Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ERNESTO NASCIMENTO | ||
| Descritores: | RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO ADMISSIBILIDADE PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DUPLA CONFORME OMISSÃO DE PRONÚNCIA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA HOMICÍDIO QUALIFICADO FRIEZA DE ÂNIMO ARMA MEDIDA CONCRETA DA PENA PREVENÇÃO GERAL PREVENÇÃO ESPECIAL CULPA PRINCÍPIO DA IGUALDADE IDADE | ||
| Data do Acordão: | 10/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
| Sumário : | I. Não é de rejeitar o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não é de colocar obstáculo à admissibilidade do recurso apesar de o recorrente, sem originalidade ou aditamento, fazer tábua rasa do acórdão da Relação, apesar de, ostensivamente, não atentar à sua fundamentação, apesar de repetir e reiterar a sua discordância relativamente à decisão de 1.ª instância, o que não significa, naturalmente, que não possa ser rejeitado, totalmente ou em parte, por outras razões que não a mera reedição da motivação e conclusões. II. Não é possível recorrer para o STJ, do segmento do acórdão da Relação que decide sobre o pedido cível enxertado no processo penal, por força da dupla conforme, por aplicação do artigo 671.º/3 CPCivil, ex vi artigo 4.º CPPenal e, em complemento do artigo 400.º/2 CPPenal, quando confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância. III. Ao Tribunal da Relação, perante a invocação de vícios da decisão e de erros de julgamento, não se exige um novo exame crítico da prova, não se lhe impõe que reanalise a prova para aferir da exatidão, ou não, do exame crítico efectuado na 1ª instância, bastando que verifique que o exame foi realizado, se encontra na fundamentação da decisão e se e mostra enformado das exigências legais. IV. Actua com frieza de ânimo e com reflexão sobre os meios empregados, quem, - pelo menos na véspera decidiu colocar termo à vida da vítima; - para o efeito, municiando a sua espingarda caçadeira com, pelo menos três cartuchos e colocando roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção; - na concretização do propósito que formulara anteriormente, pela manhã do dia seguinte empunhado a arma municiada se deslocou-se ao local onde sabia estar a vítima e aí, concretizando o seu propósito, alvejou a vítima. V. A valoração do facto de o arguido ter 67 anos de idade, a par da falta de antecedentes criminais e dado o carácter isolado dos factos, permite afirmar uma mitigação das exigências de prevenção especial, ou de socialização, traduzindo uma menor necessidade de a acautelar. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório. 1. Por acórdão proferido no dia 8.1.2025, após realização de julgamento no âmbito do processo comum colectivo 111/24.7PBTMR do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Criminal de Santarém, Juiz 4, foi o arguido AA condenado, - pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º/1 e 2 alínea j) CPenal, agravado pelo artigo 86.º/3 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 23 anos de prisão; - a pagar a BB, CC e DD a quota parte que a cada um cabe da quantia de 80.000,00€, a título de dano pela perda do direito à vida, no pagamento das quantias de 25.000,00€, 40.000,00€ e 20.000,00€, respectivamente, a título de danos não patrimoniais, e no pagamento da quantia de 2.000,00€, a título de danos patrimoniais, acrescidas de juros de mora, às taxas legais, contados desde a data da notificação do pedido cível e da data trânsito em julgado da decisão, respetivamente, tudo até efetivo e integral pagamento; - a pagar a EE a quantia de 4.000,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, às taxas legais, contados desde a data trânsito em julgado da decisão até efetivo e integral pagamento. 2. Inconformado recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, suscitando os vícios previstos no artigo 410.º/2 alíneas a) e c) CPPenal, o erro de julgamento, a qualificação jurídica dos factos apurados, a medida da pena e o quantum da indemnização, tendo sido, por acórdão de 25.6.2025, negado provimento ao recurso. 3. Novamente, inconformado, recorre o arguido agora para este Supremo Tribunal, rematando o corpo da motivação com o que designa de conclusões, com 87 pontos, mas que como tal não podem ser entendidas, na noção comummente aceite de resumo das razões do pedido, razão pela qual aqui não se transcrevem. Entendendo-se da mesma forma, até pelo que adiante se dirá, atentas razões de brevidade e celeridade, por um lado e, por outro, dado não per permitida a prática de actos inúteis, não ser caso de se justificar o endereçar de convite para que o recorrente sintetize o que consta das conclusões – de onde, ainda assim, se logra compreender, afinal, o que pretende o recorrente e as razões em que se sustenta. E, assim, as questões suscitadas são as seguintes: - a nulidade da decisão por omissão de pronuncia, - a errónea qualificação jurídica dos factos, - a excessividade da medida da pena concreta aplicada e, - a excessividade do quantum da indemnização. 4. Admitido o recurso e cumprido o disposto no artigo 411.º/6 CPPenal responderam quer o Magistrado do MP quer a assistente, concluindo, respectivamente, - o primeiro que o acórdão recorrido não violou qualquer norma jurídica e deve ser mantido e, assim, deve ser negado provimento ao recurso; - a segunda, apresentando as seguintes conclusões: 1 - Nos termos do disposto no artigo 434º do CPP, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sendo certo que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto fixada na decisão recorrida, pelo que é sobre tal matéria que teremos de nos deter e não à factualidade alegada pelo recorrente, sem suporte na factualidade dada como provada na decisão recorrida. 2 – Não existiu qualquer omissão de pronúncia no douto Acórdão recorrido, já que verificamos que o mesmo trata de forma profunda e individualizada as cinco questões levantadas pelo arguido no seu recurso da decisão proferida em primeira instância. 3 - A matéria de facto provada não permite configurar a existência de uma causa de exclusão da ilicitude do comportamento do arguido, nem que o mesmo tenha atuado com imputabilidade diminuída, falecendo, assim os argumentos apresentados a esse respeito. 4 – Toda a conduta do arguido dada como provada é subsumível no disposto no artigo 132º, nºs 1 e 2, alínea j) do Código Penal, porquanto do seu comportamento decorre que se mostrou capaz de vencer as contra-motivações éticas inerentes à relação de parentesco que o ligava à vítima, formulou antecipadamente o desígnio de matar e disparou três tiros sobre a vítima, na frente de dois jovens, filho e sobrinho da mesma, em completo desrespeito e insensibilidade pela vida humana e revelando, efetivamente, especial censurabilidade e perversidade no prossecução do desígnio criminoso 5 - Acresce ainda a agravação da conduta do arguido por via do disposto no artigo 86º, nº 3 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02, que o mesmo não contestou. 6 - No presente caso, é elevado o grau de ilicitude da atuação do recorrente, revelado, desde logo, pelo modo de execução do crime, tendo o arguido agido também com dolo direto, e sendo a escolha da cabeça como zona corporal privilegiada para objeto da agressão, manifesta uma crueldade ínsita na utilização de uma arma de caça ao javali. 7 - A ilicitude e a culpa são assim muito intensas, nenhumas atenuantes de relevo se apuraram, a confissão foi parcial e pouco significativa, a ausência de antecedentes criminais também tem escasso valor atenuativo, por corresponder à situação de normalidade das pessoas fiéis ao direito, e o mesmo se dirá da integração social, já que este tipo de crime não está normalmente associado á marginalidade ou a um comportamento socialmente desviante. 8 - A inexistência de manifestação de arrependimento foi chocante, não tendo o arguido demonstrado qualquer arrependimento, nem compaixão pela vítima, nem pelos seus familiares, em especial os que presenciaram o crime. 9 - Conclui-se que é justo, adequado e razoável, em face da personalidade, da culpa do arguido e bem assim das razões de natureza preventiva, a fixação de uma pena de 23 anos de prisão. 10 – Os valores arbitrados a título de danos não patrimoniais e patrimoniais são justos, proporcionais e adequados à situação concreta dos autos. 5. Remetidos a este Supremo Tribunal de Justiça, em vista dos autos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º CPPenal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que, sem necessidade de outras considerações, tendo em conta toda a fundamentação constante no acórdão recorrido e o referido no Ministério Público na resposta, a decisão recorrida não merece censura, devendo ser integralmente mantida, pelas seguintes razões: - quanto à alegada existência de omissão de pronúncia, o que o recorrente pretende é contestar a apreciação da prova efetuada pelo Tribunal da Relação por tal apreciação e respetiva fundamentação não seguirem o seu entendimento quanto ao que deveria ser entendido como provado e não provado; - não se está perante o invocado vício, mas sim perante desconformidade do arguido com o entendido, quer pela 1ª instância, quer pela Relação, quanto ao dado como provado; - quanto à invocada «errónea qualificação jurídica dos factos», o que é invocado pelo recorrente reconduz-se a defender que a alínea j) do nº 2 do artigo 132.º CPenal não se pode entender como preenchida por o arguido apenas ter protelado a vontade de matar por cerca de 12 e não de 24 horas; - como refere a decisão recorrida, tal facto não invalida que, atenta toda a factualidade dada como provada, se tenha concluído pelo preenchimento da alínea na parte em que esta aponta como índice de especial censurabilidade e perversidade a atuação com frieza de ânimo e com reflexão acerca dos meios utilizados; - quanto à invocada inimputabilidade do arguido, falece totalmente tudo o que é alegado, por não se mostrar provado; - ficou afastado – dando-se como não provado – que o arguido tenha agido depois de qualquer estado de nervosismo tolhedor do raciocínio e as faculdades de inibição de comportamentos criminosos, antes com elevada energia criminosa, em que não pode deixar de impressionar muito negativamente o ter, já com o sobrinho caído no chão (após o 1º disparo que efetuou), persistido na intenção de matar, fazendo-o disparando contra os olhos da vítima; - quanto à pena aplicada ficou bem fundamentada a sua escolha, não podendo deixar de se realçar a elevada culpa com que o arguido/recorrente, as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir, bem como as de prevenção especial, nisso sendo relevante a total falta de arrependimento demonstrada; - quanto aos montantes indemnizatórios, embora o MP nessa parte não tenha intervenção direta, também não se vislumbram motivos de alteração. 6. Notificado o arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º/2 CPPenal, nada disse. 7. Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente Acórdão. II. Fundamentação Âmbito do recurso O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente, cfr. artigos 402.º, 403.º e 412.º CPPenal, sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se necessário à boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2 CPPenal, cfr. acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, de nulidades não sanadas, n.º 3 do mesmo preceito e de nulidades da sentença, cfr. artigo 379.º/2 CPPenal, na redação da Lei 20/2013. E, assim, resulta que as questões aqui suscitadas prendem-se com a - a nulidade da decisão por omissão de pronuncia, - a errónea qualificação jurídica dos factos, - a excessividade da medida da pena concreta aplicada e, - a excessividade do quantum da indemnização. A este propósito impõe-se aqui e agora atentar na questão – já não do carácter prolixo das conclusões – mas da prévia, atinente com a (in)admissibilidade do recurso por reedição/renovação de parte substancial das conclusões apresentadas no anterior recurso para o Tribunal da Relação. Com efeito. Compulsadas as conclusões do presente recurso com as apresentadas no anterior recurso do acórdão condenatório para a Relação constata-se que no tocante às questões relativas à qualificação jurídica, ao quantum da pena e ao montante indemnizatório, as mesmas se repetem ipsis verbis. O arguido reedita nestes segmentos o teor das conclusões do recurso que intentou para a Relação. Fica de fora desta repetição, naturalmente, a nova questão atinente com a nulidade do acórdão da Relação. Com efeito o que aqui consta dos pontos J a III é o mesmo que consta dos pontos EE a DDD no primeiro recurso. A coincidência só não é total, porque o actual ponto QQ foi aditada a expressão “decisão do Tribunal da Relação”. A diferença substancial entre o primeiro recurso e o actual é que no presente o recorrente não pede modificação da matéria de facto. E agora suscita, também, a questão da nulidade do acórdão da Relação. O recorrente no recurso ora em apreciação, ressalvado o abandono da impugnação da matéria de facto, repete ipsis verbis, em jeito de segunda edição não revista nem ampliada, o alegado no anterior recurso, incluído o texto das conclusões. Estando-se perante um mero decalque, uma cópia, uma “nova edição”, praticamente não revista do recurso anterior, uma reprodução quase integral, em que pouco de novo e sobretudo, relevante, útil e pertinente, se acrescenta. Retirada a impugnação da matéria de facto, subsistem nos mesmos termos as questões de subsunção jurídica, determinação da medida da pena e do quantum da indemnização. No que respeita a estas questões, o presente recurso mais não é do que a mera repetição do anterior, repetindo o recorrente o que então alegara, o que com toda a clareza se alcança da leitura da motivação anterior e da actual. O recorrente age como se estivesse de novo, em segundo “round”, a reagir contra o acórdão do Tribunal de Santarém, olvidando por completo a reapreciação realizada pela Relação de Évora. Em termos globais, o presente recurso mais não é do que a mera repetição do recurso anterior, sem qualquer inovação, melhoria ou significativo acrescento, sem o recorrente ter a mínima preocupação de introduzir, aqui e agora, neste novo palco de apresentação/representação do feito a decidir, qualquer mais-valia, outro elemento, quiçá, novo, relevante, pertinente, útil, uma diversa perspectiva de observação e análise, quase parecendo esquecer que o acórdão a impugnar é agora outro, que se debruçou sobre um acórdão do Colectivo de Santarém, ora, retomando a letra, o tom e o ritmo da primeira impugnação, nada alterando, como se tudo fosse exactamente igual, quando efectivamente o não é. Apesar de nenhuma intervenção correctiva ter sido operada no acórdão recorrido. Sendo os argumentos agora utilizados, exactamente os mesmos que foram dirigidos ao acórdão da primeira instância, tal significa que, em rigor, o recorrente não impugna o acórdão da Relação, esquecendo-se que a decisão agora em reexame é esta e não a da 1.ª instância. Reeditando agora os argumentos e as questões anteriormente postas à consideração da Relação, limita-se o recorrente a devolver ao Supremo Tribunal, exactamente as mesmas questões que colocadas foram à Relação de Évora, que sobre elas se pronunciou, agindo como se estivesse a recorrer, afinal, uma outra vez, em segunda via, da deliberação do Tribunal de Santarém. A discordância nesta sede só fará sentido se dirigida à solução perfilhada pela Relação, com argumentos novos, específicos, dirigidos ao novo acórdão, com outros enquadramentos, explicitando razões jurídicas novas, dirigidas à nova decisão, agora recorrida, que infirmem os fundamentos nesta apresentados, pois agora é o acórdão da Relação o objecto de recurso e não a já reapreciada decisão da 1.ª instância. Tendo esta sido objecto de conhecimento e decisão na Relação, o recurso com tais características só poderá ser entendido como mera repristinação do inconformismo com o deliberado pela 1.ª instância. No caso presente, não há um novo esforço argumentativo, limitando-se o recorrente a repetir a linha argumentativa explanada junto do Tribunal da Relação, e olimpicamente ignorando de todo a existência do acórdão da Relação de Évora; no fundo, não diz rigorosamente nada de novo, ou diverso. Perante este quadro poder-se-á colocar a questão prévia da inadmissibilidade do recurso por reedição/renovação de parte substancial das conclusões apresentadas no anterior recurso para o Tribunal da Relação. Como tem sido repetidamente afirmado, o recurso para este Supremo Tribunal não é um segundo recurso do acórdão da 1.ª instância, mas um recurso que tem por objeto o acórdão da Relação que conheceu daquele recurso. O recurso para o Supremo Tribunal não serve para conhecer de novo da causa, constitui apenas um “remédio processual” que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objeto de decisão do tribunal de que se recorre – estando, por outro lado, subtraído à sua apreciação questões novas, isto é, de questões não apreciadas na decisão recorrida (sem prejuízo do regime de conhecimento de nulidades da decisão recorrida). Com efeito, importa realçar que a decisão recorrida, no presente recurso, é o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.6.2025 e já não o acórdão da 1.ª instância de 8.1.2025, reapreciado no acórdão aqui recorrido. A manutenção no presente recurso do texto das conclusões do anterior recurso interposto para o Tribunal da Relação traduz a ideia de que o recorrente continua a dirigir-se ao acórdão da primeira instância, olvidando o acórdão da Relação, que confirmou aquele e que deveria aqui ter impugnado. Nestes casos pode-se colocar a questão de saber se o recurso é de rejeitar por manifesta improcedência. No , consultado in www.dgsi, dá-se devida nota da existência de duas correntes jurisprudenciais neste Supremo Tribunal acerca desta questão e, da sua evolução no tempo. Daí retiramos a seguinte fundamentação: Para uma corrente jurisprudencial o recurso nestas condições é de rejeitar. E, para outra não será caso de rejeição. Os que seguem a primeira tese defendem que, - o recurso que em tudo reedita o pretenso inconformismo do recorrente perante o deliberado em 1.ª instância não pode ser conhecido - não deveria, mesmo, ter sido admitido – por carência absoluta de motivação; - no recurso interposto do Tribunal da Relação para o STJ devem-se especificar as razões de discordância com o ali decidido, pelo que a renovação da argumentação da impugnação interposta inicialmente para aquele Tribunal, sem qualquer novidade, equivale a falta de motivação, conducente à sua rejeição liminar; - é de rejeitar o conhecimento do recurso interposto para o STJ, no qual o recorrente se limita a reeditar toda a argumentação já expendida no recurso antes interposto para o Tribunal da Relação e à qual aí se deu a necessária resposta; - a repetição das conclusões ante as instâncias de recurso, particularmente as da Relação perante o STJ, ignorando o teor da decisão proferida na Relação, a qual subsiste inimpugnada e não contrariada em ordem à reparação do erro, conduz à rejeição do recurso por manifesta improcedência, tudo se passando como se a motivação estivesse ausente; - quando, no recurso para o STJ, o recorrente nada acrescentou ao que já havia alegado quando se dirigiu à Relação, limitando-se a repetir a motivação, à qual, nesse anterior recurso, já fora dada cabal resposta, que o recorrente ignorou em absoluto, o recurso apresenta-se como manifestamente infundado, por isso sendo rejeitado; - quando a questão objecto do recurso interposto para o Supremo seja a mesma do recurso interposto para a Relação, tem o recorrente de alegar (motivando e concluindo) como fundamento do recurso, as razões específicas que o levam a discordar do acórdão da Relação: - É que o acórdão recorrido é o acórdão do tribunal superior - o tribunal da Relação - que decidiu o recurso interposto e, não o acórdão proferido na 1ª instância; - não aduzindo o recorrente discordância específica relativamente ao acórdão da Relação, que infirme os fundamentos apresentados pela Relação, no conhecimento e decisão da mesma questão já suscitada no recurso interposto da decisão da 1ª instância, há manifesta improcedência do recurso assim interposto para o Supremo. Os que seguem a tese oposta, defendem que, - os casos de rejeição do recurso, atenta a sua finalidade de reparação de eventual erro judiciário, de melhor decisão no plano substancial, ultrapassando o fim de mero “refinamento” teórico, levam a que se tenha presente que o recorrente pode discordar da decisão da Relação, repetindo os fundamentos antes invocados, por estar convicto de que aquela lhe não deu resposta, justificando a sua duplicação para o STJ e que, sem mais, se não lance mão daquele expediente radical; - neste condicionalismo a rejeição do recurso não tem por contraste um alheamento, ou ostracização, da decisão do Tribunal da Relação, mas sim uma eventual persistência da mesma crítica que já foi dirigida à decisão de primeira instância por considerar que se mantêm as razões anteriormente deduzidas. A rejeição do recurso representaria neste condicionalismo uma insuportável desproporcionalidade perante a irregularidade praticada; - se nos afastarmos dessa perspectiva um tanto redutora ou restritiva, de ordem processual formal, e esgrimirmos numa vertente quiçá mais garantística da ratio do artº 32º nº1 da Constituição da República, poderá dizer-se que embora o recorrente reedite no presente recurso para o Supremo, as mesmas conclusões apresentadas no recurso interposto para a Relação - e, por isso, as questões ventiladas no recurso são as mesmas, e, embora não aduza discordância específica relativamente ao acórdão da Relação, não explicitando razões jurídicas novas perante o acórdão da Relação, que infirmem os fundamentos apresentados pela Relação no conhecimento e decisão das mesmas questões -, não significa, contudo, que fique excluída a apreciação dessas mesmas questões mas agora relativamente à dimensão constante do acórdão recorrido, o acórdão da Relação, no que for legalmente possível em reexame da matéria de direito perante o objecto do recurso interposto para o Supremo, pois que o recurso enquanto remédio, é expediente legal para correcção da decisão recorrida (não seu mero aperfeiçoamento), como meio de impugnar e contrariar a mesma, embora, sem prejuízo de, se nada houver, de novo, a acrescentar relativamente aos fundamentos já aduzidos pela Relação na fundamentação utilizada para o julgamento dessas mesmas questões, e que justifique a alteração das mesmas, seja de concluir por manifesta improcedência do recurso, pois que caso concorde com a fundamentação da Relação, não incumbe ao Supremo que justifique essa fundamentação com nova argumentação; - a repetição/renovação de motivação não dever ser equiparada à sua falta e não estar prevista a possibilidade de rejeição de recurso para os casos em que o recorrente se limita a repetir a argumentação já apresentada no recurso interposto para o Tribunal da Relação. Ou como se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 12.7.2006, processo 06P1593, in www.dgsi.pt, “O recurso, enquanto remédio jurídico, se intentado de uma decisão da Relação há-de dirigir-se aos seus fundamentos em ordem a abalá-los e conseguir remédio para o erro decisório, seja de decisão de mérito ou procedimental. Defende-se que a repetição das conclusões ante as instâncias de recurso, particularmente as da Relação perante o STJ, ignorando o teor da decisão proferida na Relação, verdadeiramente inimpugnada e contrariada em ordem à reparação do erro, conduz à manifesta improcedência do recurso, tudo se passando como se por falta de conclusões a motivação estivesse ausente ou fosse deficitária, situação esta parificada com ela. O recurso mais retrata, então, um exercício de repetição, na esperança de que, por ela, com alguma dose de melhor sorte, se alcance posição de favor , de que à partida se não estava convicto, quando o recurso, longe desta filosofia, se deve reger por critérios de seriedade, à margem do intuito de “ cansar “ os tribunais superiores e os sujeitos processuais adversários , como a todo o passo sucede. Claro que aquela consequência extrema da repetição não opera automaticamente , tudo dependendo do circunstancialismo concreto, bastando pensar que se a repetição estiver impregnada de um propósito sério de modificar-se o decidido, já que a Relação não o fez , a discordância é sustentável , desejável e é de afastar a rejeição por manifesta improcedência, vista a repetição não figurar, de forma directa, entre as causas de rejeição de recurso. Mas, em tal caso, se a um exame prévio, preliminar, das conclusões do recurso se alcança, sem esforço, que a pretensão do recorrente é manifestamente improcedente, à luz da lei e do sentido da jurisprudência dominante, então redundará em puro dispêndio de tempo, prejuízo à celeridade processual, em custos desnecessários e sobrecarregantes, deixar prosseguir um recurso, votado inexoravelmente ao insucesso , consequência que não de sancionar”. Também nós, concordamos e, por isso aqui acolhemos as razões subjacentes à tese dos que defendem não ser de rejeitar o recurso, apesar de o recorrente, sem originalidade ou aditamento, fazer tábua rasa do acórdão da Relação, apesar de, ostensivamente, não atentar à sua fundamentação, apesar de repetir e reiterar a sua discordância relativamente à decisão de 1.