ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
1421/10.6PBSTB.S1
DATA DO ACÓRDÃO 09/14/2011
SECÇÃO 3ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO REJEITADO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SANTOS CABRAL

DESCRITORES RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
FUNDAMENTAÇÃO
FISCALIZAÇÃO ABSTRACTA DA CONSTITUCIONALIDADE

SUMÁRIO

I - De acordo com o disposto no art. 445.º, n.º 3, do CPP, a decisão que resolver o conflito, no caso de recurso para a fixação de jurisprudência, não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquele acórdão.
II - Pelo facto de estar colocado no mais alto grau da hierarquia judicial, de ser tribunal único, e de ser presumível que a jurisprudência estabelecida pelos seus acórdãos venha a ser adoptada, de futuro, em casos semelhantes, é natural que os tribunais de 1.ª e 2.ª instância se inspirem na interpretação e aplicação que o STJ for dando aos textos legais.
III - Analisando a argumentação expendida na decisão recorrida como vértice de discordância, verifica-se que a mesma se cinge a argumentação esparsa que reproduz posições já existentes e objecto de análise na decisão de fixação de jurisprudência. Na verdade, a mesma chama à colação o desrespeito pelo princípio da legalidade como pressuposto de um juízo de constitucionalidade, o que, porém, não é mais do que reproduzir uma das posições chamadas à colação na decisão de fixação de jurisprudência. Não existe, assim, fundamento para a decisão recorrida se subtrair ao cumprimento da jurisprudência fixada pelo STJ.
IV - Ao atribuir uma determinada interpretação à norma, e essa interpretação reveste uma natureza geral e abstracta, o acórdão de uniformização de jurisprudência assume uma leitura normativa como adequada. Essa interpretação tem por objecto uma norma, sendo certo que, como se modo constante e uniforme tem entendido o TC, para tal efeito há-de operar-se com um conceito funcional de norma, um conceito funcionalmente adequado àquele sistema fiscalizador e consonante com a sua justificação e sentido. O que ali se tem em vista «é o controle dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) –, e em especial do poder legislativo – ou seja, daqueles actos que contêm uma “regra de conduta” ou um “critério de decisão” para os particulares, para a Administração e para os tribunais.
V - A uniformização de jusriprudência fixa uma das várias interpretações possíveis da lei, cria a norma correspondente, para depois fazer aplicação dela ao caso concreto. Assim, a uniformização traduz a existência de uma norma jurídica elegendo uma determinada interpretação que, em princípio, se impõe genericamente, o que implica, quanto a ela, seja possível o accionamento do processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade. No caso, a invocação de uma pretensa inconstitucionalidade deveria ter-se concretizado através do meio processual adequado, que não é o presente recurso.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                                     Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

         Pelo Ministério Público no Tribunal de Setúbal foi interposto o presente recurso, nos termos do artigo 446 do Código de Processo Penal, o qual incidiu sobre decisão que diverge do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 8/2008, nos termos e com os fundamentos que se encontram expressos nas respectivas conclusões:

I. NOS TERMOS DO ARTIGO 395, Nº1, ALiNEA B) DO CPP, POR REFERÊNCIA AO ARTIGO 311, N.º 3, ALÍNEA D), DO MESMO DIPLOMA, A JUIZ DECIDIU REJEITAR O REQUERIMENTO APRESENTADO POR MANIFESTAMENTE INFUNDADO, POIS CONSIDERA QUE A CONDUTA QUE O MINISTÉRIO PÚBLICO IMPUTA AO ARGUIDO NÃO INTEGRA OS ELEMENTOS OBJECTIVOS E SUBJECTIVOS DO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 402, DO DECRETO-LEI N.2 15/93, DE 22 DE JANEIRO, NEM DE QUALQUER OUTRO TIPO PREVISTO EM LEGISLAÇÃO PENAL, MAS TÃO SÓ DA CONTRA-ORDENAÇÃO P. E P. PELO ARTIGO 2º, DA LEI N.º 30/2000, DE 29 DE NOVEMBRO.

2. EXISTE UMA EFECTIVA E CLARA CONTRADIÇÃO, PARA ALÉM DE UMA EXPRESSA RECUSA DE APLICAÇÃO, ENTRE OS FUNDAMENTOS INVOCADOS NA DECISÃO DE QUE SE RECORRE E A JURISPRUDÊNCIA FIXADA PELO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, PELO QUE ESSA DECISÃO DEVERÁ SER RECUSADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE, NOS TERMOS DO ARTIGO 446, N.º 3, DO CPP APLIQUE A JURISPRUDÊNCIA FIXADA NO ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 8/2008, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, N.º 150, DE 5.8.2008.

