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PROCESSO |
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DATA DO ACÓRDÃO | 02/01/2011 | ||
SECÇÃO | 1ª SECÇÃO |
RE | ![]() |
MEIO PROCESSUAL | REVISTA |
DECISÃO | NEGADA A REVISTA |
VOTAÇÃO | UNANIMIDADE |
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RELATOR | PAULO SÁ |
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DESCRITORES | ACIDENTE DE VIAÇÃO SEGURADORA DIREITO DE REGRESSO DANOS |
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ÁREA TEMÁTICA | DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES |
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LEGISLAÇÃO NACIONAL | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, Nº 1, 494.º, 497.º, Nº2, E 562.º CÓDIGO COMERCIAL: - ARTIGOS 9.º, NºS 1 E 3, 429.º DL N.º 522/85, DE 31-12: - ARTIGOS 8.º, 19.º |
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JURISPRUDÊNCIA NACIONAL | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 27.01.1993, PROC. 083120, DE 7.12.1994, PROC. 085709, DE 05.03.1996, PROC. 087896, DE 06.05.1999, PROC. 99B356, DE 16.12.1999, PROC. 99B787, DE 28.02.2002, PROC. 02A192, DE 29.11.2005, PROC. 05B3380, DE 30.05.2006, PROC. 06A1219 E DE 31.01.2007, PROC. 06A4637, TODOS EM WWW.DGSI.PT; -DE 14.1.97, CJSTJ ANO V, TOMO 1, P. 67 E DE 9.12.04, PROFERIDO NA REVISTA 2876, 1.ª SECÇÃO, IN SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS N.º 86, P. 23. ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR N.º 6, DE 28.5.2002. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: -DE 2 DE MAIO DE 2000 (CJ, 2000, TOMO III, P. 175). |
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SUMÁRIO | O direito de regresso conferido à seguradora, nos termos do art. 19.º, al. c), do DL n.º 522/85, de 31-12, apenas abrange os danos derivados do abandono da vítima ou o agravamento dos danos causados pelo acidente, decorrente desse abandono, e não a totalidade dos danos originados pelo acidente e que a seguradora indemnizou. |
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DECISÃO TEXTO INTEGRAL | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Em 8 de Outubro de 2008, a AA-G... Companhia de Seguros S.A, instaurou, no Tribunal da Comarca de Ovar, acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB, pedindo a condenação da Ré no pagamento de € 420.856,39, acrescidos de juros de mora vencidos, desde a interpelação ao pagamento, e vincendos, até integral pagamento. Para tanto alega, em síntese: Celebrou com a Ré um contrato de seguro do ramo automóvel. A Ré, conduzindo o veículo segurado, teve um acidente de viação, do qual foi a única culpada, tendo a Autora sido condenada judicialmente a pagar as indemnizações dos danos causados. A Ré abandonou os sinistrados nesse acidente, pelo que a Autora tem direito de regresso relativamente às indemnizações que pagou. Regularmente citada, a Ré contestou, invocando em resumo: O abandono pela Ré dos sinistrados não foi causa de quaisquer danos ou sequer do agravamento dos danos, nem tal vem alegado, pelo que a Autora não tem direito de regresso relativamente às quantias que pagou. Foi proferido saneador/sentença, no qual se decidiu julgar a acção não provada e improcedente e, consequentemente, absolver a Ré do pedido. Inconformada com esta sentença dela apelou a Autora, sem êxito, já que a Relação confirmou o saneador-sentença recorrido. Desta decisão recorre, de novo, a A, como revista excepcional, para este STJ, recurso que foi admitido. A recorrente conclui as suas alegações do seguinte modo: 1. A ora recorrente não se conforma com o douto Acórdão que julga a apelação improcedente e consequentemente mantêm a decisão recorrida. 2. Os requisitos para a admissibilidade do recurso de revista excepcional encontram-se totalmente preenchidos pelo que deve o mesmo ser admitido. 3. O valor da presente causa é superior ao valor da alçada do Tribunal da Relação. 4. A sucumbência da ora recorrente é superior a metade do valor do Tribunal da Relação. 5. A decisão de 1ª instância que pôs termo ao processo julgou a acção totalmente improcedente absolvendo a Ré do pedido. 6. O Acórdão da Relação do Porto manteve a decisão recorrida, sem voto de vencido, e assim ao abrigo do art. 721º n.º 3 do CPC este ultimo acórdão já não é passível de recurso ordinário de revista. 7. O Acórdão da Relação do Porto encontra-se em contradição com os seguintes Acórdãos: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-07-2003, Processo 03B12771, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/04/95 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/99 todos in www.dgsi.pt, o quais transitaram em julgado e se debruçaram sobre a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação 8. O Acórdão da Relação do Porto ora objecto de Revista Excepcional debruçou-se, unicamente, sobre uma questão de direito, a de decidir se o direito de regresso, com base no art. 19º alínea c) do D.L 522/85 decorre automaticamente da circunstância do abandono do sinistrado. 9. Tendo decidido que a seguradora apenas tem direito de regresso em relação ao seu segurado, no caso de este ter causado o acidente e ter abandonado a vítima, quanto ao montante pago em consequência deste ultimo e não da indemnização paga por todo o acidente. 