ª instância. Ainda assim, cremos que em tais situações, que não é de colocar obstáculo à admissibilidade do recurso - o que não significa, naturalmente, que não possa ser rejeitado, totalmente ou em parte, por outras razões que não a mera reedição da motivação e conclusões. A este propósito será de referir que já no acórdão do STJ de 22 de Junho de 2006, processo 06B1346, consultado in www.dgsi.pt., a este propósito, no âmbito, é certo, do Processo Civil, se entendeu que, - como logo ressalta da leitura de ambas as peças, a alegação do recorrente é a reprodução – quase ipsis verbis – da que apresentou no recurso de apelação, visando, por isso, não o acórdão da Relação, mas sim a sentença da 1ª Instância; - a alegação de qualquer recurso deverá incidir o seu ataque argumentativo sobre pontos concretos da fundamentação da decisão recorrida que, no entender do recorrente, mereçam crítica, sendo certo que a decisão recorrida é, no caso concreto – como, aliás e por norma, sucede no recurso de revista - a decisão da 2ª Instância; - continuamos a entender, no entanto, que uma alegação de recurso para o STJ que não passe de uma mera reprodução da que foi apresentada perante a Relação não exige mais do que a remissão para os fundamentos do acórdão recorrido, ao abrigo do nº 5 do artigo 713.º, ex vi artigo 726.º CPCivil; - só não será assim quando o acórdão recorrido tiver usado da mesma faculdade remissiva para os fundamentos da decisão da 1ª instância, justificando-se então - impondo-se mesmo - que, no silêncio da Relação, o Supremo aborde desenvolvidamente as questões colocadas. É certo que não há norma equivalente no CPPenal, a que existe é de âmbito bem mais restrito, cfr. artigo 425.º/% CPPenal, reportado apenas aos acórdãos da Relação que confirmem decisão absolutória da 1.ª instância (situação em que, sem qualquer declaração de voto se pode limitar a negar provimento ao recurso e a remeter para os fundamentos da decisão impugnada). Circunstância, contudo, que não impedirá, ainda assim, que o Supremo Tribunal – perante a falta de novidade e perante a repetição das razões que o recorrente dirigira à decisão da 1.ª instância – acabe por, justificadamente, não ter ele próprio que cair no erro do recorrente e, repetir … os fundamentos da decisão recorrida. Em tal situação, dado que o próprio recorrente não poderá estar à espera de obter provimento no recurso, porque se as razões que invocou foram já apreciadas e julgadas improcedentes, não será a sua repetição, sem novidade nem aditamento, sem ter atentado nos fundamentos pelos quais foram julgadas dessa forma, que terá agora a virtualidade de modificar o sentido do já decidido. Se estivéssemos no âmbito da física diríamos que as mesmas causas, nas mesmas circunstâncias produzem, invariavelmente, os mesmos efeitos. Ou nas palavras de Albert Einstein, “loucura é repetidamente fazer a mesma coisa, da mesma forma e esperar obter resultados diferentes”. Como estamos no âmbito das ciências humanas, fica, então, desde, já anunciado o sentido da decisão. Naturalmente, que, exceptuada a questão da nulidade - a única novidade que o arguido aqui apresenta – na nossa apreciação procuraremos evitar a repetição da fundamentação aduzida, quer, na decisão recorrida – a que deveria ter sido dirigida a crítica do arguido – quer, na decisão da 1.ª instância – à qual, de facto é dirigida – a fim de evitar procedimento igual ao do arguido, com o foco na fundamentação da decisão da Relação e, com recurso ao que este Supremo Tribunal vem entendendo sobe tais matérias. Isto essencialmente, quanto à questão do conhecimento oficioso – como se sabe – atinente com a qualificação jurídica dos factos. Já que a questão da medida da pena – como também, por todos é consabido – não é do conhecimento oficioso do Tribunal. Delimitação do objecto do recurso. Aqui importa apreciar a questão da (ir)recorribilidade do segmento reportado ao pedido cível. Está em causa um recurso em que se suscita, também, a questão concernente ao pedido cível enxertado no processo penal. Dispõe, a este propósito, o artigo 400.º CPPenal, sob a epígrafe “Decisões que não admitem recurso”, que, “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”, n.º 2 e, “Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”, n.º 3. O n.º 2 deste artigo 400.º CPPenal corresponde ao n.º 1 do artigo 629.º CPCivil, que dispõe que o recurso ordinário “só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”. Está aqui consagrado “um regime híbrido ou misto quanto à admissibilidade de recurso, pois que esta depende, cumulativa e simultaneamente, do valor da causa (alçada) e do valor da sucumbência (differendum), relevando, no entanto, apenas aquele, em caso de fundada dúvida sobre este”, cfr. AUJ 10/2015 do STJ. A admissibilidade do recurso das decisões relativas ao pedido civil deduzido no processo penal depende, assim, da verificação cumulativa de dois requisitos: - que o pedido tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, sendo que a alçada constitui o limite (definido em regra pelo valor da causa) dentro do qual um tribunal julga sem possibilidade de recurso ordinário; - que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre, sendo que a sucumbência (decaimento) constitui o prejuízo ou desvantagem que a decisão implicou para uma parte (que tenha ficado, total ou parcialmente, vencida). Donde, mesmo que a sucumbência seja superior a metade da alçada do tribunal, não é admissível o recurso se o valor do pedido se situar dentro da alçada do tribunal recorrido. Como é sabido, em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de € 5.000,00, cfr. artigo 44.º/1 da Lei 62/2013, de 26 de agosto, que aprovou a Organização do Sistema Judiciário. Por sua vez, o referido n.º 3 do artigo 400.º CPPenal resultou da reforma introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de agosto, fazendo caducar a jurisprudência fixada em sentido contrário pelo STJ no denominado Assento n.º 1/2002, de 14.3.2002 (DR, I Série, de 21.05.2002), no sentido de que: “no regime do Código de Processo Penal vigente – n.º 2 do artigo 400.º, na versão da Lei 59/98, de 25 de agosto – não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão penal”. E, então, por força da referida alteração legislativa, a recorribilidade do segmento decisório relativo à matéria cível deixou de estar dependente da admissibilidade de recurso da decisão quanto à parte criminal. “Por força do disposto no artigo 4.º CPPenal e, uma vez que a ação civil se autonomiza dos destinos da causa penal, importa ter em conta que a admissibilidade de recurso não está condicionada apenas pelas circunstâncias do n.º 2 do artigo 400.º. A pretendida igualação com o regime de recursos da ação civil importa, com efeito, que os casos de admissibilidade previstos no artigo 721.º CPCivil na redação do Decreto Lei 303/2007, de 24 de Agosto, nomeadamente o de “dupla conforme”, previsto no n.º 3, sejam aqui aplicáveis”, defende o Conselheiro Pereira Madeira in Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2016. Almedina, 2.ª edição revista, 1202, comentando o artigo 400.º CPPenal. Este entendimento corresponde à orientação uniforme seguida nas Secções Criminais do STJ, no sentido de que o regime de admissibilidade dos recursos previsto no CPC tem aplicação subsidiária aos recursos relativos a pedidos de indemnização cível formulados em processo penal, sendo de aplicar o regime da denominada dupla conforme previsto no artigo 671.º/3 CPCivil, ex vi artigo 4.º CPPenal. Dispõe, então o artigo 671.º/3 CPCivil, sob a epígrafe “decisões que comportam revista”, que, “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”. Não se vislumbra qualquer razão para afastarmos este entendimento uniforme deste Supremo Tribunal sobre a questão da denominada dupla conforme no que se refere aos recursos relativos a pedidos de indemnização cível formulados em processo penal, cfr. neste sentido, entre muitos outros, acórdão de 27.06.2012, processo 1466/07.3TABRG.G1.S1; de 15.05.2013, processo 7/04.9TAPVC.L2.S1; de 29.01.2015, processo 91/14.7YFLSB; de 07.09.2016, processo 256/10.0GARMR.E1.S1; de 25.01.2017, processo 1729/08.0JDLSB.L1.S1; de 19.12.2018, processo 10179/12.3TDLSB.L2.S1; de 17-01-2019, processo 1700/15.6PYLSB.L1. S1, de 04.12.2019, processo 354/13.9IDAVR.P2.S1; de 19-02-2020, processo 368/15.4T9SCR.L1. S1, de 24.09.2020, processo 416/13.2GBTMR-A.E1.S1; de 12.11.2020, processo 163/18.9GACDV.C1.S2; de 20.10.2022, processo 1991/18.0GLSNT.L1.S1; de 07.12.2022, processo 406/21.1JAPDL.L1.S1; de 14.09.2023, processo 1923/16.0T9VNG.P2.S1. E, por ser recente, nesta secção, entendeu-se de igual modo, no , consultado in www.dgsi.pt, assim sumariado, “1. A jurisprudência das secções criminais do STJ tem sustentado a aplicação subsidiária do regime da denominada dupla conforme, previsto no artigo 671.º/3 CPCivil, ex vi artigo 4.º CPPenal, aos recursos relativos a pedidos de indemnização civil formulados em processo penal”. Sobre a constitucionalidade de tal limitação no acesso ao STJ, já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no acórdão 442/2012, onde a propósito da aplicabilidade da dupla conforme ao pedido de indemnização civil enxertado no processo crime, se entendeu que “O Tribunal Constitucional tem vindo a apreciar, de modo reiterado e constante, a questão da delimitação da esfera de proteção normativa do direito fundamental de acesso aos tribunais. Precisamente em sede de processo penal, a jurisprudência constitucional tem considerado, de modo unânime, que não decorre do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) um direito subjetivo a que determinada questão jurisdicionalmente controvertida goze de um duplo grau de recurso (nesse sentido, entre muitos outros, ver os Acórdãos n.º 338/2005, n.º 2/2006, n.º 575/2006 e n.º 551/2009). Estando em causa, nos presentes autos, um recurso circunscrito a matéria de natureza cível - ainda que enxertado em processo penal -, existem razões acrescidas que justificam que a privação de um duplo grau de recurso não afeta, de modo desproporcionado, o direito de acesso do recorrente aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da CRP). O que este último preceito constitucional garante é a possibilidade de ver sindicadas decisões jurisdicionais proferidas por um tribunal de primeira instância. Tal não significa, porém, que essa possibilidade de confronto de uma decisão jurisdicional perante um tribunal superior exija um grau ótimo (ou pleno) de recurso, que apenas cabe ao legislador ordinário decidir se e em que medida é justificado. Em suma, o direito fundamental de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da CRP) não abrange o direito a um duplo grau de recurso, pelo que a interpretação normativa que constitui objeto do presente recurso não padece de inconstitucionalidade material.” Não ofende, pois, a Constituição, a aplicação da dupla conforme ao pedido cível formulado em processo penal, não sendo assim, possível recorrer para o STJ, por força da dupla conforme, por aplicação do artigo 671.º/3 CPCivil, ex vi artigo 4.º CPPenal e, em complemento do artigo 400.º/2 CPPenal, na situação em que o acórdão da relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância. Para que se verifique dupla conforme entre as decisões das instâncias, impeditiva da admissibilidade do recurso de revista, são três os requisitos cumulativos: - a ausência de votos de vencido; - ausência de uma fundamentação essencialmente diversa; - conformidade decisória. “O primeiro requisito consiste na exigência de unanimidade por parte do coletivo de juízes da Relação, que se traduz, na letra da lei, na ausência de votos de vencido. O requisito da conformidade essencial de fundamentação exige uma identidade de fundamentos adotados por ambas as instâncias, mas que não precisa de ser total, pois basta uma identidade essencial. Como se refere no Acórdão do STJ de 24.9.2020, processo 416/13.2GBTMR consultado in www.dgsi.pt, “este segundo requisito traduz-se de um conceito mais aberto, mas que tem merecido uma interpretação constante e uniforme pelo STJ. Só “pode considerar-se estarmos perante uma fundamentação essencialmente diferente quando ambas as instâncias divergirem, de modo substancial, no enquadramento jurídico da questão, mostrando-se o mesmo decisivo para a solução final: ou seja, se o acórdão da Relação assentar num enquadramento normativo absolutamente distinto daquele que foi ponderado na sentença de 1.ª instância. Ou, dito ainda de outro modo: quando o acórdão se estribe definitivamente num enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado do perfilhado na 1.ª instância”, cfr. acórdão de 20.2.2020, processo 1003/13.0T2AVR.P1. S1 - 7.ª Secção cível. Ou no dizer do acórdão de 27.2.2020, processo 5717/15.2T8FNC-B. L1. S1 - 6.ª Secção cível, “I - Uma coisa é a subsunção normativa gizada e delineada tendente à solução jurídica a dar à problemática em equação, a qual até poderá mostrar-se decidida de forma idêntica; coisa diametralmente oposta, será a redacção dada a tal solução, a qual poderá, obedecer a critérios de escrita mais elaborados e com recurso a obter dicta sofisticados, mas que não colidem, nem alteram a solução jurídica proveniente de primeiro grau, por forma a concluir-se que esta foi obtida com recurso a um argumentário substancialmente diferente. II - Para a descaracterização da dupla conformidade decisória, apenas releva a diferença essencial entre os julgados, não se bastando a mesma com uma qualquer argumentação diversa”. Na delimitação do que é ou não essencialmente diferente, há que distinguir as figuras da fundamentação diversa e da fundamentação essencialmente diferente. Este o sentido da jurisprudência consolidada do STJ sobre o conceito de fundamentação essencialmente diferente, que não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o âmago fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª instância. Ou seja, somente deixa de existir dupla conforme quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, «sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, sejam o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada» (acórdãos de 17.11.2021, processo n.º 22990/16.1T8PRT-B.P1-A.S1; de 31.03.2022, processo n.º 14992/19.2T8LSB.L1.S1. A inexistência de fundamentação essencialmente diferente não fica afastada pela mera modificação pela Relação da decisão de facto proferida na 1.ª instância, qualquer que seja o âmbito ou alcance dessa modificação, se a mesma não se projetar numa solução jurídica nuclearmente distinta da adotada na 1.ª instância, pela evidente divergência da construção jurídico-argumentativa que a Relação tenha desenvolvido, sufragando, a final, um enquadramento jurídico, institucional ou conceptual, claramente distanciado do que foi realizado na 1.ª instância (entre muitos, os acórdãos deste STJ, de 31.03.2022, processo n.º 15063/16.9T8LSB.L3.S1; de 29.09.2022, proc. n.º 19864/15.7T8LSB.L1-A.S1; de 30.11.2022, proc. n.º 12674/21.4T8SNT.L1.S1). Finalmente, no que toca ao requisito da conformidade decisória, pressuposto sobre o qual incide a verdadeira ratio da dupla conforme, importa determinar quando se verifica a conformidade entre as decisões. São dois os critérios que têm sido enunciados: - um mais amplo de conformidade racional entre as decisões em confronto (a decisão de 1.ª instância e a decisão do Tribunal da Relação resultante do recurso interposto daquela); - um mais restrito de conformidade formal entre as decisões. O critério da conformidade formal impõe uma identidade completa e formal entre as decisões. O critério da conformidade racional, diversamente, sustenta que integra o conceito de “dupla conforme” a situação em que a Relação profere uma decisão que, embora não seja quantitativamente coincidente com a da 1.ª instância, seja mais favorável à parte – isto é, quando o recorrente foi beneficiado com o acórdão da Relação comparativamente com a decisão da 1.ª instância, ou seja, entende existir dupla conforme impeditiva de um recurso de revista nas situações em que exista conformidade in melius”. E, assim, se entendeu nesta secção no supra citado Acórdão do STJ de 14.12.2023, processo 56/13.6GBCNT, consultado in www.dgsi.pt, que vimos seguindo de perto mesmo com transcrição, “2. A maioria da doutrina, tal como a jurisprudência largamente maioritária do STJ, nas secções cíveis e nas secções criminais, adoptaram o critério da denominada dupla conforme “racional ou ponderada” ou conformação in melius, critério da coincidência racional, por inclusão quantitativa, para aferir do requisito da conformidade decisória”. Isto, numa situação em que foi deduzido pedido de indemnização civil em que foi peticionada a condenação solidária dos arguidos, relativamente a danos patrimoniais, no valor total de € 90 410,23, tendo a 1.ª instância julgado parcialmente procedente o pedido civil e condenado os arguidos/demandados solidariamente no pagamento à demandante da quantia de € 54 446,48, absolvendo-os do demais peticionado e tendo a Relação, no provimento parcial do recurso, diminuído a quantia indemnizatória para € 52 794,68. E, assim se considerou que, “- não podem os demandados cíveis/arguidos recorrer para o STJ uma vez que ambas as instâncias estão de acordo de que aqueles devem pagar pelo menos 52 794,68 €, tendo sido a decisão recorrida mais favorável para os demandados civis/arguidos; - tendo ficando os recorrentes beneficiados com a decisão da Relação, sem fundamentação de direito essencialmente diferente e sem voto de vencido, nenhum direito dos recorrentes é restringido comparativamente com o caso de a condenação no Tribunal da Relação manter a indemnização arbitrada em 1.ª instância, situação em que, inquestionavelmente, também não poderiam recorrer para o STJ”. Baixando ao caso concreto, no que concerne ao primeiro e terceiro requisitos enunciados, a sua verificação é objectiva, e verifica-se no caso em apreço, já que o acórdão da Relação mereceu a unanimidade dos juízes desembargadores e negou provimento ao recurso confirmando, tal e qual, a decisão recorrida. E, ademais, o alicerce jurídico que despoletou improcedência do recurso coincide com a motivação jurídica em que assentou a decisão da 1.ª instância. É certo que a Relação, no discurso argumentativo, e cumprindo o seu dever de fundamentação, densificou um conjunto de circunstâncias factuais que, na sua óptica, permitiam a subsunção na norma que reconhece o direito dos demandantes e acrescentou ainda um conjunto de outra doutrina e jurisprudência. Mas sem com isso fugir à questão central. Quer a 1.ª instância, quer o Tribunal da Relação, convergem nas razões para a existência e para a quantificação do direito de indemnização, que veio a ser reconhecido, primeiro e reafirmado, depois. E, assim, por força da dupla conforme e, não se verificando nenhuma situação enquadrável no artigo 629.º/2 CPCivil, não é de admitir o recurso, nesta parte. Em conformidade com o exposto, haverá, então, que decidir, a final, rejeitar o recurso interposto pelo arguido, quanto à matéria do pedido cível, por o mesmo não ser admissível, nos termos do disposto nos artigos 432.º/1 alínea d), 400.º/1 alínea c) e 420.º/1 alínea b) CPPenal. No caso concreto está salvaguardada a possibilidade de, oficiosamente, o Supremo Tribunal de Justiça tomar a iniciativa de examinar a existência dos vícios do artigo 410.º/2 CPPenal, cfr. AUJ 7/95). É jurisprudência consensual que essa sindicância apenas deve ter lugar quando tal se torne imperioso e indispensável para proferir a decisão de direito, ainda ou apesar do pedido (inadmissível) das partes. Trata-se, assim, de um conhecimento oficioso, da iniciativa do Supremo Tribunal de Justiça, de natureza excecional, como último remédio contra vícios manifestos no julgamento da matéria de facto, mas que no caso não encontra justificação que se identifique exuberantemente no texto da decisão recorrida. E, assim, se é certo que no caso concreto não está prejudicado o poder de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto, previstos no artigo 410.º/2 CPPenal, quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito, cfr. artigo 434.º CPPenal, não menos certo é que tal se não verifica. Como igualmente se não identifica qualquer nulidade das enunciadas no artigo 410.º/3 CPPenal. Com efeito, da leitura da decisão e, designadamente dos segmentos dos factos provados e da motivação, caldeada com as regras da experiência comum, pois que a outros elementos não pode o Tribunal socorrer-se, não se vislumbra que se patenteie, - insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, pois não se vê que matéria de facto, com utilidade e pertinência, poderia o tribunal, mais ter averiguado e não averiguou; - erro notório na apreciação da prova, pois que não existem pontos de facto fixados na decisão recorrida, tão manifestamente arbitrários, contraditórios ou violadores das regras da experiência comum; - contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão, já que não se descortina a existência de factos ou de afirmações que estejam entre si numa relação de contradição. Para proceder a esta enunciada apreciação importa, antes de mais, atentar na matéria de facto provada. Como vimos, o Tribunal da Relação manteve inalterados os seguintes factos dados como provados no acórdão da 1.ª instância, que, assim, se mostram estabelecidos: I) 1. AA é tio paterno de FF. 2. (…) ambos residiam na Rua 1 em Tomar, a cerca de 100 metros de distância. 3. (…) e desde há vários anos que AA e FF tinham quezílias relacionadas com partilhas de terrenos. 4. (…) pelo menos desde o dia 14 de fevereiro de 2024 que FF, o seu filho CC e o seu sobrinho EE se encontravam diariamente a fazer obras na serventia existente entre o terreno de AA e da vítima FF. 5. (…) durante este período, AA passou na referida serventia por diversas vezes, não tendo interagido com a vítima. 