3· NESTA CONFORMIDADE, DEVERÁ A DECISÃO SER REVOGADA, SUBSTITUINDO-SE POR OUTRA QUE APLIQUE A JURISPRUDÊNCIA FIXADA NO ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 8/2008, COM O QUE SE FARÁ

                                  Não foi produzida resposta.

  Neste Supremo Tribunal de Justiça foi emitido parecer pelo ExºMº Sr. Procurador-Geral Adjunto advogando a procedência do recurso.

                                    Os autos tiveram os vistos legais

                                                               *

                                                       Cumpre decidir.

  Para uma melhor compreensão da matéria do presente recurso transcreve-se a decisão recorrida:

-Por requerimento inserto a fls. 29 a 32 o Ministério Público, em processo sumaríssimo, requereu a aplicação ao arguido AA, ali melhor identificado, da pena de 20 (vinte) dias de multa, à razão diária de € 6 (seis euros), o que o perfaz um total de € 120 (cento e vinte euros), imputando-lhe a prática de um crime de consumo de produto estupefaciente, p. e p. pelo art. 40.°, nº 2, do Decreto-Lei n.o 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa àquele diploma legal.

C,. Dispõe o art. 395.°, n.o 1, alínea b), do Código de Processo Penal que, o juiz rejeita o requerimento quando o mesmo for manifestamente infundado, nos termos do disposto no n.o 3 do art. 311.° do mesmo diploma legal.

Prescreve o art. 311.°, nº 3, alínea d), do Código de Processo Penal que a acusação se considera manifestamente infundada, quando "os factos não constituírem crime".

A acusação é manifestamente infundada quando, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade, isto é, quando evidência, desde logo, que não pode vir a ser julgada procedente porque desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis em qualquer preceito penal, constituindo a designação do julgamento (ou a notificação do arguido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 396.°, n.o 1, alínea b), do Código de Processo Penal) flagrante violência e injustiça para o arguido (com interesse vide Acórdão da Relação de Coimbra de 29 de Abril de 1992, in CJ, Ano 1992, Tomo 2, pp. 88 e Acórdão da Relação de Évora de 23 de Novembro de 1993, in B.M.J. n.o 431, pp. 574).

Ao arguido é imputada a prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40.°, nº 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C anexa aquele diploma.

Dispõe o artigo referido supra, que:

"1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 30 dias.

2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.

3 - No caso do n. o 1, se o agente for consumidor ocasional pode ser dispensado de pena."

o artigo em apreço foi, excepto no que tange ao cultivo, expressamente revogado pelo art. 28.° da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, que define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.

Estão sujeitas ao regime previsto na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, as substâncias constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, entre as quais a cannabis resina.

Dispõe o art. 2.° da Lei n.o 30/2000, de 29 de Novembro, que o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas referidas tabelas constituem contra-ordenação, desde que não ultrapasse a quantidade necessária para o consumo médio de 10 dias.

Para efeitos de determinação da quantidade necessária para o consumo médio individual durante um período de 10 dias, na medida em que se mantém em vigor o art. 71.0 do DL n.o 15/93, de 22 de Janeiro, é necessário recorrer ao mapa a que se refere o art. 9.° da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março.

Ora, de acordo com o mapa a que se refere o art. 9.° da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, o limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária de "cannabis resina" é de 0,5 gramas, sendo a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 1 O dias equivalente a 5 gramas.

No caso vertente, resulta do requerimento em apreço que, em 4 de Agosto de 2010, cerca das 22hOOm, a PSP aprendeu ao arguido 5,8 gramas de cannabis resina, que este destinava ao seu consumo, ou seja, mais do que o necessário para um consumo médio individual durante 10 dias.

Não obstante tenha revogado expressamente o artigo 40.° do Decreto-Lei n.o 15/93, de 22 de Janeiro, salvo no que se reporta ao cultivo, descriminalizando a detenção e aquisição para consumo de plantas, substâncias ou preparações previstas nas Tabelas I a IV anexas ao mesmo diploma legal em quantidade que não exceda a necessária para o consumo médio de 10 dias, o legislador não estabeleceu qualquer punição para os agentes cujo produto estupefaciente detido ultrapasse tal quantidade.

Sobre esta problemática se pronunciou abundantemente a doutrina e a jurisprudência, equacionando quatro soluções.

A primeira, assentando no princípio de que não há pena sem lei que previamente preveja e puna a conduta do agente, despenalizava a conduta mais grave, mantendo a punibilidade da conduta menos grave, a saber, a aquisição e detenção para consumo abaixo das 10 doses diárias (cfr. EDUARDO MAIA COSTA, in Revista do Ministério Público, n.o 87, Ano 22, Julho/Setembro 2001, pp. 150).

