Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2531/11.8TBSTB.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO AMIGÁVEL
PROPRIETÁRIO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AMBAS AS REVISTAS
Sumário :
I. Realizada expropriação amigável e aparecendo posteriormente interessados que fossem desconhecidos à data da expropriação, designadamente os verdadeiros proprietários do terreno expropriado, recai sobre a entidade expropriante, em princípio (i.e., salvo no caso de dolo ou culpa grave por parte desta), o dever de reconstituir a situação que existiria se tais interessados tivessem participado no acordo de expropriação (cfr. artigo 37.º, n.º 5, do Código das Expropriações).

II. O respeito pelo princípio constitucional da justa indemnização (cfr. artigo 62.º, n.º 2, da CRP) compreende, desde logo, a observância dos princípios constitucionais da igualdade (cfr artigo 13.º da CRP) e da proporcionalidade (cfr. artigo 18.º da CRP), o que obriga a que, através da indemnização por expropriação, se tente propiciar ao proprietário “superveniente” uma situação tão favorável (i.e. nem mais nem menos favorável) como a dos proprietários expropriados nas mesmas circunstâncias.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e BB / Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IP (IHRU)

Recorridos: Os Mesmos

1. AA e BB, intentaram junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de ..., acção declarativa de condenação sob a forma ordinária contra Câmara Municipal de Setúbal e Instituto Nacional de Habitação [a que sucedeu o Instituto Nacional da Habitação, IP (INH), a que, por sua vez, sucedeu o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IP (IHRU)], pedindo que pela sua procedência:

1 - A Câmara Municipal de Setúbal e o Instituto Nacional de Habitação sejam condenados a reconhecer e respeitar a propriedade dos autores, decidindo-se sobre os requerimentos apresentados para construção;

2 - O direito dos autores inscrito na Repartição de Finanças sob o artigo 14106 na Matriz Predial Urbana, Freguesia de ... seja respeitado repondo a propriedade no estado anterior, permitindo diferenciação dos lotes;

3 - Seja restituída a posse do terreno aos autores;

4 - Sejam os réus condenados em indemnização em valor não inferior a €25.000 pelos danos causados;

5 - Sejam os réus condenados no valor de todas as despesas que os autores tiverem de efectuar e que se propõem provar;

6 - Ou, em alternativa, considerando-se a propriedade tacitamente expropriada, nos termos expostos, com pagamento de indemnização que se vier a apurar, nos termos da lei em execução de sentença.

Alegaram, para o efeito e em síntese:

- Por escritura de 13 de Janeiro de 1926, CC vendeu a DD, pai da A., a propriedade correspondente aos talhões 80, 85 e 86, com a área de 390 m2, a desanexar do prédio sito no Vale de ....

- Após o registo de aquisição, em 1966-04-26, foi efectuada a desanexação dos Talhões 80, 85 e 86, que passaram a constituir a descrição 24307, fls. 48 V do Livro B 79-00c.4, actualmente sob o n° 02962/....92 da ... Sebastião, registada em nome da A..

- Por escritura de 12 de Janeiro de 1956, CC e mulher venderam a EE uma porção de terreno com a área de 11840 m2 a desanexar do mencionado prédio sito no Vale de ..., com a advertência de exclusão dos lotes 80, 85 e 86.

- Por escritura de 12 de Setembro de 1963, EE e mulher venderam a FF, o prédio descrito sob o número 18251, ao tempo com a área de 11320m2 (11840 m2 - 520 m2 lote que fora desanexado do referido prédio) novamente com a advertência de exclusão dos lotes 80, 85 e 86.

- Em 01.04.1998 o A. apresentou na Câmara Municipal de Setúbal, Departamento de Habitação e Urbanismo, requerimento onde pedia que lhe fosse prestada informação sobre os instrumentos de planeamento em vigor para a área dos lotes, bem como as demais condições gerais a que devem obedecer as obras naquele local, tendo obtido resposta de que haveria erro na localização dos lotes e que a propriedade havia sido expropriada.

- A propriedade encontra-se integrada no corte da estrada, mas não abrangida, completamente devassada, alterada e irreconhecível; também está vedada e sem acesso, o que, considerando a invocada expropriação pelo INH, inscreverá a situação na previsão do Decreto-Lei na 100/84, de 29 de Março, revogado pelo artigo 100º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro,

- Não corresponde à verdade que a propriedade tivesse sido expropriada.

- Toda a situação implicou grande prejuízo, despesas e transtorno aos autores

- A propriedade encontra-se perfeitamente inscrita, registada e demarcada, pelo que as entidades administrativas não cumpriram as obrigações legais, designadamente as que resultam do artigo 62º da Constituição que implica a obrigação de indemnizar. Paralelamente, removeram parcialmente terreno, aquando da abertura da estrada, sem procederem a notificação dos autores

- E com a vedação, tornaram a propriedade inacessível, usando-a sem qualquer direito.

2. Foi proferido despacho liminar, convidando os autores a concretizarem os pedidos efectuados, nomeadamente quais os requerimentos que visam que os réus sejam condenados a decidir, bem como os factos concretizadores da eventual indemnização por danos causados, das despesas efectuadas e, por fim, o pedido alternativo.

Foram ainda convidados a pronunciar-se quanto ao valor da causa atribuído na petição inicial, considerando que, se se mantiver o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e da sua restituição, conjugado com o pedido de indemnização, este valor deverá ser cumulado, nos termos do artigo 306.º, n.º 2, do CPC.

3. Em resposta, os autores apresentaram nova p.i., onde replicaram o inicialmente alegado, concluindo nos mesmos termos em que tinham concluído anteriormente.

4. Foi rectificada a espécie de processo, que passou a correr termos como acção administrativa comum – forma ordinária.

5. Citados, os réus apresentaram contestação.

6. O Município de Setúbal defendeu-se por excepção e por impugnação.

Por excepção invocou:

I – A sua falta de personalidade judiciária e de legitimidade passiva, atendendo a que acção vem interposta contra a Câmara Municipal de Setúbal, que é apenas um órgão do Município de Setúbal, sendo este quem detém personalidade jurídica e judiciária; ainda assim, de acordo com o disposto no nº4 do artigo 10° do CPTA, assumiu a posição de réu e apresentou contestação.

II - A incompetência do tribunal em razão da matéria.

III- A ineptidão da petição inicial, alegando que o n.º 1 do pedido formulado pelos autores é absolutamente ininteligível, por não terem sido identificados os requerimentos a que pretendem que seja dada resposta; e, se se entender que o pretendido é a intimação ao deferimento do pedido de licenciamento/autorização de construção, continua a verificar-se a ineptidão da p.i., por faltar identificação da pretensão não objecto de resposta, o que se reconduz à ausência de causa de pedir.

E também o pedido formulado em alternativa, de que a propriedade seja considerada tacitamente expropriada, é ininteligível, já que tal figura jurídica é desconhecida.

No mais, disse que o local onde os autores dizem que se localizam os seus lotes, situa-se na cumeada da escarpa de ..., sendo que esta estrutura foi sofrendo, ao longo dos anos, diversas derrocadas e deslizamentos de terras e que por força desses deslizamentos e derrocadas, a configuração dos terrenos naquele local, sofreu profundas alterações na sua morfologia.

A cumeada da escarpa de ... integra os terrenos inseridos na área de intervenção do Plano Integrado de ..., definido no ano de 1973 e destinava-se a ser submetida a um ordenamento territorial definido pela Administração Central, para fins de habitação social ou económica, mas, em face dos constantes deslizamentos e desmoronamentos dos terrenos da escarpa de ..., houve necessidade de proceder à sua consolidação.

Sendo o ordenamento urbanístico da responsabilidade da Administração Central, foi celebrado, no inicio da década de 90, um protocolo entre o Município de Setúbal e INH/IGAPHE, tendo em vista a efectivação de obras de consolidação da escarpa, em cujos termos ficou da responsabilidade do Instituto Nacional de Habitação/Instituto de Gestão e Administração do Património Habitacional do Estado garantir a disponibilidade dos terrenos necessários à efectivação de tais obras de consolidação, o que foi assegurado através da sua expropriação amigável, promovida pelo referido INH/IGAPHE.

A consolidação foi efectuada, não só através de obras de construção civil de sustentação da escarpa, mas também de obras de modelação da cumeada, com a criação de um coberto vegetal passível de suster a sua erosão e facultar um espaço de lazer para uso público.

Neste momento, dadas as profundas alterações ocorridas, é impossível localizar os lotes em causa, caso os mesmos se localizem na área de intervenção das referidas obras, além de que toda a área da escarpa de ... objecto das referidas obras, encontra-se integrada na Reserva Ecológica Nacional.

Concluindo pela procedência das excepções e improcedência da acção.

7. A ré IHRU defendeu-se por excepção e por impugnação.

Por excepção invocou:

I - A incompetência material;

II - A extinção de direitos que os autores tivessem sobre os terrenos em causa, alegando que a área indicada pelos autores, como sendo aquela em que se localiza o seu terreno, foi expropriada para a realização do Plano Integrado de Setúbal (PIS), tendo a respectiva indemnização sido paga a FF, que se apresentava na matriz e no registo predial como proprietário do mesmo prédio.

Atendendo a que a expropriação constitui uma forma de aquisição originária, determinando a aquisição originária de direitos reais sobre os imóveis e a extinção de todos os direitos, ónus, encargos e limitações pré-existentes, o direito de propriedade dos autores extinguiu-se com a expropriação.

III – A prescrição do direito à indemnização, alegando que a intervenção na área dos terrenos em causa foi realizada antes de 1995, pelo que, sendo de 3 anos o prazo de prescrição da responsabilidade civil extracontratual, nos termos dos arts 71º/2 e 134º do DL 267/85, de 16 de Junho, cfr. art. 498º do C. Civil e cfr. art. 5º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, o prazo de prescrição encontra-se decorrido.

IV - A Inoponibilidade de Eventual Nulidade do acto expropriativo, se equiparado à venda de bem alheio, deduzida pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P, face ao regime do artº 291º do CC, alegando que quando celebrou a escritura de expropriação amigável com FF desconhecia que quaisquer terceiros reivindicassem a propriedade dos prédios em causa, tendo registado a aquisição do prédio em 29.11.1994, face ao que o regime do artº 291º do C. Civil, cfr. DL 243/2002 e artº 29º/3/c) do DL 207/2006, sempre ditaria que tal nulidade lhe fosse inoponível.

Em sede de impugnação, invocou que a procedência da acção dependeria da prova de ser a autora proprietária de uma concreta e determinada parcela de terreno, sendo que os autores não demonstraram ser proprietários do prédio 2962 e muito menos que ele tenha a localização que reclamam.

É que a acção é intentada por AA e BB e na certidão do registo Predial do prédio 2962 consta a aquisição a favor de AA, ou seja, o nome da autora não é o mesmo que consta da descrição predial do imóvel reivindicado. Por outro lado, foi recusado o registo de aquisição do referido prédio 2962 a favor de BB, pelo que não pode considerar-se provado que os autores são os proprietários do referido imóvel.