6. Em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 29 de fevereiro de 2024, AA, movido pelas referidas desavenças familiares mantidas com a vítima sobre a serventia do terreno, decidiu pôr termo à vida de FF. 7. (…) para o efeito, AA municiou a sua espingarda caçadeira Benelli Armi-Urbino calibre 12 com pelo menos três cartuchos de calibre 12 com as inscrições “Sauvestre, Balle Fleche, 27 20 e 70mm” no corpo e “12*12*12*12*” na base, e colocou roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção. 8. (…) na concretização do propósito que formulara anteriormente, AA, pelas 8 horas e 15 minutos do dia 29 de fevereiro de 2024, muniu-se da arma nas condições acima referidas e deslocou-se na sua viatura com a matrícula V1 até à serventia do terreno que fica a 100 metros da sua habitação, local onde sabia que FF se encontrava a realizar as referidas obras. 9. (…) aí chegado, e mesmo apercebendo-se que a vítima FF se encontrava no terreno acompanhado de CC, seu filho, e EE, seu sobrinho, saiu do veículo empunhando a espingarda caçadeira na direção de FF. 10. (…) e, de imediato, a cerca de 17 metros de FF, efetuou um disparo que lhe atingiu a zona do ombro direito e do tórax, tendo o mesmo caído ao chão de costas. 11. (…) já com a vítima prostrada no chão, efetuou dois disparos na face de FF, atingindo um a zona orbitária esquerda e outro a zona orbitária direita. 12. Na sequência dos disparos efetuados pelo arguido, FF sofreu as seguintes lesões: A) Hábito externo: - Feridas perfuro-contundentes na cabeça (com exposição dos tecidos moles subjacentes, de esquirolas ósseas, de massa encefálica e dos globos oculares), no tórax e no membro superior direito; - Laceração dos globos oculares (com perda da sua forma esférica); - Escoriações de caraterísticas recentes no tórax; - Tecidos moles na face interior de peças de vestuário. B) Hábito interno: - Lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas: Esfacelo do tecido celular subcutâneo e dos músculos da face; Solução de continuidade epicraniana; Infiltrações sanguíneas epicranianas e do músculo temporal direito; Fraturas do crânio (abóbada, base e face); Lacerações meníngeas; Hemorragia meníngea (subaracnóide); Esfacelo cerebral e cerebeloso; Lacerações encefálicas; Sangue nos ventrículos laterais e no IV ventrículo; Edema encefálico. - Lesões traumáticas torácicas (incluindo raqui-meningo-medulares): Soluções de continuidade do tecido celular subcutâneo, de músculos, pleurais (bilateralmente) e pulmonares (bilateralmente); Fraturas de costelas (bilateralmente) e da escápula esquerda; Contusão pulmonar (à direita); Hemotórax (bilateralmente); Fraturas da coluna vertebral (D7 e D8), com hemorragias meníngeas (epidural, subdural e subaracnóide) e mielomalácia a esse nível. - Lesões traumáticas do membro superior direito: Soluções de continuidade do tecido celular subcutâneo e de músculos do braço. 13. (…) tais lesões foram causa direta da morte de FF. 14. Após, AA ausentou-se do local em direção à sua habitação, local onde, pelas 8 horas e 25 minutos e 8 horas e 26 minutos, efetuou duas tentativas de contacto para a PSP de Tomar, para os números ... ... .40 e ... ... .48, que não logrou efetuar por se tratarem de números desativados. 15. (…) assim, ficando em casa, a aguardar a chegada da Polícia junto à garagem da sua habitação. 16. (…) onde, junto do saco com roupa que AA prepara anteriormente, foi apreendida a arma Benelli Armi-Urbino calibre 12 com o n.º de série M246446, utilizada para disparar contra a vítima. II) 17. Ao atuar da forma supra descrita, disparando uma arma de fogo em direção ao tórax e à cabeça de FF e a uma distância que lhe garantia acertar no alvo, AA quis tirar-lhe a vida, bem sabendo que a natureza do meio utilizado e as zonas do corpo que pretendia atingir, por alojarem órgãos vitais, poderia causar lesões suscetíveis de provocar a morte daquele, resultado esse que quis, representou e logrou alcançar. 18. (…) praticou os factos acima descritos de forma refletida e planeada, indiferente à presença do filho e sobrinho de FF no local, que não o demoveu de disparar sobre aquele várias vezes, sendo a última na face, com FF prostrado no chão e incapaz de reagir ou praticar qualquer ato de defesa. 19. (…) agindo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. III) 20. EE tinha uma relação muito próxima com FF, vendo o seu tio como um pai, por quem nutria sentimentos de afeto idênticos. 21. (…) vivia na casa do tio, juntamente com a tia e os primos. 22. (…) tendo a morte do tio causado muito nervosismo, tristeza e instabilidade emocional, porque as imagens dos factos estão sempre muito presentes na sua memória. 23. FF tinha à data da morte 46 anos de idade, exercia a profissão de manobrador de máquinas numa empresa Suíça há 17 anos e gozava de boa saúde. 24. (…) estava casado com BB há 22 anos, casamento que se pautava por uma boa vivência. 25. BB ficou muito perturbada e sofreu um grande desgosto, que se prolonga desde o dia 29 de fevereiro de 2024, e ainda se mantém, por ter perdido o seu marido de forma tão trágica e violenta. 26. (…) tinha uma vida alegre, de boa companhia com o seu marido e filhos. 27. (…) constituía com o marido um casal que se dava bem, sem atritos e incompreensões, tendo a expectativa de uma vida de casada e de felicidade com o seu marido por muitos anos. 28. (…) era feliz e vivia quase exclusivamente para o seu marido e para os seus filhos. 29. (…) em virtude da morte do marido, ficou num estado depressivo e sorumbático, sem vontade de trabalhar, de falar com outras pessoas, chorando muitas vezes sozinha em virtude da perda da pessoa que amou toda a vida, sofrendo de forma muito intensa. 30. CC e DD tinham uma relação muito estreita e intensa com o pai, com quem privavam de forma contínua e reiterada. 31. (…) e, ao perderem o seu pai de forma violenta e brutal em idade ainda muito jovem, com 21 e 19 anos, respetivamente, ficaram ambos muito abalados, tristes, nervosos e ansiosos. 32. (…) nos meses seguintes ao falecimento do pai, não dormiam de noite, acordando muitas vezes extremamente ansiosos e chorosos. 33. (…) ainda hoje, choram quando falam do pai ou quando o recordam. 34. (…) CC assistiu ao assassínio do pai, sendo imagens que perduram na mente do demandante, que jamais esquecerá e que o acompanharão toda a vida, causando-lhe tristeza muito intensa. 35. BB trouxe os bens pessoais de FF para Portugal, tendo o seu custo de transporte ascendido a 2.000,00€. IV) 36. AA foi emigrante na Suíça durante aproximadamente 42 anos, onde trabalhou no setor da construção civil como carpinteiro de tosco e pedreiro. 37. (…) o seu regresso definitivo a Portugal ocorreu em 2023, tendo constituído agregado próprio aos 30 anos naquele país com uma cidadã portuguesa oriunda da zona norte do país o qual durou cerca de 17 anos, tendo nascido dois filhos, ambos maiores de idade e autónomos, sendo GG, residente na Suíça com o respetivo agregado constituído, o único elemento familiar referenciado em termos de relacionamento de maior proximidade. 38. (…) à data dos factos, residia sozinho, em casa própria, uma habitação de construção antiga, anteriormente pertencente aos pais, e cuja titularidade refere ter sido legitimada através de processo de partilha por morte dos mesmos. 39. (…) está reformado por invalidez na sequência de um acidente de trabalho na década de 90, e desde essa altura que não desenvolve qualquer atividade laboral. 40. (…) a sua subsistência apresenta-se exclusivamente decorrente do valor correspondente à pensão de reforma de que é beneficiário, montante que no último ano indica correspondente ao valor aproximado de 2.000,00 €. 41. (…) desde o seu regresso definitivo à localidade de residência, as rotinas mantinham-se associadas a um quotidiano organizado em torno da execução de alguns trabalhos agrícolas e da ligação a amigos e conhecidos com quem convivia, ligados à atividade de caçador desportivo, não se identificando, para além destas, outras formas de atividade ocupacional ou de lazer estruturada. 42. (…) para além de eventuais vulnerabilidades relacionadas com o consumo excessivo de álcool e do facto de se encontrar numa situação de isolamento familiar, o seu discurso aponta para dificuldades de gestão emocional em situações de tensão e de resolução de problemas, défices que, assinalando o antagonismo com a vítima identificada nos autos desde há vários anos, não se mostram suficientemente minorados para sustentar uma prognose positiva no que concerne à sua reintegração no meio social. 43. (…) em termos económicos, os seus gastos de uso pessoal apresentam-se suportados pela creditação mensal regular por operação bancária de importâncias no fundo de uso pessoal, o qual conta com um total de 6.936,58 €. 44. (…) em últimas declarações, quando instado pelo Tribunal para refletir sobre a conduta, manifestou com desagrado a circunstância de se ver afastado dos seus netos, em consequência da prisão preventiva que lhe foi imposta. 45. (…) não tem antecedentes criminais. 4. 1. A nulidade da decisão recorrida. 4. 1. 1. As razões do arguido. Diz o arguido que, - conforme jurisprudência dominante, impõe-se que, por dupla via de remissão dos artigos 425.º/4 e 379.º CPPenal, as exigências de pronúncia e fundamentação dos acórdãos dos tribunais da Relação, proferidos em recurso, decorrentes da aplicação do n.º 2 do artigo 374.º CPPenal, devam sofrer as adaptações devidas, em função do objeto e do âmbito do recurso; - a exigência de fundamentação consiste na imposição de que “as decisões sejam eficazmente motivadas em matéria de facto e de direito” - motivar, na sua aproximação mais óbvia, é justificar a decisão adoptada para que possa ser controlada do exterior (Perfecto Andrés Ibañez, loc. cit., p. 167); - a motivação da matéria de facto exige exame crítico das provas, de todas as provas conducentes ao conjunto dos enunciados fácticos afirmados na sentença, no sentido de que não basta enumerar, mencionar, transcrever ou reproduzir provas, mais se exigindo exteriorizar em que medida a prova influenciou o julgador; - logo nos primeiros trabalhos de interpretação e de elaboração dogmática realizados sobre o novo Código de Processo Penal, divulgados pelo Centro de estudos Judiciários em 1988, dizia Marques Ferreira: “A obrigatoriedade de tal motivação surge em absoluta oposição à prática judicial na vigência do Código de Processo Penal de 1929 e não poderá limitar-se a uma genérica remissão para os diversos meios de prova fundamentadores da convicção do tribunal (…). No futuro processo penal português, em consequência com os princípios informadores do Estado de Direito democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no art. 32º, nº1 e 210º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, exige-se não só a indicação das provas e dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão; - estes motivos de facto não constituem thema decidendum (factos provados) nem os thema probandum ( meios de prova) mas sim os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos que evidenciam a ratio que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse; - na motivação, o tribunal apresenta “as razões – necessariamente racionais e objectivas – da decisão (…) O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o art. 205º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objectiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3); - a tal propósito vide o Ac. do TC 198/2004 de 24 de Março , onde se salienta que “esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis); - a decisão recorrida não fundamentou a decisão limitando-se a emitir um juízo conclusivo nesse sentido sem fundamentar factualmente tal conclusão, ferindo de nulidade a decisão proferida por franca falta de fundamentação; - o Tribunal da Relação proferiu um Acórdão onde se revela uma franca desconsideração pelos motivos recursórios do recorrente, ficando apenas pela repetição do que foram os fundamentos emitidos pelo Tribunal a quo; - o que revela que não são verdadeiramente analisadas as fundamentações de recurso, bastando-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação como um parafrasear do ditos do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo. Não há margem para dúvida de que o arguido tem aqui em mente o julgamento sobre a matéria de facto. Isto porque defende que, - a motivação da matéria de facto exige exame crítico das provas, de todas as provas conducentes ao conjunto dos enunciados fácticos afirmados na sentença, no sentido de que não basta enumerar, mencionar, transcrever ou reproduzir provas, mais se exigindo exteriorizar em que medida a prova influenciou o julgador; - logo nos primeiros trabalhos de interpretação e de elaboração dogmática realizados sobre o novo Código de Processo Penal, divulgados pelo Centro de estudos Judiciários em 1988, dizia Marques Ferreira: “A obrigatoriedade de tal motivação surge em absoluta oposição à prática judicial na vigência do Código de Processo Penal de 1929 e não poderá limitar-se a uma genérica remissão para os diversos meios de prova fundamentadores da convicção do tribunal (…). No futuro processo penal português, em consequência com os princípios informadores do Estado de Direito democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no art. 32º, nº1 e 210º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, exige-se não só a indicação das provas e dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão; - estes motivos de facto não constituem thema decidendum ( factos provados) nem os thema probandum ( meios de prova) mas sim os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos que evidenciam a ratio que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse; - na motivação, o tribunal apresenta “as razões – necessariamente racionais e objectivas – da decisão (…) O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o art. 205º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objectiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3); - a tal propósito vide o Ac. do TC 198/2004 de 24 de Março , onde se salienta que “esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis). 4. 1. 2. Atentemos na fundamentação da decisão recorrida. “A) Vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Cód. Proc. Penal Como fundamento do seu recurso invoca o recorrente os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova. Dispõe o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova. Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida. Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16. ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121). Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto. No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo. Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma. Neste sentido decidiu o STJ no Ac. de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.” No mesmo sentido se decidiu no Ac. do TRC de 12/09/18, proferido no processo nº 28/16.9PTCTB.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que: “ (…) Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito. Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.” No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. Pese embora a lei não o defina, o «erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio». Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740). Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Quanto ao que se deva entender por erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Civil, discorreu largamente o STJ, no seu Ac. de 7/07/21, proferido no processo nº 128/19.3JAFAR.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves (in www.dgsi.pt) e onde se pode ler: “ (…) A decisão de julgar provado um acontecimento da vida na convicção de que foi demonstrado por uma versão que é manifestamente ilógica, contrariada pelas regras da física e ao mesmo tempo pelas máximas da experiência, padece do vício que o legislador consagrou no art.º 410º n.º 2 al.ª c) do CPP. Este é, como os demais aí previstos, um defeito da decisão em matéria de facto. Não devendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com a escassez da prova para suportar o julgado. A sua deteção ou verificação não permite o recurso a elementos externos ao texto da decisão recorrida. Não assim, evidentemente, ao que constar da motivação do julgamento da matéria de facto. Se é certo que um determinado facto ou acontecimento da vida, simplesmente pelo modo como vem narrado, pode apresentar-se visivelmente irracional, notoriamente impossível, manifestamente desconforme às regras da experiência comum, todavia, mais comumente o erro notório na apreciação da prova deteta-se pela motivação do julgamento da facticidade, designadamente pelo exame critico dos elementos de prova. (…)” No caso dos presentes autos, o recorrente alega que existe insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão e erro notório na apreciação da prova, porquanto os factos dados como provados em 6, 9 e 18 deveriam ter sido dados como não provados e os factos dados como não provados nas alíneas h) e i) deveriam ter sido dados como provados. Porém, o que daqui decorre é que o recorrente se limita a discordar da apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, no que concerne à sua condenação pela prática do crime de homicídio, pretendendo não ser punido ou ser punido com uma pena mais leve do que aquela que lhe foi aplicada. Ora, analisada a decisão recorrida, verificamos que não resulta da mesma que padeça de erro notório, nem de insuficiência da matéria de facto para a decisão, pois os factos estão descritos de forma clara e perceptível, não existe qualquer contradição entre a matéria de facto provada e não provada, todos os factos se mostram fundamentados, de forma lógica, e a decisão do Tribunal funda-se na prova produzida, estando em conformidade com a mesma. Os factos dados como provados permitem concluir pelo preenchimento pelo arguido dos elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio qualificado pelo qual foi condenado, em moldes que infra se apreciarão. Não se tendo apurado a existência de um qualquer vício de raciocínio evidente para um observador médio ou uma qualquer desconformidade intrínseca e evidente no raciocínio exposto na decisão do Tribunal recorrido, o que também não foi alegado pelo recorrente, impõe-se julgar este recurso improcede quanto a este fundamento, sem necessidade de mais considerandos. B) Erro de julgamento O recorrente considera incorrectamente julgados os factos provados sob os nºs 6, 9 e 18, bem como os factos não provados referidos nas alíneas h) e i), pretendendo não ser punido pelo crime de homicídio qualificado ou ser-lhe aplicada uma pena inferior, bem como a redução dos montantes indemnizatórios arbitrados. Alega, para tanto, que a ponderação da prova produzida impunha decisão diversa, designadamente as suas declarações, na parte em que referiu que só disparou contra a vítima porque não dormiu bem, por no dia anterior a vítima o ter ameaçado e por ter passado a noite nervoso e a sonhar que a vítima andava à sua procura com uma pistola, tudo isto em resultado de um longo período de desavenças familiares, para além do que das suas declarações decorre também que no local do crime só viu a vítima. Mais alegou que do depoimento das testemunhas EE e CC resulta que não era possível o arguido saber que as mesmas se encontravam presentes no local do crime, por não estarem visíveis, pelo que os factos 9 e 18 deveriam ter sido dados como não provados. Também o facto dado como provado em 6, não tem acolhimento em qualquer prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pois as testemunhas inquiridas não referem qualquer tipo de interação do arguido com a vítima nos dias anteriores aos factos, sendo que a “resolução criminosa” pressupõe sempre a representação pelo agente dos factos concretos que vão ser praticados. Entende o arguido que não pode ser dado como facto provado que em data não concretamente apurada, mas anterior a dia 29 de Fevereiro, decidiu por termo à vida da vítima, porque resulta das declarações que prestou em sede de primeiro interrogatório e em julgamento que durante a madrugada de dia 29 de Fevereiro teve uma noite em que não dormiu e acordou sobressaltado várias vezes com a ideia de que a vítima andava de volta da sua habitação com uma pistola para o matar, sendo notório que a resolução criminosa foi tomada durante a manhã de 29 de Fevereiro e não anteriormente. Já quanto aos factos não provados referidos nas alíneas h) e i), entende que a sua prova resulta das suas declarações, bem como das de EE e de CC, devendo os mesmos ser dados como provados. Ora, a reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde, como supra se referiu, a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. O recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal. A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª Instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma. Verifica-se, assim, que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, constituindo apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt). A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, quanto à reapreciação da matéria de facto, decorre do princípio da oralidade, o qual implica uma imediação, um contacto direto, pessoal e presencial entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros, timbre e entoação), que facilita a formação da livre convicção do julgador e que só existe na primeira instância. A imediação permite ao julgador uma perceção dos elementos de prova muito mais próxima da realidade do que qualquer apreciação posterior, a realizar pelo Tribunal de recurso, mesmo que este se socorra da documentação dos atos da audiência. A imediação revela-se também de importância fulcral para aferir da credibilidade de um depoimento, pois o seu desenrolar, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou o desembaraço e todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor são insuscetíveis de serem registadas, mas ficam na memória de quem realizou o julgamento, são importantes na formação da convicção do julgador e são objetiváveis na fundamentação da decisão, mas não são suscetíveis de documentação para reapreciação em sede de recurso. Segundo o previsto no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada. Impõe-se, assim, concluir que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de recurso verificar se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho prosseguido até se chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, devendo tal apreciação ser feita com base na motivação elaborada pelo Tribunal de primeira instância e na fundamentação da sua escolha, em cumprimento do disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal. Para este efeito, como se escreveu no Ac. do TRL datado de 11/03/2021 ( proferido no processo nº 179/19.8JDLSB.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt. ): «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os recorrentes. Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.»). Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt). O que o recorrente tem que fazer é apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude. No caso dos autos, analisadas a motivação e as conclusões do recurso, verificamos que o recorrente indicou os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, os meios de prova que, na sua opinião, impunham decisão diversa e transcreveu as passagens do seu depoimento e dos depoimentos das testemunhas que, no seu entendimento, fundamentam a impugnação. Pese embora o recorrente não tenha indicado as partes da gravação dos depoimentos que este Tribunal de recurso deveria ouvir, considera-se que cumpriu minimamente os requisitos legais da impugnação ampla da matéria de facto. Porém, o que resulta da sua argumentação é que pretende que se dê como provado que só decidiu matar a vítima na manhã em que os factos ocorreram e quando a viu, que o seu estado de nervosismo lhe toldou o discernimento e que tal se ficou a dever a ter dormido mal, por a vítima o ter ameaçado no dia anterior e por não ter tomado os seus medicamentos, e ainda que quando disparou sobre a vítima não viu mais ninguém no local. Tudo isto com fundamento nas suas declarações e nas das testemunhas EE e CC. No entanto, constata-se, desde logo, que o entendimento do recorrente sobre o momento da tomada da “resolução criminosa” não é consentâneo com os factos provados descritos em 7, os quais não foram impugnados e de onde decorre que antes de se dirigir ao local do crime, o recorrente municiou a sua espingarda caçadeira Benelli Armi-Urbino calibre 12 com pelo menos três cartuchos de calibre 12 e colocou roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção. Ora, esta factualidade assente e não impugnada não é compatível com a pretensão do recorrente de que só formulou a sua resolução criminosa quando viu a vítima na manhã do dia 29 de Fevereiro de 2024, no local do crime. Ouvidas as declarações do recorrente, verifica-se que este confessou a quase totalidade dos factos, nomeadamente a forma como matou a vítima, qual a arma utilizada, o número de disparos que fez, a distância a que se encontrava da vítima, que antes de se dirigir ao local municiou a sua arma com cinco cartuxos e fez uma mala de roupa, onde pôs os medicamentos que tomava (dando para tal a justificação, não plausível, de que fez a mala para ir para a Suiça), e explicou os motivos que o levaram a cometer o crime, sendo estes desavenças familiares antigas, motivadas por partilhas de terrenos. Porém, ao contrário do pretendido pelo recorrente, das suas declarações decorre que praticou efectivamente o crime com frieza de ânimo, premeditação e reflexão sobre os meios empregues, o que resulta evidente da preparação antecipada da arma utilizada e de uma mala com roupa e artigos pessoais, prevendo a sua futura detenção. Por outro lado, ouvidos os depoimentos das testemunhas EE e CC, também decorre dos mesmos que no dia anterior aos factos estiveram com a vítima no local e não a ouviram a falar com o arguido e muito menos a ameaçá-lo, tendo referido expressamente que a vítima não falava com o arguido e que no dia anterior a única pessoa que falou com o arguido foi o filho da vítima, DD. Esta factualidade foi dada como provada em 5. e também não foi impugnada pelo recorrente. Mais declararam que o arguido os viu no local, no dia da prática do crime, quando iniciou os disparos, o que não o demoveu de continuar a disparar sobre a vítima, e especificaram que ouviram o carro do arguido a vir pela estrada e a parar, que não estavam atrás de nenhuma máquina, que estavam visíveis para o arguido, em campo aberto, a 2/3 metros da vítima, e que o demandante FF ainda tentou auxiliar o pai logo após este ter levado o primeiro tiro, só tendo fugido depois, porque o pai lhe pediu, e antes deste ter sido atingido pelos restantes tiros. O Tribunal a quo não deu como provado que o arguido praticou o crime por ter dormido mal, ter tido alucinações e ter sido ameaçado no dia anterior pela vítima, em nosso entender bem, pois tais factos configuram apenas uma tentativa de defesa do arguido, não foram corroborados por qualquer outro meio de prova e foram contraditados pelas testemunhas EE e CC, que negaram a ocorrência de qualquer ameaça da vítima para com o arguido. Por outro lado, estes factos, mesmo que tivessem sido considerados provados, não configuram nenhuma causa de exclusão da ilicitude, nem permitem concluir que o arguido agiu com imputabilidade diminuida, sendo, como tal, inóquos para efeitos da sua desresponsabilização criminal, conforme infra se apreciará. Em face do exposto, impõe-se concluir que a factualidade apurada foi apreciada segundo as regras da lógica e da experiência comum, conforme explanado na parte da decisão em apreço supra transcrita, de forma completa e transparente, tendo os depoimentos do arguido e das testemunhas inquiridas sido valorados em articulação com os restantes meios de prova, documentais e periciais. O Tribunal a quo conferiu maior credibilidade aos depoimentos das testemunhas EE e CC do que ao depoimento do arguido, relativamente aos pontos da matéria de facto concretamente impugnados, em moldes que não nos merecem qualquer censura, porquanto o mesmo beneficiou da imediação na apreciação da prova e considerou que estas testemunhas depuseram de forma credível, isenta e convincente, o que este Tribunal de recurso confirmou pela audição das suas declarações. Verifica-se, assim, que a argumentação do recorrente mais não é do que o resultado da sua apreciação da prova, daquilo que gostaria que se tivesse dado como provado, realçando aspectos dos depoimentos de algumas das testemunhas que, no seu entender, reforçam a sua tese, mas sem qualquer distanciamento imparcial e apenas com vista a conseguir a sua condenação pela prática de um crime de homicídio simples ou uma diminuição da pena aplicada e dos montantes indemnizatórios arbitrados. Porém, constata-se que a decisão da matéria de facto está bem fundamentada, não sendo a prova produzida em julgamento geradora de dúvida e não se mostrando violados quaisquer preceitos legais ou constitucionais, nem o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, pelo que se impõe julgar o recurso improcedente quanto a esta matéria”. Estabelece o artigo 379.º/1 alínea c), primeira parte, CPPenal, que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, sendo tal disposição correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do n.º 4 do artigo 425.º CPPenal. A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal - artigo 660.º/2 CPCivil - e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. Segundo o arguido, a omissão de pronúncia ter-se-á verificado relativamente ao capítulo da análise crítica da prova. Isto porque entende que a decisão recorrida não fundamentou a decisão limitando-se a emitir um juízo conclusivo nesse sentido sem fundamentar factualmente tal conclusão, evidenciando uma franca falta de fundamentação e de desconsideração pelas razões por sai aduzidas, ficando apenas pela repetição do que foram os fundamentos emitidos pelo Tribunal a quo – a revelar que não foi verdadeiramente analisada a fundamentação do recurso, bastando-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação como um parafrasear do ditos do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo. Na apreciação de um qualquer recurso, depois de sintetizadas as pretensões recursivas, deve-se proceder à apreciação, apenas, das questões que preenchem o objecto do recurso, o que efectivamente pela sua importância demanda expressa pronúncia e tomada de posição. Como uniformemente tem sido entendido por este Supremo Tribunal, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença. A pronúncia cuja omissão determina como consequência a nulidade da sentença deve incidir sobre problemas, os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum), e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas. Uma coisa é uma “questão” sobre a qual o Tribunal tem de se pronunciar e, outra é uma “razão”, ou um “argumento” para se decidir aquela. Esta causa de nulidade apenas se verifica na falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar, sendo irrelevante o não conhecimento das razões ou argumentos aduzidos pelo recorrente. Apenas a falta de apreciação das questões suscitadas integra a apontada causa de nulidade. Já o não conhecimento de todas as razões ou de todos argumentos esgrimidos pelo recorrente será, neste particular, irrelevante. Não deve confundir-se o regime da nulidade estabelecido nesta norma com dimensões que comportam as causas de nulidades, nomeadamente com a discordância que envolva a razão e os fundamentos da decisão, situação que comporta eventuais e autónomos fundamentos de recurso. Nesta norma estão em causa, tão só, a nulidade decorrente dos fundamentos aqui específica e concretamente previstos. No caso, da mera leitura da decisão recorrida ressalta à evidência que A decisão recorrida abordou, tomou posição de forma expressa e decidiu sobre as apontadas questões. Mas, decisivamente, importa aqui ainda fazer ressaltar o seguinte, como fez notar este Supremo Tribunal no acórdão de 28.2.2024, processo 115/19.1GCSTB, “à Relação, perante a invocação de vícios da decisão e de erros de julgamento, não se exige um novo exame crítico da prova, não se lhe impõe que reanalise a prova para aferir da exatidão, ou não, do exame crítico efectuado na 1ª instância, bastando que verifique que o exame foi realizado, se encontra na fundamentação da decisão e se e mostra enformado das exigências legais. É que “A intervenção do tribunal de recurso em sede de matéria de facto não constitui um segundo julgamento. Aplicada aos tribunais de recurso, a norma do artigo 374º, nº 2, do CPP, não tem aplicação em toda a sua extensão, estando-se perante uma fundamentação derivada, nos termos do artigo 425º, nº 4, do CPP.” (in ac. do STJ de 11/06/2014, proc. nº 14/07.0TRLSB.S1, com exaustiva citação de vários outros acórdãos concordantes). O que bem se percebe, visto que o seu objecto é a decisão recorrida e não directamente a apreciação do objecto do processo e os recursos não têm por finalidade a prolação de uma segunda ou nova decisão, antes e tão-só a sindicação da já proferida, assumindo o recurso o arquétipo de remédio jurídico”. E, no caso concreto o Tribunal da Relação não se limitou a produzir uma afirmação genérica, tendo antes cumprido o tema proposto, com a apreciação dos alegados vícios e dos fundamentos alegados para a existência de erros de julgamento. E, fê-lo de forma exaustiva, abrangente e global. Concluindo não se verificarem os fundamentos em que o arguido estrutura a sua discordância para com o julgamento da matéria de facto. Voltando ao citado acórdão, “o que a Relação não fez nem lhe cabe fazer, como se disse, é uma reapreciação de cada um dos elementos de prova e uma confrontação de novo um a um e com os demais. Tal não constitui omissão de pronúncia. Porque novo julgamento não se impõe ao tribunal de recurso. Como o STJ tem reafirmado, o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros. Assim como, e o STJ di-lo com frequência, se é legítimo que o recorrente se arrogue uma convicção diferente da formada pelo tribunal, certo é que não pode querer impô-la, como única aceitável ao tribunal ad quem. No presente caso, o Tribunal da Relação procedeu a uma efectiva e fundamentada “reavaliação” das provas concretamente indicadas relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente indicou como tendo sido incorrectamente julgados, avaliando se efectivamente essas provas impunham ou não uma decisão diversa da recorrida. Sendo assim, não se verifica omissão de pronúncia sobre a impugnação da matéria de facto”. É certo que com o decidido o arguido pode, legitimamente, não concordar. E, como é evidente, pode manifestar a sua discordância com o ponto de vista defendido na decisão recorrida. Mas uma realidade é discordar de uma posição assumida de forma expressa, patente, clara e, outra, é, por se discordar do sentido do decidido, invocar omissão de pronúncia. Não passa a haver omissão de pronúncia só porque o arguido discorda do sentido da decisão sobre a matéria de facto – no sentido da confirmação do decidido pela 1.ª instância. É no mínimo curiosa a afirmação do arguido de que a decisão recorrida se bastou como um parafrasear dos ditos do Acórdão da 1.ª instância. Imputação, como vimos feita na mesma ocasião, na mesma peça processual, onde o arguido acaba, ele próprio, por repetir, sem qualquer aditamento, sem qualquer preocupação de novidade, a motivação e as conclusões que antes já apresentara. A demandar, porventura, que aqui e agora se respondesse da mesma forma. E, assim, conclui-se não se verificar qualquer omissão de pronúncia, improcedendo a arguição de nulidade e, este segmento do recurso. 4. 2. Subsunção dos factos ao Direito. 4. 2. 1. Atentemos primeiramente na fundamentação da decisão recorrida. “C) Qualificação jurídica dos factos apurados O recorrente foi condenado pela prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos arts.º 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea j) do Cód. Penal, agravado pelo art.º 86º, nº 3 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02. Vem o mesmo pôr em causa a qualificação jurídica dos factos apurados, considerando que a sua actuação não se enquadra na alínea j) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal, porquanto: - não resultou provada a manutenção da resolução criminosa por um período superior a 24 horas; - o arguido tem anomalias psíquicas, de acordo com os Relatórios médicos e com o Relatório de Medicina legal juntos aos autos; - o arguido tem que tomar medicação e deixou de a tomar bruscamente, apesar da sua necessidade para a toda a vida; - o arguido e a vítima tinham quezílias devido a partilhas já há várias décadas, sendo estas objecto de diversos processos em Tribunal; - a vítima encontrava-se no local a cumprir uma ordem judicial para realização de obras de acesso ao caminho para a casa do arguido, no âmbito desses mesmos processos de partilhas; - o arguido revela fragilidade ao nível afectivo e emocional, não possuindo uma retaguarda familiar que constitua um suporte ou referência de apoio; - o arguido é portador de anomalia psíquica, caracterizada por fases depressivas, devendo usar medicação durante toda a sua vida; - o arguido acordou sobressaltado durante a madrugada do dia 29 de Fevereiro de 2024, alucinando com a presença da vítima a rondar a sua habitação com uma pistola; - foi apenas naquela manhã, por volta das 8h15, que o arguido viu a vítima e neste seguimento vai buscar a sua caçadeira e se dirige ao local onde a vítima se encontrava; - o arguido agiu sob o efeito do estado de espírito descontrolado, sem que naquele espaço de tempo tivesse a possibilidade duma reflexão serena sobre o seu propósito. Conclui o recorrente que desta factualidade decorre que a sua conduta não se enquadra na previsão da al. j) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal, mas apenas na do art.º 131º do mesmo diploma. Importa atentar em que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto fixada na decisão recorrida, pelo que é a tal matéria que teremos que nos ater e não à factualidade alegada pelo recorrente, mas sem suporte na factualidade dada como provada na decisão recorrida. Assim sendo, impõe-se desde já concluir que a matéria de facto provada não permite configurar a existência de uma causa de exclusão da ilicitude do comportamento do arguido, nem que o mesmo tenha actuado com imputabilidade diminuída, falecendo, assim dois dos argumentos pelo mesmo apresentados. O crime de homicídio simples vem previsto no art.º 131º do Cód. Penal pela seguinte forma: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.” (sublinhado nosso) O crime é qualificado nos termos previstos no art.º 132º, nº 1 e nº 2, alínea j) do mesmo diploma quando: “1- Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. 2- É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…) j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;(…)” (sublinhados nossos) Quanto à caracterização do tipo legal do crime de homicídio, constatamos que o elemento objectivo do tipo consiste em matar outra pessoa e a acção típica traduz-se num acto que seja apto a causar a morte. Já o elemento subjectivo é preenchido com qualquer uma das modalidades do dolo, directo, necessário ou eventual, previstas no art.º 14º do Cód. Penal. O bem jurídico protegido pela incriminação é a vida humana, consumando-se o crime com a produção do resultado morte. Da matéria de facto provada resulta que o arguido ao atingir a vítima com três tiros disparados com uma arma de fogo, provocando-lhe lesões físicas de tal modo graves que lhe causaram a morte, sabendo que a sua conduta era apta a provocar a morte da vítima e querendo fazê-lo, preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio, este último na modalidade de dolo directo. Posto isto, cumpre apreciar se estão verificadas as circunstâncias qualificativas do homicídio previstas na alínea j) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal. O art.º 132º do Cód. Penal qualifica o crime de homicídio em virtude do maior grau de culpa que considera existir sempre que a morte seja causada em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, enumerando, a título exemplificativo, algumas dessas circunstâncias, as quais não são de funcionamento automático, querendo com isto significar que uma vez verificadas, não se pode desde logo concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. No nosso ordenamento jurídico o crime de homicídio qualificado não é um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, constituindo antes uma forma agravada de homicídio, em que a morte é produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade. Quanto à caracterização do crime de homicídio qualificado, pode ver-se o expendido no Acórdão do STJ datado de 3/04/19, proferido no processo nº 38/17.9JAFAR.E1.S1, também relatado por Manuel Augusto de Matos, in www.dgsi.pt, em moldes que subscrevemos: “(…) O artigo 132 do Código Penal define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação em relação ao tipo do artigo 131 do mesmo diploma. Objectivamente o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no artigo 131 funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão. O critério da qualificação está definido no nº 1 do artigo 132 e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade, ou perversidade, estão enumeradas no nº 1 do mesmo normativo. A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contem elementos da culpa que integra factores relativos á actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento. O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar especial censurabilidade àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação ». Como se consigna em recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-09-2017, proferido no processo n.º 596/12.4JABRG.G2.S1 – 3. ª Secção, também relatado pelo ora relator, o homicídio qualificado constitui, como tem sido unanimemente apontado, um tipo especial de culpa agravada, evidenciado nas circunstâncias enunciadas no n.º 2, que têm carácter exemplificativo, aí se referenciando contributos da doutrina e da jurisprudência relativos à qualificação do crime. Assim, segundo FIGUEIREDO DIAS, «a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2». E que «a verificação desses elementos, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; por outro lado, a sua não verificação não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador», concluindo: «Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leitbildtatbestand (…) – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º- 2». E a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem mantido uma interpretação do tipo do artigo 132.º do Código Penal como sendo baseado estritamente na culpa mais grave, revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto do agente revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento, sendo ainda entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, como se dá nota no acórdão de 02-4-2008, proferido no processo n.º 07P4730, onde se referencia abundante jurisprudência sobre este tópico. No que especialmente releva para o caso agora em apreço, cumpre insistir, quanto à cláusula geral do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, que, subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta nas circunstâncias elencadas, o que motiva a agravação. Como considera TERESA SERRA, «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial, que existe quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores”. A especial perversidade supõe «uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade». Dominantemente, refere a autora, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto. Para FIGUEIREDO DIAS, «[o] especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da «especial censurabilidade ou perversidade» do agente. O pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. Segundo FERNANDO SILVA, a especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada. A especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento. O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto. Por fim, o entendimento de AUGUSTO SILVA DIAS segundo o qual «[h]á unanimidade na doutrina e jurisprudência nacionais em torno da ideia de que, em último termo, a qualificação do homicídio assenta num especial tipo de culpa: toda a punição por homicídio qualificado tem de passar pela comprovação da especial censurabilidade ou perversidade do agente (n.º 1) e isso exige uma ponderação final da atitude deste».(…)” No presente recurso é posto em causa o preenchimento pelo arguido da circunstância qualificativa referida na alínea j) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal, segundo a qual é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas. Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 580 e 581, o que está previsto nesta norma é a agravação do crime por premeditação, a qual revela uma atitude de elaboração mental e reflexão no propósito criminoso do agente, que merece uma censurabilidade acrescida da conduta, sendo indícios dessa atitude a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e a persistência na intenção de matar por mais de 24 horas. No caso em apreço, entendemos que esta circunstância qualificativa do crime de homicídio se encontra efectivamente preenchida, porquanto se apurou que o arguido, antes de se dirigir ao local do crime, municiou a sua espingarda caçadeira Benelli Armi-Urbino calibre 12 com pelo menos três cartuchos de calibre 12 e colocou roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção. Por outro lado, não foi feita prova de que o mesmo tivesse dormido mal e estivesse num estado de nervosismo exacerbado que lhe toldasse o raciocínio e as faculdades de inibição da prática de comportamentos criminosos. Pese embora da factualidade apurada não decorra necessariamente que o arguido formulou o seu desígnio criminoso e persistiu na intenção de matar por mais de 24 horas, o certo é que toda a sua actuação revela, pelo menos, frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados, o que é, por si só, suficiente para o preenchimento da circunstância qualificativa em apreço. Entendemos também que o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade, pois o facto de matar um sobrinho, que é um familiar chegado, com preparação antecipada dos meios para a prática do crime, motivado por razões de partilhas de terras e agindo na frente do filho da vítima e de um sobrinho que a vítima tratava como um filho, indicia uma maior energia criminosa, a qual fez com que o arguido tivesse vencido as contra-motivações éticas determinadas pelas relações de família e pelos padrões moralmente aceites na comunidade, actuando com especial persistência, intensidade e violência na prossecução do desígnio criminoso. A zona do corpo atingida – peito e cabeça e nesta, os olhos da vítima -, revela uma crueldade e uma intenção clara de desfigurar a vítima, para além de a matar. Dos vários tiros disparados pelo arguido, dois deles foram dados com a vítima já no chão, o que revela também uma vontade séria de matar. A conduta do arguido posterior ao homicídio da vítima é, por sua vez, indiciadora de uma frieza de ânimo especialmente preversa, dado que foi para casa, ligou para a PSP e esperou que o fossem buscar, tendo preparado previamente uma mala com roupa, medicamentos e artigos pessoais, antevendo a sua detenção. Tudo isto é subsumível no disposto no art.