ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
04B869
DATA DO ACÓRDÃO 04/29/2004
SECÇÃO JSTJ000

TRIBUNAL DA RELAÇÃO T REL COIMBRA
REF PUBLICACAO
RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA.
DECISÃO NEGADA A REVISTA.
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR ARAÚJO BARROS

DESCRITORES ENERGIA ELÉCTRICA
FORNECIMENTO
PAGAMENTO
PRESCRIÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI

SUMÁRIO 1. O artigo 10º da Lei nº. 23/96, de 26 de Julho contempla, na respectiva formulação, duas diversas situações: as de crédito do preço do serviço prestado e as de crédito da diferença entre o preço facturado e pago e o correspondente ao total da energia fornecida. Para a primeira estabelece um prazo de prescrição (nº. 1). Sujeita a segunda a caducidade (nº. 2).
2. A Lei nº. 23/96 é aplicável às relações que subsistam à data da sua entrada em vigor, quando a diferença de preço de energia eléctrica venha a ser pedida após o decurso do prazo de seis meses sobre o início da sua vigência.
3. O legislador da referida Lei adoptou, quanto aos conceitos de baixa, média, alta e muito alta tensão, as definições e distinções constantes do denominado "pacote legislativo do sector eléctrico" composto, entre outros, pelos Decretos-Lei nºs. 122/95, 124/95, 125/95 e 126/95, todos de 17 de Julho.
4. Por isso, ao prescrever no nº. 3 do art. 10º que "o disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão", deixou inequivocamente de fora a média e a baixa tensão (a que o diploma se aplica).
5. Sendo subsumível ao conceito de "média tensão" o fornecimento de energia eléctrica à tensão nominal de 15 KV não está afastada, nesse caso, por força do nº. 3, a aplicação do disposto no nº. 2 daquele artigo 10º.
6. Atenta a finalidade da Lei nº. 23/96, que consiste na protecção dos utentes de qualquer dos serviços públicos enumerados no nº. 2 do seu artigo 1º, não se limita ela a regular as relações jurídicas estabelecidas para o fornecimento de tais serviços entre os pequenos consumidores-utentes, antes deve ter-se como alargada a todos os demais utilizadores de bens ou serviços públicos essenciais nela indicados, designadamente quando o consumidor da energia é uma empresa que fabrica e comercializa artigos de cerâmica.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A, S.A." intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra "B, Lda." peticionando a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 88.435.759$00 referente ao fornecimento de energia eléctrica, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir da citação.
Alegou, para tanto, que:
- houve um erro de contagem do volume de energia eléctrica que fornecera à ré, no âmbito de um contrato de fornecimento desta energia celebrado entre ambas;
- tal erro ocorreu por defeito de fabrico da aparelhagem destinada a fazer a medição da energia, aparelhagem essa que foi montada pela autora nas instalações da ré, em Outubro de 1991, e que consistiu num contador de energia activa, contador de energia reactiva, transformadores de intensidade e relógio de contacto;
- em consequência do defeito de fabrico, o aparelho contou apenas um terço da energia efectivamente consumida entre Outubro de 1991 a Dezembro de 1997, tendo a ré pago apenas um terço da energia realmente consumida;
- a diferença entre o valor da energia consumida e o valor efectivamente pago atinge o montante total de 84.224.532$00, a que acresce o IVA à taxa de 5%, o que perfaz a quantia global de 88.435.759$00.

Contestou a ré, sustentando, essencialmente, que:
- a existir, o direito invocado pela autora caducou, porque o fornecimento em causa foi de energia eléctrica em média tensão e as relações entre ambas as partes estabelecidas por via desse contrato, estão reguladas pela Lei nº. 23/96, de 2 de Julho, caducidade que deriva do seu art. 10º, nº. 2;
- ora, a factura relativa ao último mês alegadamente mal calculada (Dezembro de 1997) venceu-se em 23 de Janeiro de 1998, tendo sido paga pela ré através do cheque nº. 254130236, sacado pela ré sobre o Banco Totta & Açores em 24 de Janeiro de 1998;
- assim sendo, há que concluir terem ocorrido todos os pagamentos em relação aos quais a autora alega existir um erro de contagem, pelo menos seis meses antes da propositura da acção;
- o direito invocado pela autora sempre teria caducado face ao disposto no nº. 1 do art. 890º do Código Civil;
- o direito da autora prescreveu, face ao disposto no nº. 1 do artigo 10º da Lei nº. 23/96 de 26 de Julho, pois a presente acção entrou em tribunal no dia 27 de Outubro de 1998, e, nesta data, haviam já decorrido mais de 6 meses sobre a data em que o último fornecimento havia sido prestado, o qual ocorreu em Dezembro de 1997;
- subsidiariamente, a favor da prescrição, aplica-se o disposto na alínea g) do art. 310º do Código Civil, norma face à qual (conjugada com o disposto no nº. 2 do artigo 323º do mesmo diploma) sempre teriam que se considerar prescritos todos os créditos reclamados pela autora relativos a fornecimentos de energia vencidos até cinco anos antes de 2 de Novembro de 1998;
- nunca reconheceu os direitos alegados pela autora na petição, tendo-se limitado a pagar as facturas que esta lhe apresentava, confiando que correspondiam ao efectivamente devido;
- desconhece, sem obrigação de conhecer, se ocorreu algum erro na facturação da energia eléctrica, que a ter existido derivará de causas exclusivamente imputáveis à autora, sendo certo que coube sempre a esta, contratualmente, a vigilância e fiscalização das boas condições de funcionamento dos aparelhos montados pelos seus serviços técnicos, desconhecendo se o alegado defeito do contador existiria desde Outubro de 1991 ou se teria surgido em momento posterior como consequência de qualquer intervenção técnica por parte dos funcionários da autora;
- não é lícito à autora estabelecer, como fez, qualquer relação entre as diferenças de consumo verificadas e alegadamente comparadas a partir de Janeiro de 1998, com eventuais, mas sempre incertas e, porventura inexistentes, diferenças nos consumos e facturações anteriores, as quais, a terem existido sempre serão incomensuráveis ou, pelo menos, dificilmente mensuráveis;
- a ré, partindo da hipótese de que houve erro, não se enriqueceu à custa da autora, na medida em que apenas repercutiu nos preços finais dos seus produtos, o custo efectivamente suportado em energia eléctrica, não tendo, assim, aproveitado, por qualquer forma, tal erro, situação de que só os seus clientes terão eventualmente beneficiado;
- a autora litiga com má fé porque afirma no artigo 3º da petição que forneceu continuamente à ré desde Outubro de 1991, energia eléctrica em alta tensão, quando não podia desconhecer que contrariava frontalmente a realidade, falseando-a, pois a energia fornecida foi em média tensão, o que tem relevância para a aplicação ou não aplicação do regime da prescrição e caducidade previsto no artigo 10º da Lei nº. 23/96 de 26 de Julho, do qual está excluído expressamente o fornecimento de energia eléctrica em alta tensão.

Deduzindo reconvenção, subsidiariamente, para a hipótese do pedido principal ser julgado provado e procedente, ainda que parcialmente, pediu a condenação da autora, pelo menos na exacta medida da condenação que à ré venha a ser imposta, no pagamento de quantia até 88.435.759$00, ou quantia inferior em que a ré venha a ser condenada, devendo qualquer uma destas quantias ser acrescida dos juros de mora desde a data em que ocorreu a citação da ré para os termos da acção, devendo ainda a autora pagar à ré quaisquer outros danos que, porventura, da procedência da acção venham a resultar para a ré e cuja liquidação, por serem ainda de montante e mesmo existência desconhecidos, deverá ser relegada para execução de sentença.