No local indicado pelos autores, nunca estiveram demarcados quaisquer lotes ou “talhões”, nem existiam arruamentos, estando o local em completo abandono antes de, por razões de segurança, terem sido realizados os trabalhos de consolidação da escarpa de ... e o Município de Setúbal ter colocado uma vedação.

Por outra via, o prédio 2962 foi desanexado do prédio 6337 em Abril de 1996 e o prédio 18.251 havia sido desanexado do mesmo prédio em Maio de 1956, motivo por que os prédios só podem ser distintos.

Ainda que viesse a considerar-se que os autores eram proprietários das parcelas de terreno em causa, com a localização indicada, aquela área integra-se na parcela 373 do PIS, com cerca de 13.000 m2 e foi expropriada para a execução do Plano Integrado de ... (PIS). E a intervenção que os réus ali levaram a cabo, em especial na designada escarpa de ..., foi necessária por razões de segurança, face às constantes derrocadas e desmoronamentos, que colocavam em perigo pessoas e bens.

No processo de expropriação são considerados interessados os que figurem no registo predial ou na matriz como titulares de direitos reais sobre o bem a expropriar e na matriz e no registo predial a área da totalidade da parcela 373 - cerca de 13.000 m2 -, estava inscrita na matriz a favor de FF. Assim, em 04.11.1994, foi celebrada escritura de "expropriação amigável", em que o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) atribuiu a FF a indemnização de 42.600.000$00 (€ 212.487,90), pela expropriação da totalidade do referido prédio.

Desta feita, tendo o IGAPHE (a que sucedeu o INH e agora o IHRU) pago a quem se apresentava como titular inscrito do prédio ou da área em causa, a indemnização pela totalidade da expropriação do mesmo (13.000 m2), não pode ser forçado a pagar nova indemnização ainda que correspectiva a uma parcela de 390 m2 da área expropriada).

Refere ainda que o pedido atinente a “considerar-se a propriedade tacitamente expropriada” não tem qualquer base legal.

Conclui pela improcedência dos pedidos de restituição dos terrenos em causa ou de pagamento de qualquer indemnização pela ré IHRU.

Mais deduziu pedido reconvencional para ser considerado caso venha a decidir-se que o prédio reivindicado pelos autores está contido na parcela objecto da expropriação levada a cabo pela ré e que consiste em decidir-se que adquiriu por usucapião, as parcelas de terreno reclamadas pelos autores.

Para tanto alega que registou a aquisição do prédio em causa em 29.11.1994 e que desde então realizou directamente ou através de terceiro, trabalhos de manutenção, o que foi feito de boa fé e pacificamente, como donos do terreno em causa, à vista e com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém.

Concluiu pela procedência do antedito pedido reconvencional e das excepções invocadas, assim como o incidente de fixação do valor da causa, que entende ser de fixar em € 44.453,12.

Por fim, solicitou a intervenção provocada de FF.

8. Os autores apresentaram réplica, respondendo à matéria de excepção e ao pedido reconvencional.

9. A ré IHRU apresentou tréplica.

10. Foi proferido despacho que julgou materialmente incompetente o TAF de Almada e absolveu os réus da instância.

11. Remetido o processo ao Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, foi proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando os autores a concretizarem quais os requerimentos que pretendem que os réus sejam condenados a decidir, bem como os factos concretizadores da eventual indemnização por danos causados, as despesas efectuadas e, por fim, o pedido alternativo.

Mais foram convidados a pronunciarem-se quanto ao valor da causa atribuído na petição inicial, considerando que, se se mantiver o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e da sua restituição conjugado com o pedido de indemnização, este valor deverá ser cumulado.

12. Em resposta, os autores referiram que os € 25.000,00 peticionados dizem respeito aos danos causados na propriedade, pela alteração e configuração do solo quantia que será acrescida com despesas já efectuadas, durante estes anos, respeitantes a deslocações ao Museu Distrital de Setúbal, ao Município e a diversas repartições, custo do levantamento topográfico e pagamento de certidões e continuação do pagamento das obrigações fiscais dos prédios objecto do presente processo bem como todos os encargos e despesas que se vierem a efectuar até à conclusão do processo, valor a apurar em execução de sentença.

Quanto ao valor do prédio, indicaram que o respectivo valor matricial é de € 24.645,15 e que o valor da indemnização no caso de se vir a confirmar a expropriação, será de € 145.000.00.

Concluíram peticionando que:

1 - A Câmara Municipal de Setúbal e o Instituto Nacional de Habitação reconheçam e respeitem a propriedade dos autores direito inscrito na Repartição de Finanças sob o art. 14106 na Matriz Predial Urbana, Freguesia de ..., permitindo a diferenciação dos lotes.

2 - Ser restituída a posse dos lotes de terreno, aos autores.

3 - Condenar os RR ao pagamento de uma indemnização num valor não inferior a 25.000,00 euros pelos danos já causados na propriedade, pela alteração e configuração do solo, acrescida das despesas já efectuadas e a efectuar que se vierem a apurar em execução de sentença.

Ou em alternativa

4 - Se considere a propriedade tacitamente expropriada, nos termos expostos, com o pagamento da indemnização que se vier a apurar nos termos da Lei, em função alteração e ocupação do terreno de acordo com o PDM, indemnização que neste momento se estima em 145 000,00.

13. Posteriormente, vieram os autores apresentar novo requerimento (fls. 418), onde concluem pedindo que se declare a invalidade do registo predial, matriz e direito a qualquer indemnização por parte de FF, com as legais consequências, uma vez que foi requerido o seu chamamento à demanda.

14. Foi proferido despacho fixando à acção o valor de € 49.645,15 (fls. 460) e ordenada a remessa dos autos às então Varas Mistas de ....

15. Foi admitida a intervenção principal acessória de FF.

16. Comprovado o falecimento do interveniente, foram declarados habilitados, em sua substituição, GG e HH.

17. Foi realizada prova pericial, que foi objecto de esclarecimentos.

18. Foi designada audiência prévia, onde, nos termos do artigo 651.º n.º 1, al. c.), in fine, do CPC, se convidou a IM dos autores a clarificar quais os danos por que os autores querem ser indemnizados e data em que os mesmos ocorreram, por reporte ao ponto 4 do seu segmento peditório, e a esclarecer desde quando os autores quiseram aceder à propriedade e se viram impossibilitados de o fazer, tendo a este propósito respondido que essa data coincide com a pretensão formulada junto do réu Município a que alude no art, 7º da mesma petição inicial.

Mais foram convidados a clarificar em concreto se os requerimentos a que aludem na última parte do n.º 1 do segmento peditório é apenas aquele que referem no artigo 7º da petição inicial, ou se há outros, circunstância em que os devem indicar, com menção das datas em que foram formulados e das entidades a que foram apresentados, tendo os mesmos respondido não estarem em condições de esclarecer o pretendido no momento e requerendo prazo para o fazer por escrito.

19. Indagados os mandatários dos autores e réus se aceitavam que o prédio 2962 registado em nome daqueles fosse considerado fisicamente incluído no perímetro da parcela 373 do PIS, que foi objecto da expropriação, a mandatária dos autores referiu:

considera-se que a parcela que corresponde à área dos talhões 80, 85 e 86 cuja propriedade os autores se arrogam está fisicamente incluída no perímetro da parcela 373 do PIS que foi objecto de expropriação; mas objectivamente a parcela propriedade dos AA. que é a referente aos talhões 80, 85 e 86 que não sendo identificada como as restantes parcelas ou seja, não foram expropriadas”.

20. O mandatário do Município referiu que não só aceita a localização do prédio dos autores tal qual consta do último paragrafo do relatório pericial de fls. 785 como aceita que a mesma se encontra na área expropriada.

21. O mandatário da IHRU referiu que não aceita a premissa constante da parte final da resposta aos quesitos de fls. 785, ou seja, que os talhões dos autores se localizem abaixo da rua paralela Avenida ... actualmente Rua ..., mas, se vier a comprovar-se que é essa a localização, aceita que a mesma está fisicamente incluída no perímetro da área expropriada.

22. O mandatário das habilitadas referiu que acompanha a posição do mandatário da IHRU.

23. Os autores apresentaram requerimento onde alegaram que os danos de que desejam ser indemnizados respeitam à circunstância de que após terem conhecimento da ocupação e desfiguração do terreno, que ocorreu quando foram efectuadas obras, como a construção da estrada e colocação de uma vedação que impediram os autores de poder usufruir e de ter acesso aos seus lotes, presumindo-se que as mesmas terão ocorrido entre os anos de 1995/1996, e do que já tinham gasto àquela data, para recuperarem a posse e o direito dos lotes de que são proprietários, que incluíram deslocações da ... para... e ..., telefonemas, fotocópias, obtenção de plantas, pagamentos de honorários a solicitador e advogados, bem como pelos incómodos, aborrecimentos e desgaste físico e psicológico, sofrimento desnecessário a quem tem já tanta idade, por estarem a reclamar o seu direito de propriedade e o Instituto Público recusar sistematicamente esse reconhecimento, estes, a título de danos morais.

Mais afirmaram quererem também ser indemnizados de todas as despesas que continuam a efectuar, como por ex., o pagamento dos IMIS, bem como desejam ser ressarcidos de todos os gastos processuais, tal como, no caso de não lhes ser possível a recuperação da posse dos lotes, considerando-se, em alternativa a propriedade tacitamente expropriada, com pagamento de indemnização que se vier a apurar nos termos da lei.

Mais afirmaram que quiseram aceder à sua propriedade e viram-se impossibilitados de o fazer muito antes de 1 Abril de 1998 referindo que, muito antes de 01 de Abril de 1998, houve cerca de dois, três anos de contactos, conversações e negociações por intermédio do advogado da Câmara.

24. Os esclarecimentos acima sumariados foram atendidos, de acordo com o despacho de 28/05/2020 (fls. 900 e ss.). O mais alegado foi mandado desconsiderar no mesmo despacho.

Ainda naquele despacho foi admitido o pedido reconvencional e elaborado saneador, onde se concluiu que a p.i. não enfermava de nulidade.

Quanto à excepção de falta de personalidade judiciária e de legitimidade passiva, da demandada Câmara Municipal de Setúbal suscitada pelo contestante Município de Setúbal, concluiu-se que a acção se considera também proposta contra o Município, que assumiu a posição de parte passiva ao contestar a acção, considerando-se que a parte passiva em primeiro demandada, é o Município de Setúbal e não a Câmara Municipal de Setúbal.

Quanto às excepções da extinção de direitos que os autores tivessem sobre os terrenos em causa, prescrição do direito à indemnização e inoponibilidade de eventual nulidade do acto expropriativo, se equiparado à venda de bem alheio, deduzidas pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P, relegou-se o seu conhecimento para momento posterior ao da produção da prova.

No mais, enunciou-se o objecto do litígio e seleccionaram-se os temas de prova, que foram objecto de reclamação.