º 132º, nºs 1 e 2, alínea j) do Cód. Penal, porquanto do comportamento do arguido decorre que o mesmo se mostrou capaz de vencer as contra-motivações éticas inerentes à relação de parentesco que o ligava à vítima, formulou antecipadamente o desígnio de matar e disparou três tiros sobre a vítima, na frente de dois jovens, filho e sobrinho da mesma, em completo desrespeito e insensibilidade pela vida humana e revelando, efectivamente, especial censurabilidade e perversidade no prossecução do desígnio criminoso ( cf. neste sentido, entre outros, o decidido nos Acórdãos do STJ datados de 4/11/2015, proferido no processo nº 122/14.0GABNV.E1.S1, em que foi relator João Silva Miguel, e de 10/12/2020, proferido no processo nº 757/18.2JACBR.C1.S1, em que foi relator António Clemente Lima, in www.dgsi.pt ). A isto acresce a agravação da conduta do arguido por via do disposto no art.º 86º, nº 3 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02, que o mesmo não contestou. Conclui-se, assim, que não merece censura o enquadramento jurídico-penal dos factos efectuado no acórdão recorrido, devendo o recurso improceder também nesta parte”. 4. 2. 2. A isto que contrapõe o arguido? O arguido repete aqui os argumentos que invocou no recurso da decisão da 1.ª instância. Nada de novo traz. As discordâncias do arguido resumem-se ao seguinte: - não existe matéria suficiente para o facto provado que impõe a manutenção da resolução criminosa por um período superior a 24 anos; - o que se retira da factualidade discutida em audiência de discussão e julgamento é o inverso - o arguido propôs-se à prática do facto ilícito na manhã da data dos factos, e portanto não estamos a falar de um período superior a 12 horas, muito menos mais do que 24 horas; - desconhecendo-se o momento em que o arguido formou a intenção de matar, também há que a afastar a verificação da circunstância qualificativa da premeditação, ou seja, da circunstância prevista na parte final da alínea j) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal; - quanto à frieza de animo ou reflexão sobre os meios empregados, muito embora se reconheça que a mesma é susceptível de se mostrar objectivamente preenchida, face ao comportamento deliberado, aparentemente reflexivo, frio e persistente assumido pelo arguido, a verdade é que a conduta daquele terá de ser analisada e julgada, como atrás se deixou consignado, sem perder de vista a imagem global do facto; - vem provado que o arguido tem anomalias psíquicas, de acordo com os relatórios médicos juntos nos autos e de acordo com o relatório de medicina legal efetuados nos presentes autos e vem ainda provado que desde os anos 90 era acompanhado por psiquiatria e deveria tomar medicação para o efeito - que foi deixada de tomar bruscamente, apesar da sua necessidade para a toda a vida; - vem ainda provado que arguido e a vitima detinham quezílias devido a partilhas já há várias décadas, sendo estas constante alvo de diversos processos em Tribunal; - vem também provado que a vitima se encontrava no local a cumprir ordem judicial para realização de obras de acesso ao caminho para a casa do arguido, no âmbito desses mesmos processos de partilhas; - o quadro factual transcrito revela-nos que o arguido é portador de anomalia psíquica, caracterizada por fases depressivas, devendo usar medicação durante toda a sua vida; - daqui decorre que o arguido conquanto imputável, é portador de anomia que de algum modo afecta a sua capacidade de entender e de se determinar, circunstância que não pode deixar de influir no juízo de culpa sobre o seu comportamento delituoso, neutralizando a aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida; - a agravante encontra-se conexionada com a actuação calma ou imperturbada reflexão, no assumir pelo agente da resolução de matar a que se alia a firmeza dessa mesma resolução criminosa; - a actuação do arguido convoca um dos motivos mais habituais neste tipo de crime que é a procura da vingança; - não existe qualquer elemento probatório nem resulta da fundamentação da decisão recorrida qualquer circunstância que indique a premeditação e que o arguido tenha estado com a resolução criminosa no seu âmago durante mais de 24 horas; - o que resulta dos autos é que o arguido acordou sobressaltado durante a madrugado do dia 29 de Fevereiro de 2024, alucinando com a presença da vitima a rondar a sua habitação com uma pistola; - foi apenas naquela manhã por volta das 8h15 que o arguido viu a vitima e neste seguimento vai buscar a sua caçadeira e se dirige ao local onde a vitima se encontrava - cerca de 1 hora, até à prática dos factos; - face à experiência comum é curial a conclusão de que o arguido agiu sob o efeito do estado de espirito descontrolado, sem que naquele espaço de tempo tivesse a possibilidade duma reflexão serena sobre o seu propósito, não existindo aquela frieza e imperturbabilidade perante os factos mas sim um propósito tomado “a quente”. Como vimos a decisão recorrida manteve intacta e incólume a matéria de facto definida na 1.ª instância. E é sobre esta que importa, então, aplicar o Direito. Dispõe ao artigo 131.º CPenal, tipo fundamental, que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos”. Qualificando o crime de homicídio estabelece o artigo 132.º/1 que “se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.” E no n.º 2 enumera-se, exemplificativamente, circunstâncias suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou especial perversidade. Uma dessas circunstâncias é “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas”, constante da sua alínea j). O legislador, na tipificação do crime de homicídio qualificado, exige a verificação de um tipo de culpa agravado, densificada em conceitos relativamente indeterminados de “especial censurabilidade ou perversidade”, a qual se mostra indiciada nos exemplos padrão do nº 2 do artigo 132º, do Código Penal, cfr. Professor Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense, I, 2.ª edição, 49 e segs. Como refere o mesmo autor, ob e loc cit, 29, “(…) o pensamento da lei (…) é o de pretender imputar à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à «especial perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas”. Para a qualificação do homicídio utilizou o legislador a técnica legislativa dos exemplos-padrão, em enumeração exemplificativa, sendo que outras circunstâncias, em concreto, se podem evidenciar que revelem especial censurabilidade ou perversidade. E, por outro lado, não são de funcionamento automático, pois pode verificar-se qualquer das circunstâncias enumeradas e nem por isso poder concluir-se pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. Entendeu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.1.2010, Proc. 238/08.2JAAVR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt – como todos aqueles que adiante se citarão sem indicação de origem diversa - a verificação de um ou mais exemplo padrão não significa, automaticamente o preenchimento da culpa agravada prevista no n.º 1 do preceito. Como o contrário também é verdadeiro, isto é, podem existir outras circunstâncias não incluídas no n.º 2, que preencham essa culpa agravada, desde que sejam substanciais ou teleologicamente análogas às aí previstas, cfr. acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Março de 2015, processo 405/13.7 JABRG. “Trata-se de um tipo de culpa agravada de homicídio por força da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automático e não taxativo (no sentido da tese do tipo de culpa, desde logo Eduardo Correia e Figueiredo Dias na comissão de revisão do CP de 1966 (…)”, cfr. Professor Paulo Pinto Albuquerque, “Comentário ao Cód. Penal”, 4ª edição, Ed. Univ. Católica, 553, nota 2. Como se entendeu no acórdão deste Supremo Tribunal de 24.3.2022, processo 259/20, remetendo para Fernando Silva in “Direito Penal, Parte Especial, Os Crimes contra as Pessoas”, 3ª Edição, Quid Iuris, p. 44 e ss, “O crime de homicídio qualificado é, pois, uma forma agravada de homicídio em que a qualificação decorre da verificação de um particular tipo de culpa, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, que tem por referência o «desvalor de atitude» da conduta do agente, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 daquele artigo, critério generalizador aquele que traduz e se traduz na especial censurabilidade ou perversidade do agente que se prende essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada”. Refere o acórdão deste Supremo Tribunal de 12.7.2018, processo 74/16.2JDLSB, que estamos perante situações em que “(…) o agente tenha agido com culpa agravada, ou seja, que as concretas circunstâncias da sua conduta permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo susceptível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio”. Neste mesmo sentido, entendeu-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 2.10.2019, processo 3622/17.7JAPRT, que “no artigo 132.º trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”. O que é fundamental, conforme salienta Teresa Serra In Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Coimbra, 1972, 70 a 75, “é que se trate de um homicídio qualificado em circunstâncias que possam desencadear o efeito de indício de uma maior culpa”, defendendo que, “para aquilatar da especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do homicídio, por forma a que este seja considerado como qualificado e, por via disso, punido com pena agravada, impõem-se, num primeiro momento, saber se existe alguma das circunstância das enunciadas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal, enquanto indício daquela censurabilidade e perversidade e, num segundo momento, averiguar se perante as circunstâncias concretas do caso dos autos, e vista a estrutura valorativa em tal grau de gravidade dos factos em julgamento, que nos leve a crer que o aumento da culpa é em grau tão elevado que justifica a agravação subjacente ao homicídio qualificado”. De igual modo Figueiredo Dias, salienta que “a não verificação [das circunstâncias ou elementos, uns relativos aos factos, outros ao autor, elencados no n.º 2, indiciadores da especial censurabilidade ou perversidade] não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra ‘análogos’) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador (...) que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no artigo 132º/2”, ob e loc cit, 26, §2. E, no mesmo sentido, veja-se, ainda, acórdão deste Supremo Tribunal de 15.1.2019, processo 4123/16.6JAPRT e doutrina e jurisprudência aí citadas. As circunstâncias devem ser avaliadas no contexto de uma imagem global do facto agravada, que corresponda ao especial tipo de culpa que aqui se deve ter em conta e cujo fundamento assenta nas circunstâncias do facto e nas condições pessoais do agente, incluindo os traços da sua própria personalidade. Mas entende-se que só circunstâncias extraordinárias ou, então, um conjunto raro de circunstâncias possam anular o efeito do indício, cfr. Professor Figueiredo Dias/Nuno Brandão, ob e loc. cit., 56. O pensamento da lei é o de imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à especial perversidade aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas, cfr. Professor Figueiredo Dias/Nuno Brandão, ob e loc loc. cit., 29. Assim, a verificação de exemplo padrão do n.º 2 do artigo 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. É um indício, a ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. Exige-se, pois, que as concretas circunstâncias da conduta do agente permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo suscetível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio, como se sublinhou no acórdão de 27.11.2019, processo 323/18.2PFLRS, citado, cfr. acórdão do STJ de 15.02.2023, processo 1964/21.6JAPRT. Vem o arguido condenado por se ter considerado preenchida a previsão da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º, “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas”. Contempla este exemplo-padrão, sob o denominador comum da premeditação, a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. Trata-se de circunstâncias agravativas relacionadas com o processo de formação da resolução criminosa, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 3.11.2021, processo 3613/19.3JAPRT - retomando o que se disse nos acórdãos de 27.5.2020, processo 45/18.4JAGRD, de 5.7.2017, processo 1074/16.8JAPRT, de 15.1.2019, processo 4123/16.6JAPRT, de 29.4.2020, processo 16/05.0GGVNG, em ECLI:PT:STJ:2020:16.05.0GGVNG.S1. “A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo”. “Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha”, cfr. Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 2008, 2ª edição, 60 e ss. O Professor Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, 4ª edição, escreve que “A premeditação revela uma atitude de elaboração mental e reflexão no propósito criminoso do agente, que merece uma censurabilidade acrescida da conduta”. A premeditação, reveladora, indiciariamente, de especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime, surge, assim, materializada em três situações - a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar. A verificação desta circunstância agravante não exige a verifica-se cumulativa da frieza de ânimo, da reflexão sobre os meios empregados e da persistência da intenção de matar por mais de 24 horas, como resulta, desde logo, do uso da disjuntiva “ou” entre as expressões “reflexão sobre os meios empregues” e “ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas. Vejamos, então, as apontadas 3 situações. A frieza de ânimo vem sendo definida pela doutrina como a atuação “a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana”, cfr. Código Penal”, II, 2ª edição, Leal Henriques e Simas Santos, nota ao artigo 132.º. A reflexão sobre os meios empregados, por seu lado, consiste na escolha ponderada pelo agente dos meios de atuação que, por força do efeito letal que possuem, facilitem a execução do crime projectado ou proporcionem mais probabilidades de êxito, cfr. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 3ª ed., II, 27 e 28. Traduz-se, deste modo, na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar, significando, “um amadurecimento temporal sobre o modo de o praticar, a congeminação serena e perdurante no campo da consciência da ideação de matar e dos meios a usar”, no dizer do Acórdão do STJ, de 14.05.2009, processo 389/06.8GAACN. A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita), traduz-se na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar e na persistência no propósito de matar por mais de 24 horas, tempo considerado suficiente para o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do acto, cfr.. Professor Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal”, I, 2ª ed., 83 e 84 e Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, 83 e 84. Sobre esta alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º CPenal, tem este Supremo Tribunal, desde sempre, sido chamado, em muitas e variadas situações a pronunciar-se, em sentido uniforme. Entre eles aqueles citados na decisão recorrida - acórdãos de 4.11.2015, processo 122/14.0GABNV e de 10.12.2020, processo 757/18.2JACBR. E tem-no feito de forma reiterada e uniforme, da forma que se passa a resumir, quanto ao essencial da caracterização e preenchimento da norma. Entendendo a frieza de ânimo, - como a actuação a sangue-frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana, constituindo frieza de ânimo o processo reflexivo, lento, ponderado e calmo na preparação do projeto criminoso, nomeadamente na seleção dos meios a utilizar e na escolha daquele que menos possibilidade de defesa deixa à vítima; - como envolvendo certas características como calculismo, tibieza, impassividade, indiferença ou insensibilidade à dor, a sentimentos ou emoções de outrém, firmeza de reflexão e amadurecimento, irrevogabilidade e intensidade da resolução criminosa e na correspondente execução do crime; - como remetendo para um estado de serenidade e calma, aberto à ponderação, que mostre que o agente teve oportunidade para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a desistir do seu desígnio homicida, residindo a justificação da agravação na insensibilidade a essas contra-motivações; - como verificada quando o crime tenha sido praticado a coberto de evidente sangue-frio, congeminado por forma a denotar insensibilidade, indiferença pelos outros e profundo desrespeito pela vida alehia; - como tendo lugar sempre que interceda um hiato temporal entre a ideação do meio a usar e a passagem à acção, por seu intermédio; - sempre revelando uma vontade criminosa particularmente intensa e, portanto, de especial perigosidade. “A frieza de ânimo consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução persistente na resolução”, acórdãos de 15.4.1998, processo 74/98 - 3.ª Secção e de 17.2.2005, processo 4216/04 - 5.ª Secção, in www.pgdl.pt. “O STJ tem sempre reconduzido o conceito de frieza de ânimo à ideia de calma ou imperturbada reflexão no assumir da intenção de matar, evidenciando modo frio, indiferente ao valor da vida da vítima, a quem não deu condições de defesa, revelando uma forte intensidade da vontade criminosa, sangue frio, calma, firme e fria actuação, absolutamente indiferente ao resultado, total insensibilidade à vida do ofendido, denotando o somatório de condições envolventes e concomitantes do crime uma imagem global agravada, uma culpa acrescida, a reclamar punição mais severizada. A reflexão nos meios empregados há-de consistir num estudo aprofundado dos meios de execução, na escolha dos que mais idóneos se mostrem à execução do crime, maior êxito trazendo à sua realização, por forma que enfraqueça, vulnerabilize a capacidade de defesa da vítima, suprimindo-lhe ou reduzindo-lhe a capacidade de defesa”, acórdão de 23.2.2005 in www.pgdl.pt “A frieza de ânimo tanto pode referir-se ao processo de formação da vontade de cometer o crime como à sua concretização. O “agir”, na literalidade da alínea, envolve a oposição e contrariedade às contra-motivações éticas e jurídicas que estão na base das proibições legais de tirar a vida a outrem e do valor que a ordem jurídica atribui à pessoa humana, apesar de uma janela de oportunidade proporcionadora de abandono dessas contrariedade e oposição, e uma atuação criminosa “de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e desprezo pela vida, um comportamento traduzido na firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução criminosa”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 6.4.2006, processo 362/06. “No entendimento corrente e na esteira de Beleza dos Santos, in RLJ, ano 67.º, 306 e ss., a frieza de ânimo titula firmeza, propósito, tenacidade, irrevogabilidade da decisão, indiciada pela persistência durante um apreciável espaço de tempo – ou seja, uma forte vontade criminosa – e preenchendo o campo da consciência, o agente age com frieza de ânimo, quando seleciona os meios a utilizar na agressão, quando reflecte na opção pelo meio mais adequado, repudiando o que menos probabilidade de êxito se lhe oferece, de um ponto de vista pragmático, por ter em mente o que menos possibilidade de defesa representa para a pessoa da vítima”, acórdão de 17.1.2007 processo 06P3845. “A frieza de ânimo é uma acção praticada a coberto de evidente sangue-frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo de preparação e execução do crime, que maquinou, por forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humanas” “A formulação da agravante da frieza de ânimo encontra o sue fundamento na “firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada, numa forte intensidade criminosa; a “mora habens” mostra não só que o criminoso teve uma longa oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos, transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo, que a força criminosa é de tal maneira intensa que o agente, largo tempo depois de tomar a resolução, pratica o respectivo crime sem hesitação, como mero déclancher da decisão tomada prévia e longinquamente – é a doutrina do Professor Eduardo Correia, que norteou a inclusão típica daquela agravante, Direito Criminal, II, 301,303”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 26.9.2007, processo 07P2591. “Frieza de ânimo traduz-se na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto”, acórdão deste Supremo Tribunal de 6.01.2010, processo 38/08.2JAAVR, remetendo para, entre muitos outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 17.4.2013, processo 237/11.7JASTB; de 13.11.2013, processo 2032/11.4JAPRT; de 19.02.2014, processo 168/11.0GCCUB e de 12.03.2015, processo 405/13.7JABRG. “A circunstância da frieza de ânimo traduz-se numa actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e forma a sua vontade de modo frio, denotando sangue-frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima ou seja, quando o agente tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto”, acórdão de 6.1.2020, processo 238/082JAAVR. “(…) Trata-se de uma forma de premeditação, e é uma qualificativa que, como as demais catalogadas nas alíneas do n.