10. Ora os doutos Acórdãos: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-07-2003, Processo 03612771, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/04/95 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/99 decidindo no âmbito da mesma matéria que o Acórdão da Relação do Porto tomaram posição totalmente diversa deste último. 11. Com efeito, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça nos Acórdãos supra citados que a alínea c) do art. 19 do D.L. 522/85, relativamente à questão do direito de regresso no caso de abandono do sinistrado, não faz qualquer distinção ou impõe qualquer restrição em relação à sua aplicação. 12. Mais decidiram que, em caso de abandono do sinistrado a seguradora tem direito de regresso sobre todas as quantias pagas independentemente das condições em que teve lugar e das repercussões que tenha tido sobre os prejuízos causados à vitima. 13. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-07-2003, Processo 03B12771, considerou que os casos de abandono de sinistrado não podem nem devem ser comparados e tratados por analogia à condução sob o efeito do álcool, repudiando o recurso à aplicação do Acórdão Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002, o qual foi citado para fundamentar a posição perfilhada pelo Acórdão da Relação do Porto ora objecto de recurso. 14. A ora recorrente considera que, o douto Acórdão da Relação do Porto ora objecto de recurso viola o disposto no art. 19º alínea c) do D.L. 522/85. 15. A ora recorrente fez prova de toda a matéria de facto por si alegada, não tendo a mesma sido objecto de impugnação pela recorrida, que aceitou todos os factos alegados, nomeadamente as quantias por si pagas. 16. Nos termos do artigo 5º do DL 522/85 de 31 de Dezembro, a seguradora (ora recorrente) tem a obrigação de proceder à reparação de todos os danos, até ao limite de capital seguro, sofridos pelos terceiros em decorrência directa do acidente dos presentes autos, obrigação essa que pontualmente cumpriu. 17. A condutora do veículo seguro na ora recorrente abandonou os sinistrados à sua sorte após lhes ter embatido. 18. Por tal facto foi a mesma condenada pela prática de um crime de omissão de auxílio previsto e punido no artigo 200º n.º 2 do C.P, por sentença, transitada em julgado. 19. No cumprimento do contrato de seguro o segurado tem o dever de agir de boa fé, abstendo-se de praticar comportamentos que agravem o risco coberto pela apólice. 20. Ao estabelecer, no D.L. 522/85, o direito de regresso para os casos de abandono do sinistrado o legislador quis evitar que os condutores por ventura alcoolizados ou sem habilitação legal para conduzir contornassem e se furtassem à responsabilidade penal e ao exercício do direito de regresso por parte da seguradora, inviabilizando a produção de prova. 21. O âmbito do art. 19 alínea c) do D.L 522/85 funda-se numa ideia de intenção preventiva e sancionatória dos prevaricadores, tão premente no nosso pais nos dias que correm. 22. A alínea c) do art. 19º do D.L 522/85, no tocante ao reembolso por abandono do sinistrado não faz qualquer distinção, nem estabelece a preexistência de nexo causal entre o agravamento dos danos e o direito de regresso, pelo que será inconstitucional fazer uma interpretação restritiva, sem qualquer fundamento na letra da lei. 23. Se o legislador pretendesse limitar o direito de regresso pelo abandono às situações de agravamento não deixaria de acrescentar essa restrição como o fez em relação ao sinistro ocorrido com veículo que não foi submetido à inspecção periódica e igualmente sobre ele e não sobre a seguradora deveria incidir o ónus da prova de que o abandono não agravou os danos. 24. Podemos assim, concluir que estão preenchidos todos os requisitos da alínea c) do Art.19º do DL 522/85 de 31 de Outubro, que facultam à seguradora o direito de regresso aqui invocado, conforme resulta dos acórdãos do STJ acima mencionados de entre outros. 25. Desta forma, tem a ora recorrente direito de regresso sobre a recorrida da quantia de 420.856,38 € despendida por conta da regularização do acidente dos presentes autos. 26. Nestes termos deve a presente Revista Excepcional ser concedida, condenando-se a Ré no pagamento da quantia de 420.856,38 €. A R. apresentou contra-alegações, pugnando pelo não conhecimento ou pela improcedência do recurso. II. Fundamentação De Facto II.A. É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida: 1. A autora exerce a indústria de seguros em vários ramos. 2. No exercício da sua actividade, celebrou com a ré um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice nº ------------, que transmitia para si a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-...-MG. 3. No dia 17 de Novembro de 2001, pelas 22.45 horas, ocorreu um acidente na Rua de G..., em E..., provocado pelo veículo de matrícula ...-...-MG, conduzido pela Ré. 4. A ré circulava na Rua de G..., no sentido Sul/Norte, na hemi-faixa da direita, atento o seu sentido de marcha. 