25. Designou-se audiência prévia para conhecimento das reclamações.

Ali considerou-se que os pedidos dos autores a considerar, após o convite ao aperfeiçoamento de 28.04.2011, tudo ponderado, eram os seguintes:

DEVE:

1 - A Câmara Municipal de Setúbal e o Instituto Nacional de Habitação reconhecerem e respeitarem a propriedade dos AA, direito inscrito na Repartição de Finanças sob o art. 14106 na Matriz Predial Urbana, Freguesia de ..., permitindo a diferenciação dos lotes.

2 - Ser restituída a posse dos lotes de terreno, aos AA.

3 - Condenar os RR ao pagamento de uma indemnização num valor não inferior a 25.000,00 euros pelos danos causados na propriedade, pela alteração e configuração do solo, acrescida das despesas efectuadas e a efectuar que se vierem a apurar em execução de sentença.

Ou em alternativa

4 - Considerar-se a propriedade tacitamente expropriada, nos termos expostos, com o pagamento da indemnização que se vier a apurar nos termos da Lei, em função alteração e ocupação do terreno de acordo com o PDM, indemnização que neste momento se estima em 145 000,00€ (cento e quarenta e cinco mil euros), ou o valor que se vier a apurar em execução de sentença”.

Também se admitiu a ampliação do pedido de 15/06/2020, em termos de se apreciar também, não a nulidade do acto expropriativo, mas a sua ineficácia/inoponibilidade em relação aos autores, tendo-se adiantado, no que tange ao pedido de alteração do averbamento da titularidade no registo e na matriz, que o mesmo é uma decorrência natural do reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel 14106/matriz por parte dos autores, pedido que está implícito no que pede a condenação dos RR a respeitar o direito de propriedade dos autores sobre o terreno em causa, motivo porque ainda radica na mesma causa de pedir, tal qual foi identificada.

No mais, atendeu-se parcialmente às reclamações apresentadas.

26. Realizou-se a audiência de julgamento, após o que veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu julgar:

a) Procedente a excepção de extinção do direito de propriedade dos AA. sobre o prédio 2962, face à expropriação levada a cabo pelo R. Instituto.

b) Improcedentes por não provados, os pedidos principais formulados pelos AA, absolvendo-se os RR. dos mesmos.

c) Improcedente por não provado, o pedido reconvencional formulado pelo R. Instituto, absolvendo-se os AA. do mesmo.

d) Prejudicado o conhecimento da excepção de prescrição invocada pelo R. Instituto.

e) Parcialmente (já que o patamar reclamado é de 145.000,00) procedente por parcialmente provado o pedido subsidiário formulado pelos AA., face ao que se condena o R. Instituto a pagar-lhes a indemnização que vier a ser liquidada (artº 609º, 2, do CPC), como sendo a devida pela área que corresponde ao prédio 2962, nos mesmos termos em que sucederia, se tivessem intervindo na expropriação realizada.

f) Comunique à CRP de ... o que consta da al. a) da presente decisão.

As custas da acção ficarão a cargo dos autores e do réu Instituto, na proporção de ¾ para aqueles e ¼ para este.

O pedido reconvencional não tem valor autónomo, face ao que consta do despacho que o admitiu e ao estatuído no artº 299º, 2, a contrario, do CPC”.

27. Inconformado, recorreu o IRHU, IP., pedindo a revogação da sentença recorrida e a improcedência da acção,

28. Os autores deduziram recurso subordinado.

29. O Tribunal da Relação de Évora proferiu Acórdão com o seguinte dispositivo:

(…) acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedentes os recursos e, em consequência:

a) Alterar a alínea e) do dispositivo da sentença e julgar parcialmente procedente o pedido subsidiário formulado pelos AA., condenando-se o R. Instituto a pagar-lhes a indemnização no valor de € 6.372,60, como sendo a devida pela área que corresponde ao prédio 2962, actualizada de acordo com a evolução do índice de preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo INE, desde 04/11/1994 até à presente data.

b) Manter a sentença quanto ao demais decidido”.

30. Não se conformando com esta decisão, vêm os autores interpor recurso de revista, pugnando pela repristinação da sentença.

Terminam as suas alegações com as seguintes conclusões:

Estão em causa duas grandes questões:

a) A alteração da sentença da Juíza a quo com a condenação da liquidação com base no artº 609º, nº 2 do C.P.C., para o pagamento em quantia certa, devendo manter-se a sentença da Juíza a quo. A aplicação inadequada do artº. 37º, nº 5 do Código da Expropriação e a violação do art. 62º, nº 2 da C.R.P.

b) A quantia proposta para pagamento dos lotes viola o princípio do pagamento da justa indemnização. Violação do princípio da justa indemnização – artº 62º, nº 2 da C.R.P.

Neste sentido,

1. Nos presentes autos está em causa a alteração promovida pela Juíza a quo da alínea e) do dispositivo da Sentença da Primeira Instância e julgar parcialmente procedente o pedido subsidiário formulado pelos AA., condenando-se o R. Instituto a pagar-lhes a indemnização no valor de € 6.372,60 como sendo a devida pela área que corresponde ao prédio 2962, atualizada de acordo com a evolução do índice de preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo INE, desde 04/11/1994 até à presente data.

2. Tendo decidido o Tribunal a quo na alínea e) parcialmente (já que o patamar reclamado é de €145.000,00) procedente por parcialmente provado o pedido subsidiário formulado pelos AA., face ao que se condena o R. Instituto a pagar-lhes a indemnização que vier a ser liquidada (artº 609º, nº 2 do C.P.C.), como sendo a devida pela área que corresponde ao prédio 2962, nos mesmos termos em que se sucederia, se tivessem intervindo na expropriação realizada.

3. Sendo certo que a alteração promovida pelo Tribunal da Segunda Instância de parte da Sentença da Primeira Instância, que condenou em liquidação com base no artº 609º, nº 2 do C.P.C., alteração que não foi pedida pelos AA.

4. O Tribunal Recorrido com esta alteração transformou a Sentença com pagamento em quantia certa. Pagamento que viola de forma clara o princípio da justa indemnização que se encontra salvaguardado na Sentença da Primeira Instância.

5. Pelo que deve ser mantida a Sentença da Primeira Instância que condena em liquidação nos termos do artº 609º, nº 2 do C.P.C.; a não ser assim, estaria a ser violado o princípio da justa indemnização previsto no artº 62º, nº 2 da Constituição.

6. E que “tendo em conta os princípios constitucionais e legais que impõem a fixação da “justa indemnização” pela expropriação, invocados pelos AA. no recurso, em virtude do que se fixou o valor indemnizatório pela expropriação da parcela, com a respetiva atualização, nos termos supra referidos, segundo a Sentença do Tribunal a quo.

7. De facto, não pode manter-se a alteração da Sentença proferida pelo Tribunal Recorrido, para pagamento em quantia certa, deve manter-se a Sentença do Tribunal de Primeira Instância, com condenação em liquidação com base no artº 609º, nº 2 do C.P.C., com a qual os AA. concordaram no seu recurso subordinado, daí o facto de não terem recorrido.

8. Os AA. ao pedirem nas suas alegações, para manter a negociação com base no valor de € 145 000,00, estão a pedir para manter a Sentença da Primeira Instância sendo uma forma indireta de pedir que se mantenha a condenação em liquidação.

9. A alteração da Sentença a quo viola o princípio da justa indemnização pela expropriação do seu prédio, nos termos do artº 62º, nº 2 da Constituição.

10. De facto, não assiste razão ao Tribunal da Relação, que em nada obsta a que, em face da insuficiência de elementos para determinar o montante em dívida se profira uma condenação ilíquida com a consequente remissão do apuramento da responsabilidade para momento posterior, desde que essa segunda oportunidade de prova não incida sobre a existência de danos, mas apenas sobre o respetivo valor, assim é o entendimento do Venerando Supremo Tribunal de Justiça.

11. Ademais, refira-se ser este entendimento, o mais consentâneo com o princípio da igualdade, uma vez que não se vislumbra fundamento material para tratar diferentemente aqueles que formulam ab initio um pedido genérico e os que optam logo à partida por um pedido específico.

12. De acordo com o nosso entendimento, houve violação pelo Tribunal Recorrido da lei substantiva e dos princípios constitucionais e no erro de interpretação da norma processual.

13. Verificando-se, igualmente, o princípio violado pelo Tribunal Recorrido, uma vez que os AA. nunca pediram tal alteração, bem como a aplicação inadequada do artº 37º, nº 5 do Código das Expropriações.

14. De facto, o Tribunal da Relação interpretou de forma não adequada, o decidido pela Juíza de Primeira Instância a quo e o pedido dos AA. Estes, jamais puseram em causa a decisão da Juíza a quo – al. e) da Decisão.

15. Na verdade, os AA. nas suas alegações em “conclusões” – alínea v) referem que “(…) a serem considerados os lotes incluídos na expropriação, a indemnização a ser paga aos AA., tem de obedecer aos princípios e critérios que regem as expropriações, de acordo com o valor que a Meritíssima Juíza da Primeira Instância menciona de € 145.000,00 e não o valor irrisório e ofensivo e contrário à Sentença que a R. IHRU propôs.”

16. Pelo que a Juíza a quo, na sua livre convicção, na prolação da Sentença, ao condenar em liquidação nos termos do artº 609º, nº 2 do C.P.C., decidiu que só em negociação posterior, quanto ao valor, poderia ser resolvida a questão de forma justa e sem violar o princípio da justa indemnização previsto no artº 62º da C.R.P.

17. Como referido, tal como os AA. confirmaram nas alegações de Recurso Subordinado, pelo que deve ser mantida a Douta Sentença do Tribunal da Primeira Instância.

18. Ademais, os AA. continuaram a pagar os seus impostos com base no valor do terreno atribuído pelo Serviço de Finanças, referindo-se que em 2016 o valor patrimonial tributário atribuído aos lotes era de € 113.000,00; em 2021 e segundo a nota de cobrança, o valor é de € 114.695,00, de acordo com os docs. 1 e 2.

19. Perante estes valores, não podem de forma alguma estes lotes serem pagos agora, pelo valor irrisório de € 6.372,00.

20. Pelo que a quantia em que o Tribunal da Segunda Instância condena o R. Instituto a pagar-lhes a indemnização de € 6.372,60, como sendo a devida, pela área que corresponde ao prédio 2962 atualizada de acordo com a evolução do índice de preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo INE, desde 04/11/1994 até à presente data, sendo um valor irrisório e ofensivo que atenta “os princípios constitucionais e legais que impõe a fixação da “JUSTA INDEMNIZAÇÃO.”

21. De facto, a expropriação, invocada pelos AA. no seu recurso em virtude do valor indemnizatório que o Douto Tribunal a quo, fixou na Sentença, são a prova clara que o Douto Acórdão do Tribunal recorrido, viola o princípio da justa indemnização, prevista na C.R.P.

22. Quanto à aplicação do artº 37, nº 5º do Código das Expropriações, o mesmo não se considera adequado, uma vez que tal artigo se destina aos proprietários, que só muito mais tarde vêm a constatar que o seu terreno foi expropriado o que não foi o caso dos AA.

23. Perante tais vicissitudes e pela circunstância dos lotes estarem inscritos nas finanças e descritos na conservatória, não se pode aplicar o artº. 37º, nº 5º do Código das Expropriações.