A segunda, contrariamente, defendia que a Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, descriminalizava apenas o consumo, a aquisição e a detenção de estupefacientes para consumo próprio que não excedesse a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, pelo que, fora destes casos, a conduta do agente configurava a prática de um dos crimes previstos e punidos pelos arts. 21.°, 25.° ou 26.° do Decreto-Lei n.o 15/93, de 22 de Janeiro, (cfr. ARTUR MATIAS PIRES in, Revista do Ministério Público, n.o 90, Ano 23, Abril/Junho 2002, pp. 119).

A terceira, partindo da inaplicabilidade dos arts. 21.°, 25.° e 26.° do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, às situações em que se provasse o dolo de consumo, fazendo uma interpretação restritiva da norma revogatória consagrada no art. 28.° da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, defendia que o art. 40.° do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, se continuava a aplicar às situações que extravasavam o âmbito de aplicação do art. 2.°, nº 2 da Lei nº 30/2000 (cfr. CRISTINA LÍBANO MONTElRO, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, Fasc. 1º, Janeiro/Março 2001, pp. 89; EDUARDO MAIA COSTA, in Revista do Ministério Público, n.º 87, Ano 22, Julho/Setembro de 2001, pp. 147-150).

Por último, a solução que radicava no pressuposto de que o estabelecimento de um patamar de dez doses médias diárias para consumo não deve ser visto como um limite à descriminalização do consumo, mas como critério legal meramente orientador de distinção entre o consumo e o tráfico. Critério que não obstava a que se integrassem no n.o 1 do art. 2.° da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, situações em que a quantidade de estupefacientes detida exceda aquele patamar, desde que se provasse a afectação exclusiva ao consumo do agente.

Embora sem correspondência directa na lei, defendemos que este é o entendimento que mais se aproxima da ratio do sistema, aceitando que a repressão penal do consumo se mostrou infrutífera e que a aprovação da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, visa a alteração da imagem social do consumidor toxicodependente, direccionando-o, o melhor possível, para o tratamento.

Pondo termo a esta discussão, o Supremo Tribunal e Justiça viria, através do Acórdão nº 8/2008, de 25 de Junho de 2008 (publicado na 1.a Série do DR de 5 de Agosto de 2008), fixar jurisprudência no sentido de que «.Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28. o da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só 'quanto ao cultivo' como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.»

Contudo, salvo o devido respeito, pelas razões que i'1fra se aduzem, entendemos que a interpretação da norma revogatória do art. 28.° da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, resultante da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 8/2008, é inconstitucional, por violação do disposto no art. 29.°, nº 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa e, consequentemente, recusamos a sua aplicação.

Como se pode ler nas conclusões do referido aresto, partindo da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, o Supremo Tribunal de Justiça, restringe a expressa revogação do art. 40.° do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, à aquisição e detenção para consumo próprio de produto estupefaciente necessário para o consumo médio individual durante 10 dias.

Contudo, ao restringir o alcance revogatório da norma do art. 28.° da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, ao âmbito de aplicação deste diploma, salvo o devido respeito por opinião contrária, o Supremo Tribunal de Justiça mais não fez do que criar um novo tipo de crime.

Com efeito, resulta da jurisprudência fixada no Acórdão n.o 8/2008, de 25 de Junho, que quem, para seu consumo, adquirir ou detiver, plantas ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para um consumo médio individual durante o período de 10 dias, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

Esta interpretação restritiva da norma revogatória do art. 28.° da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, em nosso entender, contende com princípio da legalidade em que assenta o nosso sistema jurídico punitivo.

Consagrado no art. 29.°, nº 1 e 2, da Lei Fundamental e no art. 7.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o principio da legalidade impõe que não haja crime, nem pena, que não resultem de lei prévia que fixe de forma precisa e clara os comportamentos, activos ou omissivos, que caem no âmbito da norma incriminadora.

O princípio da legalidade exige, pois, que a infracção esteja claramente definida na lei, ou seja, que o cidadão a que se destina a norma incriminadora fique apto a adequar o seu comportamento, antevendo as consequências sancionatórias que advenham do seu incumprimento.

É por isso que defendemos que, incumbe ao legislador, e não ao intérprete, descrever os elementos que integram o tipo incriminador e impor-lhe como consequência a sanção mais adequada, seja ela de natureza penal, ou contra-ordenacional.

Embora, como refere o art. 9.°, nº 3, do Código de Processo Civil, o intérprete deva presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, as lacunas e deficiências de redacção da norma incriminadora não podem ser supridas mediante a criação de um novo tipo de crime.

Não há dúvidas de que o art. 28.° da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, de forma intencional ou não, revoga expressamente o art. 40.° do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, excepto no que tange ao cultivo de plantas para consumo, e que o art. 2.°, nº 2, daquele diploma legal restringe a punição a título de contra-ordenação à aquisição ou detenção para consumo de produto estupefaciente em quantidade que não exceda o necessário para o consumo médio individual durante 10 dias, resultando do confronto das normas em apreço um vazio sancionatório.

