ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
3046/06.1TBGDM.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 06/02/2011
SECÇÃO 7ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR ORLANDO AFONSO

DESCRITORES CONTRATO PROMESSA
ACTO COMERCIAL
COMERCIANTE
PRESUNÇÃO LEGAL
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
MORA
JUROS
JUROS DE MORA
JUROS LEGAIS
ÁREA TEMÁTICA DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO COMERCIAL
LEGISLAÇÃO NACIONAL CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 432.º, N.º1, 433.º, 559.º, N.º1.
CÓDIGO COMERCIAL (C.COM.): - ARTIGO 2.º, 2ª.PARTE.

SUMÁRIO

I - A presunção que está na base da 2.ª parte do art. 2.º do CCom consiste em considerar-se, genericamente, que os actos dos comerciantes têm, em princípio, conexão com o seu comércio o que significa que a exclusão da comercialidade se verifica quando se apure que o acto não tem qualquer ligação relevante com o comércio do seu autor.
II - É um acto comercial o contrato-promessa celebrado entre autora e ré relacionado com a actividade mercantil daquela.
III - A resolução a que se refere o art. 432.º, n.º 1, do CC consiste na destruição da relação contratual operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato, sendo a mesma equiparada, no que aos seus efeitos diz respeito, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com a consequente restituição de tudo quanto houver sido prestado.
III - A não restituição atempada conduz à mora decorrente de uma obrigação criada em acto consecutivo, não resultando do incumprimento do acto que foi, entretanto, destruído.
IV - A mora na restituição dá origem à cobrança dos respectivos juros de natureza civil; isto porque, tendo o contrato sido resolvido com fundamento nas cláusulas nele apostas, operou-se a destruição do mesmo e, com ela, os efeitos comerciais que dele se poderiam retirar.
V - Neste caso, os juros moratórios não decorrem de qualquer incumprimento intrínseco ao contrato, mas sim da mora no cumprimento da obrigação resultante da resolução daquele.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

       Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:

         A) Relatório:

         Pelo 3ºjuízo cível do Tribunal judicial da comarca de Gondomar corre acção com processo comum, na forma ordinária, em que é A. AA – Construções Imobiliária, Ldª e R. BB, SA, ambas identificadas nos autos, tendo aquela pedido a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 232.506,18 €, acrescida de juros vincendos, à taxa legal, sobre 225.000,00 € até efectivo e integral pagamento.

         A R. contestou e deduziu pedido reconvencional pugnando pela improcedência da acção e sua consequente absolvição e pela procedência da reconvenção declarando-se resolvido o contrato-promessa de compra e venda por incumprimento definitivo da A. e a ser declarado o direito da R. fazer seu, a título de indemnização pelo incumprimento, o valor recebido a título de sinal no montante de 225.000,00 €.

         A A. replicou concluindo como na petição inicial e pugnando pela improcedência da reconvenção e a condenação da R. como litigante de má-fé, em multa e indemnização à A.

         Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme da acta consta, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente por provada e a R. condenada a pagar à A. a quantia de 225.000,00 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, no mais se absolvendo a R. do pedido.

         Foi a reconvenção julgada improcedente por não provada dela se absolvendo a A.

         Inconformada com esta decisão dela recorreram a R. e a A. para o Tribunal da Relação do Porto o qual, em conferência, negou provimento ao recurso interposto pela R. e concedeu provimento parcial à apelação da A., alterando-se a decisão recorrida, tão-somente, quanto à fixação da mora.