24. A Sentença da Meritíssima Juíza a quo ao condenar em liquidação ao abrigo do artº 609º, nº 2 do C.P.C. foi uma forma justa e sem violar o princípio da justa indemnização, posição que os AA. confirmaram nas suas alegações do recurso subordinado, pelo que deve ser mantida a sentença da Meritíssima Juíza a quo.

25. Os AA. ao mencionar o critério da lei, era no sentido da negociação com o IHRU ser com base no valor de € 145.000,00 para apurar o valor do terreno em função de ser um terreno para construção, desde a compra até à expropriação.

26. Os lotes foram sempre excluídos de todas as vendas, de acordo com o que expressam várias escrituras de compra e venda. Eram autónomos, pelo que na última venda, que deu origem à expropriação, também não foram vendidos. Foram ocupados. Não podem estar incluídos no preço da venda, mesmo estando no perímetro da expropriação.

27. Parte do projeto do loteamento de 1919, foi devidamente aprovado pelo Município. Parte desse loteamento está construído. A expropriação da área onde estão os lotes dos AA. teve como justificação que era para construção de um bairro social. Os lotes dos AA. não estavam na escarpa, faziam parte da área com capacidade de construção, conforme documentos oficiais que constam do processo.

28. Se não forem consideradas todas estas vicissitudes dos lotes em causa, o preço atribuído viola de forma manifesta e clara a justa indemnização a que os AA. e todos os cidadãos têm direito e a que o Estado está obrigado.

29. Além de que, como se referiu, não pode ser atribuído o valor de € 6.372,60 uma vez que tinham que ser considerados os valores patrimoniais atribuídos pela administração fiscal, valores sobre os quais os AA. continuaram a pagar IMI.

30. Este facto, cujos documentos constam dos autos, bem como a atitude do R. IHRU, tentando ocultar a realidade. “Primeiro dizendo que os lotes não estavam naquele local, segundo que não foram expropriados e ainda por terem localizado outros lotes dentro da Parcela 3I, (Lotes 396 e 401) são suficientes para impedir a aplicação do artº 37, nº 5º do Código das Expropriações.

31. A aplicação do art.35º do referido código, não tem aplicação no caso em análise, uma vez que a IHRU, perante todas estas vicissitudes, soube desde o início que os AA. queriam reclamar e negociar o seu terreno e negociaram através de advogado.

32. Foram os AA. que entregaram ao R. IHRU uma cópia do projeto de Loteamento para a Construção do Bairro Barreto devidamente aprovado em 1919.

33. No caso em análise estaria a ser violado o princípio da justa indemnização.

34. Deve ser mantida a sentença da primeira instância que condena em liquidação nos termos do art. 609º, nº 2 do C.P.C.

35. A alteração da parte da sentença da Primeira Instância, que condenou a R. IHRU em liquidação com base no artº 609º, nº 2 do C.P.C. e que não foi pedida pelos AA., o Tribunal Recorrido ao transformá-la em quantia certa viola de forma manifesta o princípio da justa indemnização. Princípio que a Meritíssima Juíza a quo salvaguardou na Douta Sentença da Primeira Instância.

36. Em face da insuficiência de elementos para determinar o montante indemnizatório, nada obsta a que se profira condenação ilíquida, com a consequente remição do apuramento para momento posterior, desde que essa segunda oportunidade não incida sobre a existência dos danos mas sobre o respetivo valor, aliás como é o caso da sentença proferida em primeira instância, da Meritíssima Juíza a quo, não está em causa a indemnização, mas o valor da indemnização.

37. Os AA. concordaram com a sentença da primeira instância, daí o facto de não terem recorrido.

38. Apenas no recurso subordinado pediram a confirmação de que a negociação, como a Meritíssima Juíza a quo decidira, tivesse como base o valor de € 145.000,00, uma vez que o IHRU, se encontrava a pedir o valor de € 6.000,00 injusto, sem fundamento e violador de uma justa indemnização.

39. Houve um erro do Tribunal Recorrido ao aplicar o artº 37º, nº 5 do Código das Expropriações, alterando a decisão do Tribunal a quo, erro na aplicação do pedido dos AA. na redação das suas alegações, ao não considerarem a posição da Juíza a quo.

40. Considerando todas as vicissitudes destes autos, o IHRU, não se comportou com a dignidade e boa fé que o Estado e as Entidades Públicas estão obrigados na defesa, no respeito e salvaguarda pelos Direitos e Interesses legítimos dos Cidadãos, nas suas relações com o Estado e a Administração Pública”.

31. Pugnando pela improcedência do recurso, a ré IHRU apresentou contra-alegações e ainda recurso subordinado.

As conclusões do recurso subordinado são as seguintes:

I. O presente Recurso Subordinado é interposto pelo IHRU do douto Acórdão do Tribunal a quo de 02.03.2023, em que se decidiu condenar o IHRU a pagar aos AA. “a indemnização no valor de € 6.372,60, como sendo a devida pela área que corresponde ao prédio 2962, actualizada de acordo com a evolução do índice de preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo INE, desde 04/11/1994 até à presente data”, sendo que, entretanto, os AA. interpuseram recurso daquele Acórdão, pretendendo o retorno ao decidido em 1.ª Instância (i.e. condenação do IHRU “a pagar-lhes a indemnização que vier a ser liquidada (artº 609º, nº 2, do CPC)”, até ao “patamar reclamado (…) de 145.000,00”) – cfr. n.ºs 1 e segs. do texto das presentes Alegações;

II. Em concreto, o presente recurso do IHRU incide sobre o decidido no n.º 14 do douto Acórdão recorrido (e a, consequente, condenação do IHRU a final), em concreto a alegada responsabilidade do IHRU pelo pagamento da indemnização aos AA., apesar do que se dispunha no art. 36.º/4 Código das Expropriações de 1991 e se dispõe no art. 37.º/5 do Código das Expropriações de 1999, relativamente ao surgimento de interessados após escritura de expropriação amigável, sem que tenha existido culpa da entidade expropriante, como é claramente o caso (v. n.ºs 25 a 27, 30, 31, 33, 35, 40, 42 e 43 dos factos provados) – cfr. n.ºs 1 e segs. do texto das presentes Alegações;

- Da admissibilidade do Recurso de Revista

III. A admissibilidade do presente recurso decorre do disposto no art. 672.º/1/a) e c) do CPC, em concreto, por um lado, a contradição entre o decidido no douto Acórdão Recorrido e o decidido por esse Venerando Supremo Tribunal em anterior Acórdão transitado em julgado, e, por outro lado, a relevância jurídica da questão sub judice – cfr. n.ºs 3 e segs. do texto das presentes Alegações;

IV. Com efeito, por um lado, o douto Acórdão recorrido decidiu em sentido contrário do decidido por esse Venerando Supremo Tribunal, no douto Acórdão de 12.12.2013, proferido no Proc. 873/03.5TBMCN.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, cuja cópia adiante se junta, transitado em julgado – cfr. n.ºs 5 e segs. do texto das presentes Alegações;

V. Nomeadamente, no douto Acórdão recorrido decidiu-se que a entidade expropriante era responsável pelo pagamento de (nova) indemnização, agora ao interessado que surgiu tardiamente, tendo, em sentido contrário se decidido no Acórdão desse Venerando Supremo Tribunal, acima referido, que, em caso de inexistência de culpa da entidade expropriante (como é o caso), os “interessados, preteridos no acordo alcançado, [apenas podem] demandar os interessados aparentes que nele participaram efectivamente, com vista a obter rateadamente a parcela indemnizatória a que, porventura , tenham direito” (“apenas podem” e sublinhado acrescentados por nós) – cfr. n.ºs 5 e segs. do texto das presentes Alegações;

VI. Sublinhe-se que o facto de no douto Acórdão desse Venerando Supremo Tribunal estar em causa “arrendatário rural” e no caso em apreço estar em causa alegado proprietário de parte da parcela expropriada não assume relevância, pois, como esclarecido no douto Acórdão desse Venerando Supremo Tribunal, aquele foi considerado “interessado” com direito a indemnização (tal como se verificaria relativamente a um proprietário), salientando-se expressamente “que não está em causa, nem a qualificação do arrendatário rural como interessado na expropriação, nos termos do art. 9º do CE de 91, nem que a indemnização respeitante ao arrendamento rural constitui um encargo autónomo da propriedade, a ressarcir nos termos do art. 29º, nº5, daquele Código” – cfr. n.ºs 5 e segs. do texto das presentes Alegações;

VII. Refira-se, ainda, que, no caso em apreço, a escritura de expropriação amigável foi celebrada na vigência do CE de 1991, pelo que embora o presente processo tenha sido iniciado na vigência do CE de 1999 (tal como, aliás, o processo em que foi proferido o Acórdão o douto Acórdão desse Venerando Supremo Tribunal), estando-se, assim, no domínio da mesma legislação - de resto, relativamente à questão em apreço, o CE de 1999 estipula exatamente o mesmo que se estipulava no CE de 1991 – cfr. n.ºs 5 e segs. do texto das presentes Alegações;

VIII. Por outro lado, está em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – cfr. n.ºs 8 e segs. do texto das presentes Alegações;

XIX. Com efeito, está em causa questão suscetível de se repetir “num número indeterminado de casos futuros”, maxime atendendo que o art. 37.º/5 do atual CE de 1999, dispõe exatamente o mesmo que se dispunha no art. 36.º/4 do CE de 1991 e, além disso, com o devido respeito - e é verdadeiramente muito -, o douto Acórdão recorrido faz tábua rasa do que se dispõe naqueles preceitos, pois apesar de (bem) considerar verificados os respetivos pressupostos, condenou o R. a pagar nova indemnização a 3.º interessado que surgiu posteriormente, quando o R. já havia pago a indemnização ao titular inscrito no Registo Predial e na Matriz como titular de toda a parcela expropriada – cfr. n.ºs 8 e segs. do texto das presentes Alegações;

X. Face ao exposto, o presente Recurso é admissível, pois (i) o douto Acórdão recorrido está em contradição com Acórdão, já transitado em julgado, proferido por esse Venerando Supremo Tribunal e, por outro lado, (ii) está em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 672.º/1/a) do CPC) – cfr. n.ºs 3 e segs. do texto das presentes Alegações;

- Fundamentos do Recurso

XI. No douto Acórdão recorrido conclui-se pela aplicação do que dispõe no art. 36.º/4 do CE de 1991 e no art. 37.º/5 do atual CE de 1999, nomeadamente que “não se apurou” “dolo ou culpa grave por parte da entidade expropriante” (que manifestamente não se verificou, sendo totalmente falso o que os AA. lamentavelmente vieram invocar), mas, contrariamente ao que decorre dos mesmos, decidiu-se que se mantem “necessariamente, a obrigação, por parte do R., enquanto entidade expropriante (ou que sucedeu na posição daquele), de proceder ao pagamento da justa indemnização, em conformidade com o disposto nos artigos 62º, n.º 2, da Constituição, 1310º do Código Civil e 1º do CE de 1999” – cfr. n.ºs 10 e segs. do texto das presentes Alegações;