5. A certa altura, por força da velocidade a que seguia, sem qualquer causa externa perdeu o controlo da sua viatura, entrando em despiste e invadindo a faixa de rodagem destinada à circulação em sentido contrário ao seu. 6. Nessa faixa de rodagem foi colher, com a parte dianteira do seu veículo, CC e DD, que se encontravam a conversar junto da porta do estabelecimento que ladeava a estrada. 7. Nessa data, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do veículo ...-...-MG encontrava-se transferida para a autora através do contrato de seguro titulado pela apólice nº ------------. 8. Em sequência do embate, CC foi projectado a uma distância de cerca de 5 metros e DD a cerca de 20 metros, tendo ambos ficado prostrados no solo, inanimados, junto do limite esquerdo da faixa de rodagem atento o sentido de marcha da ora R. 9. Em consequência directa do acidente CC sofreu lesões traumáticas crânio-encefálicas que foram causa directa e necessária da sua morte e DD sofreu fractura cominutiva do fémur esquerdo e traumatismo crânio-encefálico, que lhe determinaram 73 dias de doença, 17 dos quais com incapacidade para o trabalho, ficou a padecer de uma IPG de 10%, acrescida de 5% a título de dano futuro, dano estético de grau 2/7, quantum doloris de grau 3/7 e prejuízo de afirmação pessoal de grau 2/5. 10. Não obstante a ocorrência do acidente, a Ré prosseguiu a sua marcha, apenas imobilizando o seu veículo a cerca de 150 metros do local do embate, momento em que apagou as luzes dos faróis do seu veículo e abandonou o local. 11. A ora Ré, apesar de se ter apercebido do embate por si provocado, não cuidou de se inteirar do estado das vítimas, nem de lhes providenciar por socorro, não obstante saber que careciam de cuidados primários de saúde. 12. Pelo contrário, prosseguiu a sua marcha e apagou as luzes do seu veículo, dificultando a sua identificação. 13. A ré sabia que existe o dever de socorro de terceiros intervenientes em acidentes de viação e que ao não ter socorrido as vitimas, o que fez de forma livre e consciente, omitia o cumprimento do dever de auxilio a que estava obrigada. 14. A ré agiu voluntária e conscientemente, sabendo que praticava factos ilícitos, criminal e civilmente puníveis. 15. Devido aos factos supra descritos, o Ministério Publico acusou a ora Ré da prática de um crime de homicídio por negligência, de um crime de ofensas à integridade física por negligência e de um crime de omissão de auxílio, p.p. pelo artigo 200.º, n.º 2, do Código Penal. Mediante decisão judicial transitada em julgado, a ré foi condenada pela prática, em concurso real, de um crime de homicídio por negligência, de um crime de ofensas à integridade física por negligência e de um crime de omissão de auxílio. 16. Dada a transferência da responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ...-...-MG, a autora foi condenada na reparação integral dos danos causados pela ré no sinistro. 17. Em cumprimento pontual da decisão judicial, a autora procedeu ao pagamento de todas as quantias a que estava obrigada, nomeadamente: a) Em 27 de Fevereiro de 2007, ao Hospital Geral de Santo António, S.A., a indemnização de € 5.742,33; b) Em 27 de Fevereiro de 2007, ao Hospital de S. Sebastião, a indemnização de € 401,86; c) Em Fevereiro de 2007, ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social, a indemnização de € 19.831,59; d) Em 28 de Fevereiro de 2007, aos herdeiros de CC, a indemnização de € 341.720,80; e) Em 9 de Março de 2007, a DD de Oliveira, a indemnização de € 50.668,58; f) Em 26 de Maio de 2009, ao Hospital Francisco Zagalo, a indemnização de € 2.491,21. 18. A autora despendeu com a regularização do sinistro supra descrito a quantia global de € 420.856,39. II.B. De Direito Suscita a recorrente apenas a questão relativa ao correcto entendimento sobre o direito de regresso da seguradora, no caso de abandono de sinistrado. II.B.1. Sobre esta questão, duas orientações se confrontam. De um lado, a perfilhada na decisão recorrida. De outro, a sufragada nos acórdãos invocados como fundamento. No acórdão recorrido sustentou-se que “[c]omo é sabido estabelece-se na alínea c), do art. 19º, do Decreto-Lei 522/85 que satisfeita a indemnização a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas, ou produtos tóxicos ou quando haja abandonado o sinistrado. Não obstante se estar aqui apenas a analisar e decidir um caso respeitante a abandono de sinistrado, tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/05/2006, in www.dgsi.pt/jstj citado na sentença recorrida «é seguro que ele tem de suportar o mesmo enquadramento jurídico do caso de condução sob a influência do álcool, pois, ambas as situações apresentam, indubitavelmente, fortes pontos de contacto». E, continuou nesta via o acórdão recorrido ao sustentar que “este é o sentido que mais se aproxima da ratio do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002 respeitante ao direito de regresso no caso de condução sob influência do álcool, sendo esse sentido que no Supremo Tribunal de Justiça e nesta Relação tem sido predominante pelo que também perfilhámos o entendimento de que «a seguradora apenas tem direito de regresso em relação ao seu segurado, no caso de este ter causado o acidente e ter