Alegou, nesse sentido, que:
- o fundamento da acção consiste na existência de um alegado erro de facturação, verificado pela autora no final do ano de 1997, que se verificaria desde a instalação do contador em 1991;
- a provarem-se tais factos, estes revelam em si próprios uma situação de incumprimento das obrigações contratuais por parte da autora, que levando à procedência da acção causariam graves danos patrimoniais à ré, dos quais deverá ser indemnizada;
- a autora bem sabia que a ré destinava a energia fornecida ao fabrico dos produtos da sua actividade industrial, e que o custo da energia era imputado no custo final dos produtos, assim repercutindo no seu cliente o preço da energia que efectivamente pagou para obter o produto vendido;
- impunha-se, assim, à autora rigor na medição e consequente facturação de energia;
- desta forma, a ré não pode agora introduzir a diferença de preço exigida pela autora no custo normal da sua produção, o que significa que o montante em que eventualmente venha a ser condenada constituirá um custo não recuperável, constituindo a exigência da autora um verdadeiro prejuízo patrimonial para a ré;
- a título de exemplo, verifica-se que, relativamente ao ano de 1997, o custo em electricidade para cada tijolo por si fabricado com as medidas 30x20x11, e que representou cerca de 57,5% da produção fabril, foi de 1$06, mas seria de 2$83, tendo em conta a alegada facturação ora reclamada pela autora;
- por outro lado, a ré, com uma facturação prevista para o seu sector de cerâmica, no ano de 1998, de 265.460 contos, e com uma facturação, naquele sector, verificado durante o ano de 1997, de 214.008 contos, não pode suportar, sem encarar seriamente a possibilidade de falir, tal custo;
- ademais, em Março de 1996 a ré candidatou-se à atribuição de um subsídio ao abrigo do Sistema de Incentivos Regionais, tendo-lhe sido concedido um subsídio monetário no montante de 33.965.482$00, para cujo cômputo apresentou, no estudo que elaborou, custos energéticos calculados com base nos valores facturados pela autora, o que significa que, a ser considerada a existência do alegado erro e a verificar-se a condenação da ré no seu pagamento, terá esta, no subsídio atribuído, sido prejudicada em montante proporcional ao da deficiente previsão dos custos energéticos aí apresentados;
- prejuízo este, contudo, que só existirá se e na medida em que o pedido formulado for julgado procedente, pelo que não é possível, também, proceder à sua liquidação.

Na réplica a autora sustenta, em síntese, que:
- os nºs. 1 e 2 do art. 10º da Lei nº. 23/96 não têm aplicação ao presente caso, na medida em que ambas as partes acordaram no fornecimento de energia eléctrica sob a forma de corrente alternada trifásica à frequência de 50 HZ e à tensão nominal de 15 KV entre fases no local de entrega, com as tolerâncias regulamentares aprovadas quanto à tensão e à frequência e que a energia seria entregue no posto de transformação propriedade da ré;
- o contrato foi elaborado ao abrigo das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão anexas ao Dec. lei nº. 43.335, de 16 de Novembro de 1960 e os fornecimentos efectuados no âmbito do aludido contrato são considerados para todos os efeitos como um fornecimento em alta tensão, mesmo que o posto de transformação seja do distribuidor e a contagem se faça em baixa tensão;
- o citado diploma considera fornecimentos em alta tensão os fornecimentos em corrente alternada superiores a 1.000 volts;
- por outro lado, a linha que abastece o posto de transformação da ré é uma linha eléctrica cujo valor constante da tensão nominal é de 15.000 volts, tratando-se inequivocamente de um abastecimento em alta tensão conforme definição constante do nº. 51 do artigo 42º do Decreto Regulamentar nº. 1/92, de 18 de Fevereiro;
- não se aplica ao caso o disposto nos artigos 890º e seguintes do Código Civil porque o consumo efectuado e a potência tomada pela ré não foram pré-determinados, conforme sustenta a doutrina dominante, designadamente Adriano Vaz Serra e a jurisprudência dominante, sobretudo o Ac. STJ de 31/05/94 (CJSTJ II - II - 121);
- a ré conhecia a energia que as suas máquinas consumiam e não podia desconhecer que não pagava mensalmente toda a energia que consumia e a potência que tomava, tanto mais que as facturas que lhe foram sendo enviadas discriminavam de forma exaustiva os valores lidos e os consumos registados e os respectivos preços unitários;
- o preço dos produtos que vende é determinado apenas pelo melhor preço do mercado, sendo este o único factor determinante desses preços.

A ré treplicou, afirmando que carece de sentido pretender colocar sobre ela a obrigação de saber qual a energia que consumia, pois que tal obrigação não existia para a ré, sendo fácil à autora, por simples comparação entre a facturação que apresentava a ré e os demais clientes como aquela, ter-se apercebido a tempo do alegado erro de contagem (se existiu).
Reafirma que os custos de energia eléctrica também entram no preço dos produtos por si fabricados, não sendo o melhor preço de mercado, o único factor determinante desses preços, sob pena de, a ser como pretende a autora, se comercializar abaixo do preço de custo.
Acrescenta ainda que grande parte dos documentos que juntou são documentos emitidos pela própria autora, pelo que carece de sentido útil impugná-los, devendo considerar-se confessado o seu teor, atento o disposto no nº. 3 do art. 490º do Código de Processo Civil.

Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, e após audiência de julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido, considerando ainda a lide reconvencional extinta por inutilidade superveniente.
Inconformada, apelou a autora, sem êxito embora, uma vez que o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 9 de Julho de 2003, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.
Interpôs, agora, a autora recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão impugnado.
Em contra-alegações pugnou a recorrida pela confirmação do julgado.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

A recorrente findou as respectivas alegações formulando as conclusões seguintes (e é, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso - arts. 690º, nº. 1, e 684º, nº. 3, do C.Proc.Civil):
1. O fornecimento de energia eléctrica efectuado à recorrida pela recorrente integra o conceito de Alta Tensão previsto no nº. 3 do art. 10º da Lei nº. 23/96.
2. Trata-se de uma exclusão às regras da prescrição e caducidade previstas nesse diploma legal.
3. Efectivamente, o fornecimento de energia eléctrica foi efectuado em média tensão, integrando o conceito amplo de Alta Tensão (neste sentido Raul Ventura, ROA, Ano 43, pág. 198; Ac. STJ de 06/05/2000, no Proc. 738/99; Ac. STJ no Proc. 1754/01, 2ª Secção, de 22/06/2001; Revista nº. 3900/02-1 (Relator Cons. Garcia Marques, Adjuntos Cons. Ferreira Ramos e Cons. Pinto Monteiro) e Revista nº. 2268/03-2).
4. O acórdão recorrido tem um entendimento diferente desta jurisprudência dominante.
5. Ao aplicar-se o critério superiormente sustentado pelo STJ deverá decidir-se pela exclusão da prescrição do crédito da recorrente, considerando-se o mesmo actual.
6. Quanto à caducidade fundada no art. 890º do CC é entendimento da jurisprudência dominante que a caducidade prevista em tal disposição não é aplicável ao fornecimento de energia eléctrica (neste sentido Ac. STJ de 06/05/2000, Proc. 738/99; Acs. de 10/11/93, CJ I.III, pág. 113, de 31/05/94, CJ II, II, pág. 121, de 30/01/97, CJ V.I, pág. 85; de 27/10/98, CJ VI, III, pág. 87; e Ac. de 31/05/94, BMJ 437/509; Prof. Vaz Serra, in RLJ, Ano 106º, págs. 75 e ss. e Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Anotação ao art. 887º (CC Anotado, vol. II, pág. 163); Ac. STJ de 12/07/01, CJ STJ III, 34; Ac. STJ de 06/12/01, CJ III, 133 e Rec. Revista nº. 3900/02-1, (Relator Cons. Garcia Marques, Adjuntos Cons. Ferreira Ramos e Cons. Pinto Monteiro) e Rec. Rev. 1754/01, STJ, 2ª Secção).
7. Nestas circunstâncias não procede também a caducidade do crédito da recorrente nos termos previstos no art. 890º do CC.
8. Por fim, resta apreciar a prescrição invocada pela recorrida com base no disposto no art. 310º, g), do CC.
9. O prazo prescricional interrompeu-se com a citação da recorrida nesta acção em 20/11/98.
10. Foram dados como provados os factos constantes da alínea D) e resposta aos quesitos 5, 10, 11, 12 e 13.
11. O equipamento de medida foi devidamente instalado e apresentava as características técnicas demonstradas em audiência.
12. O erro de contagem apenas se deveu a um erro de fabrico na equipa de medida.
13. Face à matéria dada como provada verifica-se que a recorrente só tomou conhecimento da anomalia de fábrica da equipa de medida em Dezembro de 1997.
14. Trata-se de uma anomalia nas características técnicas internas do equipamento.
15. Só a partir da data em que a recorrente tomou conhecimento da anomalia pôde exercer o seu direito.
16. O art. 306º, nº. 1, do CC determina que o prazo de prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido, no caso, a partir de Dezembro de 1997 (neste sentido Ac. STJ de 06/12/01, CJ Tomo III, pág. 133; Ac. RP - relator Azadinho Loureiro - na Apelação nº. 5486/02, 1ª Secção).
17. No nosso caso, o prazo prescricional interrompeu-se com a citação no dia 20/11/98.
18. Está, assim, prejudicada a excepção de prescrição fundada no art. 310º do CC.
19. Realce-se que o equipamento de medida foi devidamente instalado e apresentava características técnicas demonstradas em audiência: efectivamente, ficou demonstrado em audiência de julgamento que a recorrida tinha conhecimento da maquinaria em funcionamento, da sua potência e utilização.
20. A recorrida sabia, assim, a energia que consumia; ora, sabia deste modo que consumia mais energia do que aquela que pagava e que lhe era facturada mensalmente.
21. Recorde-se que a recorrida manteve-se a pagar apenas 1/3 da energia consumida e 1/3 da potência efectivamente tomada.
22. Trata-se de uma diferença de tal modo grande que não podia passar em claro à recorrida, tanto mais que a recorrida é uma empresa comercial, conhecedora do seu sector de actividade e destinou a energia eléctrica que lhe foi fornecida ao exercício da sua actividade.
23. Por outro lado, importa realçar que a equipa de medida se encontrava nas instalações abastecidas confiada aos consumidores respectivos.
24. Ora, se a equipa de medida aí se encontrava, tem a recorrida o dever de velar pelo seu bom funcionamento e conservação.
25. Nestas circunstâncias só ao comportamento pelo menos negligente da recorrida se deveu a manutenção do erro de contagem.
26. Foram violados os arts. 10º da Lei nº. 23/96, 887º, 888º, 890º, 306º e 310º do C.C.