XII. Com o devido respeito, ao assim decidir, o douto Acórdão recorrido enferma de erros de julgamento – cfr. n.ºs 10 e segs. do texto das presentes Alegações;

XIII. Como decorre do Acórdão desse Venerando Supremo Tribunal acima referido (e adiante junto), não tendo a entidade expropriante atuado com dolo ou culpa grave, como é manifestamente o caso (a escritura de expropriação amigável foi celebrada com o titular inscrito de toda a parcela expropriada, no Registo e na Matriz, dispondo esta, inclusive de planta cadastral – v. Doc. 4 da Contestação do IHRU, junto em 08.04.2008), os interessados que surjam posteriormente “preteridos no acordo alcançado”, podem “demandar os interessados aparentes que nele participaram efectivamente, com vista a obter rateadamente a parcela indemnizatória a que, porventura , tenham direito” (v. Acórdão acima transcrito; cfr., no mesmo sentido, José Osvaldo Gomes Expropriações por Utilidade Pública, pág. 371) – cfr. n.ºs 10 e segs. do texto das presentes Alegações;

XIV. No caso em apreço, tendo-se concluído que o terreno dos AA. se situa na parcela 373 do PIS, verifica-se precisamente aquela situação, como decorre dos factos provados 25 a 27, 30, 31, 33, 35 40, 42 e 43 (acima transcritos), e dos arts. 36.º/4 do CE de 1991 e 37.º/5 do atual CE de 1999, sendo inquestionável a boa fé do então IGAPHE ao celebrar a escritura de expropriação amigável, em 1994, com o expropriado que se apresentava como titular de todo o prédio (dos 13.000m2 da parcela 373 do PIS – facto 26), no registo e na matriz (e até com caderneta predial com planta cadastral correspondente àquela parcela – v. Doc. 4 da Contestação do IHRU, junto em 08.04.2008) - tudo como previsto no art. 9.º/3 do CE de 1991 (e no atual art. 9.º/3 do CE 1999) – cfr. n.ºs 10 e segs. do texto das presentes Alegações;

XV. No entanto, conforme acima demonstrado, apesar de reconhecer a verificação dos pressupostos da aplicação dos arts. 36.º/4 do CE de 1991 e 37.º/5 do CE de 1999, o douto Acórdão recorrido não segue o previsto nestes preceitos e a Jurisprudência desse Venerando Supremo Tribunal e a Doutrina (que, como acima referido, é no sentido de não se poder demandar a entidade expropriante, mas sim quem recebeu a indemnização) – cfr. n.ºs 10 e segs. do texto das presentes Alegações;

XVI. Com efeito, a condenação do IHRU a pagar uma (nova) segunda indemnização, agora aos AA., viola o que se estabelece naqueles arts. 36.º/4 do CE de 1991 e 37.º/5 do CE de 1999, pois não se trata de “reconstituição da situação que existiria se tivessem participado no acordo, nos termos em que este foi concluído”, como previsto nestes preceitos, mas sim, repita-se, na condenação do IHRU no pagamento de uma nova (segunda) indemnização – cfr. n.ºs 10 e segs. do texto das presentes Alegações;

XVII. Contra o exposto não se invoque, como referido no douto Acórdão recorrido, um “eventual direito de regresso que assista à expropriante contra o titular do prédio que recebeu a indemnização total, que para isso chamou a intervir nos autos”, pois, o facto de o IHRU, por cautela, ter chamado a intervir nos presentes autos “o titular do prédio que recebeu a indemnização total”, não afasta o disposto naqueles arts. 36.º/4 do CE de 1991 e 37.º/5 do CE de 1999 - de resto, tal diligência do IHRU acaba por beneficiar os AA., que optaram por não intentar a ação contra aquele – cfr. n.ºs 10 e segs. do texto das presentes Alegações;

XVIII. Face ao exposto, o douto Acórdão recorrido, ao condenar o IHRU a pagar uma nova (segunda) indemnização pelo prédio expropriado, agora aos AA., enferma de erros de julgamento, tendo violado o disposto no art. 36.º/4 do CE 91 (em vigor à data da escritura de expropriação amigável), e no art. 37.º/5 do CE 99 (atualmente em vigor) – cfr. n.ºs 10 e segs. do texto das presentes Alegações”.

32. Os autores apresentaram também resposta ao recurso subordinado.

33. O Exmo. Senhor Desembargador proferiu despacho com o seguinte teor:

Por os recorrentes terem legitimidade, estarem em tempo (tendo pago a multa prevista no artigo 139º do Código de Processo Civil) e a decisão ser recorrível, admite-se o recurso interposto pelos AA., AA e BB, do acórdão de 02/03/2023, o qual é de REVISTA, sobe nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo (cf. artigos 631º, n.º 1, 638º, n.º 1, 629º, n.º 1, 671º, n.º 1, 675º, n.º 1, e 676º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Quanto ao recurso subordinado, interposto pelo R. INSTITUTO DA HABITAÇÃO E DA REABILITAÇÃO URBANA, IP, não obstante serem invocados fundamentos de revista excepcional, previstos no artigo 672º do Código de Processo Civil, cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre a respectiva admissibilidade (cf. n.º 3 do citado artigo), o mesmo é admissível como de Revista, dita normal, nos termos do n.º 5 do art 633º do Código de Processo Civil, que assim se admite, com o mesmo modo de subida e feito do recurso principal.

Notifique e remeta os autos ao Supremo Tribunal de Justiça”.

34. O recurso subordinado foi admitido por via excepcional pela Formação.

*

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir são:

1.ª) No recurso independente: se o Tribunal procedeu em conformidade com a lei, designadamente a lei fundamental, ao quantificar a indemnização e, mais precisamente, ao quantificá-la no valor de € 6.372,60; e

2.ª) No recurso subordinado: se o Tribunal procedeu em conformidade com a lei ao condenar a ré IHRU numa obrigação de indemnização aos autores.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. Em 13 de Janeiro de 1926, foi celebrada escritura de venda, através da qual CC e esposa declararam, além do mais: “Que são donos e possuidores de um prédio rustico, composto actualmente de terreno com oliveiras, no sítio do Vale de ..., freguesia de ... de ..., descrito na Conservatória do registo Predial desta comarca, sob o número seis mil trezentos e trinta e sete a folhas cento e noventa do livro B vigésimo sexto. Que da parte deste prédio, que destinaram para a construção de um bairro, pela presente escritura vendem de hoje para sempre, ao segundo outorgante senhor digo, ao senhor DD os talhões números oitenta, oitenta e cinco e oitenta e seis, na superfície total de trezentos e noventa metros quadrados,' e com as seguintes medições e confrontações: - do Norte, treze metros mais treze metros, com terreno dos vendedores, do Sul, vinte e seis metros, com a rua D do referido bairro, do Nascente, dez metros, com a rua A do mesmo bairro, e do poente, vinte, digo, Nascente, dez metros com a rua A do mesmo bairro, e outros dez metros com terreno dos vendedores, e do Poente, vinte metros, com a rua J do dito bairro…”.

2. DD era pai da Autora.

3. Em 26.04.1966 foi inscrito na CRP de ..., a favor de DD, sob o nº 2.962, o prédio rústico no vale de..., norte: CC, sul: rua D, nascente: rua A e CC, poente: Rua J, constituído por terreno para construção urbana, talhões 80, 85 e 86, 390 mº4, desanexado do 6.337.

4. Pela ap. 24/300992, foi recusada a conversão em definitivo do registo de aquisição do prédio 2962 a favor de AA c.c. BB, no regime de comunhão geral.

4-a). Pela ap. 12/930419 foi inscrito a favor de AA, por sucessão hereditária de DD e mulher II, a titularidade sobre o prédio 2962 (anterior 24.307).

4-b). O prédio 2962 foi inscrito na matriz em 1995, sob o artº 14.106.

5. Em 12.01.1956, foi celebrada escritura de venda, através da qual CC e esposa declararam, além do mais: Que são donos e possuidores de um prédio rustico situado no Vale de ... (…) descrito na Conservatória do registo Predial desta comarca, sob o número seis mil trezentos e trinta e sete a folhas cento e noventa do livro B vigésimo sexto, inscrito na matriz sob o artº 394. Que deste seu prédio vendem a EE para construção urbana (…), uma porção de terreno com a área de 11.840 m2, com todas as respectivas pertenças. Que, para os devidos efeitos, declaram que no prédio ora vendido existem as seguintes parcelas: (…) c) - três, com a superfície de trezentos noventa e oito metros quadrados, pertencentes a DD (…). Que todas estas mencionadas parcelas de terreno não estão incluídas na venda, como é óbvio, visto constituírem propriedade alheia ou de terceiros, estando o comprador perfeitamente conhecedor de tudo o que diz respeito ao terreno ora vendido, pelo que a venda será livre de qualquer responsabilidade futura deles vendedores…”.

6. Em 12.09.1956, foi celebrada escritura de venda através da qual EE e esposa declararam, além do mais: “- Que, pela presente escritura, vendem ao segundo outorgante FF, livre de encargos, pelo preço de quarenta mil escudos, o seu prédio rústico no ..., no sitio das ..., no Vale de ..., Bairro ..., freguesia de ..., deste concelho (…) descrito na Conservatória do registo Predial de ... sob o nº 18.2511 [sublinhado nosso] (…). Que, para os devidos efeitos, declaram que no prédio ora vendido existem as seguintes parcelas: (…) c) - três, com a superfície de trezentos noventa e oito metros quadrados, pertencentes a DD (…). Que todas estas mencionadas parcelas de terreno não estão incluídas na venda, como é óbvio, visto constituírem propriedade alheia ou de terceiros, estando o comprador perfeitamente conhecedor de tudo o que diz respeito ao terreno ora vendido, pelo que a venda será livre de qualquer responsabilidade futura deles vendedores …”.

7. Em 01.04.1998 o A. apresentou na Câmara Municipal de Setúbal, Departamento de Habitação e Urbanismo, o requerimento cuja cópia está junta a fls. 40, onde além do mais refere: “na qualidade de proprietário de um terreno para construção urbana situado na freguesia de ... do concelho de ..., talhões nºs 80, 85 e 86, com o total de área de 390 m2, inscrito sob o artigo 14106 na Repartição de Finanças, registado na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 24307, folhas 48 do Livro B-79 (…), requer a V. Ex", em conformidade com o disposto no artigo do D.L. 445/91 de 20 de Novembro, lhe seja prestado informação sobre os instrumentos de planeamento em vigor para aquela área, bem como as demais condições gerais a que devem obedecer as obras naquele local.”.

8. Em 29.04.1998 o Município de Setúbal respondeu que tinham submetido a pretensão do A. à apreciação do Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado.

9. Em 09.07.1998 o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado, enviou à Câmara Municipal de Setúbal o ofício cuja cópia está junta a fls. 45, onde além do mais refere: “… considera-se que deverá haver erro na localização dos talhões de terreno sobre os quais recai o pedido em referência.