abandonado a vítima, quanto ao montante pago em consequência deste último e não da indemnização paga por todo o acidente».” No acórdão deste Tribunal de 03.07.2003, que se opõe à interpretação, dita restritiva, do direito de regresso, fundado no abandono do sinistrado, contesta--se tal interpretação pelas seguintes razões: a) o direito de regresso nessa situação foi previsto na lei, sem similitude com as legislações que inspiraram a nossa legislação sobre seguro obrigatório, nada permitindo concluir que visa facultar a recuperação pela seguradora do que pagou para além do risco assumido, tendo que se entender fundado em razões de interesse geral, visando prevenir um comportamento particularmente reprovável; b) não é possível extrair um argumento de apoio do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2002, uma vez que a interpretação nele sufragada apenas vale para a expressão “agido sob o efeito do álcool”. c) só no caso da alínea f) (falta de apresentação do veículo a inspecção periódica) se prevê a exclusão do direito de regresso, se o responsável por essa apresentação "provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo", pelo que a interpretação restritiva da alínea c), se não justificaria pelo confronto com aquela e por tal interpretação não ser válida para as outras hipóteses da mesma alínea c), designadamente a de falta de habilitação legal para a condução. Já no acórdão de 04.04.95 sustenta-se: a) das diversas hipóteses previstas no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85 verifica-se que a exclusão de tal garantia é determinada, nuns casos, por elementares princípios de justiça, em outros por agravamento injustificado ou indesculpável dos riscos próprios da condução e em outros ainda por motivos de ordem moral; b) O caso de o condutor ter "abandonado o sinistrado", previsto na alínea c), só pode justificar-se por razões de ordem moral e não se afigura haver fundamento para que o direito de regresso apenas se reporte aos "danos acrescidos" ou directamente resultantes desse abandono. c) a expressão “abandono do sinistrado" deve ser interpretada, literalmente, no sentido de abranger apenas o abandono voluntário. Finalmente, no acórdão de 29.04.99 argumenta-se no mesmo sentido, pelas seguintes razões: a) razões de justiça e de prevenção do acidente levam o legislador, a introduzir fenómenos de personalização da responsabilidade, ao consagrar o direito de regresso nas situações previstas nas diversas alíneas do art. 19.º contra o causador do acidente que o tenha provocado com dolo; b) A letra do preceito e ainda o espírito de prevenção que lhe preside convencem que o abandono voluntário do sinistrado confere direito de regresso à seguradora, independentemente de ele ter agravado os danos. Começaremos por dizer que a posição que a recorrente vem defendendo não é sufragada neste Supremo Tribunal por outras, publicadas no sítio, diversas das invocadas. A posição contrária é, reportando-nos às publicadas em www.dgsi.pt, claramente maioritária, tendo sido acolhida nos acórdãos de 27.01.1993, proc. 083120, de 7.12.94, proc. 085709, de 05.03.1996, proc. 087896, de 16.12.1999, proc. 99B787, de 28.02.2002, proc. 02A192, de 29.11.2005, proc. 05B3380, de 30.05.2006, proc. 06A1219 e de 31.01.2007, proc. 06A4637 (e ainda nos de 14.1.97, CJSTJ Ano V, tomo 1, p. 67 e de 9.12.04 (processado nos termos do art. 728.º, 2 do CPC – cinco vistos), proferido na Revista 2876 1.ª secção, in Sumários de Acórdãos n.º 86, p. 23). A argumentação que defende esta posição assenta nestes pressupostos: No seguro obrigatório, a seguradora é a principal responsável pelos danos derivados dos acidentes de trânsito. Com a celebração do contrato de seguro cada um das partes fica sujeita a certas e determinadas obrigações, correspondentes a outros tantos direitos da contraparte. O contrato de seguro, apesar de obrigatório, não deixa de ser aleatório, o que significa que a seguradora tem a noção precisa dos riscos que assume ao segurar um dado veículo. Mas tais riscos devem ser concretos e daí que a falta de exactidão dos elementos determinantes na sua elaboração/celebração dá lugar à nulidade do contrato, ou, para sermos mais precisos, à sua anulabilidade (cfr. art.º 429.º do C. Comercial). O legislador de 1985 entendeu que era justo o equilíbrio de prestações estabelecido entre a seguradora e o tomador do seguro e daí que este passasse a estar certo que, houvesse o que houvesse, sempre estaria livre de responsabilidade perante terceiros. Mas, como sempre, a regra comporta excepções. Não seria justo que, em certos e determinados casos, a seguradora respondesse sem mais, apesar de os mesmos não terem feito parte da base negocial que serviu de fundamento à celebração do contrato. Estamos perante as situações previstas no art. 19.º do citado Decreto-Lei n.