         Deste acórdão recorre, agora, a A. alegando, em conclusão, o seguinte:

         A recorrente – sociedade por quotas que se dedica à compra e venda de imóveis e à promoção imobiliária - é uma empresa comercial;

         O crédito que lhe foi reconhecido na presente acção resulta da resolução de contrato comercial – que a mesma, no âmbito da sua actividade, celebrou com a recorrida;

         Estando a recorrida em mora quanto ao pagamento desse crédito tem a obrigação de pagar os respectivos juros;

         Tais juros são os referidos no §3º do art.102º do Código Comercial (CCm) e na Portaria nº1105/2004 de 31 de Agosto;

         Entendendo diferentemente o douto acórdão recorrido violou o disposto nos arts.289ºnº1, 433º, 805ºnº1 e 806ºnº1 do Código Civil (CC), nos arts.2º, 13º§2, 99º, 102º§3, 230ºnº6, 463ºnº4 e 464º (a contrario) do CCm e art.1º do Código das sociedades Comerciais (CSC) pelo que deve ser revogado e substituído por outro que condene a recorrida a pagar à recorrente a quantia de 225.000,00 € acrescida de juros comerciais, às sucessivas taxas, desde 25 de Agosto de 2006 até efectivo e integral pagamento.

         Contra-alegou a BB, S.A. dizendo, em suma, que:

         O objecto da STCP; SA é a exploração do transporte público rodoviário de passageiros, na área urbana do grande Porto;

         O acto de alienação de um imóvel não é, pois, um acto que se insira no objecto comercial da recorrida, só o seria se o seu objecto fosse a compra e venda de imóveis, não sendo sequer um acto acessório do seu comércio;

         A alienação de um imóvel é um acto de natureza civil, regulado no código civil.

         Conclui pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

         Tudo visto,

         Cumpre decidir:

         B) Os Factos:

         São os seguintes os factos dados como provados pelas instâncias:

         1 No âmbito da sua actividade, a Autora, em 10 de Janeiro de 2006, celebrou com a Ré o contrato-promessa de compra e venda junto à PI como doc.1, aqui dado por integralmente reproduzido;

2) Por tal contrato, a Autora prometeu comprar à Ré, que, por sua vez, lhe prometeu vender, livre de quaisquer ónus ou encargos e totalmente desocupado de pessoas e coisas, o prédio misto, com a área de 53.198 m2, sito no ........, Freguesia de Fânzeres, Concelho de Gondomar, junto ao 1C29, descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob a ficha 2089 e inscrito na respectiva matriz sob os artigos 1.° (urbano) e 914.°(rústico);

3) O preço acertado foi de € 4.500.000,00 (quatro milhões e quinhentos mil euros), tendo a Autora, aquando da celebração do referido contrato, entregue à Ré, a título de sinal, a quantia de € 225.000,00 (duzentos e vinte e cinco mil euros);

4) Consta do referido contrato (cfr. § 1 da alínea A) da cláusula primeira) que a Autora pretendia adquirir tal prédio para nele aprovar a implantação de um conjunto de lojas destinado a comércio, com a área total de implantação de cerca de 20.000 m2, destinando a parte sobrante do terreno a parque;

5) No contrato-promessa em questão consta que:

a) a Autora suportaria os custos do pedido de autorização prévia Direcção Regional de Economia do Norte — cf. § 2 da alínea A) a cláusula primeira;

b) a escritura de compra e venda seria outorgada nunca depois de 30 dias sobre a aprovação desse pedido de autorização prévia, em dia, hora e Cartório Notarial que a Autora viesse a indicar Ré por carta registada, com aviso de recepção, expedida com a antecedência de 8 dias — cf. alínea C) da cláusula segunda; e

c) decorrido o prazo de 120 (cento e vinte) dias a contar da assinatura do contrato-promessa sem que se tenha celebrado a escritura de compra e venda, Autora e Ré consideravam o contrato-promessa resolvido e sem qualquer efeito, salvo acordo escrito em contrário - cf. único da alínea C da cláusula segunda;

6) Mais ficou convencionado no contrato-promessa que, para qualquer questão emergente do contrato, seria competente o Tribunal Judicial de Gondomar, com expressa renúncia a qualquer outro foro — cf. alínea B da cláusula terceira;