De acordo com a planta remetida aqueles situar-se-iam numa parcela (parcela 373 do PIS) adquirido, pelo IGAPHE, o que é incompatível; por outro lado, atendendo às confrontações e consultada a lista dos proprietários abrangidos pela obra de consolidação da Escarpa de ..., verifica-se que nem o nome do requerente nem o dos proprietários confrontantes com o terreno em causa, aparecem referidos na listagem atrás mencionada.”.

10. Em 14.02.1999 o Município de Setúbal enviou ao A. o ofício cuja cópia está junta a fls. 48, onde além do mais refere: “De acordo com a documentação apresentada para instrução do requerimento acima mencionado, os talhões no mesmo referidos situam-se na Parcela n° 373 do Plano Integrado de Setúbal e todo o prédio em que se localizam (artigo 3 da seção T da freguesia de S. Sebastião) com a área de 13.000 m2, é propriedade do Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado. Aquele prédio foi desanexado do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 18251, que anteriormente tinha sido desanexado do descrito sob o nº 6337, do qual o seu também foi desanexado.”.

11. A estrutura do prédio 2962 foi afectada pela Consolidação da Escarpa de ... e pela construção da estrada, tendo ficado alterada na forma, estrutura e relevo.

12. A zona correspondente ao prédio foi igualmente ocupada, vedada e ficou sem acesso à via publica, sem que os autores fossem notificados desse facto.

13. Os lotes em causa situam-se na cumeada da escarpa de ....

14. Tal estrutura geológica foi sofrendo, ao longo dos anos, diversas derrocadas e deslizamentos de terras que, muitas vezes, tinham tal intensidade que obstruíam a estrada e linha-férrea contíguas, a sul, com a sua base.

15. A cumeada da escarpa de ... integra os terrenos inseridos na área de intervenção do Plano Integrado de Setúbal, definido no ano de 1973.

16. Tal área de intervenção destinava-se a ser submetida a um ordenamento territorial definido pela Administração Central, para fins de habitação social ou económica.

17. Em face dos constantes deslizamentos e desmoronamentos dos terrenos da escarpa de ..., houve necessidade de proceder à sua consolidação, de forma a evitar a sua erosão e a ocorrência de frequentes deslizamentos e derrocadas, que podiam ter consequências graves, e que resultavam da sua instabilidade geológica.

18. Atendendo a que a escarpa de ... se integrava na referida área de intervenção do referido Plano Integrado de Setúbal, sendo o seu ordenamento urbanístico da responsabilidade da Administração Central, foi celebrado, no inicio da década de 90, um protocolo entre o Município de Setúbal e INH/IGAPHE, tendo em vista a efectivação de obras de consolidação da escarpa.

19. Tendo, nesse protocolo, ficado da responsabilidade do Instituto Nacional de Habitação/Instituto de Gestão e Administração do Património Habitacional do Estado garantir a disponibilidade dos terrenos necessários à efectivação de tais obras de consolidação.

20. Terrenos cuja disponibilidade foi garantida através da sua expropriação amigável, promovida pelo referido INH/IGAPHE.

21. Tendo as obras de consolidação sido efectuadas no âmbito daquela parceria entre o Município e o Instituto Nacional de Habitação, com a participação financeira de ambas as entidades, em meados dos anos 90.

22. Tal consolidação foi efectuada não só através de obras de construção civil de sustentação da escarpa, mas também de obras de modelação da cumeada.

23. Com a criação de um coberto vegetal passível de suster a sua erosão e facultar um espaço de lazer para uso público.

24. Toda a área da escarpa de ... objecto das referidas obras, encontra-se integrada na Reserva Ecológica Nacional.

25. A área do prédio dos AA foi expropriada para a realização do Plano Integrado de ... (PIS), integrando-se na parcela 373 do PIS, tendo a respectiva indemnização sido paga a FF, que se apresentava na matriz e no registo predial como proprietário do prédio 22.580.

26. A parcela 373 do PIS, tinha a área de cerca de 13.000m2.

27. A parcela 373 do PIS, cerca de 13.000m2, encontrava-se inscrita na matriz sob o artº 3º, seção T, do Município de Setúbal, freguesia de ..., a favor de FF.

28. Na CRP de ..., em 19.02.1964 foi averbada a aquisição a favor de FF, por compra a EE, do prédio 22.580, descrito a fls. 92 do livro B-7429.

29. O Prédio 22.510, com a área de 520 m2, assim como o 22.580, com a área de 13.000 m2, foram desanexados do prédio 18.251, que tinha a área, no registo predial, de 11.840 m2 [facto rectificado pelo Tribunal da Relação].

29.a) A descrição 22.580 foi inicialmente aberta sem área.

29.b) Só mais tarde, pela ap. 38 de 14.07.1994 foi fixada a área do prédio em 13.000 m2, face à declaração complementar apresentada por FF, que invocou urgência no registo, alegando que o prédio estava em posse administrativa.

30. E pela ap. 38, de 14.07.1994, está inscrita a sua aquisição a favor de FF, por óbito de FF, com a menção a que “Denomina-se Bela Vista, norte: rua ... e Arruamentos, sul, estrada da ..., nascente e poente IGAPHE , terras de pastagem e árvores de fruto – 13.000,00 m2 – artº 3º da seção T. 30-a).

30-b) No Diário do Governo, II Série, nº 22, em 27.01.1976, foi declarada a utilidade pública da expropriação do antedito imóvel.

31. Em 04.11.1994, foi celebrada escritura pública de expropriação amigável, em relação ao prédio acima identificado, através da qual o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado atribuiu a FF a indemnização de 42.600.000$00 (E 212.487,90), pela expropriação do referido prédio.

32. A intervenção na área do prédio dos AA foi realizada pelo R. Município antes de 1995.

33. Quando o IGAPHE celebrou a escritura de expropriação amigável desconhecia que quaisquer terceiros reivindicassem a propriedade dos prédios em causa.

34. Pela ap. 13/941129 está registada a aquisição do prédio nº 22.580, a favor do IGAPHE - Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado, por expropriação feita a FF.

35. No local indicado pelos AA. nunca estiveram demarcados quaisquer lotes ou "talhões", nem existiam quaisquer arruamentos, antes da intervenção realizada pelos RR.

36. O referido local constituía uma zona em completo abandono antes de, por razões de segurança, terem sido realizados os trabalhos de consolidação da escarpa de ... e o Município de Setúbal ter colocado uma vedação.

37. O prédio 2962 (anteriormente 24.307) foi desanexado do prédio 6337 em Abril de 1966 e o prédio 18.251 havia sido desanexado do mesmo prédio em Maio de 1956.

38. Por deliberação da Comissão Directiva do Fundo de Fomento da Habitação, de 30.12.1975, publicada no Diário da República, II Série de 27 de Janeiro de 1976, foi declarada de utilidade pública urgente a expropriação das parcelas de terreno incluídas na área delimitada na planta junta a fls. 129 com todas as suas acessões e servidões sem reserva alguma e necessárias à realização do Plano Integrado de Setúbal, aprovado por despacho do Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo de 27 de Maio de 1975”.

39. Os processos de expropriação decorreram à medida que foi sendo executado o Plano Integrado de Setúbal (PIS).

40. O prédio 2962 integra-se na parcela 373 do PIS.

41. A intervenção dos RR. na mesma, em especial na designada escarpa de ..., foi necessária por razões de segurança, face às constantes derrocadas e desmoronamentos, que colocavam em perigo pessoas e bens.

42. Na matriz e no registo predial a área da totalidade da parcela 373 - cerca de 13.000 m2 -, estava inscrita na matriz a favor de FF - artigo 3, secção T, do M. ..., F. de ..., e descrita na 2ª Conservatória do I Registo Predial de ..., sob o n.º 22.580, a fls. 92 v., do livro B – 74.(Docs. 4 e 5).

43. Por escritura de "expropriação amigável" celebrada em 04.11.1994, que se dá integralmente por reproduzida, o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), atribuiu a FF a indemnização de 42.600.000$00 (E 212.487,90), pela expropriação da totalidade do referido prédio.

44. O prédio dos AA está inscrito no artº 14.106, da freguesia de S. Sebastião.

45. A partir do momento em que os AA. tiveram conhecimento da situação, entraram em contacto com os RR., no sentido de resolverem de forma amigável a situação.

46. No dia 26 de Abril de 1966, foi desanexado do prédio 6337 o prédio com a descrição 24307 a fls. 48 do livro B 79, composto por uma porção de terreno para construção urbana, talhões 80,85 e 86 com a área de 390 m2.

47. Os AA continuam a pagar os encargos tributários em relação ao seu prédio.

48. Os autores quiseram aceder à sua propriedade e viram-se impossibilitados de o fazer, antes de 1 de Abril de 1998.

E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

A) Eliminada.

B) O prédio do A. encontrava-se demarcado.

C) O Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado, encontrava-se na posse de todos os elementos correspondentes ao registo predial nº 2962 e à inscrição matricial urbana 14106, da freguesia de S. Sebastião, que corresponde aos talões 80, 85 e 86.

D) Neste momento, dadas as profundas alterações ocorridas, é impossível localizar os lotes de terreno dos AA.

E) O prédio dos AA estava a aguardar licenciamento de construção.

F) A intervenção na área do prédio dos AA foi realizada pelo R. Instituto.

G) Desde 1994 o IGAPHE e as entidades que lhe sucederam INH e agora IHRU realizaram directamente ou através de terceiro, trabalhos de manutenção do referido prédio.

H) O IGAPHE e as entidades que lhe sucederam têm agido, de boa fé e pacificamente, como donos do terreno em causa, à vista e com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém.

I) Em 2001 foi feita exposição ao IGAE pelos Advogados JJ, KK e LL referente ao prédio constante dos autos

O DIREITO

Por razões de evidente precedência lógica deverá começar-se pela questão suscitada no recurso subordinado: só se a houver lugar a indemnização é que se fará sentido discutir-se a quantificação da indemnização.

1. Da existência de uma obrigação de indemnização da ré aos autores

O caso em apreço é simples de descrever; faça-se, pois, uma síntese do caso a partir dos factos mais relevantes.

Os autores são proprietários do prédio 2962 que, integrando-se na parcela 373 do Plano Integrado de ... (PIS), veio a ser expropriada [cfr. factos provados 4-a), 25, 40].

A indemnização pela expropriação (42.600.000$00, i.e., o equivalente a € 212.487,90) foi paga a um outro sujeito – FF – (cfr. factos provados 25, 31 e 43).

Este último apresentava-se na matriz e no registo predial como proprietário do prédio, na sequência de aquisição por sucessão do seu anterior adquirente (cfr. factos provados 25, 28, 30 e 42).

À data da expropriação amigável, a entidade expropriante – o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) – desconhecia que o prédio pertencia aos autores, existindo alguns sinais de que o prédio dos autores era de FF (cfr. factos provados 25 a 27, 28, 30, 33, 35, 36 e 42).

Perante isto, os autores entendem que têm direito a receber a justa indemnização pela expropriação do terreno; em contrapartida, no entender da ré, a indemnização foi paga e não haverá lugar ao pagamento de nova (segunda) indemnização.