Mas, não incumbe ao aplicador da norma, ao arrepio de um dos princípios basilares do direito sancionatório, com consagração constitucional, suprir o "lapso" legislativo impondo aos efeitos revogatórios (em nosso entender plenos) do art. 28.° da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, limites que o próprio legislador não teve a intenção de criar.

Com efeito, se a intenção do legislador fosse a criminalização da aquisição ou detenção de produto estupefaciente em quantidade superior à necessária para um consumo médio individual de 10 dias, confrontado com as divergências interpretativas que se seguiram à entrada em vigor da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, incumbia-lhe alterar a sua redacção, ou em alternativa, aditar um novo tipo incriminador ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Sucede que, volvidos cerca de 10 anos, de aplicação da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, quer a norma revogatória do art. 28.°, quer o art. 40.° do Decreto-Lei n.o 15/93, de 22 de Janeiro, mantêm a redacção resultante da intenção assumida pelo legislador de descriminalizar o consumo de estupefaciente (cfr. art. 2.°, nº 1, da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro).

Sendo esta, em nosso entender, a intenção do legislador, continuamos a defender que a delimitação quantitativa consagrada no nº 2 do art. 2.° da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, é meramente indicativa ou indiciária, constituindo contra-ordenação a detenção ou a aquisição de produto estupefaciente para consumo próprio, mesmo que em quantidade que exceda o necessário para 10 dias.

Com efeito, como já vínhamos defendendo, ao consagrar o limite quantitativo a que alude o nº 2 do art. 2.° da Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro, o legislador quis apenas dotar as autoridades administrativas de um critério objectivo, de molde a obviar a que condutas enquadráveis nos arts. 25.° e 26.° do Decreto-Lei n.o 15/93, de 22 de Janeiro, fossem sem mais punidas como ilícitos contra-ordenacionais.

C Deste modo, entendemos que nas situações em que o agente detenha produto estupefaciente em quantidade superior à necessária para um consumo médio individual durante 10 dias, incumbe ao Ministério Público, realizadas as diligências de inquérito pertinentes concluir, a final se a mesma se destina ao consumo, caso em que há contra­ordenação, ou pelo contrário, à cedência a terceiros, deduzindo acusação pelo crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos arts. 21.°, 25.° e 26.° do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

Em face do exposto, por entendermos que a interpretação restritiva do art. 28.° da Lei nº 30/2000, de 29 de Junho, nos moldes constantes da jurisprudência fixada no Acórdão nº 8/2008 do Supremo Tribunal de Justiça, viola o art. 29.°, nº 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, recusamos a sua aplicação.

C, Deste modo, e em face da posição defendida, concluímos que a conduta que o Ministério Público imputa ao arguido no requerimento de fis. 29 a 32 não integra os elementos objectivos e subjectivo do crime previsto no arts. 40.° do DL n.o 15/93, de 22 de Janeiro, nem de qualquer outro tipo de crime previsto em legislação penal, mas tão só da contra-ordenação p. e p. pelo art. 2.° da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, pelo que se impõe a sua rejeição por manifestamente infundado.

Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento.

Notifique e, após trânsito, extraia certidão da presente decisão e remeta à Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência do domicílio do arguido, para os fins tidos por convenientes.

                                     Não foi produzida resposta.

             Pelo ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto foi advogado a procedência do recurso.

                                 Os autos tiveram os vistos legais

                                               

Face á mesma decisão importa considerar que:

I

            De acordo com o disposto no artigo 445 nº3 do Código de Processo Penal a decisão que resolver o conflito, no caso de recurso para a fixação de jurisprudência, não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas á jurisprudência fixada naquela decisão.

Sobre o sentido interpretativo daquela norma permitimo-nos chamar á colação decisão deste Supremo Tribunal de 26.01.2006 onde se referiu que:

1 - A partir da reforma de 1998 do processo penal, os tribunais judiciais podem-se afastar da jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, conquanto que fundamentem as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão (n.º 3 do art. 445.º do CPP).

2 – Mas, com essa norma não se quis seguramente referir o dever geral de fundamentação das decisões judiciais (art.ºs 97.º, n.º 4, 374.º do CPP), antes postular um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação à jurisprudência fixada.

3 – Quis então o legislador que o eventual afastamento, por parte dos tribunais judiciais, da jurisprudência fixada, pudesse gerar uma “fiscalização difusa” da jurisprudência uniformizada (art. 446.º, n.º 3 do CPP).