º 522/85. Seria contrária à ideia de Direito e, portanto, transgressora dos princípios da boa-fé, a lei que obrigasse a seguradora, depois de ter assegurado, perante terceiros, as indemnizações devidas nesses casos, a permanecer na mesma situação patrimonial, ou seja, que não tivesse direito de regresso sobre o tomador ou outros responsáveis. O seguro de responsabilidade por danos de circulação automóvel sempre visou dois interesses: o dos segurados (o seguro é contratado por quem quer tutelar o seu próprio património contra eventuais elevadas obrigações de indemnizar) e o da vítima (os seus direitos ficam fortemente garantidos contra a possível insolvência do devedor). De facto, a partir do momento em que o seguro, de facultativo se transformou em seguro obrigatório, tornou-se claro que o interesse de protecção das vítimas passou para primeiro plano, como o interesse de maior valor cuja defesa se impunha assegurar. Dado o fim fundamental do seguro obrigatório (garantia ao lesado, nos limites quantitativos estabelecidos pela lei e para os danos previstos, a obtenção da indemnização em todas as hipóteses em que alguém possa ser chamado a indemnizar – LEITE DE CAMPOS, O Seguro de Responsabilidade Civil em Acidentes de Viação, p. 43), os diversos sistemas jurídicos tendem a apresentar determinadas características comuns, entre as quais sobressaem: atribuição ao lesado de um direito contra o segurador, garantido por uma acção directa; impossibilidade de oposição, por parte do segurador, de algumas, ou mesmo a totalidade das excepções que poderiam opor ao segurado com base no contrato de seguro... (SINDE MONTEIRO, Reparação dos Danos em Acidente de Trânsito, p. 142). No nosso sistema legal, por um lado, o contrato de seguro obrigatório vem a cobrir a responsabilidade tanto do tomador do seguro e de todo e qualquer legítimo condutor do veículo como as dos autores de furto, roubo, furto de uso de veículos ou dos que causam dolosamente o acidente (artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro) e, por outro lado, a seguradora só pode opor aos lesados as excepções previstas no artigo 14.º daquele diploma legal. A responsabilidade civil muda completamente de fisionomia: de instituto destinado a endossar a um indivíduo as consequências patrimoniais dos seus actos transforma-se... "em instrumento jurídico e técnico da pretensão ao seguro"… ou "em simples instrumento de limitação da garantia fornecida pelo segurador (SINDE MONTEIRO, obra citada, pp. 147 e 481). Apesar de o seguro obrigatório ter mudado a fisionomia da responsabilidade civil, o certo é que continua a ser um seguro pessoal e não real. O que se transfere para o segurador é a responsabilidade de alguém enquanto detentor de determinado veículo e não o próprio veículo. Logo, a seguradora terá direito de regresso, se satisfazer as indemnizações pelas quais o seu segurado não responde pessoalmente. É, pois, por o segurado não ser responsável, que a seguradora, garante dessas indemnizações, tem direito de regresso contra os responsáveis pelos danos causados a terceiros. A medida do direito de regresso da seguradora será aferida pela não responsabilidade do segurado nos danos causados a terceiros. Equivale a dizer que pode haver uma concorrência de responsabilidade do segurado e de terceiros nos danos causados aos lesados. Haverá que definir o âmbito de cada uma das responsabilidades (através das culpas e das consequências que delas advierem. Esta é a perspectiva segundo a qual se tem de encarar o direito de regresso do segurador que satisfaz a indemnização, contra o condutor que haja abandonado o sinistrado (artigo 19.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 522/85). Sobre o direito de regresso, diz ANTUNES VARELA, (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9.ª ed., p. 814 e ss.), ao estabelecer a distinção entre sub-rogação e direito de regresso, que este "constitui um direito novo, que nem sequer tem o mesmo objecto do direito extinto", considerando, mais à frente (p. 816) que "o direito de regresso” é, "um verdadeiro direito de compensação concedido ex vi legis ao condevedor que satisfaz o direito do credor". As raízes do direito de regresso, continua, (ob. e loc. cits.) "provêm do momento constitutivo” da obrigação solidária. Esse direito de regresso só existe em relação aos danos que não caibam na responsabilidade do seu segurado: só então funciona a ideia do enriquecimento injustificado à custa da seguradora. A seguradora responde até à quota (se quota houver) de indemnização que caberia ao seu segurado e pede ao condutor (que bem pode ser o segurado), a sua quota na indemnização satisfeita, quota esta correspondente aos danos resultantes da sua conduta (criminosa) de abandono de lesado. Por força da lei do seguro obrigatório, o segurado fica, em princípio, isento do pagamento de qualquer importância reclamada a título de indemnização, desde que a mesma se situe dentro dos seus limites. Passemos a analisar a situação concreta do abandono do sinistrado. Preceitua, a este respeito, o art. 19.