Tanto o Tribunal de 1.ª instância como o Tribunal a quo decidiram pela condenação da ré numa obrigação de indemnização.

Em particular, pode ler-se no Acórdão recorrido:

13. Aqui chegados importa determinar em que termos devem os AA. ser indemnizados pela expropriação do prédio 2962.

Na sentença, concluiu-se pelo direito à indemnização, nos termos e com os fundamentos seguintes:

«… ninguém pode ser privado, no todo em parte, do seu direito de propriedade salvo nos casos fixados na lei, sendo que, havendo expropriação por utilidade pública, é sempre devida indemnização adequada ao proprietário e aos titulares de outros direitos reais afectados (artigos 1308º e 1310º do Código Civil), preceitos que concretizam o que a Constituição estabelece no artigo 62º, nº 1 que afirma que “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”, acrescentando-se no seu nº 2 que “A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”. Daqui decorre que a expropriação, apenas tem lugar quando ocorram dois pressupostos: a previsão legal da expropriação e o pagamento de uma justa indemnização, a qual não foi recebida pelos autores, mas por FF, que a recebeu indevidamente, no que respeita à área de terreno que constitui o prédio dos AA.

Assim sendo, só podemos concluir que os AA têm direito a uma indemnização face à expropriação do seu terreno, independentemente de não terem intervindo na expropriação e de naquele âmbito a indemnização ter sido paga a outrem, direito que prevalece em relação ao réu Instituto, porquanto foi este que suprimiu o direito de propriedade dos AA, nos termos acima reconhecidos, independentemente da possibilidade de este réu mais tarde vir a exercer o direito de regresso em relação aos herdeiros de FF, possibilidade que foi antevista, já que foi suscitada a respectiva intervenção acessória.

Aliás, o artº 37º, nº 5 do Código das Expropriações vigente à data (Lei nº 168/99, de 13 de Setembro), estatui que “Salvo no caso de dolo ou culpa grave por parte da entidade expropriante, o aparecimento de interessados desconhecidos à data da celebração da escritura ou do auto apenas dá lugar à reconstituição da situação que existiria se tivessem participado no acordo, nos termos em que este foi concluído.”.

Este pedido indemnizatório está contido no pedido subsidiário: “Considerar-se a propriedade tacitamente expropriada, nos termos expostos, com o pagamento da indemnização que se vier a apurar nos termos da Lei…”.

Pelo exposto, julgo parcialmente (já que o patamar reclamado é de 145.000,00) procedente o pedido subsidiário formulado pelos AA e condeno o R. Instituto a pagar-lhes a indemnização que vier a ser liquidada (artº 609º, nº 2, do CPC), como sendo a devida pela área que corresponde ao seu prédio, nos mesmos termos em que sucederia, se tivessem intervindo na expropriação realizada.»

14. O R. discorda do assim decidido, porquanto entende que, a provar-se que o prédio dos AA. estava englobado na parcela expropriada (o que se provou), então, responsável pelo pagamento da indemnização era o expropriado FF, que recebeu a totalidade da indemnização, e mesmo que se entendesse que tal ónus de pagamento recaía sobre a expropriante, em face do disposto no artigo 37º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1999 (o Código de 91 tinha idêntica previsão no artigo 36º, n.º 4), entende que o expropriado só teria direito a receber o proporcional pela área do seu prédio, em função do valor pago pela área total da parcela objecto da expropriação. Ou seja, como refere na conclusão 43ª: “… conforme factos provados 30, 31 e 42 e 43, o expropriado recebeu 212.487,90€ por 13.000m2, ou seja, 16.34€ por m2, pelo que, por 390m2 (alegada área do prédio dos AA. – facto 3 e 46), o valor a receber seria, no máximo, de 6.372,60€, e não um valor a liquidar, como decidido na douta Sentença recorrida”.

Vejamos:

Nos termos do artigo 37º, n.º 5, do CE de 1999, “[s]alvo no caso de dolo ou culpa grave por parte da entidade expropriante, o aparecimento de interessados desconhecidos à data da celebração da escritura ou do auto apenas dá lugar à reconstituição da situação que existiria se tivessem participado no acordo, nos termos em que este foi concluído.”

Como resulta do preceito, o aparecimento de interessado desconhecido, exceptuando os casos de dolo ou culpa grave, que no caso não se apurou, não dá lugar à anulação do acto praticado – a escritura de expropriação amigável – apenas dando lugar à reconstituição da situação que existiria se o interessado, preterido por desconhecimento, tivesse intervindo no acto.

Ou seja, como se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa, que acima citámos, «[o] aparecimento do verdadeiro titular após a celebração do contrato de expropriação amigável, previsto nos arts. 36º e 37º do CE, em nada afectará os efeitos de tal contrato, nomeadamente a validade da aquisição pela entidade expropriante, implicando apenas para esta a obrigação de reposição da situação indemnizatória”.

Ora, se é à expropriante que cabe a obrigação de reposição da situação indemnizatória, é esta que é responsável pelo pagamento aos AA., preteridos no processo indemnizatório, da indemnização devida pela expropriação da parcela que lhes pertencia, sem prejuízo do eventual direito de regresso que assista à expropriante contra o titular do prédio que recebeu a indemnização total, que para isso chamou a intervir nos autos.

Como afirma OLIVEIRA ASCENSÃO (ob. cit., pág. 403), a relativa irrelevância do titular verdadeiro implica que, em tal caso, a situação real não é atingida, mas sim e apenas a indemnização.

Concluindo, manter-se-á, necessariamente, a obrigação, por parte do R., enquanto entidade expropriante (ou que sucedeu na posição daquele), de proceder ao pagamento da justa indemnização, em conformidade com o disposto nos artigos 62º, n. º2, da Constituição, 1310º do Código Civil e 1º do CE de 1999”.

Aprecie-se.

No cerne do problema está uma norma do CE e a contenda resolve-se através da sua correcta interpretação; é ela a norma do artigo 37.º, n.º 5, do CE vigente, que corresponde exactamente à do artigo 36.º, n.º 4, do CE anterior, onde se dispõe:

Salvo no caso de dolo ou culpa grave por parte da entidade expropriante, o aparecimento de interessados desconhecidos à data da celebração da escritura ou do auto apenas dá lugar à reconstituição da situação que existiria se tivessem participado no acordo, nos termos em que este foi concluído”.

Resulta desta norma, muito simplesmente, que, realizada expropriação amigável e aparecendo posteriormente interessados que fossem desconhecidos à data da expropriação, recai, em princípio, sobre a entidade expropriante o dever de reconstituir a situação que existiria se eles tivessem participado na expropriação; nos casos restantes (i.e., no caso de haver dolo ou culpa grave por parte da entidade expropriante), serão outras as consequências, prefigurando-se, designadamente, a hipótese de invalidade do acordo expropriativo.

No caso em análise, não há prova de dolo ou culpa grave por parte da entidade expropriante. Há que reconstituir a situação que existiria se os autores tivessem participado no acordo, nos termos em que este foi concluído.

A reconstituição da situação que existiria se os autores tivessem participado no acordo expropriativo, nos termos em que este foi concluído, traduz-se, em concreto, na obrigação de colocar os autores na situação em que estariam se o seu direito sobre o prédio expropriado tivesse sido do conhecimento da entidade expropriante e esta lhes tivesse pago a correspondente indemnização (cfr. artigos 1308.º e 1310º do CC e artigo 62.º da CRP).

O facto de a ré ter (indevidamente) indemnizado o proprietário aparente não a desonera da obrigação de indemnizar os autores / proprietários verdadeiros.

Recorde-se, aliás, que o princípio geral do cumprimento das obrigações é o de quem paga mal (quem paga a quem não é devido) deve pagar outra vez (cfr. artigo 770.º do CC), sem prejuízo do eventual direito de regresso contra quem indevidamente recebeu.

Cabem, a terminar este ponto, umas breves considerações sobre a sugestão da ré de que a norma teria sido interpretada, no passado, de forma diferente ou mesmo divergente por Supremo Tribunal (cfr. conclusões IV e s.).

No Acórdão de 12.12.2013 (Proc. 873/03.5TBMCN.P1.S1), concluiu-se, de facto, que não recaía sobre a entidade expropriante a obrigação de pagar indemnização a interessado aparecido posteriormente. Mas o caso não é igual ou sequer semelhante ao presente.

No Acórdão mencionado a questão era a de saber se “poder[ia] o arrendatário rural preterido fazer valer, a todo o tempo, em acção de condenação – intentada contra a entidade expropriante, ulteriormente à extinção do processo de expropriação – o seu direito autónomo a ser indemnizado pela extinção da relação de arrendamento e perda das faculdades de uso e fruição do prédio rústico arrendado?”.

Quer dizer: a questão era de saber se a entidade expropriante, desconhecedora sem dolo ou culpa grave de que existe um direito de arrendamento sobre o prédio, está obrigada perante o arrendatário a uma indemnização autónoma da e adicional à indemnização paga ao proprietário do prédio.

Enquanto isso, a questão suscitada no presente recurso é a de saber se a entidade expropriante, desconhecedora sem dolo ou culpa grave de que o direito de propriedade pertencia aos autores, está obrigada perante os verdadeiros proprietários a uma repetição da indemnização paga (indevidamente) ao proprietário aparente do prédio.

Não estando em causa a apreciação dos dois casos para o efeito da aferição de uma contradição de julgados, sempre se sublinha que é visivelmente distinta a posição dos potenciais beneficiários da indemnização (arrendatário vs. proprietário) e a natureza da indemnização (indemnização por extinção de relação contratual, que é autónoma relativamente à indemnização paga ao proprietário vs. indemnização pela expropriação, que, funcionalmente, é a mesma que a indemnização paga ao aparente proprietário).

Estas e outras circunstâncias distinguem profundamente os dois casos1 e impedem que se retire daquele Acórdão qualquer argumento para resolver a presente situação.

2. Da questão do recurso independente: da quantificação da indemnização e do seu montante

Como decorre do que fica dito atrás, o Tribunal da Relação alterou apenas a decisão / o segmento decisório contido na al. e) da sentença.

Assim onde se decidia:

Parcialmente (já que o patamar reclamado é de 145.000,00) procedente por parcialmente provado o pedido subsidiário formulado pelos AA, face ao que se condena o R. Instituto a pagar-lhes a indemnização que vier a ser liquidada (artº 609º, nº 2, do CPC), como sendo a devida pela área que corresponde ao prédio 2962, nos mesmos termos em que sucederia, se tivessem intervindo na expropriação realizada”.

Passou a decidir-se:

julgar parcialmente procedente o pedido subsidiário formulado pelos AA., condenando-se o R. Instituto a pagar-lhes a indemnização no valor de € 6.372,60, como sendo a devida pela área que corresponde ao prédio 2962, actualizada de acordo com a evolução do índice de preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo INE, desde 04/11/1994 até à presente data”.