4 - Ora, as duas normas, que se ocupam da possibilidade de revisão pelo Supremo Tribunal de Justiça da jurisprudência por si fixada, usam a mesma terminologia: haver “razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada” (art.ºs 446º, n.º 3 e 447.º, n.º 2, 1.ª parte do CPP), as únicas razões, pois, que podem levar um tribunal judicial a afastar-se da jurisprudência fixada.

5 - Isso sucederá, v.g. quando:

– o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada;

– se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente,

– a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada.

7 - Mas seguramente não sucederá quando, como infelizmente se tem vindo a constatar suceder com frequência, o Tribunal Judicial não acata a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem percepção da alteração das concepções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a “solução legal”.

              Na verdade, e esta é a posição que se coaduna com a concepção vigente como regulador e uniformizador da jurisprudência nacional, cabe ao Supremo Tribunal de Justiça  a função de tribunal de revista (art. 29.° da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais).

É, pois, o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, isto é, um «tribunal cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei, corrigindo os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pela relação ou pelo tribunal da 1.ª instância, contribuindo para a uniformização da jurisprudência. Essa uniformização ocorre quer directamente, por via dos assentos, quer indirectamente» [1]

Pelo facto de estar colocado no mais alto grau da hierarquia judicial, de ser tribunal único, e de ser presumível que a jurisprudência estabelecida pelos seus acórdãos venha a ser adoptada, de futuro, em casos semelhantes, é natural que os tribunais de 1ª e 2ª instância se inspirem na interpretação e aplicação que o Supremo for dando aos textos legais.

Recorrendo ás palavras de Alberto dos Reis «O que dá aos acórdãos do Supremo um prestígio e valor especial é a circunstância de emanarem do mais alto tribunal e de dever supor-se que o Supremo manterá, de futuro, a sua jurisprudência, em casos semelhantes. Esta força, senão de persuasão, ao menos de supremacia, tenderá a produzir o seguinte resultado prático: os tribunais inferiores, mesmo quando não concordem com a doutrina emitida pelo Supremo, serão levados naturalmente a aceitá-la e a aplicá-la. Podem, certamente, reagir contra ela, quando a considerarem errada; e a cada passo reagem. Mas se o Supremo insistir na sua jurisprudência, se se mantiver fiéis a ela, os tribunais inferiores acabarão por desarmar e por se submeter, certos de que a sua luta será inglória e inútil. A jurisprudência do Supremo acabará por triunfar contra as veleidades de resistência dos tribunais de instância. Pouco a pouco, por uma lei natural do espírito humano, os juízes dos tribunais inferiores vão-se conformando com as directrizes traçadas pelo Supremo em matéria de interpretação e aplicação das normas jurídicas. Este o mecanismo indirecto que conduz à uniformização da jurisprudência. Mecanismo lento, mas de resultado seguro. A acção deste mecanismo pressupõe a condição já assinalada: que o Supremo se mantenha fiel à sua própria jurisprudênci[2]

            Também Simas Santos se pronuncia sobre a matéria referindo que, “tem assim o Supremo Tribunal de Justiça como função própria e normal corrigir os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pelas instâncias, restabelecendo o império da lei e contribuindo para a uniformização da jurisprudência directamente (por via da jurisprudência fixada) e indirectamente, por via das suas decisões

Já se viu que é a circunstância de emanarem do mais alto tribunal nacional e de dever supor-se que o STJ de futuro manterá, em casos semelhantes, a sua jurisprudência, que dá aos acórdãos do Supremo um prestígio e valor especial. É que, sendo o mais alto grau da hierarquia judicial e tribunal único, é de esperar que no futuro os seus acórdãos e a jurisprudência que estabeleçam venha a ser adoptada em casos semelhantes, o que torna natural que as instâncias se inspirem na interpretação e aplicação dos textos legais que o STJ for fazendo.

As instâncias, ainda que não concordando com a doutrina emitida pelo Supremo, terão tendência a aceitá-la aplicando-a, independentemente de reagir contra ela num primeiro momento, quando a considerarem errada. Mantendo o STJ a sua jurisprudência, os restantes tribunais acabarão por se conformar com ela. Mas este mecanismo indirecto e lento de uniformização da jurisprudência pressupõe que o Supremo se mantenha fiel à sua própria jurisprudência» ”

Analisando a argumentação expendida na decisão recorrida como vértice de discordância verifica-se que a mesma se cinge a argumentação esparsa que reproduz posições já existentes e objecto de análise na decisão de fixação de jurisprudência. Na verdade, a mesma chama á colação o desrespeito pelo principio da legalidade como pressuposto de um juízo de constitucionalidade o que, porém, não é mais do que reproduzir uma das posições chamadas á colação na decisão de fixação de jurisprudência.