O acórdão em crise teve por assente a seguinte matéria fáctica:
i) - a autora é uma sociedade anónima que foi constituída por cisão da EDP de harmonia com o disposto nos Decretos Lei nº. 7/91 de 8 de Janeiro e 131/94 de 19 de Maio;
ii) - em virtude da cisão a autora sucedeu à EDP nas relações comerciais com a ré;
iii) - a autora no exercício da sua actividade social de distribuição e venda de energia eléctrica, forneceu continuadamente à ré desde Outubro de 1991 energia eléctrica às instalações desta sitas em Tábua e que a ré recebeu, consumiu e se obrigou a pagar no centro de distribuição da Lousã;
iv) - em Outubro de 1991 foram montados no posto de transformação da ré que abastecia as instalações da mesma uma equipa de contagem composta por um contador de energia activa, contador de energia reactiva, transformadores de intensidade e relógio de contacto e que ainda se mantêm montados;
v) - em 17 de Dezembro de 1997 foi efectuada, por uma brigada da autora uma vistoria à fábrica da ré na qual estiveram presentes os representantes desta;
vi) - nessa ocasião foi verificado que o equipamento de medida se encontrava devidamente selado com os selos apostos aquando da ligação efectuada em Outubro de 1991;
vii) - em 19 de Dezembro de 1997 a autora implantou uma nova equipa de contagem a montante da equipa de montagem inicial para controlo desta, mantendo-a em pleno funcionamento;
viii) - em 13 de Dezembro de 1998 foi efectuada uma auditoria técnica ao equipamento de contagem e medida instalado inicialmente em Outubro de 1991, e foi confirmado que a equipa de medida se mantinha selada e os selos apostos em 1991 se mantinham intactos;
ix) - na mesma ocasião foram efectuados mais dois ensaios à equipa de medida;
x) - a ré destinou a energia que lhe foi fornecida ao exercício da sua actividade social de fabrico de materiais cerâmicos de construção;
xi) - a energia eléctrica é fornecida com a potência de 293 KV, sendo tal fornecimento efectuado sob a forma de corrente alternada trifásica à frequência de 50 Hz e à tensão nominal entre fases no local de entrega;
xii) - em 14 de Março de 1991 a ré formulou à autora um pedido de instalação de uma linha de fornecimento de energia em média tensão;
xiii) - ao abrigo do acordo referido em iii), foi instalado um posto de transformação nas instalações da ré para transformação de energia eléctrica recebida por esta em média tensão, em energia eléctrica de baixa tensão;
xiv) -a equipa de contagem instalada na ocasião referida em iv) tem as características técnicas descritas no documento de folhas 8 dos autos;
xv) - a nova equipa de contagem instalada nas instalações da ré, na ocasião referida em vii), tem as características técnicas descritas no documento de folhas 9 dos autos;
xvi) - na ocasião referida em v) a brigada da autora detectou um erro na contagem de energia fornecida pela autora e consumida pela ré;
xvii) - na ocasião referida em viii), e na sequência do referido em ix), foi confirmado o erro na contagem de energia;
xviii) - a autora ao analisar a equipa de medida instalada inicialmente verificou que os condutores, quer das tensões, quer das correntes, estavam ligados em conformidade com o esquema do próprio contador, mas ao testar os três binários, constatou que um dos binários apresentava um defeito de fabrico, os bornes com ligação invertida e assim a inversão do sentido da corrente;
xix) - como consequência do referido, dois binários provocavam a rotação do rotor em sentido correcto e contagem correcta e o outro binário provocava a rotação do rotor em sentido inverso, fazendo a contagem em sentido inverso;
xx) - em consequência disso o contador totalizava um terço da energia fornecida;
xxi) - a situação descrita em xx) manteve-se desde Outubro de 1991 até Dezembro de 1997, pelo que a ré apenas pagou à autora um terço da energia realmente consumida e da potência efectivamente tomada, durante esse período;
xxii) - a situação descrita em xix) foi confirmada por uma nova equipa de medida instalada em 30 de Junho de 1998, com as características técnicas descritas no documento de folhas 10 dos autos, também a montante da equipa de medida inicial e que mantém o relógio de contacto anteriormente instalado em 19 de Dezembro de 1997;
xxiii) - em consequência do referido em xx) e xxi), o preço total da energia fornecida e consumida é de 84.224.532$00, mais IVA a 5%;
xxiv) - tal montante foi apresentado a pagamento à ré em 15 de Setembro de 1998 por nota de débito/factura emitida pela autora;
xxv) - esse montante foi calculado tendo em consideração os montantes de energia pagos e não pagos bem como o preço por unidade e quantidade à data dos fornecimentos;
xxvi) - a energia fornecida pela autora e consumida pela ré contada a partir de 19 de Dezembro de 1997 triplicou;
xxvii) - em consequência do referido em xx) e xxi), existiram contactos pessoais, reuniões, cartas, telefonemas entre as partes;
xxviii) - a ré conhece a potência e o consumo obtido pela maquinaria que utiliza nas suas instalações;
xxix) - os pagamentos efectuados pela ré à autora, desde Outubro de 1991 a Dezembro de 1997 foram efectuados com base nas facturas emitidas pela autora, sendo tal facturação calculada como se de fornecimento de energia eléctrica de média tensão se tratasse;
xxx) - a factura respeitante ao fornecimento de electricidade pela autora à ré e relativa ao mês de Dezembro de 1997 venceu-se em 23 de Janeiro de 1998;
xxxi) - tal factura foi paga pela ré à autora em 22 de Janeiro de 1998, por cheque sacado sobre o BTA;
xxxii) - a ré sempre pagou à autora, pontualmente, todos os anteriores fornecimentos de energia;
xxxiii) - a ré recusou o pagamento peticionado pela autora e referido em xxiv) tendo devolvido a respectiva nota de débito;
xxxiv) - a ré sempre proporcionou livre acesso aos equipamentos que foram nas suas instalações instalados pela autora;
xxxv) - desde Outubro de 1991 até Dezembro de 1997, a autora manteve nas instalações da ré o material de contagem supra referido, sujeitando-o a vistorias de rotina, com vista a assegurar condições de segurança e de manutenção, não constituindo objecto das mesmas a detecção de erros, tal como o referido em xvii) atento o descrito em xvi);
xxxvi) - a ré sempre fez repercutir no preço final dos produtos por si produzidos o custo da energia que consumia fornecida pela autora;
xxxvii) - tendo a ré tido em conta, no período referido em xxi), a energia facturada pela autora;
xxxviii) - a ré já forneceu e já se cobrou do produto para cujo fabrico utilizou tal energia;
xxxix) - em consequência do referido em xxiii) e em xxxvi) a xxxviii) a ré já não pode introduzir o montante supra referido em xxiii) no custo da sua produção, vendo-se impossibilitada de recuperar esse montante;
xl) - no ano de 1997, o custo em electricidade para cada tijolo fornecido pela ré com as medidas de 30x20x11, e que representava cerca de 57,5% da sua produção, foi considerado em valor não concretamente apurado;
xli) - caso tivesse sido tomada em consideração a facturação ora reclamada pela autora, o custo em electricidade de cada tijolo no mesmo período seria de valor diferente, mas não concretamente apurado;
xlii) - o montante agora reclamado pela autora representa parte não concretamente apurada da facturação bruta da ré;
xliii) - em Março de 1996, a ré candidatou-se à atribuição de um subsídio ao abrigo do Sistema de Incentivos Regionais, tendo-lhe sido concedido um subsídio monetário no montante de 33.965.482$00, para cujo cômputo a ré apresentou, no estudo que elaborou, custos energéticos calculados com base nos valores facturados pela autora;
xliv) - a ser considerado o montante ora reclamado pela autora terá a ré sido prejudicada no subsídio atribuído em montante proporcional ao da deficiente previsão dos custos energéticos aí apresentados;
xlv) - é nas instalações da ré que se encontravam e encontram, quer o equipamento consumidor de energia, quer o equipamento de medida;
xlvi) - a ré pode utilizar equipamento próprio para contar a energia fornecida e a potência tomada;
xlvii) - ao abrigo do acordado em iii), a energia seria entregue no Posto de Transformação propriedade da ré.