º 2 do artigo 132º, não funciona automaticamente, pois para qualificar o homicídio terá de transportar culpa agravada, isto é, a ideia condutora agravante que lhe subjaz e que traduza a especial censurabilidade ou especial perversidade exigida pelo nº 1 (…) Para que se considere qualificativa a frieza de ânimo mister é que, na ponderação da globalidade, tanto do processo de formação da vontade criminosa como do modo de execução do facto e da atitude do agente, em concreto se conclua por um plus de culpa do agente, face ao tipo matriz, integrador da especial censurabilidade ou da especial perversidade (…) Mas para a verificação da circunstância qualificativa da frieza de ânimo não se exige que a vontade de cometer o crime de homicídio se tenha formado com grande planificação ou com grande antecipação temporal porque esses atributos já são os pertinentes ao preenchimento dos outros dois indícios da premeditação, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. Basta o hiato temporal suficiente para o agente se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a poder desistir dos seus desígnios”, cfr. acórdão de 15.12.2022, processo 367/21.7PCPDL. De todas estas enunciações resulta que, para verificação da culpa agravada reveladora de especial perversidade ou censurabilidade, numa visão global do facto, se torna necessário que, para que se possa concluir que o agente atuou com “frieza de ânimo”, com “reflexão sobre os meios empregados”, das suas concretas circunstâncias resulte que este, no processo de formação e execução da sua vontade criminosa, com a intenção determinada de causar a morte da vítima, persistente num significativo período de tempo que lhe permite atuar de outro modo, agiu de forma pensada, calculada, ponderada, firme e reveladora de particular indiferença, insensibilidade e desprezo pela vida humana. Assim se devendo, em concreto, formular o juízo de censura na base de um especial nível de gravidade, para além do plano de censurabilidade que a lesão da vida humana em si mesma encerra, sob pena de qualquer comportamento causador da morte, pela gravidade que, por definição, comporta, se reconduzir, em regra, a formas qualificadas de homicídio agravado, com risco de esvaziamento da previsão típica fundamental do crime de homicídio. Perante este exemplo-padrão e a interpretação que dele vem sendo efectuada, há que verificar se, no caso, ocorre a circunstância de qualificação do crime de homicídio prevista na alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º CPenal, indiciadora de especial censurabilidade ou perversidade. Isto é, importa avaliar se pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias em que a morte foi causada, tanto no processo de formação da vontade criminosa, como em particular no modo de execução do facto, e da atitude do agente nele expressas, se deve considerar que estas, pela sua especial gravidade, revelam que o arguido formou e executou a vontade de matar de modo frio, imperturbável, firme e inabalável, com persistência da resolução criminosa, denotando total ausência de emoções perante a saúde, a integridade física e a vida humana e destituída de qualquer tipo de respeito ou compaixão perante o sofrimento da vítima, com violência extrema na busca sinistra de soluções de imposição de sofrimento crescente, muito para além do que seria necessário para retirar a vida, demonstrando desprezo pela vida humana numa atitude profundamente intolerável, evidenciando, assim, especial perversidade ou censurabilidade. A verificação da alínea j) fundamenta-se na circunstância de resultar dos factos provados que, - em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 29 de fevereiro de 2024, o arguido, movido pelas referidas desavenças familiares mantidas com a vítima sobre a serventia do terreno, decidiu pôr termo à vida de FF; - para o efeito, o arguido municiou a sua espingarda caçadeira Benelli Armi-Urbino calibre 12 com pelo menos três cartuchos de calibre 12 com as inscrições “Sauvestre, Balle Fleche, 27 20 e 70mm” no corpo e “12*12*12*12*” na base, e colocou roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção; - na concretização do propósito que formulara anteriormente, o arguido, pelas 8 horas e 15 minutos do dia 29 de fevereiro de 2024, muniu-se da arma nas condições acima referidas e deslocou-se na sua viatura com a matrícula V1 até à serventia do terreno que fica a 100 metros da sua habitação, local onde sabia que a vítima se encontrava a realizar as referidas obras; - aí chegado, e mesmo apercebendo-se que a vítima se encontrava no terreno acompanhado de CC, seu filho, e EE, seu sobrinho, saiu do veículo empunhando a espingarda caçadeira na direção daquela; - de imediato, a cerca de 17 metros da vítima, efetuou um disparo que lhe atingiu a zona do ombro direito e do tórax, tendo o mesmo caído ao chão de costas; - já com a vítima prostrada no chão, efetuou dois disparos na face da vítima, atingindo um a zona orbitária esquerda e outro a zona orbitária direita. Será de referir, desde já, que se não provou - como alega o arguido - que tivesse dormido mal e estivesse num estado de nervosismo exacerbado que lhe toldasse o raciocínio e as faculdades de inibição da prática de comportamentos criminosos. Agiu, seguramente, com preparação antecipada dos meios para a prática do crime. Mas é certo que se não provou quer entre a formulação do seu desígnio criminoso e a sua actuação haja mediado mais de 24 horas. Donde apenas pode aqui estar em causa a primeira e a segunda parte da previsão da norma – agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados. E, já não a terceira parte da norma – ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas. Naturalmente que será aqui de desprezar – em termos de especial censurabilidade ou perversidade - o facto de a vítima ser sobrinho do arguido, um familiar chegado, como se refere na decisão recorrida. Ou de ter actuado motivado por razões de partilhas de terras. Ou de ter actuado na presença do filho e de um sobrinho da vítima. Ou de ter atingido a vítima no peito, na cabeça, nos olhos. Ou de dois dos três tiros terem sido desferidos com a vítima já caída no chão. Ou, mesmo, pelo facto de, posteriormente, ter ido para casa, ter ligado à PSP e ter esperado que o fossem buscar. Decisivamente indiciador da mencionada frieza de ânimo e da reflexão sobre os meios empregados é o facto de, - pelo menos na véspera ter decidido colocar termo à vida da vítima; - tendo, para o efeito, municiado a sua espingarda caçadeira Benelli Armi-Urbino calibre 12 com pelo menos três cartuchos de calibre 12 com as inscrições “Sauvestre, Balle Fleche, 27 20 e 70mm” no corpo e “12*12*12*12*” na base, e colocou roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção; - na concretização do propósito que formulara anteriormente, o arguido, pelas 8 horas e 15 minutos do dia 29 de fevereiro de 2024, muniu-se da arma municiada e deslocou-se na sua viatura com a matrícula V1 até à serventia do terreno que fica a 100 metros da sua habitação, local onde sabia que a vítima se encontrava a realizar as referidas obras e de aí o ter alvejado. Não oferece dúvida que a matéria de facto provada, tendo em consideração o tempo que decorreu entre a tomada de resolução e a concretização da intenção de matar a vítima, a elaboração do plano homicida, a preparação da mala com roupa e medicamentos para estar preparado para enfrentar as consequência imediatas, com a sua detenção, subsequente, depois de tentar alertar as autoridades, permite, exige a conclusão de que o arguido agiu com “frieza de ânimo”, e actuou “com reflexão sobre os meios empregados”. Naturalmente sem a persistência da intenção de matar por mais de 24 horas. Estas circunstâncias mostram que, no processo de formação da resolução criminosa, de preparação e de execução do crime, em conformidade com um plano previamente definido, e em execução desse plano, o factor tempo, durante uma noite, pelo menos, a reflexão, a escolha do modo, do instrumento com que se muniu e que municiou previamente, do tempo e do local desempenharam um papel fundamental e que o arguido, agindo assim, o fizeram de forma calculada, firme, serena e com sangue-frio. Não merecem, pois, as decisões das instâncias censura na qualificação do homicídio na consideração da contextualizada e concreta actuação do arguido. Actou com frieza de ânimo e com reflexão sobre os meios empregados, que se revela quer na antecipação da resolução, quer na persistência do propósito, antecipada e pensadamente assumido, quer na prévia preparação e planeamento antecipado, quer no estudo e intencionalidade da escolha do adequado local da acção, quer em escolha pensada no prévio e preparado municiamento com arma, em actuação de verdadeiro profissional visando proceder a uma autêntica execução, com total insensibilidade e com o maior desprezo pela vida humana. Revelando sangue-frio, espírito insensível, imperturbada calma e reflexão. Numa demonstração, manifestamente, firme, tenaz e irrevogável da resolução criminosa. A merecer especial censurabilidade e especial perversidade porque as circunstâncias da ação revelam ideia condutora agravante, desvalor da ação superior ao normal e forte intensidade da vontade criminosa. O arguido, em toda esta acção, teve tempo e oportunidade para reflectir sobre a sua actuação e mesmo assim não se absteve de continuar o seu desígnio de matar o sobrinho, persistindo no mesmo, indiferente às consequências do seu acto. É certo que ambas as aludidas concretas circunstâncias qualificativas não dependem de largo hiato temporal entre a resolução e a execução. O hiato temporal é só o necessário para que o agressor se deixe imbuir dos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a desistir do seu desígnio. E tal janela do tempo para que o arguido recorrente optasse pela oportunidade de inibição da execução esteve presente, pois que passou um anoite, pelo menos, entre a formação do desígnio e a sua execução. Nessa janela de oportunidade, no tempo de suposta serenidade de ânimo, em sua casa, o arguido, ao invés de optar pela omissão de actuação, pensadamente decide agarrar na arma e municiá-la em vista do seu pensado propósito de matar o sobrinho. E, de ademais ter colocado roupas, bens pessoais e medicação no interior de um saco, antevendo a sua detenção. Revelando sangue-frio, espírito insensível, imperturbada calma e reflexão para aguardar pelo dia seguinte para o concretizar. Toda a sua actuação materializa uma forma especialmente desvaliosa no cometimento do acto criminoso e revela uma especial perversidade, as quais permitem concluir por um especial e agravado juízo de censura. Para o afastamento do tipo incriminatório em referência não concorrem quaisquer condições ou circunstâncias aptas a ditar o afastamento da ilicitude ou da culpa do agente nem falta qualquer condição de punibilidade, não se mostrando quaisquer outros factos que preencham as restantes qualificativas previstas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal. Não assiste, pois, qualquer razão ao arguido na pretendida alteração da qualificação jurídica. Ponderando todas estas circunstâncias no seu conjunto, que transmitem a imagem global do facto, não há como não se concluir que se mostram preenchidas as duas primeiras hipóteses normativas enumeradas na alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, ou seja, a “frieza de ânimo” e a “reflexão sobre os meios empregados”. Está, pois, justificado o entendimento sufragado as instâncias acerca da verificação da especial perversidade e censurabilidade a que se refere o artigo 132.º do Código Penal, devendo, em consequência considerar-se preenchido o tipo de culpa agravado do crime de homicídio pelo preenchimento do exemplo-padrão da alínea j) do n.º 2 deste preceito, no segmentos apontado, da actuação com frieza de ânimo e com reflexão dos meios empregados. Em consequência do que, com estes fundamentos, se justifica que, nesta parte, seja negado provimento ao recurso 4. 3. 1. A fundamentação da decisão recorrida. “O arguido veio também impugnar a pena concreta que lhe foi aplicada, de 23 anos de prisão, por a considerar desadequada e excessiva, defendendo que lhe devia ter sido aplicada uma pena de prisão inferior, porquanto: - tem 67 anos de idade; - durante toda a sua vida, foi uma pessoa trabalhadora, tendo imigrado para a Suíça; - nunca teve qualquer contacto com a justiça, não tendo registo criminal; - encontra-se socialmente integrado, embora seja uma pessoa recatada, fazendo a sua vida em liberdade dentro da sua habitação, apenas tendo alguns convívios semanais; - em meio institucional tem revelado condutas adequadas, revelando uma personalidade que não refuta a normatividade vigente; - sofre de uma anomalía psíquica grave, tendo tido alguns traumatismos cranianos, derivados de acidentes na Suíça e sendo acompanhado em psiquiatria desde os anos 90. Conclui que todos estes factores deveriam ter sido tomados em conta para a determinação da pena concreta, denotando que os factos foram um infeliz acontecimento isolado na vida do agente, sendo que uma pena tão longa, de 23 anos, perto do limite máximo permitido por lei, não permite de forma alguma alcançar a finalidade das penas no seu efeito de reintegração do agente da sociedade. Mais uma vez aqui se impõe reforçar que não foi feita qualquer alteração à matéria de facto fixada na decisão recorrida. Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes: “ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena 1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. 3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.” Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. As finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena. Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente. Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96). Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.» Para Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, § 280, pág. 214 e nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena». No entanto, do que se trata agora é de sindicar as operações feitas pelo Tribunal a quo com essa finalidade. Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não há nada que corrigir. Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.” Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “ A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que: “ Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.” Voltando ao caso dos autos, o acórdão recorrido, fundamentou a aplicação da pena em apreço pela seguinte forma: “(…) Como já acima se deixou expresso, à prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo artigo 131.º e 132.º, n.º 1 e 2 alínea j), do Código Penal, agravado pelo artigo 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, corresponde uma pena de prisão entre 16 anos e 25 anos. As necessidades de prevenção geral demandadas pelo crime estão, intrinsecamente, ligadas ao facto de ser um crime que atenta contra o bem supremo, assim como pela prevalência com que tais crimes são praticados em consequência de desavenças familiares. As necessidades de prevenção especial encontram-se num patamar diminuído relativamente às expendidas acima, designadamente por ao Arguido não lhe ser detetada uma personalidade especialmente violenta, sem exibir qualquer averbamento no certificado do registo criminal. Importa ponderar, outrossim, (i) o grau de ilicitude dos factos só pode ser reputado de muito elevado, visto o modo de perpetração do crime: AA desloca-se ao local com o propósito de tirar a vida ao seu sobrinho e a sua ação não é refreada pela presença do filho e do sobrinho no local. Mais, empreende os disparos numa clara equivalência com o ato da caça, isto é, um primeiro tiro a uma distância de segurança e dois outros em linear ato de execução; (ii) a intensidade dos respetivos elementos subjetivos, cumprindo salientar as circunstâncias já referenciadas quanto ao dolo direto; (iii) os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos determinantes devem ser devidamente valorados, assumindo aqui relevância, e não havendo pejo em afirmá-lo, a frieza demonstrada quanto à projeção da vítima enquanto mero objeto, plenamente patente quando o único remorso evidenciado no final é autocentrado no afastamento dos netos provocado pela prisão. Por outro lado, cabe atentar na justificação que o Arguido procura encontrar nas desavenças familiares perfeitamente espúrias e irrelevantes; (iv) as condições pessoais do Arguido é de evidente estabilidade pessoal; (v) a conduta anterior e posterior revela traços de personalidade adequados à vivência em sociedade, pese embora a dificuldade da gestão emocional quanto a aspetos que frustrem as suas expectativas. Tudo visto e ponderado, afigura-se justo, adequado e razoável, em face da personalidade, da culpa do arguido AA e bem assim das invocadas razões de natureza preventiva, porque só a estas finalidades deve o julgador recorrer em sede de escolha e preferência por uma ou outra pena, fixar a pena em 23 anos de prisão, estando assim situada no último terço, como deve, mas abaixo do máximo legal, vistas as condições pessoais do Arguido, sopesada igualmente a sua idade, daqui se inferindo que foi pautando a sua vida de acordo com o dever ser jurídico. (…)” Analisada a decisão recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida da pena, não ultrapassou os limites da moldura da culpa do agente e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial. No crime de homicídio são muito intensas as exigências de defesa do ordenamento jurídico e da paz social, dada a extrema sensibilidade da comunidade em relação aos mesmos e a premente necessidade de os prevenir, uma vez que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é, de entre todos, o mais elevado, ou seja, a vida. Com efeito, a criminalidade especialmente violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume uma preocupação comunitária crescente, pelo que são muito prementes as necessidades de prevenir a prática deste tipo de crimes, a fim de reforçar a confiança da colectividade na lei e de garantir a tranquilidade e a segurança do respeito pela vida humana, sobretudo em situações relacionadas com quezílias familiares e de vizinhança ou em que são utilizadas armas de fogo, como a dos autos. No presente caso é também elevado o grau de ilicitude da actuação do recorrente, revelado, desde logo, pelo modo de execução do crime, tendo o arguido agido também com dolo directo. O recorrente não tem antecedentes criminais, elemento que foi positivamente ponderado no acórdão da 1ª instância, não obstante tal circunstância seja quase sempre a regra em crimes de homicídio. Apesar da objecção do recorrente, o Tribunal a quo ponderou todas as suas circunstâncias de vida. De acordo com a matéria de facto provada, inexistem, no percurso vivencial do arguido, situações reveladoras de comportamento agressivo ou violento, sendo a situação aqui em causa inédita em face do seu comportamento dominante. No entanto, pese embora a violência e a intensidade da conduta criminosa do arguido, este não demonstrou qualquer arrependimento, nem compaixão pela vítima, nem pelos seus familiares, em especial os que presenciaram o crime. Nestes termos, salientando-se as exigências de prevenção geral que aqui se fazem sentir, tendo presente todo o percurso de vida do arguido, consideramos que se mostra justificada a pena de 23 anos de prisão que lhe foi aplicada, a qual satisfaz adequadamente as exigências de prevenção geral e, não obstante ser uma pena elevada, é ainda consentida pela culpa do agente. Em face de tudo o exposto, considera-se não ser de alterar a pena concretamente aplicada nos autos, improcedendo também neste tocante o recurso”. 4. 3. 2. As razões da discórdia do arguido. Como vimos já, também aqui o arguido repete os mesmos argumentos que invocou no recurso da decisão da 1.ª instância. E defende que operada a alteração da qualificação jurídica por si propugnada, a moldura penal abstracta passará a ser de prisão de oito a dezasseis anos, pelo que sempre se teria de reavaliar a pena aplicada. Esta afirmação encerra em si mesma um assaz evidente equívoco. Com efeito é certo que o crime de homicídio simples é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos. É certo que o crime de homicídio qualificado é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos. No entanto no caso concreto ocorre, ainda a agravação da pena prevista no artigo 86.º/3 da Lei das Armas, aprovada pela Lei 572006. Que o arguido nunca questionou. Que se verifica mesmo que o arguido não seja condenado pelo crime de detenção de arma proibida. Com efeito. Dispõe o referido artigo 86.º/3, que, “as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”. E esclarece o n.º 4 que, “para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente”. Resultaram estas disposições das alterações à Lei n.º 5/2006 introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio, que teve origem na Proposta de Lei n.º 222/X (4.ª)37, a qual, na Exposição de Motivos as justifica nos seguintes termos: “Todos os crimes praticados com armas passam a ser objecto de uma agravação especial de um terço, nos seus limites mínimo e máximo. Esta regra funciona de acordo com um princípio de subsidiariedade e com respeito pelos princípios penais e processuais penais, pelo que a agravação só se aplica se outra, mais grave, não estiver estabelecida e se o uso de arma não constituir já um elemento do tipo de crime.» O n.º 3 do artigo 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar a uma agravação mais elevada; a agravação não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de acionar efetivamente essa outra agravação (…) O uso de arma, comportando um fator de agravação da ilicitude em função da perigosidade para um bem jurídico ou para uma série de bens jurídicos criminalmente protegidos, não constitui elemento típico do crime de homicídio; sendo um crime de execução livre, ao tipo de homicídio é indiferente a forma como o resultado morte é provocado (…). Não sendo o uso de arma elemento do tipo de crime de homicídio, e não levando, no caso, ao preenchimento de circunstância qualificativa do tipo de crime do artigo 132.º, não há fundamento para afastar a agravação prevista no artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas”. E, assim, a moldura penal abstracta correspondente ao crime pelo qual o arguido vem condenado, não obstante a apontada agravação, atento o limite estabelecido no artigo 41.º/2 e 3 CPenal não podendo no seu limite máximo ultrapassar os 25 anos de prisão, é, no seu limite mínimo elevada para 16 anos de prisão. E a moldura pena abstracta correspondente ao crime pelo qual o arguido defende dever ser condenado é de 8 a 16 anos de prisão. Como vimos, defendendo o arguido a redução da pena, desde logo, com base na alteração da qualificação jurídica e tendo-se julgado improcedente esse segmento do recurso, fica desde logo, prejudicada a pugnada diminuição da pena, sequencial à alteração da moldura penal abstracta, por via da – improcedente - desqualificação do crime. Não obstante, mesmo sem aquele argumento, o arguido pretende, ainda assim ser a pena excessiva, também, aqui repetindo as razões aduzidas no recurso para a Relação, “devendo a mesma ser manifestamente reduzida”. Como é sabido a questão da medida da pena não é do conhecimento oficioso por parte do tribunal de recurso. Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena, o juiz serve-se do critério global contido no artigo 71º C Penal, estando vinculado aos módulos – critérios de escolha da pena constantes do preceito. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar. O dever jurídico, substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo da decisão sobre a determinação da pena. Acerca da questão da cognoscibilidade, controlabilidade da determinação da pena, no âmbito do recurso, há que dizer que a intervenção do tribunal nesta sede, de concretização da medida da pena e do controle da proporcionalidade no respeitante à sua fixação concreta, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada. Vem-se entendendo que se pode sindicar a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada. Com efeito, o recurso não se destina a proceder a uma nova determinação da pena, mas, apenas, a verificar o respeito por aqueles critérios que presidem à sua determinação, com eventual correção da medida da pena aplicada se o caso a justificar. Dispõe o artigo 40.º C Penal - diploma a que pertencerão as disposições legais doravante citadas sem menção de origem - que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, n.º 1 e, que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, n.º 2. As finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º CPenal, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas: a formulação da norma reveste a “forma plástica” de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições, cabe ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz. A norma do artigo 40.º CPenal condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, sendo a culpa o limite da pena, mas não o seu fundamento. Por sua vez, nos termos do artigo 71º/1 e 2 C Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele. Considerando, nomeadamente, nos termos do n.