7) Em 4 de Maio de 2006, a Autora enviou à Ré a carta junta à PI como doc.2, aqui dado por integralmente reproduzido, pela qual comunicou à Ré que pelas razões aí expostas e que se prendiam com o facto de ainda não ter sido aprovado o Pedido de Autorização prévia supra referido, se teria que "aguardar mais algum tempo para a realização da escritura", ou seja, que não seria possível realizar tal escritura dentro do prazo de 120 dias acima aludido;

8) A Ré recepcionou tal carta em 5 de Maio de 2006 e, no dia 9 do mesmo mês, enviou à Autora a que constitui o doc. 3 junto PI, aqui igualmente dado por integralmente reproduzido, na qual transmitiu que pretendia ver cumprido o estabelecido na alínea C) da cláusula segunda do contrato-promessa em questão, pelo que não acedia ao solicitado adiamento da escritura;

9) A Autora, através do seu mandatário, solicitou à Ré, por carta registada com aviso de recepção expedida em 24 de Agosto de 2006 e recepcionada no dia seguinte, o pagamento da quantia de € 225.000,00 paga a título de sinal, acrescida de juros, à taxa legal desde 08.05.2006;

10) Uma empresa denominada "E.....L..... de ...., Investimentos Imobiliários S.A." formulou o pedido de autorização prévia, junto da Direcção Regional do Norte, o que aconteceu em data anterior à celebração do contrato de promessa de compra e venda entre a Autora e a Ré, empresa essa que, em 21 de Julho do 2006, foi notificada por aquela Direcção do indeferimento do pedido;

11) A Autora, através do seu mandatário, por carta dirigida à Ré e datada de 24 de Agosto de 2006, (junta PI sob o n.° 5), veio manifestar vontade em celebrar com a Ré um aditamento ao contrato-promessa de compra e venda:

(....) "Em alternativa a tal restituído a minha cliente está na disposição de celebrar um aditamento ao referido contrato no qual se estabeleça novo prazo para a celebração da escritura de compra e venda";

12) Na al. b) da cláusula 1ª. do contrato promessa prevê-se a possibilidade de o contrato definitivo de compra e venda vir a ser celebrado por entidade diferente da Autora;

13) A Autora, através do seu mandatário, enviou à Ré a carta registada com aviso de recepção expedida em 24 de Agosto de 2006 e recepcionada no dia seguinte, solicitando o pagamento da verba de € 225.000,00, paga a título de sinal, acrescida de juros, à taxa legal, desde o dia 13.05.2006, o que a Ré não se dispôs a fazer, enviando à Autora a carta constante do documento n° 8 junto à petição inicial, no dia 28.08.2006";

14) A Ré tratou de indagar junto da Direcção Regional de Economia do Norte se a Autora aí tinha dado entrada de algum pedido de autorização prévia para instalação de uma zona de comércio e de parque, relativamente ao terreno objecto do contrato de promessa, tendo apurado que tal não se havia verificado, pelo menos até 12 de Outubro pp;

15) Para afectar o imóvel ao destino supra referido em D), a Autora carecia de obter a respectiva autorização junto da Direcção Regional de Economia do Norte.

C) O Direito:

A única questão colocada à apreciação do STJ consiste em determinar se os juros devidos são de natureza civil ou comercial.

A sentença da 1ª instância condenou a R a pagar à A. a quantia de 225.000,00 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Entendeu a A, desde logo, nas suas alegações da apelação, que os juros moratórios devidos a pagar pela R devem ser às sucessivas taxas de juros comerciais.

Entendimento diferente teve o Tribunal da Relação do Porto que confirmou o decidido pela 1ª instância pronunciando-se pela aplicação de juros civis e não comerciais.

È evidente que A e R são sociedades comerciais e que aquela, no âmbito da sua actividade comercial, celebrou com a R um contrato-promessa de compra e venda de imóvel. Também resulta que a promessa de venda feita pela R não se insere no domínio da sua actividade económica a qual se reporta à exploração de transportes colectivos.