Importa, antes de mais, delimitar, em concreto, o objecto do recurso: determinar quais as questões que devem ser apreciadas (o que se nos afigura essencial face às conclusões da recorrente, em que estão suscitadas questões de que não deve conhecer-se por se mostrarem irrelevantes para a decisão a proferir).
E, para tal, cumpre, previamente, transcrever o art. 10º da Lei nº. 23/96, de 26 de Julho:
"1. O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
2. Se, por erro do prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito ao recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.
3. O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica de alta tensão".

A apreciação do recurso prende-se, em primeira linha, com a questão de saber se caducou ou não o direito da autora a haver da ré o pagamento da diferença entre o preço por ela facturado e o preço correspondente à energia eléctrica que, realmente, lhe forneceu.
Não está minimamente em causa discutir a eventual prescrição ou caducidade do direito da autora, quer com fundamento no art. 310º, al. g), quer com base no art. 890º, ambos do C.Civil (as decisões das instâncias não se debruçaram - nem de tal havia necessidade - sobre tais fundamentos, sendo certo que a recorrida nem mesmo requereu a ampliação do objecto do recurso, nos termos do art. 864º-A, do C.Proc.Civil (1), antes, nas contra-alegações dos recursos, pugna pela confirmação, pura e simples, do decidido) (2).
Doutro passo, é claro que o art. 10º da Lei nº. 23/96 contempla na respectiva formulação duas diversas situações: as de crédito do preço do serviço prestado e as de crédito da diferença entre o preço facturado e pago e o correspondente ao total da energia fornecida. Para a primeira estabelece um prazo de prescrição (nº. 1). Sujeita a segunda a caducidade (nº. 2). Ora, é evidente que, in casu, a autora fundamentou a sua pretensão na diferença entre o preço que facturou à ré e o preço real da energia que àquela, por lapso, foi fornecida. Logo, também por esta razão, não há que apreciar se estava ou não prescrito o direito da autora à prestação exigida (3).
Passa, assim, a decisão a proferir, concretamente, pela análise da questão da caducidade à luz dos nºs. 2 e 3 do artigo 10º da Lei nº. 23/96, para o que, em primeiro lugar, se impõe averiguar se a energia eléctrica fornecida pela recorrente à recorrida pode ser qualificada como de alta tensão, situação em que o pedido deduzido na acção não estaria sujeito ao prazo de caducidade de seis meses previsto no nº. 2.
E isto naturalmente porque a Lei nº. 23/96 entrou em vigor em 25 de Outubro de 1996, tendo a autora exigido da ré o pagamento da diferença de preço em 15 de Setembro de 1998 e havendo a presente acção sido intentada em 27 de Outubro de 1998 (4).
Posto isto, importa determinar qual o conceito de alta tensão para a disposição do nº. 3 do art. 10º daquela Lei nº. 23/96 (5).
Acerca desse conceito não existe uniformidade na jurisprudência.
Na verdade, já se entendeu (maioritariamente) que o referido nº. 3 do art. 10º "abrange não só a alta e muito alta, mas também a média tensão" (6).
Em contrapartida, também já foi decidido que não é aceitável o entendimento de que alta tensão é a que refere o conceito comum, de toda a tensão que não é baixa, a tensão superior a 1 KV (7).
Defendemos, sem embargo do respeito merecido, a opinião mencionada em segundo lugar, aliás em conformidade com o entendimento do acórdão recorrido, considerando que o nº. 3 do art. 10º apenas exclui da caducidade prevista no nº. 2 o fornecimento de energia eléctrica de alta tensão, inassimilável às situações de fornecimento em média tensão, tanto mais quanto é esse entendimento o que melhor se coaduna com o próprio conteúdo do contrato celebrado entre as partes (8).

Vejamos porquê.
Começaremos, como se impõe, por analisar o conteúdo do contrato celebrado entre a autora e a ré, assim como dos documentos juntos aos autos, sobretudo alguma correspondência trocada entre ambas, na medida em que até certo ponto relevam para a decisão a proferir.
A autora e a ré celebraram em 1 de Outubro de 1991 (fls. 312 a 321) um "contrato para o fornecimento de energia eléctrica em média tensão", como consta da respectiva epígrafe, em que a ré é expressamente designada por "consumidor". Resulta do respectivo clausulado, designadamente, que "a EDP obriga-se a fornecer e o Consumidor a adquirir, nas condições do presente contrato, a energia eléctrica necessária ao abastecimento das suas instalações de uma fábrica de cerâmica, situadas em Tábua" (artigo 1º); que "a potência contratada pelo consumidor é de 293 KW, que a EDP põe à sua disposição" (artigo 3º); que "a energia será fornecida sob a forma de corrente alternada trifásica, à frequência de 50 Hz e à tensão nominal de 15 KV entre fases no local de entrega, fixado no artigo 1º, com as tolerâncias regulamentares aprovadas quanto à tensão e frequência" (artigo 4º); e que "a medição de entrega será feita em Baixa Tensão" por meio de contadores fornecidos e instalados pela EDP (artigo 9º).

Ora, considerando que o vocábulo média foi inscrito na epígrafe do contrato, sem dúvida como forma de qualificação da natureza do fornecimento a prestar, encontrando-se todas as respectivas cláusulas subordinadas a essa expressão inicial, a lógica conclusão a extrair é a de que as partes quiseram efectivamente identificar o contrato como de fornecimento de energia eléctrica em média tensão.
Isto mesmo é confirmado pelo teor da carta remetida pela ré à EDP em 14/03/91, solicitando um orçamento para linha de média tensão (fls. 57), bem como pela resposta dada por esta em 14 de Março do mesmo ano (fls. 58) em que se indica, ao abrigo do assunto "fornecimento de energia eléctrica em média tensão ao vosso Posto de Transformação em Bairro de Milagres", o fornecimento de energia eléctrica até à potência limite de 630 KWA e a instalação de uma linha eléctrica de 15 KV, e, ademais, se acrescenta, quanto ao tarifário a praticar que "face à utilização de energia prevista para as v/ instalações e porque vão ser alimentados à tensão de 15 KV, entende-se que a opção mais económica é, em princípio, a de Média Tensão-Tarifa de Médias Utilizações".
Aliás, sendo a recorrente uma sociedade anónima constituída por cisão da EDP, cuja actividade social consiste na distribuição e venda de energia eléctrica, dúvidas se não suscitam acerca da sua capacidade e conhecimentos para a adequada qualificação técnica dos contratos em que intervém, na qualidade de fornecedora de energia eléctrica, pelo que é de presumir que a realidade técnica correspondente à expressão média tensão não seja para ela dotada de um conteúdo e alcance sinónimos dos que correspondem aos conceitos de baixa tensão ou de alta tensão.
Melhor explicitando, se o contrato dos autos foi qualificado como de "fornecimento de energia eléctrica em média tensão" tal ficou a dever-se, por certo, ao facto de ser essa - e não qualquer outra - a qualificação tecnicamente adequada para corresponder a um contrato com as características do ora em apreço.
Assim, não pode deixar, desde logo, de se considerar algo estranho que a recorrente, diversamente do que se deduz do contrato por si outorgado, tenha vindo pretender reconduzir o respectivo objecto a um fornecimento de energia eléctrica em alta tensão, com o argumento de que "alta tensão, no âmbito da Lei nº. 23/96, é a que reflecte o conceito comum, de toda a tensão que não é baixa, a tensão superior a 1 kv" (por adesão ao entendimento do Ac. STJ de 6 de Janeiro de 2000, acima referido).
Trata-se, no mínimo, de uma conclusão apressada, retirada sem preocupações de rigor, num contexto normativo marcado por grande tecnicidade, onde é frequente a existência de conceitos dotados de falta de unidade de significações (conceitos não unívocos), dependendo o sentido concreto da intencionalidade dos diplomas, do seu objecto ou do âmbito da respectiva aplicação.
Em todo o caso outra orientação não advém dos diversos diplomas que regulamentam a actividade de produção, distribuição e fornecimento de energia eléctrica (não obstante a proliferação de leis nesse sector e a incapacidade do legislador de antever e prevenir os problemas de interpretação e aplicação das leis - de que se dá conta no acórdão recorrido - poderem complicar o que, a nosso ver, não deixa de ser simples).
Pode argumentar-se no sentido propugnado pela recorrente - e tal tem sido feito - afirmando que "da combinação interpretativa dos arts. 70º do Dec. lei nº. 740/74, de 26 de Dezembro, dos arts. 2º, nºs. 1 e 4, 3º, als. a) e b), e 4º, nº. 51, do Decreto Regulamentar nº 1/92 de 18 de Fevereiro e dos arts. 116º e 118º das "Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão", anexas ao Dec. lei nº. 43.335 de 19/11/60, e do disposto no nº. 3 da Lei nº. 23/96, a corrente de energia eléctrica de "Alta Tensão" para o fim específico define-se como aquela cujo valor de tensão nominal não seja inferior a 6 KV.
E, por isso, considerando que não tendo o nº. 3 do art. 10º da Lei nº. 23/96 definido, para o efeito específico aí consignado de exclusão de regime, o que deva entender-se por "Alta Tensão", é legítimo o recurso aos locais legislativos que para outros fins, sempre conexos (como o de produção, transporte, fornecimento e instalação de energia eléctrica, etc.) sobre tal definição se pronunciaram.