º 2 desta norma: “a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência: c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”. A este processo deve presidir uma preocupação de tratamento justo do caso concreto, adequado à vontade e intenções da lei, que haverá que passar pela escolha de reacção sancionatória com aptidão e eficácia bastantes à ideal/tendencial protecção do bem jurídico violado e à dissuasão da prática de novos crimes, constituindo a retribuição justa do mal praticado, dando satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade e contribuindo, na medida do possível, para a reinserção social do delinquente. A culpa constitui, assim, o limite inultrapassável do quantum da pena, dentro é certo da sub-moldura da prevenção geral e ponderadas as necessidades que o agente apresente em sede de prevenção especial. Esta medida concreta da pena a aplicar ao arguido, tendo em atenção que a mesma assenta na “moldura de prevenção”, cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do quantum da pena imprescindível, no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, deve ser encontrada dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, artigos 40º/2 e 71°/1 CPenal. Isto é, se a culpa constitui o fundamento e o limite da pena, as suas finalidades são a prevenção geral e especial. O modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é, como ensina o Professor Figueiredo Dias, “aquele que comete à culpa a função, única, mas nem por isso menos decisiva, de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral, de integração, a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dento da referida “moldura de prevenção”, que sirva melhor as exigências de socialização ou, em casos particulares, de advertência ou segurança do delinquente” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, 186-187. A medida da pena é determinada a partir do que resulta dos factos provados (e do que deles se pode deduzir) e não a partir de considerações feitas pelo recorrente que não se extraem ou que não encontrem apoio nesses mesmos factos dados como provados. O arguido coloca aqui em causa, não tanto a violação de qualquer segmento da norma atinente com as circunstâncias, factores para a operação de determinação da medida da pena, mas sim, com o carácter excessivo da pena, chamando a atenção para determinadas circunstâncias que no seu entendimento mereceriam outra ponderação e para o facto de que com tal pena - desajustada em relação a casos similares e, por isso, também inconstitucional - fica comprometida a sua futura reinserção, pois que sairá em liberdade aos 90 anos de idade. Como vimos, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente, desde logo, atendendo-se a todas as circunstâncias que deponham a seu favor ou contra ele. Vejamos. Na decisão recorrida valorou-se o seguinte: - o elevado o grau de ilicitude da actuação do recorrente, revelado, desde logo, pelo modo de execução do crime, tendo o arguido agido também com dolo directo; - o facto de o arguido não ter antecedentes criminais; - as muito intensas exigências de prevenção geral, de defesa do ordenamento jurídico e da paz social, dada a extrema sensibilidade da comunidade em relação a este crime, a premente necessidade de o prevenir, uma vez que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é, de entre todos, o mais elevado, ou seja, a vida; - a criminalidade especialmente violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume uma preocupação comunitária crescente, pelo que são muito prementes as necessidades de prevenir a prática deste tipo de crimes, a fim de reforçar a confiança da colectividade na lei e de garantir a tranquilidade e a segurança do respeito pela vida humana, sobretudo em situações relacionadas com quezílias familiares e de vizinhança ou em que são utilizadas armas de fogo, como a dos autos. A isto volta o arguido a contrapor o facto de, - ter 67 anos de idade; - durante toda a sua vida, foi uma pessoa trabalhadora, tendo imigrado para a Suíça; - nunca teve qualquer contacto com a justiça, não tendo registo criminal; - encontra-se socialmente integrado, embora seja uma pessoa recatada, fazendo a sua vida em liberdade dentro da sua habitação, apenas tendo alguns convívios semanais; - em meio institucional tem revelado condutas adequadas, revelando uma personalidade que não refuta a normatividade vigente; - sofre de uma anomalia psíquica grave, tendo tido alguns traumatismos cranianos, derivados de acidentes na Suíça e sendo acompanhado em psiquiatria desde os anos 90. E, assim, afirma que, - todos estes factores deveriam ter sido tomados em conta para a determinação da pena concreta, denotando que os factos foram um infeliz acontecimento isolado na vida do agente, atendendo até ao seu registo criminal e à sua idade; - pode-se emitir um juízo de prognose favorável à sua reinserção social em liberdade, e por isso, face à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste; - uma pena tão longa, de 23 anos, perto do limite máximo permitido por lei, não permite de forma alguma alcançar a finalidade das penas no seu efeito de reintegração do agente da sociedade; - atendendo à idade e à pena concreta em que foi condenado, o mesmo sairá em liberdade quando tiver 90 anos, o que será francamente inexpectável, frustrando-se por completo a sua reintegração na sociedade. E, conclui que, - não se pode considerar que a aplicação de uma pena de 23 anos, de acordo com a fatualidade concreta, seja adequada e não seja excessiva até à culpa do arguido - atendendo ainda ao que é o panorama nacional nas penas aplicadas a este tipo de crime e à homogeneidade de penas, sendo certo que encontramos variadíssimos Acórdãos proferidos inclusivamente pelas instâncias superiores, onde a factualidade enquadra actos perversos, altamente censuráveis, descabidos, com motivos fúteis e de circunstância, com um maior número de vitimas mortais e onde são aplicadas penas de prisão substancialmente inferiores à que foi aplicada ao arguido; - a pena em que foi condenado é completamente desadequada, despropocional e inconstitucional, ultrapassando claramente todos os limites da culpa do agente e ainda colocando em causa o previsto no artigo 40.º CPenal colocando de forma óbvia em causa as finalidades das pena e a reintegração do agente na sociedade. Vejamos. Estamos aqui perante criminalidade especialmente violenta assim qualificada nos termos do artigo 1.º alínea l) CPPenal. A vida humana é o bem maior, supremo e inviolável, conforme resulta do artigo 24.º/1 da Constituição da República, situado no ponto mais alto da hierarquia dos direitos fundamentais em qualquer Estado de direito, sendo a comunidade abalada de forma muito intensa quando, por acto voluntário, se ofende a vida de um dos seus membros. E nunca é demais enfatizar que, como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “CRP Anotada”, I, “o direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”. No dizer do acórdão desse Supremo Tribunal de 15.12.2021, processo 1634/20 “o direito à vida constitui o valor supremo na hierarquia dos direitos humanos. A jurisprudência está vinculada a refletir a tutela adequada e eficaz em cada caso de atentado voluntário daquele direito primordial, condição de todos os outros”. Na determinação concreta das penas devem ser consideradas razões de prevenção geral e especial, balizadas pelo grau de culpa do arguido enquanto limite inultrapassável da pena e terá que se ter presente que por força dos artigos 27.º/2 e 18.º/2 e 3 da Constituição da República, a determinação e escolha da pena privativa da liberdade deve ser orientada, - pelo princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso e pelos respetivos subprincípios, - da necessidade ou indispensabilidade, segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos; - da adequação, que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins; e - da proporcionalidade em sentido estrito, de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva. Da decisão recorrida constam bem explicitadas, de forma bastante, as circunstâncias ponderadas na determinação da medida da pena, bem como a relevância que lhes foi atribuída. Sendo de salientar que na decisão da 1.ª instância, - a par da referência às necessidades de prevenção geral – no caso, ligadas ao facto de ser um crime que atenta contra o bem supremo, assim como pela prevalência com que tais crimes são praticados em consequência de desavenças familiares fez-se aina alusão às necessidades de prevenção especial – que se encontram num patamar diminuído relativamente às expendidas acima, designadamente porque ao arguido não lhe ser detetada uma personalidade especialmente violenta, sem exibir qualquer averbamento no certificado do registo criminal. E que na decisão recorrida se afirmou que, - a decisão recorrida aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida da pena, não ultrapassou os limites da moldura da culpa do agente e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial; - no crime de homicídio são muito intensas as exigências de defesa do ordenamento jurídico e da paz social, dada a extrema sensibilidade da comunidade em relação aos mesmos e a premente necessidade de os prevenir, uma vez que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é, de entre todos, o mais elevado, ou seja, a vida; - a criminalidade especialmente violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume uma preocupação comunitária crescente, pelo que são muito prementes as necessidades de prevenir a prática deste tipo de crimes, a fim de reforçar a confiança da colectividade na lei e de garantir a tranquilidade e a segurança do respeito pela vida humana, sobretudo em situações relacionadas com quezílias familiares e de vizinhança ou em que são utilizadas armas de fogo, como a dos autos; - é também elevado o grau de ilicitude da actuação do recorrente, revelado, desde logo, pelo modo de execução do crime, tendo o arguido agido também com dolo directo; - o arguido não tem antecedentes criminais, elemento que foi positivamente ponderado no acórdão da 1ª instância, não obstante tal circunstância seja quase sempre a regra em crimes de homicídio; - inexistem, no percurso vivencial do arguido, situações reveladoras de comportamento agressivo ou violento, sendo a situação aqui em causa inédita em face do seu comportamento dominante; - o arguido não demonstrou qualquer arrependimento, nem compaixão pela vítima, nem pelos seus familiares, em especial os que presenciaram o crime. E, assim, se conclui que salientando-se as exigências de prevenção geral que aqui se fazem sentir, tendo presente todo o percurso de vida do arguido, mostra-se justificada a pena de 23 anos de prisão que lhe foi aplicada, a qual satisfaz adequadamente as exigências de prevenção geral e, não obstante ser uma pena elevada, é ainda consentida pela culpa do agente. Isto é manifestamente que na decisão recorrida, se secundarizou, minimizou ou olvidou mesmo, a vertente da prevenção especial. E, já agora se valorou factos não provados, como seja, que o arguido não demonstrou qualquer arrependimento, nem compaixão pela vítima, nem pelos seus familiares, em especial os que presenciaram o crime. Atentemos, pois, se perante esta fundamentação, ainda assim, os fundamentos e razões invocadas pelo arguido, assumem alguma pertinência. Cremos que nem a idade, em si mesma nem a falta de antecedentes criminais assumem o carácter atenuativo que o arguido lhes empresta, de justificar que a pena seja “manifestamente reduzida”. No que respeita à idade avançada do arguido, percebendo a bondade da argumentação, a mesma não permite, só por si, a defendida manifesta redução da pena, constituindo apenas mais um elemento a ponderar em sede da sua determinação. E o facto de ser primário é o mínimo que se exige, a quem quer que seja, sendo que relevo, mereceria, sim, o facto de aliado a tal facto, o arguido ter bom comportamento anterior – o que aqui não se provou. Tão pouco, as restantes circunstâncias invocadas pelo arguido justificam a seja acolhida a sua pretensão, mormente a sua aparente integração social – sendo, que é notório que este tipo de crime não está normalmente associado à marginalidade ou a um comportamento socialmente desviante. E, nesta sede o que vem provado é uma realidade, ainda assim, substancialmente diversa. Vem provado que se encontra socialmente integrado, embora seja uma pessoa recatada, fazendo a sua vida em liberdade dentro da sua habitação, apenas tendo alguns convívios semanais. Porventura, estará aqui, neste formato de vivência quotidiana, a causa remota da sua conduta, emergindo a causa próxima como a dificuldade da gestão emocional quanto a aspetos que frustrem as suas expectativas. Nem conduta adequada no estabelecimento prisional ou o facto padecer de doença psíquica grave - ambos factos não provados. E, o primeiro facto – conduta adequada em meio institucional - ainda que viesse provado, nunca traduziria uma personalidade que não refuta a normatividade vigente – como, resulta, assaz evidenciado nos factos provados que culminaram com a morte do sobrinho por litígio ligado a partilhas. Isto sendo certo que também, aqui, a conduta adequada no estabelecimento prisional é o que é esperado, sem que tal facto possa traduzir um facto favorável seja em que se sentido for. Da mesma forma, entendemos que nem as alegadas razões de justiça relativa, no confronto com situações do mesmo género, merecem aqui acolhimento. Tão pouco, a violação dos princípios da justiça material, da equidade e violação material do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP. Diz o arguido a este respeito que, que encontramos variadíssimos acórdãos proferidos onde a factualidade enquadra actos perversos, altamente censuráveis, descabidos, com motivos fúteis e de circunstância, com um maior número de vítimas mortais e onde são aplicadas penas de prisão substancialmente inferiores à que lhe foi aplicada. Basta ver as situações de facto inerentes aos acórdãos citados, a propósito da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º CPenal, para se constatar que existem situações de facto que desembocaram na aplicação de pana da mesma dimensão da do arguido. No entanto, a este propósito sempre há que referir o seguinte. No plano constitucional, ao lado dos mencionados princípios da proporcionalidade, da adequação, da necessidade e da justiça, artigo 18.º, situa-se, pelo menos, no mesmo plano, o princípio da igualdade, artigo 13.º. Assim, impõe-se saber se o arguido foi discriminado. O princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei abrange a igualdade de aplicação do direito e relaciona-se estreitamente com a vinculação jurídico-material do juiz a tal princípio. Este Supremo Tribunal já teve ocasião de se pronunciar sobre a aplicação do princípio da igualdade no domínio da aplicação da pena, cfr. acórdão de 16.2.2006, processo 06P124-5.ª onde se citam outros que assim se pronunciaram: “ A aplicação das sanções penais aos factos, sendo estes praticados por individualidades que se determinam e agem por motivos e segundo uma compleição somático-psíquica diferente, movimenta uma multitude de factores endógenos e exógenos, pelo que logo se evidencia a dificuldade de considerar duas situações como iguais, a merecerem tratamento sancionatório exactamente igual. No âmbito do direito e processo penal a noção de justiça relativa mostra-se mais profícua, na medida em que atende à globalidade dos factos e à personalidade dos agentes, apreciados no seu conjunto, proporcionando, em bloco, uma comparação das situações na sua relação com a pena a aplicar a cada um deles, acórdão de 26.9.2001, processo 1287/01-3.ª. “Mesmo que aos co-arguidos, acusados pelos mesmos factos, sejam aplicadas penas diversas não se pode concluir, sem mais, pela violação do princípio da igualdade. Basta que as circunstâncias que depõem a favor de um e outro sejam diversas, para que, nos termos do artigo 71.º/ 2 CPenal, também as penas devam ser diversas. Mas mesmo que as circunstâncias tivessem sido idênticas, sempre seria preciso demonstrar que a pena do arguido não estava dentro dos limites definidos na lei e referidos no artigo 71.º CPenal. É que, em direito penal vigora, acima de tudo mais, o princípio da legalidade, pelo que, não é pelo facto de um caso ser apreciado em termos de fixação de pena benevolamente que nos deva conduzir a procedimento idêntico, mas ilegal, em relação a outro julgamento para outro arguido, acórdão de 26.3.1998, processo 1483/97. “O princípio constitucional da igualdade a que o arguido faz apelo com fundamento em suma em que a pena que sofreu não é igual à dos outros co-arguidos não tem qualquer razão de ser, não só porque igualdade não se confunde com igualitarismo e implica, mesmo, tratamento diferente para o que é diferente, como também, no caso, as condições pessoais são claramente distintas”, acórdão de 3.4.2003, processo 975/03-5.ª. E, ainda, a este propósito convocamos aqui o acórdão deste Supremo Tribunal de 29.1.2025 processo 707/19.9PBFAR.E1, consultado no site da dgsi, onde se entendeu que, “(…) dificilmente se verificará igualdade na configuração das situações de facto relativas a diferentes arguidos, tanto no que respeita à configuração dos respetivos ilícitos típicos como dos dados relativos à vida pessoal dos agentes relevantes para a pena – v.g. enquadramento familiar ao longo da sua vida pretérita, vivência da escolaridade, enquadramento laboral ou profissional, eventuais antecedentes criminais - tal como se comprova pelo caso concreto; - mesmo que da comparação entre os factos relativos à vida pessoal e à ilicitude e culpa pelo facto, determinantes da medida concreta da pena aplicada ao arguido recorrente e dos termos da condenação de outro(s) arguido(s), pudesse concluir-se pela efetiva violação do princípio da igualdade em desfavor do recorrente, não poderia diminuir-se-lhe a pena aplicada com esse fundamento estrito, porquanto toda a matéria relativa à determinação da pena está sujeita ao princípio da legalidade e encontra-se subordinada à prossecução das finalidades das penas no momento da sua aplicação, tal como estabelecidas no artigo 40.º CPenal, cumprindo respeitar os critérios e fatores legalmente previstos para a determinação concreta da pena, máxime no artigo 71.º CPenal, pelo que é vedado subir ou descer uma dada pena concreta com fundamento em que, por violação do princípio da igualdade ou da proporcionalidade, teria sido aplicado pena mais favorável a outro arguido. Ainda, porém, que as apontadas limitações à relevância do princípio da legalidade em sede de recurso comum relativamente à determinação da medida concreta da pena, não obstam a indagação que possa fazer-se com vista a eventual verificação de suposta igualdade ou desigualdade das penas aplicadas a dois ou mais arguidos, dado que “na individualização da pena o juiz deve procurar não infringir o princípio constitucional de igualdade, o qual exige que, na individualização da pena, não se façam distinções arbitrárias”, pois “um dos princípios fundamentais do direito penal é o da igualdade nas decisões de justiça, preocupando quase todas as sociedades democráticas o problema conexo das disparidades na aplicação das penas, conforme pode ler-se no acórdão do STJ de 16.02.2006, rel. Simas Santos (dgsi.pt)”. Assim sendo, a tentativa de comparação de penas aplicadas a diferentes arguidos, pode assumir um certo valor heurístico, nomeadamente em sede de recurso, por poder contribuir para - através da procura e análise de diferenças e semelhanças – compreender melhor qual deve ser o peso efetivo dos diferentes fatores de determinação da medida pena concreta, à luz do critérios legais fixados nos artigos 40.º. e 71.º CPenal. Mas não mais que isso. Subsiste, ainda assim, a questão da idade. Hoje com 67 anos ao fim de 23 anos – salienta o arguido - terá 90 anos de idade. Isto sem embargo de se reconhecer que, nos termos do artigo 61.º/4 CPenal, ao fim de 5/6, no caso quando tiver cumprido pouco mais do que 19 anos, se não for antes restituído à liberdade, ainda que condicional, será nessa ocasião – com 86 anos de idade. Como acertadamente refere o MP, as penas têm de ser como tal sentidas, e daí estarem incluídos na finalidade que a norma visa proteger e nos efeitos que com a condenação se pretendem atingir todos os incómodos decorrentes do cumprimento das mesmas, sendo certo que tais consequências negativas têm de se mostrar balizadas por critérios de justiça, adequação e proporcionalidade – aqui observados. Os custos que daí poderão advir para os arguidos são próprios das penas, que só o são se representarem para os condenados um verdadeiro e justo sacrifício, com vista a encontrarem integral realização as finalidades gerais das sanções criminais, sendo que tais custos nada têm de desproporcionados em face dos perigos que a aplicação da pena pretende prevenir. É esta a origem semântica e histórica, a natureza e a finalidade da pena. É certo, contudo, que a questão da relevância da idade do arguido, nesta sede, mormente de prevenção especial, tem merecido a atenção deste Supremo Tribunal. Com efeito. É certo que a idade actual do arguido – 67 anos - não pode assumir o relevo que lhe pretende dar – ser a pena de 23 anos manifestamente reduzida - pois a verdade é que a idade não foi impedimento da prática dos factos e, sempre haveria que atender que o valor relativo da fragilidade inerente, por si só, em confronto com a natural e suposta envergadura da vítima, teria sido compensada, suplantada, mesmo, pelo recurso à arma de fogo. Enfoca o arguido a questão da idade no facto de que ao fim de 23 anos sairia em liberdade com 90 anos de idade, o que será francamente inexpectável, frustrando-se por completo a finalidade das penas, a sua reintegração na sociedade. Também, não será, pela avaliação e ponderação de tal possibilidade que se justificará qualquer redução do quantum da pena. Contudo, cremos que algum relevo se deve conceder à questão da idade, mormente se acompanhada da aludida primariedade e da consideração de se estar perante um acto isolado na vida do arguido, em sede de ponderação da exigência e da necessidade de se acautelar a prevenção especial. A questão da idade do arguido vem sendo suscitada muitas vezes em sede de recursos para este Supremo Tribunal, como justificação para a redução da pena, seja, através da aplicação do instituto da atenuação especial da pena, pela desnecessidade da pena, seja, pela sua consideração em termos de operação de determinação da medida da pena, pela consideração de uma não tão premente necessidade de prevenção especial. Essencialmente, se ligada à falta de antecedentes criminais e na consideração de se estar perante um acto isolado. É evidente, que, desde logo, surge a dificuldade de saber o que aqui, nesta sede, se pode entender como idade com tal virtualidade. Se a partir dos 65 anos. Se dos 70. Se dos 80. Já no longínquo acórdão de 7.10.1999, processo 99P598, a propósito de um arguido – também, sem antecedentes criminais e perante a prática de um crime de homicídio simples - que na altura da prática dos factos tinha 86 anos de idade, se entendeu ser caso de aplicação do instituto da atenuação especial, nos termos dos artigos 72.º/1 e 2 e 73.