O facto de a R, em termos comerciais, não se dedicar à compra e venda de propriedades, ao contrário do por si contra-alegado, não releva quanto à caracterização do acto como não comercial, pretendendo-se com isso afastar o art.2º do Código Comercial (CCm), para daí se poder concluir que não estando em causa um acto de comércio também os juros peticionados não podem ser os comerciais. É que para a qualificação de acto de comércio basta que uma das partes seja comerciante e, nessa qualidade, tenha praticado um acto comercial.

Numa interpretação tida por boa e defendida pela generalidade dos nossos comercialistas, a presunção que está na base da 2ª parte do art.2º do CCm consiste em considerar-se, genericamente, que os actos dos comerciantes têm, em princípio, conexão com o seu comércio o que significa que a exclusão da comercialidade se verifica quando se apure que o acto não tem qualquer ligação relevante com o comércio do seu autor.  

Resulta do contrato-promessa celebrado que ele está efectivamente relacionado com a actividade mercantil da A. Resulta do próprio acto que essa conexão presumida existe, como conexão efectiva no caso concreto

Há que atentar, todavia, na expressão “se o contrário do próprio acto não resultar” e aqui deve atender-se não só ao acto em si, isto é, ao conteúdo formal das declarações negociais que o constituem, mas também às circunstâncias concomitantes que forem conhecidas do outro contraente, ou que este tivesse a obrigação de conhecer.

Para saber-se, pois, se determinado acto praticado por um comerciante deve ser considerado comercial, temos de nos colocar no ponto de vista do declaratário, e de atender àquele conjunto de circunstâncias que este conhecia ou que razoavelmente devia conhecer. No caso em apreço a R ao celebrar o contrato-promessa dos autos com a A sabia tratar-se esta de uma sociedade comercial dedicada, no âmbito da sua actividade, à compra e venda de imóveis.

Por aqui não está arredada a questão da comercialidade do acto praticado pela A. O que importa é saber se tal facto, só por si, conduz sempre à atribuição de juros comerciais.

Resulta da decisão do Tribunal da Relação ter sido resolvido o contrato-promessa celebrado entre A e R (matéria esta não colocada em crise no presente recurso de revista).

A resolução, a que se refere o art.432ºnº1 do Código Civil (CC), consiste na destruição da relação contratual (validamente constituída) operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato. Vaz Serra dizia que “a resolução é uma declaração dirigida à parte contrária no sentido de que o contrato se considera como não celebrado. A parte, que resolve o contrato, declara que tudo se passa como se ele não tivesse sido realizado”.

A resolução do contrato, na falta de disposição especial, é equiparada quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, como decorre do art.433º do CC, devendo de acordo com o art.289º do mesmo código ser restituído tudo o que tiver sido prestado, in casu, o sinal.

Destruído o contrato, por força da sua resolução, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado. A não restituição atempada conduz a mora decorrente de uma obrigação criada em acto consecutivo, posterior à resolução do contrato, não resultando do incumprimento daquele que foi, entretanto, destruído.

A mora na restituição dá origem à cobrança dos respectivos juros, estes de natureza civil. Tendo o contrato sido resolvido, com fundamento nas cláusulas nele apostas, operou-se a destruição do mesmo e com ela os efeitos comerciais que dele se poderiam retirar.

Como bem se salienta no acórdão recorrido: “não produzindo o contrato quaisquer efeitos para o seu não cumprimento, também não deve produzir efeitos comerciais”

Em verdade os juros moratórios em causa não decorrem de qualquer incumprimento intrínseco ao contrato, mas de mora no cumprimento de uma obrigação resultante da resolução daquele.

Assim, os juros devidos são os que decorrem do art.559ºnº1 do CC às taxas legais respectivas, conforme o decidido pelo Tribunal da Relação.

Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça, em negar revista, confirmando o douto acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.        

Lisboa, 2 de Junho de 2011

Orlando Afonso (Relator)
Távora Victor
Sérgio Poças