Por outro lado, as expressões "Baixa Tensão" e "Alta Tensão" são as designações correntes e conhecidas do público em geral para distinguir a energia eléctrica que corre nos condutores e se consome. Considerando a utilidade e a oportunidade da norma do art. 10º da Lei 23/96 é de entender que foi para esta cultura e curso comuns que ela falou e dispôs. Não estão ao alcance desse conhecimento geral noções como as de "Média Tensão" e "Muito Alta Tensão" que, aliás, não encontram expressão na lei. Elas ocorrerão, porventura, dentro do conhecimento especializado e na prática técnica ou negocial de apenas alguma gente, que não foi, por certo, a contemplada com a norma legal referida acima. Foram, certamente, aqueles locais legislativos e aquela cultura vulgar e do público em geral, estes, o verdadeiro aportamento da vocação da norma jurídica em causa, que o Legislador da Lei nº. 23/96 tomou para inculcar aí um conceito de "Alta Tensão", como um conceito comum e sistematicamente adquirido e significador de tudo quanto não seja "Baixa Tensão" e que, no máximo daqueles diplomas legais (Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão - anexas ao Dec. lei nº. 43.335), não excede os 6 KV.
Tal entendimento - dir-se-á - revela-se no espírito da própria Lei nº. 23/96 que considerou a preocupação de protecção do utente pequeno e médio consumidor de baixa tensão, o consumidor final, pela pressuposição natural de falta de capacidade e de meios técnicos para controlar os fornecimentos de energia efectuados, retirando dessa preocupação os restantes consumidores cujo valor de "tensão" negociada e fornecida expressa já um consumidor com capacidade própria para a efectuação daquele controlo. É aliás, este o entendimento proposto pelos 4º e 5º parágrafos do Relatório de Proposta da Lei nº. 23/96" (9).
Parece, no entanto, a nosso ver, que no mínimo se trata de uma argumentação e interpretação forçadas, retiradas sem preocupações de rigor dos diferentes diplomas e normas que disciplinaram (e regulamentam) uma actividade sectorial marcada por invulgar tecnicidade na definição dos conceitos e termos utilizados.

É certo que se pode dizer (porém de forma não consensual) que em diversos diplomas regulamentadores da actividade em causa, o conceito de alta tensão é tomado em sentido mais ou menos amplo, correspondente a toda a tensão superior a 1 kv.
Tal resultaria, nomeadamente, do Decreto Regulamentar nº. 1/92, de 18 de Fevereiro (art. 4º, nºs. 51 e 52); do Decreto Regulamentar nº. 90/84, de 26 de Dezembro (arts. 4º e 5º, nºs. 18 e 19); do Dec. lei nº. 740/74, de 26 de Dezembro (arts. 7º e 8º do Regulamento de Segurança de Instalações de Utilização de Energia Eléctrica, arts. 2º e 3º do Regulamento de Segurança de Instalações Colectivas de Edifícios e Entradas); do Dec. lei nº. 26.852, de 30 de Julho de 1936, com as diversas alterações que lhe foram introduzidas pelo Dec. lei nº. 446/76, de 5 de Junho; do Dec. lei nº. 344-B/82, de 1 de Setembro; do Dec. lei nº. 131/87, de 17 de Março; da Portaria nº. 344/89, de 13 de Maio; do Dec. lei nº. 272/92, de 3 de Dezembro; do Dec. lei nº. 4/93, de 8 de Janeiro (arts. 18º, nº. 3, 19º, nº. 1, 32º a 45º do Regulamento de Licenças para Instalações Eléctricas), do Dec. lei nº. 43.335, de 19 de Novembro de 1960 (arts. 83º, 116º e 118º); e do Dec. lei nº. 344-B/82, de 1 de Setembro.
Todavia, à partida, há que ter em conta que grande parte dos diplomas citados não são aplicáveis ao contrato em apreço, datado, recorde-se, de 1 de Outubro de 1991 (por exemplo, o Dec. lei nº. 43.335, de 19/11/60, quando dispõe no art. 116º que "os concessionários da grande distribuição são obrigados a levar energia eléctrica a todas as cabeças de concelho da área concedida e a fornecê-la a uma tensão que não excederá, em regra, 30 KV nem será inferior a 6 KV" mostra a total indiferença da disciplina deste normativo em relação ao caso dos autos).

Por outro lado, não é convincente o disposto no artigo 1º, § 2º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão (anexas ao Dec. lei nº. 43.335, de 19 de Novembro de 1960) onde se dispõe que "sempre que um consumidor receba directamente energia de um concessionário da grande distribuição, ao abrigo da respectiva concessão, o fornecimento considera-se, para todos os efeitos, incluindo as tarifas, como um fornecimento em alta tensão, mesmo que o posto de transformação seja do distribuidor e a contagem se faça em baixa tensão".
Sendo que a razão do não convencimento reside no facto desta norma se referir, por definição, ao fornecimento de energia em alta tensão, isto é, a norma já pressupõe, a priori, um fornecimento e um consumo de energia eléctrica de alta tensão. Desta forma, nada de útil adita à nossa questão, pois tudo não passaria de uma petição de princípio, como se fosse dito: "ainda que o posto de transformação seja do distribuidor e a contagem se faça em baixa tensão, sempre que um consumidor (entenda-se, de alta tensão) receba directamente energia de um concessionário da grande distribuição (entenda-se, de alta tensão), ao abrigo da respectiva concessão, o fornecimento considera-se para todos os efeitos, incluindo tarifas, como um fornecimento de alta tensão".
O que, aliás, decorre também da previsão do artigo 83º do mesmo diploma, que prescreve que "os valores nominais das tensões a adoptar no transporte ou na grande distribuição serão de 6.000 V, 15.000 V. 30.000 V, 60.000 V, 100.000 V, 150.000 V e 220.000 V (...)", já que não estabelece qualquer tipologia de modalidades de tensão passível de aproveitar à ideia segundo a qual "a tensão nominal de 15 kv seria de qualificar como alta tensão". O que se constata, pelo contrário, é que nesse normativo são considerados valores nominais de tensões bem acima da tensão nominal de 15.000 V.