Efectivamente, a diversidade de posições no construir da decisão de uniformização, nomeadamente no que toca á observância daquele principio, está bem expressa na declaração de vencido do Juiz Conselheiro Henriques Gaspar onde se refere que:

4 — A coordenação normativa das disposições dos artigos 2.º, n.os 1 e 2, e 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (entre o — aparente — limite da contra –ordenação e a clara e intensa intenção revogatória da criminalização do consumo), pode sugerir a existência de uma disfunção

normativa («esquecimento», «lacuna», «deficiência») ou um «vazio sancionatório» (como se exprime, por exemplo, Rui Pereira, «A descriminalização do consumo de droga»,

in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, pp. 1159 e segs., designadamente a p. 1171, onde refere ser «óbvio que esta ‘lacuna sancionatória’ resultou de um   ‘erro’ do legislador de 2000»).

Mas se fosse assim, então não seria função da interpretação em direito penal manipular instrumentos hermenêuticos para, ou «deixar bem» o legislador, ou, não melhor, para sustentar uma razão (subjectiva) do que seria (deveria ser ou mereceria) o sentimento de justiça do intérprete.

Há, por isso, que fazer intervir na interpretação os princípios fundamentais de direito penal como chave da solução. A interpretação em direito penal (e sancionatório, em geral) não pode desconsiderar princípios fundamentais — tipicidade; legalidade; não retroactividade in malam partem; proibição de analogia.

Nesta perspectiva, os princípios — da legalidade e da consequente proibição da analogia e da interpretação teleologicamente comandada — apontam, logo e decisivamente, para a impossibilidade estrutural e dogmática de fazer apelo à disciplina típica dos artigos 21.º ou 25.º (ou 26.º) do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Na verdade, e uma vez que anteriormente à Lei n.º 30/2000 nunca o consumo fora punido nos termos das restantes actividades de largo espectro da tipicidade do artigo 21.º (ou dos artigos 25.º ou 26.º) do Decreto –Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a superação por tal modo de um hipotético «vazio legislativo», isto é, «a punição de quem detenha droga para consumo em quantidade superior

à referida no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000 só pode resultar de uma aplicação analógica de normas incriminadoras, expressamente proibida pelo artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição (e pelo artigo 1.º, n.os 1 e 3, do Código Penal)» (cf. Rui Pereira, op. cit., p. 1172).

Por seu lado, a solução que fez vencimento — a detenção de droga em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias integraria o crime previsto e punido no artigo 40.º do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro — faz apelo, na construção interpretativa, a uma interpretação restritiva da norma revogatória do artigo 28.º da Lei n.º 30/2003, de 29 de Novembro, construção que, embora sem argumentação densificada, parece utilizar como instrumento a redução teleológica.

Todavia, o princípio da legalidade opõe -se também, decisivamente, a esta solução, justamente por causa da revogação expressa que foi operada.

Desde logo pela construção interpretativa.

A função de garantia do princípio da legalidade exige a qualidade da lei, previsibilidade e acessibilidade, de modo que qualquer pessoa possa perceber e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua acção ou omissão.

A qualidade da lei supõe que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente díspares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida.

A conjugação normativa entre o âmbito material da Lei n.º 30/2000 e a sua norma revogatória (o artigo 28.º) e o direito penal anterior sobre a matéria que regula revela, como se referiu, alguns problemas de qualidade da lei com afectação irremediável do princípio da legalidade

          Não existe, assim, fundamento para a decisão recorrida se subtrair ao cumprimento da jurisprudência fixada no acórdão 8/2000.A mesma limita-se a reproduzir, de uma forma redutora, a argumentação produzida por uma das  orientações jurisprudenciais presentes na discussão que antecedeu a decisão de uniformização de jurisprudência

    

II

            Numa outra perspectiva se deve também analisar a matéria do presente recurso. Na verdade directamente imbricado com a pretensa violação do princípio da legalidade a decisão em análise faz a apóstrofe da inconstitucionalidade da norma na interpretação do Acordão de fixação de jurisprudência.

É evidente que, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da Republica Portuguesa Anotada- anotação ao artigo 204), desde que considere que uma norma é inconstitucional, o tri­bunal não pode aplicá-la em nenhuma circunstância - recusa de apli­cação da norma inconstitucional -, salvo se em recurso a decisão de inconstitucionalidade vier a ser revogada. Tal é o teor expresso do artigo 204 da Constituição.

Desaplicada a norma por motivo de inconstitucionalidade, o tribunal deve aplicar a norma que teria de aplicar na ausência da norma julgada inconstitucional - que tanto pode ser a norma que anteriormente regulava a matéria, uma norma subsidiariamente aplicável ao caso ou directamente uma norma consti­tucional -, podendo, porém, dar-se o caso de não subsistir qualquer norma uma vez afastada a norma julgada inconstitucional, devendo então a causa ser julgada em conformidade com os princípios herme­nêuticos de integração-interpretação de normas jurídicas. Importa, porém, equacionar que, surgido o incidente de inconstitucionalidade - seja porque o juiz julgou uma norma inconstitucional («decisão positiva de inconstitucionalidade»), seja porque não julgou inconstitucional uma norma impugnada por uma das partes no processo (decisão negativa de inconstitucionalidade») -, seguem-se as regras específicas do recurso de constitucionalidade previstas no. art. 280°).