º/1 alínea b) CPenal, pela ponderação do requisito da “necessidade da pena”. E, assim resulta sumariado: “o facto de o agente ter mais de 70 anos de idade legitimará, em princípio a atenuação especial da pena, não porque se deva pressupor, necessariamente, diminuída a sua imputabilidade, mas sim, em virtude de, tanto do ponto de vista da prevenção geral como do da especial, ser substancialmente menor a necessidade da pena”. Deste acórdão extrai-se a seguinte fundamentação. “(…) nenhuma incidência criminal macula a sua vida, não obstante tal provecta idade. Estamos, consequentemente, em presença de um delinquente ocasional - tardiamente ocasional - que cedeu a uma solicitação criminosa no trajecto terminal da sua existência. É facto que bem pode acontecer em tipos delituosos como o que está em causa, para mais não se desconhecendo que os conflitos interiores podem subitamente vir à superfície, através de descargas emocionais violentas (cfr., a este propósito o Relatório da Royal Comission de 1953 e o Homicídio Privilegiado, de AMADEU FERREIRA). E a idade avançada ajuda ao alimentar de suposições erradas e a um menor discernimento na disciplina volitiva. Tais matrizes depreendem-se, sem esforço, da matéria de facto dada como provada: não justificam a acção mas de algum modo explicam o impulso que a ela conduziu. Não existe, na lei penal vigente, disciplina normativa que especificamente contemple os agentes criminosos de idade avançada, designadamente aqueles que já passaram os umbrais da quarta idade. Em regimes progressos, ainda podiam vislumbrar-se circunstancialismos atenuativos (como, v.g., o vertido na circunstância 3 do artigo 39, do Código Penal de 1886, onde constituía circunstância atenuante da responsabilidade criminal do agente o ser "maior de setenta anos") ditados pela idade do autor do crime, na base de que "dos 21 aos 70 há a plena responsabilidade; depois dos 70 atenua-se novamente a responsabilidade em harmonia com a aludida circunstância" (cfr.: LUÍS OSÓRIO - Notas ao Código Penal, volume I, página 161). E também em delimitados aspectos de diplomas amnistiantes se deparam referências relativas à consideração, em sede criminal, da idade avançada, como, por exemplo, no artigo 10 da Lei n. 15/94, de 11 de Maio, onde se estipulou que a pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos a delinquentes "... com 70 ou mais anos, em 25 de Abril de 1994, será sempre substituída por multa na parte não perdoada...". De todo o modo, desde sempre inexistiu um regime abrangente e específico no concernente a delinquentes idosos, ao contrário do que por exemplo mereceram os jovens delinquentes (Decreto-Lei n. 401/82, de 23 de Setembro). Certo é que estamos perante realidades distintas: no caso dos jovens delinquentes abre-se todo um leque de perspectivas de reinserção social que urge não descurar, enquanto no caso dos delinquentes idosos a fase crepuscular aparenta-se incompatível com a premência da prevenção especial ressocializadora. Não é realmente possível escamotear que o significado de tal prevenção especial se vai esbatendo com o avançar dos anos: este tipo de prevenção carece de tempo para se auscultar do seu pragmatismo e eficácia, logo os percursos finais da viagem humana não são os que preferencialmente lhe importam. Mas isto não acarreta pura e simplesmente atirar para o limbo dos problemas não merecedores de tutela, a realidade das práticas criminosas levadas a cabo por agentes de provecta idade; e bem se verá que não é de adoptar tal atitude displicente quando a esperança de vida aumentou e quando a população idosa preenche percentualmente um espaço significativo. E podendo movimentar-se os idosos em áreas socialmente positivas, podem actuar também em terrenos negativos. Neste segundo aspecto, há que convir que por alguma razão funcionou, em tempos, a circunstância atenuante do ter mais de 70 anos. De-resto, cumpre enfocar que não será propriamente sob o prisma de uma imputabilidade diminuída que justificará especial tutela a idade do agente delitivo mas antes atendendo a que se a prevenção especial vai deixando progressivamente de relevar como condimento temperador da sanção ou do juízo de censura que através dela se exprime, não é menos certo que as exigências da prevenção geral também vão cedendo ante o avançar da idade do prevaricador, reduzindo o perigo que, para a ordem jurídica e para estabilidade social, sempre representa a comissão de um crime. Esta realidade não deixará de estar subjacente ao consignado aditamento normativo da "necessidade da pena", pois que esta "necessidade" se afirma em consonância com a defesa da comunidade face ao que real e efectivamente a coloque ou possa colocar em causa, na segurança e integralidade dos seus bens e valores jurídicos. Ora, é precisamente a inexistência de um esquema normativo que albergue os condicionalismos da simbiose menor perigosidade - menor necessidade de prevenção geral, a forçar, por via dessa lacuna, uma busca de soluções alternativas que assegurem a efectivação daquela simbiose fora - ou para além - dos quadros usualmente estabelecidos para a criminalidade em geral. Óbvio é, contudo, que, nesta perspectiva, não estamos a precipitar-nos em terrenos de excessiva ou injustificada permissividade que o homem comum, com a rudeza de quem é comum, poderia eventualmente assim traduzir: Aos velhos, por serem velhos, tudo é lícito, tudo o que façam deve açeitar-se por serem velhos. Nada seria mais errado, pois que nada seria menos certo. A plena cidadania do idoso tem de repercutir-se em frentes positivas e negativas: cabe-lhe, de todo o direito, participar no tecido social assim como deve sujeitar-se, à luz das normas, aos deveres impostos por estas e às cominações derivadas da sua ofensa. Só que se ao jovem delinquente é concedido o benefício da expectativa na sua conversão ou reconversão social, ao idoso delinquente não deve ser recusado o beneplácito de uma específica compreensão, sempre que possível, compreensão essa que plenamente se alicerça no suporte de uma menor acuidade da prevenção geral; por outras palavras, sempre deve ser adjudicado ao delinquente idoso um juízo de censura especialmente adequado e tradutor daquela compreensão, o que, está bem de ver, não sinonimiza contemporização com os ilícitos de que se trata”. (…) Em todo o caso, não é de erigir como regra a de que os idosos, sempre que autores de crimes - especialmente quando eles assumam a gravidade do destes autos - devam merecer um juízo censurador menor - mesmo que haja de atender-se a certas particularidades - como flui da excelente obra de GORDON ASHTON, Elderly People and the Law (mormente a página 53). Na verdade e sem embargo de não se repelirem aquelas particularidades, não vemos no idoso um subcidadão inevitavelmente portador de uma imputabilidade diminuída (tal era o pensamento, como anotámos, do legislador de 1886). Daí que se imponha não suprimir por inteiro ou em amplitude demasiadamente substancial aquela parcela de exigência da prevenção geral que a ordem jurídica reclame e que a comunidade tem direito a reivindicar, sob pena e risco da sanção se tornar meramente simbólica (o que não é conveniente) e do juízo de censura ficar despejado de válido sentido (o que não é aceitável). A verdade, porém, é que, tendo-se presente tudo aquilo que se deixou expendido ao longo do presente acórdão e admitindo-se embora, como se admite, a tese da viabilidade, in casu, da impetrada atenuação especial, não se consente contabilizar esta nos moldes pretendidos pelo arguido-recorrente, já que isso conduziria a um sancionamento incompatível com a ilicitude do facto, com a culpa do agente ou com a necessidade de se assegurar as exigências de prevenção geral e especial - esta última, ainda que diminuída, pelo factor-idade. Tal ponderação tem de expressar-se de acordo com o cariz da acção delituosa praticada - extremamente grave - e com a culpa revelada - que foi intensa - e, por isso, não é lícito exigir-lhe outra tradução quantificadora que não seja a que sem deixar de exprimir os apontados vectores negativos, os tempere dosimétricamente, sem esbater a sua significação anti-jurídica, na base dos factores apontados”. Por sua vez no acórdão de 11.12.2003, processo 03P2152, assim sumariado: “I - A idade avançada (76 anos) e um longo passado sem mácula criminal não são garantia suficiente de que um cidadão não possa perpetrar um acto dos mais desvaliosos e ético-juridicamente dos mais censuráveis - um crime de homicídio tentado. II - A idade avançada não pode servir de quase desculpa para actos desse tipo. Nem por motivos que têm a ver com a ilicitude e a culpa concretas de determinado acto, nem por razões de prevenção, fundamentalmente de prevenção geral positiva e negativa. III - Sem se menosprezar o factor idade, há que ver onde se pode ir no sopesamento desse factor, em termos de tolerância no que diz respeito às consequências jurídicas do facto antijurídico, que é o mesmo que dizer, em termos de suportabilidade (tolerância) da comunidade em relação às suas expectativas mínimas na prevalência do direito e dos valores fundamentais, tutelados pelas normas jurídicas, que garantem uma convivência pacífica e harmoniosa. IV - Não existe na lei penal vigente, disciplina normativa que especificamente contemple os agentes criminosos de idade avançada, designadamente aqueles que já passaram os umbrais da quarta idade (Ac. do STJ de 20-01-99, in BMJ, 490.º, 48 e ss.), entendeu-se que, ponderando esses factores, nomeadamente a avançada idade do recorrente, em confronto com a necessidade de tutela dos bens jurídicos - aqui de primeira grandeza - e não esquecendo os demais factores de que depende a dosimetria da pena e que foram sopesados na sua determinação pelo tribunal «a quo» (uma ilicitude acentuada e uma culpa intensa), entendeu-se como mais adequado aplicar ao recorrente uma pena de dois anos de prisão, assim baixando significativamente para o limiar mínimo exigível a pena fixada pela 1ª instância e confirmada pela 2ª. De onde se retira a seguinte fundamentação: “o arguido tem, actualmente, uma idade muito considerável - uma idade que já permite usar adjectivos como provecto e venerando. Metaforicamente, poderíamos dizer que está na recta final da existência e que o seu caminho, até aqui, não sofreu nenhum acidente de carácter penal. Uma tal circunstância assume um peso relevante, dado ser já extensa a prova em que radica a constatação da conformidade da sua vida com as regras de pacífica convivência comunitária, nomeadamente as normas jurídico-criminais. No entanto, não obstante essa longa prova, foi precisamente numa idade já provecta, que o recorrente cometeu um acto atentatório de um dos valores mais fundamentais dessa convivência. O que significa que a idade avançada e um longo passado sem mácula criminal não são garantia suficiente de que um cidadão não possa perpetrar um acto dos mais desvaliosos e ético-juridicamente dos mais censuráveis. Por isso, não pode abrir-se mão de um rigoroso critério de exigência em nome da idade avançada de um determinado cidadão e de um extenso passado sem nada de assinalável do ponto de vista da negação de específicos valores jurídico-criminais. Afinal, num só momento, tarde na vida, um cidadão pode pôr em causa toda uma existência limpa com um acto altamente condenável. Ora, a idade avançada não pode servir de quase desculpa para actos desse tipo. Nem por motivos que têm a ver com a ilicitude e a culpa concretas de determinado acto, nem por razões de prevenção, fundamentalmente de prevenção geral positiva e negativa. Sem se menosprezar o factor idade, tão relevante em caos como este, há que ver até onde se pode ir no sopesamento desse factor, em termos de tolerância no que diz respeito às consequências jurídicas do facto antijurídico, que é o mesmo que dizer, em termos de suportabilidade (tolerância) da comunidade em relação às suas expectativas mínimas na prevalência do direito e dos valores fundamentais, tutelados pelas normas jurídicas, que garantem uma convivência pacífica e harmoniosa. E, assim se colhe a importância do factor idade, como circunstância relevante, e de peso muito específico no caso concreto na determinação da medida da pena. Contudo, há sempre um limiar mínimo, necessário à tutela dos bens jurídicos, que não pode ser franqueado. Até porque, como também já foi assinalado, aquela infra-estrura (permita-se aqui a metáfora também usada nas ciências sociais) dominada pelos instintos e sobre o recalcamento ou superação da qual se ergue tudo aquilo que nos constitui como seres conscientemente construtores da nossa própria humanidade e de uma ordem de convivência possível, está sempre pronta a emergir em anti-socialidade agressiva, liquidando num só acto toda uma vida impoluta do ponto de vista jurídico-criminal”. Já no acórdão de 22.4.2004, processo 04P224, num caso de homicídio qualificado, em que o arguido pugnava pela atenuação especial da pena, com base no facto de ser primário; ter uma idade avançada, 76 anos; ter confessado objectivamente os factos; nunca se ter furtado à acção da justiça; não ter actuado com insensibilidade moral, entendeu-se que, não sendo caso de atenuação espacial da pena, ainda assim, se justificava um abaixamento da pena aplicada. Daqui retira-se a seguinte fundamentação: “a idade e a primariedade não são, porém, circunstâncias que, só por si, contribuam para a tal imagem global especialmente atenuada, de tal forma que se possa dizer que existe violência no aferimento da punição pelos limites mínimo e máximo da moldura que o legislador previu para o tipo legal. A idade avançada, só por si, não pode servir de fundamento à atenuação especial da pena, na base da consideração de que as necessidades de prevenção geral se esbatem acentuadamente, por norma, com o avançar da idade, sobretudo se o crime, como é o caso dos autos, se traduziu na violação de um bem jurídico tão relevante como é o da vida humana, e em circunstâncias de uma considerável violência e até com uma desproporção acentuada em relação ao facto que lhe deu origem - circunstância esta que só não foi valorizada para a qualificação do crime, por se não ter podido apurar a verdadeira motivação que subjazeu ao acto. As exigências de prevenção geral - objectivo primordial a que há que atender na fixação da pena - traduzem-se na necessidade de tutela do bem jurídico violado, ou seja, na necessidade comunitária de reafirmação da norma que se pôs em crise com a prática do crime. Ora, não há forma de fazer recuar essas exigências, sem abdicar do seu mínimo irrenunciável, para aquele patamar verdadeiramente excepcional em que se coloca a questão da substituição da moldura penal normal por uma outra de cunho acentuadamente diminuído. Afinal, não é tão infrequente como isso a prática de crimes graves por cidadãos de idade avançada e, se se fosse a converter em regra de atenuação especial a provecta idade do agente, estar-se-ia a desguarnecer a protecção adequada de bens jurídicos da mais relevante grandeza. Concluímos, assim, que não há lugar para a pretendida atenuação especial da pena. No entanto, será de levar em conta, pela sua inegável relevância, a longa idade do recorrente, enquanto tradutora de uma menor necessidade da pena e, por conseguinte, de um abaixamento sensível das exigências de prevenção geral, nos termos assinalados supra. Uma ideia, afinal, reforçada pela ausência de antecedentes criminais do arguido, aqui pesando mais na vertente da prevenção especial, mas cruzando-se também com as exigências de prevenção geral. Nessa perspectiva, a pena fixada pelo tribunal colectivo mostra-se exagerada e desproporcionada, por avaliação incorrecta quer dos factores de prevenção, quer da violação palpável dos parâmetros de determinação do quantum da pena, que tem de achar-se no quadro de uma submoldura de prevenção com limites claramente inferiores aos que foram tidos em conta, embora não explicitados”. Já no acórdão de 24.5.2006, processo 06P1414, perante um crime de homicídio simples cometido por quem tinha 64 anos de idade e era primário, ainda que sem se conceder expresso relevo à questão da idade, entendeu-se ser de manter a pena, que o MP pretendia ver agravada, ponderando que, “se as necessidades de prevenção geral relativamente ao crime perpetrado são significativas em comunidade que, ultimamente, tem sido assolada pela violência gratuita de alguns, reflexo do desprezo pelas regras e valores éticos que a sociedade, com tanto esforço construiu e erigiu. O mesmo não sucede, porém, no que tange à prevenção especial. Com efeito, o comportamento delituoso do arguido constitui um acto isolado na sua vida”. E, no acórdão de 13.3.2008 processo 2589/07, consultado no site da pgdl, consta o seguinte sumário: “XVII - A idade avançada (79 anos) e um longo passado sem mácula criminal não são garantia suficiente de que um cidadão não possa perpetrar um acto dos mais desvaliosos e ético-juridicamente dos mais censuráveis. XVIII A idade avançada não pode servir de quase desculpa para actos desse tipo. Nem por motivos que têm a ver com a ilicitude e a culpa concretas de determinado acto, nem por razões de prevenção, fundamentalmente de prevenção geral positiva e negativa. XIX Sem se menosprezar o factor idade, há que ver até onde se pode ir no sopesamento desse factor, em termos de tolerância no que diz respeito ás consequências jurídicas do facto antijurídico, que é a mesmo que dizer, em termos de suportabilidade (tolerancia) da comunidade relação às suas expectativas minimas na prevalência do diretto e dos valores fundamentais, tutelados pelas normas Jurídicas, que garantem uma convivència pacifica e harmoniosa, XX- Porém, com o avançar dos anos e o entrar nos umbrais da 4.ª idade, como aqui acontece, diminuem as exigências de prevenção, sobretudo da prevenção especial, mas também da prevenção geral positiva”. No caso em apreço, não há que desvalorizar a gravidade dos factos. O arguido tirou o bem supremo que o sobrinho tinha – a sua própria vida. A ordem jurídica e, com ela, a sociedade em que nos inserimos, não podem ficar indiferentes a tão grave violação. Há, por isso, que emitir juízo de censura adequado que recomponha o bem jurídico violado. De qualquer forma, resulta do conjunto dos factos provados uma certa diminuição ou limitação intelectuais do arguido que não será ousado radicar na sua idade, factor, que, aliado ao seu pessoal modo de vida, o terá conduzido ao reprovável acto que cometeu, impedindo um raciocínio mais claro sobre as suas consequências e, sobretudo, sobre a motivação que encontrou para o cometer. Tecer este juízo valorativo não envolve questionar o acervo dos factos provados - o que, aliás, aqui estaria vedado - mas antes dele extrair o especial significado do que nele se verteu. Só que e sem que reparo essencial mereça no seu ajuste dosimétrico a pena aplicada de 23 anos de prisão ou sem que qualquer observação justifique falta de sensatez e o equilíbrio do que vem decidido, estamos em crer que não será despropositado conferir, ainda assim, alguma razoabilidade ao impetrado desencadeamento da redução da pena. Não, manifestamente, é certo, na dimensão pretendida pelo arguido. Entendimento, apoiado no que resulta dos citados acórdãos deste Supremo Tribunal, que convidam a usar de alguma flexibilidade e, alicerçado, ainda, na ideia de que a necessidade da pena terá aqui de ser valorada e sopesada em consonância com as, menosprezadas exigências de prevenção especial - as quais, sem se postergar a gravidade dos factos, o grau de culpa do arguido e as elevadas exigências de prevenção geral, não podem deixar de se ajustar à circunstância de que, tendo o arguido 67 anos de idade, não será de ir além do que, em sede de punição e censura criminais, seja estritamente necessário para satisfazer e preencher estas últimas - da prevenção geral. Sem que com esta correcção se pretenda dar acolhimento à tese do arguido de que é maior a pena do que o tempo de vida para poder cumpri-la. É certo que, este tipo de crime, por regra, constitui acto isolado na vida dos arguidos. Há contudo, aqui atender à personalidade do arguido vertida na forma como actuou, de forma imperturbada, fria, insensível com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida e dignidade da pessoa humana, e pela persistência na execução, sendo indiscutível que carece de socialização, que manifesta problemas de autocontrolo, de gestão da raiva e impulsividade, fazendo uso do recurso à violência como forma de resolver os problemas do quotidiano. Uma conduta, ainda que isolada, moldada por uma personalidade carecida de contenção. Assim. Ponderando todos os parâmetros já analisados nas decisões das instâncias, considerando que a aplicação de penas tem como primordial finalidade a de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico penal, não devendo ultrapassar o grau de culpa, tudo isto vem a traduzir-se num padrão elevado de exigências de prevenção geral, sendo muito fortes as exigências comunitárias de reafirmação dos valores ético-sociais e jurídicos postos em causa de uma forma tão patentemente negativa e com o repúdio crescente por parte da comunidade de fenómenos desta natureza, no seio das família. E, aqui, neste momento, ainda que a idade em concreto não assuma o relevo que o arguido lhe empresta, não pode deixar de ser valorada – a par da falta de antecedentes criminais e do carácter isolado dos factos - em termos de mitigação das exigências de prevenção especial, ou de socialização, traduzindo uma menor necessidade de a acautelar. Não obstante não ser de descurar os riscos acima assinalados. Fazendo uma incursão pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, temos de convir que a pena aplicada, de 23 anos de prisão, ultrapassa o padrão usado na dosagem da pena em casos idênticos. Normalmente a pena nestes casos, dentro da moldura penal de 12 a 25 anos, ronda, em média, os 18 anos de prisão. De relevar, contudo, que a moldura penal abstracta, no caso concreto, é de 16 a 25 anos, pela agravação resultante da aplicação da lei das armas. É certo, que há muito está ultrapassada a fase da consideração, como ponto de partida para a determinação da medida concreta da pena o do ponto médio da sua moldura abstracta, bem como o de ser esta a matéria onde transparece e se assume na plenitude, a arte de julgar, como ponto incontornável de partida e de chegada, temos que a operação de determinação da medida da pena, se faz em função dos critérios gerais de medida da pena, seja, a culpa do agente e as exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Como é certo que no caso o ponto médio é de 20 anos e 6 meses. Os apontados limites oscilam, no caso, entre 18 anos – medida ainda adequada à culpa e suportável pelas exigências irrenunciáveis de prevenção - e 23 anos de prisão - medida que poderia considerar-se o ponto mais alto exigido pela prevenção e consentida pela culpa do arguido. Dentro desses limites, e considerando o factor da idade, a par do dolo intenso, da acentuada ilicitude, do modo de execução do crime, bem como o risco futuro de resolução de litígios com o recurso à violência - já devidamente salientados - reputa-se como justa e adequada a pena de 21 anos de prisão. E, assim, procede, neste segmento e dimensão, o recurso do arguido. III. Dispositivo Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em, 1. rejeitar o recurso interposto pelo arguido, AA, quanto à matéria do pedido cível, por o mesmo não ser admissível, nos termos do disposto nos artigos 432.º/1 alínea d), 400.º/1 alínea c) e 420.º/1 alínea b) CPPenal; 2. e, no mais, conceder parcial provimento ao recurso, em consequência do que, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º/1 e 2 alínea j) CPenal, agravado pelo artigo 86.º/3 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, se condena o arguido na pena de 21 anos de prisão. Sem tributação. Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e, assinado eletronicamente por si e pelos Srs. Juízes Conselheiros adjuntos, nos termos do artigo 94.º/2 e 3 CPPenal. Supremo Tribunal de Justiça, 2025OUT09 Ernesto Nascimento - Relator Celso Manata – 1.º Adjunto Jorge Jacob – 2.º Adjunto |