Igualmente no Dec. lei nº. 344-B/82 não existe, na sistemática do diploma, qualquer normativo que possa ter-se como relevante para a solução do caso sub judice. Bastará atentar no facto de que o artigo 1º, depois de estabelecer que a distribuição no continente de energia eléctrica em baixa tensão compete aos municípios, os quais podem exercê-la em regime de exploração directa ou em regime de concessão (nº. 1), prescreve que a distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, em regime de concessão, só pode, em princípio, ser exercida pela EDP ou por empresas públicas de âmbito local ou regional, criadas nos termos que venham a ser definidos por Lei (nº. 3).
É verdade que os Decretos Regulamentares nºs. 90/84, de 26 de Dezembro, que aprovou o Regulamento de Segurança de Distribuição de Energia Eléctrica em Baixa Tensão e 1/92, de 18 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento de Segurança de Linhas Eléctricas de Alta Tensão incluem algumas normas que, na aparência, apoiariam o mencionado entendimento. De facto, o primeiro dos citados diplomas regulamentares obedece a uma lógica puramente dicotómica ou bipolar, movimentando-se exclusivamente em torno das realidades "alta" e "baixa" tensão. Nessa perspectiva, estabelece que se considerará que "uma instalação ou parte de instalação será de alta ou baixa tensão conforme o valor eficaz ou constante da sua maior tensão nominal excede ou não: a) em corrente alternada: 1000 V; b) em corrente contínua: 1500 V (art. 4º do Dec. Reg. nº. 90/84 e nºs. 14, 18 e 19 do art. 3º do Regulamento anexo).
Já, porém, o Regulamento aprovado pelo Dec. Reg. nº. 1/92 prescreve, no seu artigo 3º, que, conforme a sua tensão nominal, as instalações são classificadas nas três seguintes classes: a) 1ª classe - instalação cuja tensão nominal não ultrapassa 1.000 V em corrente alternada ou 1.500 V em corrente contínua; b) 2ª classe - instalação cuja tensão nominal é superior aos valores acima indicados e inferior a 40.000 V; c) 3ª classe - instalação cuja tensão nominal é igual ou superior a 40.000V.

Ou seja, na sua tipologia tripartida a solução acabada de apresentar pareceria apontar para as categorias de "baixa", "média" e "alta" tensão. O certo, porém, é que, ao proceder à definição de "linha de alta tensão" e "linha de baixa tensão", o referido art. 4º (cfr. pontos 51 e 52) reproduz o constante do Regulamento aprovado pelo Dec. Reg. nº. 90/84, nos seus pontos 18 e 19, fazendo corresponder a linha de alta tensão àquela em que o valor eficaz ou o valor constante da tensão nominal excede os já referidos valores de 1.000 V em corrente alternada e 1.500 V em corrente contínua.
Anteriormente, todavia, o Regulamento de Segurança das Instalações de Utilização de Energia Eléctrica, aprovado pelo Dec. lei nº. 740/74, de 26 de Outubro, utilizara outros critérios ou parâmetros de referência na seguinte definição de "instalação de baixa tensão": "instalação cuja tensão nominal não excede os valores seguintes: a) em corrente contínua entre quaisquer condutores activos: 650 V; b) em corrente alternada, entre qualquer condutor activo e a terra, se a instalação tiver ponto neutro à terra, ou entre dois quaisquer condutores activos, se a instalação não tiver ponto neutro à terra: 250 V" (art. 7º do Regulamento). Razão por que, correspondentemente, a instalação de alta tensão foi definida como aquela cuja tensão nominal excede os valores indicados no artigo 7º" (art. 9º). Ou seja: atenta a especificação técnica da matéria e o âmbito próprio dos diplomas, é compreensível que se verifique a já assinalada falta de uniformização de conceitos, variando a respectiva definição em função do âmbito objectivo concreto de cada diploma.
Mas, em contrapartida, o conceito restrito de alta tensão - como a tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV - aparece claramente referido no pacote legislativo do sector eléctrico de 1995 (designadamente nos Decs. lei nºs. 182/95, 184/95, 185/95 e 186/95, todos de 27 de Julho).
O Dec. lei nº. 182/95, que estabeleceu as Bases da Organização do Sistema Eléctrico Nacional (SEN), introduziu no art. 4º as seguintes definições: "Para efeitos da aplicação do presente diploma, entende-se por: a) Alta tensão (AT) - tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV; b) Baixa tensão (BT) - tensão até 1 kV; c) Contrato de vinculação - contrato de longo prazo mediante o qual, dentro das regras de funcionamento do SEP (10), um produtor assume o compromisso de entregar ao SEP toda a energia eléctrica por si produzida ou um distribuidor assume o compromisso de proceder à distribuição, dentro do âmbito do SEP, da energia eléctrica que recebe deste; d) Licença vinculada - licença mediante a qual o titular assume o compromisso de alimentar o SEP ou ser por ele alimentado, dentro das regras de funcionamento daquele Sistema; e) Licença não vinculada - licença mediante a qual o titular não assume o compromisso de alimentar o SEP, explorando a actividade para satisfação de necessidades próprias ou de terceiros, através de contratos comerciais não regulados; f) Média tensão (MT) - tensão superior a 1 kV e igual ou inferior a 45 kV; g) Muito alta tensão (MAT) - tensão superior a 110 kV".
Por sua vez, o Dec. lei nº. 184/95 que estabeleceu o Regime Jurídico do Exercício da Actividade de Distribuição de Energia Eléctrica no Âmbito do Sistema Eléctrico de Serviço Público (SEP) e do Sistema Eléctrico não Vinculado (SENV) no seu artigo 2º inseriu as seguintes definições: "Para efeitos do presente diploma, entende-se por: a) Alta tensão (AT) - tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV; b) Baixa tensão (BT) - tensão até 1 kV; c) Cliente - entidade que adquire energia eléctrica; d) Consumidor - entidade que recebe energia eléctrica para utilização própria; e) Fornecimento de energia eléctrica - venda de energia eléctrica a qualquer entidade que é cliente do distribuidor; f) Média tensão (MT) - tensão superior a 1 kV e igual ou inferior a 45 kV".
O Dec. lei nº. 185/95, que estabeleceu o Regime Jurídico do Exercício da Actividade de Transporte de Energia Eléctrica no Sistema Eléctrico Nacional (SEN) e aprovou as Bases da Concessão de Exploração da Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica (RNT), constantes do anexo, apresenta no art. 2º as seguintes definições: "Para efeitos de aplicação do presente diploma, entende-se por: a) Alta tensão (AT) - tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV; b) Aquisição de energia eléctrica - compra de energia eléctrica pela concessionária; c) Cliente - entidade que adquire energia eléctrica; d) Concessionária - entidade concessionária da RNT; e) Consumidor - entidade que recebe energia eléctrica para utilização própria; f) Entrega de energia eléctrica - alimentação física de energia eléctrica a qualquer entidade, independentemente de ser ou não cliente da concessionária; g) Fornecimento de energia eléctrica - venda de energia eléctrica a qualquer entidade que é cliente da concessionária; h) Média tensão (MT) - tensão superior a 1 kV e igual ou inferior a 45 kV; i) Muito alta tensão (MAT) - tensão superior a 110 kV; j) Recepção de energia eléctrica - entrada física de energia eléctrica na RNT, proveniente de centros electroprodutores ou da rede internacional; l) Transmissão - condução de energia eléctrica em muito alta tensão entre pontos de recepção e de entrega; m) Transporte - recepção, transmissão e entrega de energia eléctrica".
Por seu turno, o Dec. lei nº. 186/95, que estabeleceu as Disposições Relativas à Actividade de Produção e Consumo Combinados de Energia Eléctrica e de Energia Térmica Mediante o Processo de Cogeração, sem limite máximo de potência instalada, procedeu, na al. h) do art. 7º, às seguintes definições: "Para efeitos de facturação da energia fornecido pelo cogerador, são definidos os seguintes valores nominais de tensão composta: Baixa tensão - tensão igual ou inferior a 1 kV; Média tensão - tensão superior a 1 kV e igual ou inferior a 45 kV; Alta tensão - tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV; Muito alta tensão - tensão superior a 110 kV".