Quando tenha havido um juízo de inconstitucionalidade, pode - e em muitos casos deve (art. 280°-2) - haver recurso para o Tribunal Constitucional, inde­pendentemente de a decisão, quanto ao mais, admitir recurso para outro tribunal. Se o juiz não tiver julgado inconstitucional uma norma arguida de inconstitucionalidade no processo, então também pode haver recurso para o TC, nos termos previstos na lei (art. 280°-4), a qual neste caso exige o prévio esgotamento dos recursos ordinários (v. nota XXI ao art. 280°).

O TC funciona assim como tribunal superior de recurso em maté­ria de justiça constitucional, em relação a todos os demais tribunais, qualquer que seja a sua categoria ou a ordem judicial em que estes se integrem. Subjacente ao controlo incidental e concreto está sempre a ideia oriunda do sistema de judicial review americano: uma norma que viola a Constituição é nula e daí que o juiz, antes de decidir qualquer litígio de acordo com esta norma, deva examinar se ela está ou não em conformidade com as normas e princípios constitucionais («direito de exame», «direito de fiscalização»). Existe, porém, uma diferença importante. É que se todos os tribunais podem conhecer, e decidir, as questões de constitucionalidade, já não lhes cabe o julgamento definitivo delas, pois pode sempre haver (e em muitos casos há necessariamente) um recurso de constitucionalidade para um tribunal especial - o TC -, que pode revogar a decisão dos tribunais ordinários em questões de constitucionalidade[3]

A questão que então se poderá suscitar é da concretização do conceito de norma para efeito de balizar os critério de sujeição a uma apreciação de constitucionalidade. No que concerne o Tribunal Constitucional, depois de haver tratado incidentalmente a questão relacionada com o conceito de norma nos Acórdãos n.ºs 11/84 e 38/84, desenvolveu-a com especial incidência no Acórdão n.º 26/85, que marca, indubitavelmente, a jurisprudência constitucional nesta matéria, sendo, verdadeiramente, um marco no que tange à delimitação do conceito.

Assim, o Tribunal Constitucional considerou que (além de ser inquestionável que todo o sistema de fiscalização da constitucionalidade só pode ter por objecto normas) “  ” Sendo assim, conclui o Acórdão que, por um lado, é cada vez maior a fragilidade de um conceito de norma assente em ambas as notas (generalidade e abstracção8) e, por outro, se considerarmos a prática constitucional do nosso tempo, “assiste-se por toda a parte (…) à proliferação do fenómeno ou da figura das «leis-medida» ou «leis-providência» (…) as quais traduzem a necessidade, porventura insuprível, da intervenção directa do poder legislativo na complexa gestão político-administrativa (nas áreas económica e social, etc.) hoje exigida ao Estado”, as quais se caracterizam, numa larga escala do seu conteúdo, por uma natureza concreta e individual.

Deste modo, não obstante o afastamento destas leis do conceito clássico de norma, nenhum sentido faria “que tais leis – ou as «normas» que as integram – escapassem ao específico controlo da constitucionalidade, sobretudo sendo certo que no seu âmbito é ainda maior o risco da desatenção e do desrespeito pelas exigências constitucionais”.

Desta forma, o que se há-de vislumbrar, para o efeito do disposto nos artigos 277.º e seguintes da C.R.P. – fiscalização da constitucionalidade – é “um conceito funcional de «norma»,ou seja, um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade (…) e consonante com a sua justificação e sentido”.

Devemos ter presente que o sistema de fiscalização da constitucionalidade visa o controlo dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) e, particularmente, do poder legislativo, ou seja, todos aqueles actos que contêm uma «regra de conduta» ou um «critério de decisão» para os particulares, para a Administração e, óbvia e evidentemente, para os tribunais.

Como refere Bruno Ferreira Conceito de «norma» na jurisprudência constitucional ( www.verbojuridico.com/doutrina/.../constitucional_conceitonorma.pdf) Ao adoptar o conceito funcional e formal, o Tribunal Constitucional visa, por um lado, abraçar um conceito de norma funcionalmente adequado aos fins prosseguidos pelo próprio sistema de fiscalização da constitucionalidade instituído, em consonância com a respectiva justificação e sentido, que se “não traduz numa pura importação da noção material de ‘norma’”; e, por outro lado, um conceito até certo ponto formal – ligado “à inserção num diploma de tipo normativo”, na medida em que conduz à sindicância de preceitos que, mesmo embora de natureza individual e concreta, se mostram inseridos em diplomas legais.