º, al. c), do diploma em análise que, satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso quando o condutor houver abandonado o sinistrado. O que está em causa no equilíbrio contratual não é o montante das indemnizações devidas por um qualquer acidente, mas tão-só as relativas ao quid resultante do abandono do sinistrado: com aquelas primeiras contava a seguradora, mas já não com estas. Caso o segurado fosse obrigado a suportar todo o montante indemnizatório previamente pago pela seguradora, sem qualquer discriminação entre os danos produzidos normalmente em consequência do acidente e os acrescidos em virtude da atitude reprovável do segurado haveria, sem dúvida alguma, um desequilíbrio contratual resultante do facto de estar a suportar importâncias que só a seguradora devia pagar pela singela razão de que foi isso mesmo o que foi contratualizado. Na verdade, entendemos que os danos resultantes do acidente, em si, não podem senão ficar a cargo da seguradora, sob pena de desrespeito pela base negocial e, mais do que isso, porque tal criaria uma situação de enriquecimento sem causa por parte da seguradora. Outrossim, o desequilíbrio contratual também se daria, caso a seguradora fosse “obrigada” a suportar as despesas resultantes pura e simplesmente do abandono: se isso acontecesse, bem poderíamos dizer que o legislador a tinha colocado numa situação não previsível, na justa medida em que não faz parte do comportamento do homem médio (pelo qual o Direito se rege e para o qual se dirige) abandonar um sinistrado, independentemente da determinação de culpa (a própria Ordem Jurídica sanciona, no plano criminal, tal conduta ao punir com a pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até duzentos e quarenta dias o crime de omissão de auxílio – art. 200.º, n.º 2, do Código Penal). Mais: também caídos estaríamos, no plano do direito civil, perante uma situação de verdadeiro enriquecimento sem causa, ora por parte do lesante-segurado, sendo este o condutor. Com efeito, o segurado acabaria por ser contemplado com uma situação que não estava na previsão e na base do contrato de seguro firmado, ficando indevidamente com as importâncias correspondentes às indemnizações relativas aos danos resultantes do abandono do sinistrado. A ideia de Direito obriga, pois, a separar as águas, só concedendo à seguradora direito de regresso daquele montante que ela pagou em consequência directa e necessária do abandono, mas já não em relação a tudo o mais pago em virtude da consequência “normal” do acidente. Como lembra VAZ SERRA (“Pluralidade de Devedores ou Credores”, BMJ., n.º 69, p. 256), o dever de regresso, consagrado no artigo 497.º, n.º 2, do Código Civil, funda-se “no enriquecimento injustificado à custa dos outros credores e, por conseguinte, quando do negócio jurídico ou de disposição especial não resulta outra coisa, deve ter o alcance que resultar do facto de, em consequência da satisfação do credor, certo ou certos devedores terem enriquecido injustificadamente à custa de outro ou outro”. E é também este propósito de obviar ao enriquecimento infundado à custa da seguradora que garantiu a indemnização devida aos lesados em acidente de viação que o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, instituiu a possibilidade de exercício de direito de regresso contra o condutor. Esta ideia foi sublinhada no Acórdão da Relação do Porto, de 2 de Maio de 2000 (CJ, 2000, Tomo III, p. 175). Compreende-se que assim seja. Efectivamente, e à luz da instituição da obrigatoriedade da contratação de seguro de responsabilidade civil contra terceiros, sentiu o legislador a necessidade de contrabalançar a eventual iniquidade da imposição, à seguradora, do pagamento de indemnizações resultantes de uma acção dolosa ou gravemente negligente por parte do segurado ou de outrem. Com o que contemplou, no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, um leque de situações susceptíveis de traduzir esse dolo ou negligência grave, cuja verificação legitimará aquele direito de regresso. Sublinhe-se, todavia, que a possibilidade de exercício do direito de regresso existe tão-somente naquelas circunstâncias. É nisso claro o teor literal do preceito, ao referir que, “satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso (…)”. Significa o exposto que, mesmo quando o texto do contrato de seguro seja omisso quanto à possibilidade de exercício do direito de regresso, em face da verificação das circunstâncias descritas no referido artigo 19.º, sempre poderá a seguradora enveredar por tal caminho, apoiando-se directamente na disciplina constante do mesmo diploma e que a habilita, sem mediação de um clausulado negocial, a interpor acção de regresso. E, em contrapartida, resulta incontroverso que os casos de admissibilidade do direito de regresso se restrigem às situações tipificadas no mesmo artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, não se podendo configurar uma liberdade contratual tão ampla que consinta outros casos de direito de regresso. Desta forma, não é a circunstância do contrato de seguro conter cláusulas que reproduzam o disposto no citado artigo 19.º que modela a natureza da responsabilidade a exigir do segurado ou de outrem (como o condutor) e que decorre ex Iege. Diga-se, aliás, que a dever entender-se a responsabilidade da seguradora como contratual, não poderia esta exercer o direito de regresso contra o condutor de veículo, responsável pelo eclodir do acidente e que não é o segurado e é, portanto, um extraneus em face do seguro celebrado. Por outro lado, como já deixámos dito supra, o carácter obrigatório do seguro sobre a circulação de veículos automóveis não influi no carácter pessoal (não real) do contrato celebrado. O que se transfere para o segurador é a responsabilidade do segurado, enquanto detentor de um dado veículo e não o próprio veículo. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 1999 (proc. 99B356, www.dgsi.pt), “[s]egurado é quem contrata o seguro; a medida da responsabilidade da seguradora é a responsabilidade do seu segurado; o segurador só é obrigado na medida em que o seria o segurado se respondesse pessoalmente. Por assim ser, a seguradora terá direito de regresso ao satisfazer as indemnizações que o seu segurado não responde pessoalmente: em todos os casos em que os danos sejam causados a terceiros ou por utentes ocasionais do veículo – os autores de furto, roubo ou furto do uso do veículo – ou se o acidente for dolosamente praticado”. Ou seja, a seguradora responde pela indemnização que caberia ao seu segurado e queda titular de um direito de regresso contra ele cuja extensão será definida pela sua responsabilidade na eclosão do acidente e dos subsequentes danos, sempre que este tenha agido em violação do supra referido artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85. Desta forma, a matriz genérica da configuração do direito da seguradora é um mero reflexo do processamento do acidente e da própria actuação do segurado. Na verdade, e antevendo a possibilidade de uma concorrência de responsabilidades no sobrevir do facto danoso, a seguradora só será obrigada a responder nos precisos termos –, em sede de culpa e das respectivas consequências em que o seu segurado o é. Com o que o direito de regresso, a desencadear, existirá em moldes similares à responsabilidade extracontratual do seu segurado que a obrigou a indemnizar os demais intervenientes. Existe, assim, um óbvio paralelismo entre o formato da responsabilidade do segurado e o direito de regresso de que a seguradora é titular. Paralelismo que se constata não apenas no plano factual, mas igualmente no plano jurídico e na consequente disciplina a que aquele direito se acha sujeito. No caso dos autos, derivando a obrigação da seguradora da sua responsabilidade contratual para com o tomador do seguro, respondendo perante o credor pela responsabilidade que a este caberia, a obrigação solidária que o une ao R. – que abandonou o sinistrado – não pode coincidir com a obrigação que dimana da responsabilidade contratual da A., como seguradora: essa responsabilidade apenas pode advir da responsabilidade extracontratual emergente da acção daquele. A solidariedade do R. apenas emerge da obrigação de indemnizar que este contraiu perante o sinistrado por acto ilícito que lhe seja imputado, nos termos gerais da responsabilidade extracontratual. De facto, como se defende no Ac. Uniformizador n.º 6, do STJ de 28.5.02, "[o] alcance social do seguro obrigatório, como regime indicado para a protecção dos lesados, estendendo a protecção de uma forma alargada em aproximação de seguro social e fazendo recair sobre as seguradoras boa parte do ónus desse benefício, tem aqui desvios quanto à assunção da responsabilidade com a criação do direito de regresso a favor das seguradoras. E porque de um direito especial se trata, o direito de regresso tem de ser demonstrado nos termos gerais de direito, uma vez que nenhuma disposição do Decreto-Lei n.º 522/85 veio afastar o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova ou outro circunstancialismo que se desvie do regime geral.” Assim, para responsabilizar o R. pela sua quota de responsabilidade na indemnização paga pela recorrente, como seguradora, teria que ser alegado e demonstrado que do abandono do sinistrado resultaram danos específicos ou a agravação dos que lhe derivaram do acidente. Desde logo por ser isso que resulta do n.º 2 do artigo 497. º do CC: o direito de regresso existe na medida da culpa dos responsáveis e das consequências que delas advieram. Depois, porque, temos por adquirido que, importando distinguir entre a responsabilidade extracontratual do segurado coberta pelo seguro e a responsabilidade extracontratual não coberta pelo seguro, não poderá deixar de se ter presentes os pressupostos da responsabilidade civil: facto voluntário, ilicitude, culpa, dano, nexo de causalidade entre o facto e o dano. Na interpretação que tem vindo a ser feita pela jurisprudência relativamente às demais situações previstas na alínea c) do Artigo 19.º têm-se afastado o direito de regresso relativamente às consequências que não são causadas pela conduta. Assim se o condutor não está habilitado a conduzir mas se o acidente não derivou de uma manifesta falta de preparação, pressuposta pela habilitação referida ou se o estado etilizado não foi causal do acidente, não haverá direito de regresso. O art.º 19.º, nas alíneas a) a c), prevê dois casos distintos de direito de regresso da seguradora com fundamento em actuações dolosas: um, quando o acidente foi provocado dolosamente (a); o outro, quando o condutor abandonou voluntariamente o sinistrado após o acidente (b). A cada um deles correspondem diferentes factos, danos e indemnizações. A interpretação não se cinge à letra da lei e, na fixação do seu sentido e alcance, o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – art.