Ora, e antes de mais, perante o conteúdo das normas deste "pacote legislativo do sector eléctrico", é de crer que, apenas um ano depois da publicação desta legislação relativa ao Sistema Eléctrico Nacional, quando foi publicada a Lei nº. 23/96 de 26 de Julho, naturalmente existia um consenso quanto aos conceitos de baixa, média, alta e muito alta tensão e quanto à respectiva distinção.
Assim, não é aceitável que o legislador, ao redigir o nº. 3 do art. 10º daquele diploma, não tivesse ponderado - e mais, tacitamente admitido - as definições acerca da tensão da corrente eléctrica, porquanto a Lei nº. 23/96 teve precisamente por objecto a fixação de regras acerca da prestação de serviços públicos essenciais, nomeadamente o de fornecimento de energia eléctrica (al. c) do nº. 1 do art. 1º). Antes, sem qualquer dúvida, o legislador tomou em consideração os diferentes tipos de fornecimento de energia ao estabelecer os regimes prescricional e de caducidade previstos nesse diploma, tanto mais quanto é certo que no referido nº. 3 excluiu expressamente - e apenas - o fornecimento de energia eléctrica em alta tensão.
Naturalmente que - face às definições constantes dos diplomas que constituem o pacote legislativo de 1995 (tão recentes) (11):
- se o legislador tivesse querido que a lei se aplicasse apenas ao fornecimento de energia eléctrica em baixa tensão - excluindo também o fornecimento em média tensão - não teria deixado de o fazer através, por exemplo, da seguinte redacção: "3. O disposto no presente artigo só se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em baixa tensão" (ou outra similar), assim excluindo a média e a alta tensão.
Desta forma, ao dizer (como disse), "3. O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão", deixou inequivocamente de fora a média e a baixa tensão (a que o diploma se aplica).
E se porventura a intenção do legislador era outra, ou seja, a de excluir desse regime de prescrição os fornecimentos de energia eléctrica em média tensão, então há que concluir forçosamente que tal intenção não deixou qualquer vestígio na letra da lei. Por conseguinte, nunca será possível recorrer a uma interpretação extensiva do preceito em causa porque tal interpretação não tem no respectivo texto "um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso" (nº. 2 do art. 9º do C.Civil).
Acresce que "essa qualificação não só está inserida em diploma(s) vigente(s) à data da rectificação dos valores do consumo no âmbito do contrato a que os presentes autos se referem, mas também faz(em) aplicação do conceito de média tensão, expressamente invocado para qualificar o aludido contrato. Por outro lado, em face da proximidade das datas de publicação dos citados diplomas de 27 de Julho de 1995 e da Lei nº. 23/96, de 26 de Julho, em cuja normação se inscreve a norma a interpretar - o nº. 3 do artigo 10º - é lógica a suposição de que a tipologia tripartida acabada de definir não podia ser desconhecida pelo legislador da Lei de 1996, razão por que, ao falar em "alta tensão" no referido nº. 3 do artigo 10º, a Lei nº. 23/96 estaria, muito provavelmente, a dar ao conceito o sentido que lhe foi atribuído pelas normas dos diplomas de 27 de Julho de 1995" (12).

Tem que se admitir, sem embargo, que os Decs. lei nºs. 182/95, 184/95, 185/95 e 186/95 são posteriores à data do contrato dos autos, que é, recorde-se, de 1 de Outubro de 1991.
No entanto, à data do contrato, já o Dec. lei nº. 103-C/89, de 4 de Abril, distinguia os consumidores em baixa tensão e os de muito alta, alta e média tensão.
Ora, quer à data da celebração do contrato, quer à data da entrada em vigor da Lei nº. 23/96, existiam diplomas vigentes que reconheciam o conceito de "média tensão"(cfr. o Dec. lei nº. 103-C/89, de 4 de Abril e a Portaria nº. 29-A/88, de 14 de Janeiro, no primeiro momento, e os Decs. lei nº. 182/95, 184/95, 185/95 e 186/95, todos de 27 de Julho, no segundo).
Assim sendo, pretender fazer corresponder, para o efeito e no âmbito da Lei nº. 23/96, "alta tensão" a "tensão superior a 1 kV" corresponderia a ignorar a teleologia do diploma, a passar por cima das normas atrás assinaladas do pacote legislativo de 27 de Julho de 1995, a fazer tábua rasa da categoria legalmente prevista de "média tensão", fundindo-a artificialmente com a "alta tensão", e, por fim, a desrespeitar a vontade das partes que claramente classificaram o fornecimento de energia eléctrica dos autos como de "média tensão".
E, por outro lado, do tarifário constante dos quadros nºs. 1 e 2 anexos à Portaria nº 29-A/88, de 14 de Janeiro (13), ao abrigo da qual se terá procedido à rectificação da facturação que esteve na origem desta acção, infere-se que o mesmo mantém a distinção entre a baixa, a média e a muito alta tensão. Do que resulta que, também com este fundamento, não é de aceitar, ao menos para os efeitos da questão que nos ocupa, a argumentação no sentido de que "a subdivisão da alta tensão em muito alta, alta e média representa uma divisão artificial da alta tensão". Na verdade, ali se prevêem diferentes tarifas conforme as potências contratadas sejam superiores a 19,8 KVA, distinguindo-se, no quadro 1, a tensão de referência em kilovolts nos seguintes termos: a "baixa" igual ou inferior a 1 kV; a "média" maior de que 1 kV mas menor do que 60 kV; a "alta" igual a 60 kV; a "muito alta" superior a 60 kV.

Doutro passo, também não colhe o argumento de que a exclusão da alta tensão do referido regime de caducidade (nº. 3 do art. 10º) se justifica devido às condições em que a energia é fornecida, alegando-se que há vários factores cuja utilização pode dar origem a erros, nem sempre fáceis de detectar num curto espaço de tempo: de facto, afigura-se que um prazo de seis meses é um lapso de tempo suficiente para avaliar erros, desde que haja correcta utilização dos instrumentos de medida e haja efectivas verificações com a periodicidade necessária.
Tal argumento não passa, aliás, de uma afirmação indemonstrada. Não se mostra, nos autos, que haja efectivamente erros que tenham uma origem prolongada por vários meses ou que sejam insusceptíveis de ser descobertos igualmente durante meses. Ou, de outra forma, não se mostra que a aparelhagem de medida seja incapaz de medir a corrente efectivamente consumida. Por isso, sem afastar a hipótese de tais erros serem reais, o certo é que nada nos autos convence da dificuldade da sua constatação.

Finalmente, nos termos dessa argumentação, no que respeita à baixa tensão (até 1 kV) o cálculo do consumo resultaria de uma simples operação aritmética, com base na leitura do contador, e no que respeita à média e alta tensão, vários actores integram a estrutura tarifária, cuja utilização pode dar origem a erros nem sempre fáceis de detectar num curto espaço de tempo: daí o regime de excepção para a alta tensão.
Não tem significativo valor esta argumentação, porquanto mesmo em baixa tensão se verificam erros na medição de energia que não resultam de uma simples operação aritmética, mas de factos semelhantes aos que ocorrem em média, alta e muito alta tensão. Aliás, o erro verificado no caso concreto, pode verificar-se em qualquer casa de habitação, com energia fornecida em baixa tensão, desde que o contador seja trifásico.

É, também, a nosso ver, inequívoco, que "a finalidade da Lei nº. 23/96, claramente indicada no nº. 1 do art. 1º, é a de proteger o utente ou utilizador de qualquer dos bens ou serviços públicos nela enumerados: a água, a electricidade, o gás ou o telefone. E, para esse efeito, considera utente a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador de serviço se obriga a prestá-lo (art. 1º, nº. 3)" (14).
Não se olvida que, in casu, o fornecimento de energia eléctrica se não situa no quadro do puro consumidor final, definido nos termos do art. 2 da Lei nº. 24/96, de 31 de Julho, (15) já que a recorrida será, como se diz no Ac. STJ de 6 de Janeiro de 2000, um consumidor intermédio, isto é, recebe da recorrente energia eléctrica para transformar e depois consumir certamente, como resulta do referido contrato de fornecimento assente nos autos.
Só que não colhe a argumentação de que a ré não é um consumidor como os restantes e que a Lei nº. 23/96 não foi elaborada tendo em vista este tipo de consumidor.
Com efeito, em face do objectivo do diploma, que, como já se disse, consiste na protecção dos utentes de qualquer dos serviços públicos enumerados no nº. 2 do seu artigo 1º, objectivo que encontra fundamento no nº. 1 do artigo 86º da CRP, segundo o qual "o Estado (...) fiscaliza o cumprimento das respectivas obrigações legais, em especial por parte das empresas que prossigam actividades de interesse económico geral", não pode aceitar-se a ideia de que o âmbito de aplicação das normas que integram a Lei nº. 23/96 se limita a regular as relações jurídicas estabelecidas para o fornecimento de tais serviços entre os pequenos consumidores-utentes, mormente pessoas singulares, e as entidades funcionalmente adstritas à obrigação de os prestarem. Protegidos têm de estar também os demais utilizadores de bens ou serviços públicos essenciais, designadamente, pessoas colectivas, tendo em conta a função económico-social que lhes cabe desempenhar.