Em termos tendenciais, dir-se-á que a Constituição partiu de um conceito de norma reconduzível à rejeição “de que o carácter geral e abstracto fosse nota qualificativa necessária de uma «norma», para o efeito em causa: assente ficou que bem podia tratar-se de um preceito legal de alcance individual e concreto, e possuindo inclusivamente eficácia consuntiva (isto é, dispensando um acto de aplicação)”.

Em conclusão, é este o conceito de norma funcionalmente adequado para efeitos de controlo judicial da constitucionalidade, presente nos artigos 277.º, 280.º, 281.º e 282.º da C.R.P.

Ao atribuir uma determinada interpretação á norma, e essa interpretação reveste uma natureza geral e abstracta, o acórdão de uniformização de jurisprudência assume uma leitura normativa como adequada. Essa interpretação  tem por objecto uma norma, sendo certo que, como de modo constante e uniforme tem entendido o Tribunal  Constitucional (por todos, o Acórdão n.º 26/85, Diário da República, II Série, de 26 de Abril de 1985), para tal efeito há-de operar-se com um conceito funcional de norma, um conceito funcionalmente adequado àquele sistema fiscalizador e consonante com a sua justificação e sentido.  O que ali se tem em vista, como logo se assinalou no aresto citado, «é o controle dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) — e em especial do poder legislativo —, ou seja, daqueles actos que contêm uma ‘regra de conduta’ ou um ‘critério de decisão’ para os particulares, para a Administração e para os tribunais».

A uniformização de jurisprudência fixa uma das várias interpretações possíveis da lei,  cria a norma correspondente, para depois fazer aplicação dela ao caso concreto. Assim, a uniformização traduz a existência de uma norma jurídica elegendo uma determinada interpretação que, em principio, se impõe genéricamente o que implica que, quanto a ela, seja possível o accionamento do processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade.

Assim sendo, e num plano distinto do primeiro exposto, e sendo certo que decisão recorrida não produz nenhum argumentos distinto dos que foram sopesados na invocada decisão de uniformização de jurisprudência, igualmente é certo que a invocação de uma pretensa inconstitucionalidade deveria ter-se concretizado através do meio processual adequado que não é o presente recurso   

Nesta conformidade entende-se que não existe qualquer motivo para alterar a jurisprudência fixada no Acórdão de fixação de Jurisprudência Nº 8/2008, (Publicado no Diário da República I Série N.º 150, DE 5.8.2008.) mantendo-se a mesma, a qual será respeitado no caso concreto reformulando-se para o efeito a decisão recorrida.

Termos em que se julga procedente o presente recurso.

                            Sem custas  


Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
Pereira Madeira

-------------------------------
[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, VI, pág.
[2] Alberto dos Reis, loc. cit., pág. 1-15, cfr. também Karl Larenz, a importância da jurisprudência para a actividade jurídica prática in Metodologia da Ciência do Direito, 2ª Ed., C. Gulbenkian, pág. 277

[3] Ao contrário da fiscalização abstracta, a fiscalização concreta é desconcentrada, cabendo a todos os tribunais (art. 204°). De resto, na fiscalização concreta, o TC só intervém a título de instância de recurso das decisões de outros tribunais (ressalvados os casos em que o TC tem funções jurisdicionais directas, como ocorre por exemplo no contencioso eleitoral). Não existe um recurso directo de inconstitucionalidade para o TC. É necessária a intermediação de outro tribunal, aliás a título sempre incidental.

 A fiscalização concreta é tipicamente caracterizada por ser um controlo: (a) difuso, isto é, feito por todos e cada um dos tribunais (arts. 204° e 280°-1); (b) incidental, pois os cidadãos não podem recorrer aos tribunais para impugnarem directamente uma norma por inconsti­tucional, independentemente de qualquer controvérsia, só podendo invocar a inconstitucionalidade por via de incidente, no decurso de uma acção, das normas que sejam relevantes para a solução do caso concreto; (c) oficioso, pois o tribunal pode - e deve - conhecer ex officio da inconstitucionalidade, independentemente de impugnação das partes (art. 204°); (d) concreto, pois os tribunais limitam-se a não aplicar (desa­plicar) a norma inconstitucional ao caso concreto a ser julgado. Na fiscalização concreta, a questão de constitucionalidade é uma questão incidental, «enxertada» na questão principal de natureza cível, criminal ou administrativa, e mesmo quando é destacada como recurso de cons­titucionalidade para o TC, não se autonomiza, permanecendo delimitada pelo caso concreto em que surgiu. Por isso, os seus efeitos são limitados ao caso concreto.