º 9.º, n.os 1 e 3, do C. Civil. A solução mais acertada, de acordo com a função do direito de regresso atribuído à seguradora, é a que, no caso de abandono do sinistrado, conduz a que ela possa reaver a indemnização que satisfez pelos danos desse abandono, porque não podia opor ao lesado que eles não estavam incluídos no risco por si assumido no contrato de seguro. Carece, consequentemente, de fundamento que se afirme não respeitar esta interpretação a letra e o espírito da lei, porquanto uma tal perspectiva implicaria igual rejeição da interpretação que tem vindo a ser acolhida para as demais situações da alínea c), designadamente da que subjaz à decisão do acórdão uniformizador já citado. O argumento utilizado relativamente à alínea f) não nos parece ser particularmente valioso. É que, como resulta das diversas alíneas, o direito de regresso não se dirige sempre às mesmas pessoas ou necessariamente ao segurado. No caso da alínea f), o direito de regresso dirige-se a alguém que pode não ser o segurado ou sequer o condutor e a clara diferença é que aqui é o responsável pela apresentação à inspecção que tem que provar que o sinistro não foi causado ou agravado pelas más condições do veículo. Depois, a natureza preventiva ou punitiva da previsão do direito de regresso, no caso do abandono do sinistrado, não se nos afigura convincente. Em primeiro lugar, por o abandono de sinistrado ser um conceito que carece de ser preenchido, uma vez que o crime de abandono de sinistrado não existe hoje na nossa ordem penal. Mesmo quando o Código da Estrada previa e punia o abandono do sinistrado, havia quem entendesse (acórdão de 4 de Abril de 1995, atrás citado) que só o abandono doloso facultava o direito de regresso da seguradora. Hoje, o CP prevê e pune toda a conduta de quem, perante uma situação de grave necessidade, se abstenha de prestar auxílio ou de providenciar pelo mesmo (artigo 200.º). É uma disposição que, no seu n.º 1, se dirige a toda e qualquer pessoa, a quem seja exigível um dever de auxílio. O n.º 2 do citado normativo poderá ter similitude com o antigo abandono de sinistrado, na medida em que, relativamente ao agente criador da situação de perigo, o dever de auxílio se torna mais intenso, o que conduz ao agravamento da moldura punitiva. De qualquer modo, em qualquer das situações, a ilicitude pode ser afastada, como decorre do n.º 3 do referido artigo. Parece, assim, extremamente ousado sustentar que, sempre que ocorra uma situação factual de abandono de sinistrado, independentemente dos motivos pelos quais o condutor não parou, a seguradora terá direito de regresso e relativamente à totalidade dos danos que indemnizou. Também não parece aceitável que estando tipificado penalmente o “abandono de sinistrado”, haja necessidade de outra sanção de natureza económica. Acresce que, podendo o acidente ter sido causado com uma culpa leve do condutor ou até ter ocorrido concorrência de culpas com os lesados mas, configurando-se um claro e injustificável abandono das vítimas, o condutor tenha que restituir à seguradora a totalidade do que esta pagou. Isto não significa que não concordemos que existem razões a justificar as excepções previstas no artigo 19.º, as quais, de resto, já deixámos referidas. Só discordamos que tais razões, mais de justiça e de proporcionalidade que de natureza preventiva ou moral, impliquem a consequência da desoneração da seguradora da responsabilidade pela indemnização da totalidade dos danos de um acidente determinado, se o condutor houver abandonado o sinistrado. A ideia da sanção moral é alheia ao direito de regresso da seguradora com fundamento no abandono do sinistrado, pois não é essa a função do reembolso. Este destina-se a obter do condutor o que a seguradora foi obrigada a pagar pelos danos que ele causou ao lesado com o ilícito abandono, posterior ao acidente, não abrangidos pelo contrato de seguro. Tampouco se pode justificar o reembolso da seguradora, para além dos danos causados pelo abandono, com a função sancionatória da responsabilidade civil. Esta tem por função reparar os prejuízos e a graduação, permitida em face da intensidade da culpa do agente, não vai ao ponto de admitir uma indemnização superior aos danos sofridos pelo lesado (art.os 483, n.º 1, 494.º e 562.º do C. Civil. Diremos apenas, à laia de remate, que a revogação do DL n.º 522/85 pelo DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, não traz qualquer contributo à dilucidação da questão apreciada, correspondendo o seu artigo 27.º, de forma geral, ao artigo 19.º do diploma revogado, apenas merecendo registo ter desaparecido o ónus da prova que anteriormente recaía sobre o responsável pela apresentação do veículo à inspecção (ou seja, um dos argumentos utilizados em defesa da tese contrária à que sustentamos). Temos, pois, por isenta de censura a decisão recorrida. III. Pelo exposto, acordam em negar a revista, confirmando-se o acórdão da Relação. Custas pela recorrente. Lisboa, 1 de Fevereiro de 2011. Paulo Sá (Relator) Garcia Calejo Hélder Roque |