Como bem refere Calvão da Silva (16), "a tutela normalmente e justificadamente reservada a consumidores - pessoas singulares que em situação de fraqueza contratam com empresas ou outros profissionais o fornecimento de bens ou a prestação de serviços para fins não pertencentes ao âmbito da sua actividade profissional - aparece estendida pela Lei nº. 23/96 aos demais utilizadores de bens ou serviços públicos essenciais nela indicados (...)".
Em consequência, "utentes protegidos pela Lei nº. 23/96 serão: os particulares assinantes de telefone, de água, de electricidade ou de gás, para a residência pessoal ou familiar; os profissionais - profissionais liberais, como advogados, médicos, engenheiros, etc., ou qualquer outro profissional, por exemplo, comerciante em nome individual - assinantes dos mesmos bens ou serviços para escritório, consultório ou empresa, qualquer pessoa colectiva, nacional, estrangeira ou multinacional, pública ou privada, de fim religioso, de fim económico, de fim ideal, de fim social, sociedades, associações, fundações, partidos políticos, autarquias locais, embaixadas, Estado, etc., etc." (17).
Assim, a Lei nº. 23/96, determinando a caducidade do direito ao recebimento da diferença de preço dentro do prazo de seis meses após o pagamento, por motivo de erro do prestador do serviço, de importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, implementou um quadro legal mais favorável ao devedor que, dessa forma, não fica na contingência do pagamento da diferença durante muito tempo, com a inerente incerteza e instabilidade.
Sendo que, como se viu, a recorrida cabe no universo dos utentes protegidos pela Lei nº. 23/96.
Assim, pode concluir-se que, sendo subsumível ao conceito de "média tensão" o fornecimento de energia eléctrica à tensão nominal de 15 KV não está afastada, por força do nº. 3, a aplicação ao caso sub judice do disposto no nº. 2 do artigo 10º da Lei nº. 23/96, de 26 de Julho.

Restará, por último, apreciar da conformidade da situação detectada nos autos com o segmento da norma do nº. 2 do art. 10º da Lei nº. 23/96 que faz depender a caducidade do direito da entidade fornecedora da energia à diferença entre o preço facturado e recebido e o preço real da energia fornecida da existência de erro do prestador do serviço.
Ora, no caso sub judice, e na parte relevante, constata-se a seguinte realidade fáctica:
- em Outubro de 1991 foi instalado um posto de transformação nas instalações da ré para transformação de energia eléctrica recebida por esta em média tensão, em energia eléctrica de baixa tensão, nele tendo sido montados uma equipa de contagem composta por um contador de energia activa, contador de energia reactiva, transformadores de intensidade e relógio de contacto e que ainda se mantêm montados;
- em 17 de Dezembro de 1997 foi efectuada, por uma brigada da autora uma vistoria à fábrica da ré na qual estiveram presentes os representantes desta, ocasião em que foi verificado que o equipamento de medida se encontrava devidamente selado com os selos apostos aquando da ligação efectuada em Outubro de 1991;
- a brigada da autora detectou um erro na contagem de energia fornecida pela autora e consumida pela ré;
- em 13 de Dezembro de 1998 foi efectuada uma auditoria técnica ao equipamento de contagem e medida instalado inicialmente em Outubro de 1991, e foi confirmado que a equipa de medida se mantinha selada e os selos apostos em 1991 se mantinham intactos;
- a brigada da autora detectou um erro na contagem de energia fornecida pela autora e consumida pela ré;
- na mesma ocasião foram efectuados mais dois ensaios à equipa de medida;
- e foi confirmado o erro na contagem de energia;
- essa situação manteve-se desde Outubro de 1991 até Dezembro de 1997, pelo que a ré apenas pagou à autora um terço da energia realmente consumida e da potência efectivamente tomada, durante esse período;
- a ré conhece a potência e o consumo obtido pela maquinaria que utiliza nas suas instalações;
- a ré sempre proporcionou livre acesso aos equipamentos que foram nas suas instalações instalados pela autora;
- desde Outubro de 1991 até Dezembro de 1997, a autora manteve nas instalações da ré o material de contagem supra referido, sujeitando-o a vistorias de rotina, com vista a assegurar condições de segurança e de manutenção, não constituindo objecto das mesmas a detecção de erros;
- é nas instalações da ré que se encontravam e encontram, quer o equipamento consumidor de energia, quer o equipamento de medida;
- a ré pode utilizar equipamento próprio para contar a energia fornecida e a potência tomada;
- a energia seria entregue no Posto de Transformação propriedade da ré.

Perante tais factos parece evidente a conclusão de que os erros de contagem da energia fornecida se ficaram a dever a deficiência próprias da equipa de contagem da autora, colocada nas instalações instalada da ré, a que esta não teve qualquer acesso (é ponto assente que a equipa de medida se mantinha selada e os selos apostos em 1991 se mantinham intactos).
Tudo se ficou, pois, a dever ao equipamento da autora (e, eventualmente à falta de verificações tão regulares quanto necessário) pelo que é manifesto que a anomalia verificada se funda em erro da fornecedora da energia.
Sendo irrelevante o simples facto de a ré conhecer a potência e o consumo obtido pela maquinaria que utiliza nas suas instalações: desde logo sempre proporcionou à autora o livre acesso à maquinaria colocada nas suas instalações; depois, atentos os diversos factores que provocam variação, quer nas quantidades de energia gasta, quer no preço correspondente, é perfeitamente natural que a ré se não tenha dado conta da diferença entre o que pagava e o que lhe era fornecido (note-se que a própria autora, especialista na matéria e verdadeiramente interessada na reposição da contagem correcta, deixou que o erro permanecesse durante cerca de 6 anos).
É, assim, incontornável a conclusão de que a diferença entre os créditos recebidos pela autora e o valor da energia fornecida se ficou a dever a erro desta: daí a aplicação ao caso, sem restrições, da norma do art. 10º, nº. 2, da Lei nº. 23/96.

Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela autora "A, S.A.";
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;
c) - condenar a recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 29 de Abril de 2004
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
____________
(1) E, em todo o caso, a apreciação de tais questões só se justificaria se o recurso da autora procedesse.
(2) Admitimos, no entanto, que a recorrente haja sido induzida a formular as conclusões que apresentou pela forma algo infeliz como, apesar da excelente fundamentação, termina a sentença da 1ª instância (formulação, aliás, devidamente explicada e corrigida no acórdão recorrido).
(3) Cfr. Ac. STJ de 22/02/2000, no Proc. 1125/00 da 1ª secção (relator Lopes Pinto).
(4) A Lei nº. 23/096 é aplicável às relações subsistentes à data da sua entrada em vigor (art. 13º, nº. 1), mas só se aplica quando a diferença de preço de energia eléctrica venha a ser pedida após o decurso do prazo de seis meses sobre o início da sua vigência - cfr. Acs. STJ de 27/10/98, no Proc. 215/98 da 1ª secção (relator Francisco Lourenço); de 13/12/2000, no Proc. 3472/00 da 6ª secção (relator Azevedo Ramos); de 06/12/2001, in CJSJT Ano IX, 3, pág. 133 (relator Silva Paixão); e de 21/01/2003, no Proc. 3900/02 da 1ª secção (relator Garcia Marques).
(5) Diploma que consagrou regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais (água, energia eléctrica, gás, telefone) em ordem à protecção do utente - cfr. art. 1º.
(6) Acs. STJ de 06/01/2000, no Proc. 738/99 da 7ª secção (relator Lúcio Teixeira); de 12/07/2001, in CJSTJ Ano IX, 3, pág. 34 (relator Moitinho de Almeida); e de 02/10/2003, no Proc. 2268/03 da 2ª secção (relator Ferreira Girão).
(7) Ac. STJ de 28/11/2000, no Proc. 3011/00 da 1ª secção (relator Garcia Marques).
(8) Tal como se entendeu no mencionado Ac. STJ de 28/11/2000, cuja argumentação, no essencial, seguiremos de perto.
(9) Apud citado Ac. STJ de 06/01/2000.
(10) Sistema Eléctrico de Serviço Público.
(11) E que constituem um todo sobre o sector eléctrico onde as definições de alta, média e baixa tensão estavam e estão perfeitamente definidas (nos termos acima já indicados).
(12) Ut acima indicado Ac. STJ de 28/11/2000.
(13) Tarifas que foram mantidas em vigor pelo Dec. lei nº. 18-A/89, de 12 de Janeiro (art. 2º, nº. 4).
(14) Calvão da Silva, in RLJ, Ano 132º, págs. 138 ss (anotação aos Acs. RL de 09/07/98 e RP de 28/06/99), no que aqui se transcreve pág. 140.
(15) Lei que estabelece o regime jurídico aplicável às relações de consumo (Lei de Defesa do Consumidor).
(16) Local citado.
(17) Calvão da Silva, ibidem.