pode deixar de estar associado um elevado grau de culpa, condizente com o preenchimento do elemento da culpa. Verificam-se os elementos subjetivo e objetivo da infração disciplinar, quer quanto à prática do facto ilícito, quer quanto à respetiva imputação ao agente, no que concerne à culpa. Considerando a natureza dos atos praticados, quer a sua expressão quanto ao número de atos praticados, por estarem em causa movimentos financeiros de recebimentos de verbas provenientes de 18 entidades, que deixaram de dar entrada nos cofres da Segurança Social, não pode deixar de considerar-se existir um grau de culpa grave ou de atuação sob a forma dolosa. Apenas por consideração da existência de atenuantes, a atuação da arguida é compatível com a previsão normativa do artigo 24.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar, quanto a existir negligência grave ou grave desinteresse pelo cumprimento de deveres profissionais. Nem se vê como possa deixar de assim ser entendido, o que a ora Recorrente também não concretiza, limitando-se a invocar a errada interpretação do artigo 24.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar. Pelo que, improcede, por não provado, o fundamento do recurso, não incorrendo o acórdão recorrido no invocado erro de julgamento de direito. 3. Erro de julgamento de direito, por violação do artigo 33.º, n.º 1 do Estatuto Disciplinar por não se explicitar a razão porque a pena não foi especialmente atenuada e por violação do princípio da proporcionalidade decorrente da pena de suspensão aplicada Por último, alega a Recorrente o erro de julgamento, por violação do princípio da proporcionalidade e por se verificarem circunstâncias suficientes para determinar a suspensão da execução da pena aplicada, como previsto no artigo 33.º do Estatuto Disciplinar. Vejamos. O desvio de dinheiros públicos constitui fundamento para aplicação da pena de demissão, nos termos do disposto no artigo 26.º, n.º 4, d) do Estatuto Disciplinar, pelo que, desde logo resulta que foi aplicada pena disciplinar menos gravosa da que se encontra prevista para a prática do ilícito disciplinar em questão. O que significa que, ao contrário do que se mostra invocado pela Recorrente no presente recurso, foram consideradas circunstâncias atenuantes da pena, como o número de anos de trabalho prestados, a personalidade da arguida e a restituição voluntária das quantias em falta. Isso mesmo se mostra expressamente aduzido no Relatório Final em que se se fundamenta o ato punitivo, que considera a aplicação do disposto no artigo 29.º, a) do Estatuto Disciplinar, pelo que, também não assiste razão à Recorrente ao invocar não serem apresentadas as razões para não aplicar a atenuação especial da pena. Consta da alínea i) do relatório final que a arguida beneficia da prestação de mais de 10 anos de serviço com exemplar comportamento e zelo e de no decorrer do processo disciplinar ter requerido a reposição em prestações da maior parte da quantia em falta, tendo já iniciado o pagamento das prestações em dívida. Por conseguinte, baseia a Recorrente o presente recurso em fundamentos que não têm a menor razão de ser, por serem contrariados pelo julgamento da matéria de facto assente. O Recorrido aplicou pena disciplinar menos grave da que legalmente se encontra prevista para o tipo de ilícito disciplinar cometido pela arguida, considerando as atenuantes verificadas, nos termos aduzidos no relatório final e supra explanados, pelo que, é manifesta a falta de razão da Recorrente ao invocar a violação do princípio da proporcionalidade da medida da pena disciplinar aplicada ou sequer que não tenham sido consideradas atenuantes. Pelo que, improcede o fundamento do recurso, por não provado. * Em consequência, será de negar provimento ao recurso, por não provados os seus fundamentos, mantendo-se o acórdão recorrido, que julgou a ação administrativa improcedente, mantendo o ato impugnado, de aplicação da pena disciplinar de suspensão à Autora, ora Recorrente, na ordem jurídica. * Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma: I. Não incorre em violação do princípio da presunção da inocência, nem do princípio in dubio pro reo a decisão que sanciona a prática de desvio de dinheiros públicos por parte de uma funcionária, com as funções de Tesoureira, a quem competia a movimentação de dinheiros públicos, recebendo, registando, contabilizando, depositando e pagando, sendo comprovadas as discrepâncias entre os movimentos das quantias recebidas e as que deram entrada nos cofres do serviço, se além de essas discrepâncias não serem negadas, não são apresentadas razões que as justifiquem e existe o pagamento voluntário da quantia desviada, mediante desconto no vencimento. II. Não se mostra violado o princípio da proporcionalidade na aplicação da pena disciplinar de suspensão de 240 dias, descontado o período da suspensão, considerando que o desvio de dinheiros públicos integra a previsão legal do disposto no artigo 26.º, n.º 4, d) do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo D.L. n.º 24/84, de 16/01, na pena de demissão, a qual não foi aplicada por consideração de circunstâncias atenuantes. * Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, por não provados os seus fundamentos, mantendo-se o acórdão recorrido, que julgou a ação improcedente, mantendo o ato impugnado, de aplicação de pena de suspensão na ordem jurídica. Custas pela Recorrente. Registe e Notifique. (Ana Celeste Carvalho - Relatora) (Pedro Marques) (Alda Nunes) |