O Tribunal da Relação decidiu esta alteração com a seguinte fundamentação:

13. Aqui chegados importa determinar em que termos devem os AA. ser indemnizados pela expropriação do prédio 2962 (…).

15. Porém, afigura-se-nos que a fixação da indemnização devida aos AA., pela parcela 2962, não deve ser a que se apurar em execução, porquanto, mantendo-se válido o contrato de expropriação amigável e remetendo a lei, no artigo 37º, n.º 5, do CE de 99, para a “reconstituição da situação que existiria se tivessem participado no acordo, nos termos em que este foi concluído”, o valor deve ser apurado, tendo em conta a dimensão da parcela dos AA. (390 m2), em confronto com o total da parcela expropriada (13.000 m2) e o valor total pago por esta, ou seja, (€ 212.487,90).

Note-se que não estão provados nos autos factos que diferenciem positivamente, em função do valor, os lotes dos AA. dos demais terrenos que integraram a parcela expropriada, sendo certo que os melhoramentos efectuados pela expropriante e/ou pelo Município, que os valorizaram são podem ser contabilizados para esse cálculo.

Assim, a indemnização devida aos AA. é a que resulta apurada, conforme factos provados 30, 31 e 42 e 43, ou seja, tendo o expropriado recebido € 212.487,90 por 13.000m2, correspondente a € 16.34/m2, e tendo a parcela dos AA. 390 m2 (cf. factos provados 1 e 3 e 46), o valor a que têm direito, no âmbito do acordo de expropriação realizado, é de apenas € 6.372,60, e não um valor a liquidar, como decidido na sentença recorrida.

Porém este é o valor que se entende que tinha a parcela dos AA. à data em que foi concretizado o acordo de expropriação amigável, ou seja, em 04/11/1994 (cf. ponto 31 dos factos provados).

De facto, a atender-se ser apenas este o valor a atribuir em singelo aos AA., a título de indemnização pelo valor da sua parcela expropriada, sem se proceder à respectiva actualização, estar-se-ia a violar o direito constitucional à justa indemnização por expropriação.

Aliás, os AA. dão nota dessa injustiça, quando no recurso subordinado, insurgindo-se contra o valor proposto pagar pelo expropriante, referem, na conclusão v), que “a serem considerados os lotes incluídos na expropriação, a indemnização a ser paga aos AA, tem de obedecer aos princípios e critérios que regem as expropriações”.

Assim, e à semelhança do que ocorre no processo expropriativo, em que o legislador, consciente de que os atrasos no processo de expropriação são susceptíveis de afectar em termos relativos a indemnização do expropriado, manda actualizá-los de acordo com a evolução do índice de preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo INE (cf. artigos 23º, n.º 1, do CE/91 e 24º/1 do CE/99), entende-se que sendo agora fixado por decisão judicial o montante indemnizatório que àquela data era devido aos AA., este montante deve ser actualizado à presente data, nos mesmos termos.

Por conseguinte, nesta parte, improcede parcialmente a apelação do R. e procede parcialmente o recurso subordinado, porquanto, embora os AA. tenham pedido que “sejam pagos pelo IRHU conforme determina a Douta Sentença com os critérios definidos na Lei tomando como base de negociação a quantia de € 145.000,00, e não com o valor irrisório proposto pelo R.”, e não se tenha relegado o apuramento para liquidação, nos termos do artigo 609º, n.º 2, do Código de Processo Civil, alterou-se o decidido na sentença, e, tendo em conta os princípios constitucionais e legais que impõe a fixação da “justa indemnização” pela expropriação, invocados pelos AA. no recurso, fixou-se o valor indemnizatório pela expropriação da parcela, com a respectiva actualização, nos termos supra referidos.

(…)

17. Deste modo, face à procedência parcial dos recursos, deve alterar-se a sentença recorrida quanto à indemnização devida aos AA., a que se reporta a alínea e) do dispositivo, em conformidade com o que se decidiu”.

Os autores insurgem-se contra esta decisão porque, segundo eles, a quantificação da indemnização nunca foi pedida (cfr., em especial, conclusões 3, 7, 8, 13, 14, 35, 37, 38 e 39), pelo que a condenação deveria ter permanecido em obrigação genérica ou por liquidar; além disso, o montante fixado é desadequado / insuficiente (cfr., em particular, conclusões 15, 19 e 20). Alegam que o Tribunal recorrido fez interpretação errada do artigo 37.º, n.º 5, do CE: segundo eles, a norma não é aplicável uma vez que se destina aos proprietários que só muito mais tarde vêm a constatar que o seu terreno foi expropriado, o que não é o caso (cfr., sobretudo, conclusão 22).

A questão consiste, em suma, em saber se o Tribunal recorrido podia, primeiro, alterar a decisão de remeter o montante indemnizatório para liquidação e, segundo, fixar o montante indemnizatório em € 6.372,60.

2.1. Quanto à primeira questão, a resposta é, sem dúvida, afirmativa.

É que não é absolutamente verdade que os autores tenham formulado um pedido ilíquido. É certo que, inicialmente, os autores se referiam a “pagamento de indemnização que se vier a apurar, nos termos da lei em execução de sentença”, mas, como resulta do Relatório do presente Acórdão (cfr. ponto 12), quantificaram, mais tarde, este pedido indemnizatório: instados a concretizar o seu pedido alternativo, os autores vieram esclarecer que pediam que:

4 - Se considere a propriedade tacitamente expropriada, nos termos expostos, com o pagamento da indemnização que se vier a apurar nos termos da Lei, em função alteração e ocupação do terreno de acordo com o PDM, indemnização que neste momento se estima em 145 000,00”.

E, como também resulta do Relatório do presente Acórdão (cfr. ponto 25) foi de acordo com isso que o pedido alternativo foi definitivamente fixado:

4 - Considerar-se a propriedade tacitamente expropriada, nos termos expostos, com o pagamento da indemnização que se vier a apurar nos termos da Lei, em função alteração e ocupação do terreno de acordo com o PDM, indemnização que neste momento se estima em 145 000,00€ (cento e quarenta e cinco mil euros), ou o valor que se vier a apurar em execução de sentença”.

Os autores apresentaram, assim, inequivocamente, uma estimativa da indemnização, o que significa que reconheceram a possibilidade de constarem dos autos elementos suficientes para quantificar a indemnização, pese embora advertissem, implicitamente, para a necessidade da sua actualização.

A actuação do Tribunal recorrido cabe, então, na situação aventada pelos autores: concluindo o Tribunal recorrido que não se verificava a hipótese prevista no artigo 609.º, n.º 2, do CPC (inexistência de elementos para fixar a indemnização e necessidade de remeter para o que viesse a ser liquidado), condenou imediatamente a ré em obrigação líquida.

Que a quantificação deixou os autores insatisfeitos não há dúvidas; isso não se deve, porém, à quantificação enquanto tal (i.e., à oportunidade da operação de quantificação) mas sim ao seu resultado, que fica muito aquém das suas expectativas (é, dizem eles, “irrisório”), o que é matéria para o ponto seguinte.

2.2. No âmbito do cálculo da indemnização, explica-se no Acórdão recorrido que o valor da indemnização deve ser proporcional à área do prédio dos autores por referência ao valor pago pela área total do prédio objecto da expropriação.

Assim, se o expropriado FF recebeu uma indemnização no valor de € 212.487,90 por uma área de 13.000 m2 (cfr. factos provados 30, 31 e 42 e 43), o m2 valia € 16.34 e, sendo a área do prédio dos autores de 390 m2 (cfr. facto provados facto 3 e 46), o valor da indemnização que deveria ter sido paga a estes é de € 6.372,60.

Este valor (€ 6.372,60) – esclarece-se ainda – seria o que deveria ter sido pago e não o valor que, sendo pago agora, permite que os autores sejam colocados na situação em que estariam se tivessem participado no acordo de expropriação; há, assim, que proceder à sua actualização. E foi isto o que Tribunal recorrido fez, determinando que o valor fosse actualizado “de acordo com a evolução do índice de preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo INE, desde 04/11/1994 até à presente data”.

Tudo visto, não se encontra nesta actuação do Tribunal a quo nada que seja susceptível de reprovação. Como determina a lei (cfr. artigo 36.º, n.º 4, do CE de 1991 / artigo 37.º, n.º 5, do CE de 1999), o fim era o de criar a situação hipotética actual e o critério adoptado para o atingir foi o dos termos do acordo de expropriação amigável, sempre em conjugação com os factos provados relevantes; houve, além disso, o cuidado de actualizar o montante atingido (também) com apoio nas orientações legalmente dispostas (cfr. artigo 23.º, n.º 1, do CE de 19912 / artigo 24.º, n.ºs 1 e 2, do CE de 19993).

Alegam ainda os autores – de forma particularmente insistente – que existe violação do artigo 62.º, n.º 2, da CRP, norma que consagra o princípio da justa indemnização (cfr. conclusões 4, 5, 6, 9, 16, 20, 21, 24, 28, 33, 35 e 38).

Não têm, contudo, razão.

O respeito pelo princípio constitucional da justa indemnização compreende, em primeira linha, a observância dos princípios constitucionais da igualdade (cfr artigo 13.º da CRP) e da proporcionalidade (cfr. artigo 18.º da CRP)4.

Ora, como se acaba de ver, o Tribunal da Relação de Évora aplicou os critérios dispostos na lei e chegou à sua decisão convocando e observando os princípios da igualdade e da proporcionalidade, como era necessário para se atingir um valor que fosse justo e equitativo.

Diga-se, em fórmula de síntese, que seria injusto (desconforme às exigências da igualdade e da proporcionalidade) que a indemnização por expropriação criasse, de alguma maneira, a favor dos autores uma situação mais vantajosa do que a do proprietário da restante parcela do prédio expropriado.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso independente dos autores e ao recurso subordinado da ré, confirmando-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelos autores e pela ré em partes iguais.

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Lisboa, 28 de Maio de 2024

Catarina Serra (relatora)

Fernando Baptista

Isabel Salgado

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1. De facto, há várias outras circunstâncias que, estando ausentes no caso em apreço, concorreram para a decisão do caso no Acórdão mencionado. Diz-se aí, por exemplo, que “é manifesto que – exercendo alegadamente o interessado, preterido no acordo de expropriação amigável, poderes de facto, como arrendatário rural, sobre a parcela expropriada que alega vir agricultando há muito, de modo permanente e reiterado – não podia razoavelmente ter deixado de se aperceber imediatamente da posse administrativa da entidade expropriante sobre a parcela expropriada e da implantação física da infra-estrutura pública que ditou a expropriação – não se compreendendo facilmente ( como, aliás, nota a entidade recorrida na sua contra alegação) a anormal demora no exercício do seu pretenso direito autónomo à indemnização”.

2. Diz-se aí: “A justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo e possível numa utilização económica normal, à data da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data”.

3. Diz-se aí: “1 - O montante da indemnização calcula-se com referência à data da declaração de utilidade pública, sendo actualizado à data da decisão final do processo de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação. 2 - O índice referido no número anterior é o publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente ao local da situação dos bens ou da sua maior extensão”.

4. O Tribunal Constitucional tem produzido uma ampla jurisprudência em matéria de expropriações e justa indemnização, onde aborda a ligação entre esta e os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Veja-se, só para um exemplo, o Acórdão do TC n.º 695/2022, de 25.10.2022.