Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE REVISTA DUPLA CONFORME PRESSUPOSTOS DESCARACTERIZAÇÃO DA DUPLA CONFORME FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO REJEIÇÃO DE RECURSO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA PROCURAÇÃO PODERES DE REPRESENTAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 07/02/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO, MANTENDO-SE O DESPACHO DO RELATOR | ||
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Sumário : |
I - A diferença entras as instâncias residiu na circunstância de o Tribunal da Relação ter considerado, diferentemente da sentença de 1.ª instância, que a procuração passada pela ré CC ao Solicitador incluía poder para notificar os proprietários dos prédios confinantes para o exercício do direito de preferência, vindo, todavia, a não conferir a esta procuração os efeitos pretendidos pelos autores, por ter entendido que a ré CC não tinha legitimidade para conferir tais poderes ao Solicitador, por não ter agido em representação de todas as herdeiras, convergindo as instâncias na aplicação das normas da representação sem poderes. II - As assinaladas divergências entre as instâncias na interpretação na declaração negocial não constituem uma pura questão jurídica, mas dependem dos contornos fácticos específicos do caso, não representando uma resposta inovadora a uma questão de direito ou situada fora das normas jurídicas e institutos jurídicos aplicados pelo tribunal de 1.ª instância, não integrando, por isso, o conceito de «fundamentação essencialmente diferente» para o efeito de quebra da dupla conformidade. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam na Conferência do Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. AA e BB vieram instaurar a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e marido DD, EE e FF, pedindo: a) a prolação de sentença que declare transferida para os Autores o direito de propriedade sobre o imóvel identificado no artigo 4.º desta petição; b) a condenação dos Réus no pagamento aos Autores dos danos morais que vierem a liquidar-se em liquidação de sentença; c) para o caso de ser julgado improcedente o primeiro pedido, serem as Rés solidariamente condenadas a pagar aos Autores a quantia de danos patrimoniais já liquidados no montante de 56.000,00€ (cinquenta e seis mil euros) e nos que vierem a apurar-se em liquidação de sentença e, bem assim, a indemnizar os danos morais que os Autores já sofreram e aqueles que vierem a sofrer em consequência da actuação das Rés e a liquidar da mesma forma, e no mais que for de Lei. Para o efeito, arrogam-se os autores do direito à execução específica de um contrato promessa de compra e venda de imóvel, firmado na sequência da comunicação para o exercício do direito de preferência, realizada pelos réus por intermédio de terceiro, que, na sua ótica, configura uma proposta de venda irrevogável. Os autores alegam ainda que sofreram danos de cariz patrimonial e não patrimonial decorrentes da recusa dos réus em celebrar o respectivo contrato de compra e venda de imóvel. Regularmente citados para o efeito, os réus apresentaram contestação através da qual invocaram a excepção de falta de legitimidade do solicitador GG; pugnaram pela inexistência de proposta de venda irrevogável e do direito legal de preferência nos termos do artigo 1380.o do C.C.; e defenderam-se por impugnação. Realizou-se a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência decide absolver os réus dos pedidos formulados nos autos. 2. Interposto recurso de apelação pelos autores, o Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente a apelação, mantendo a sentença do tribunal de 1.ª instância, sem voto de vencido. 3. AA e BB, autores e recorrentes, interpuseram recurso de revista geral, com base no n.º 1 do artigo 671.º do CPC, alegando que não se verificava uma dupla conformidade de fundamentação entre o tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido, devido a divergências essenciais na fundamentação. 4. No Supremo Tribunal de Justiça, a Relatora proferiu decisão singular que não admitiu o recurso de revista. 5. Os recorrentes/autores, tendo sido notificados da decisão singular que não admitiu o recurso de revista por eles interposto, vieram «arguir a nulidade da mesma, conforme previsto no artigo 195.º do CPC, por preterição da formalidade prevista no artigo 655.º do CPC, ex vi artigo 679.º do mesmo Código, e, caso assim se não entenda, apresentar reclamação da referida decisão singular para a Conferência desse Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 652.º, n.º 3, ex vi artigo 679.º do CPC», apresentando alegação com o seguinte teor, conforme se passa a transcrever: «Na decisão singular proferida em 12/03/2024, a Sra. Juiz Conselheira não admitiu o recurso de revista interposto pelos autores, por entender que as modificações na fundamentação de facto e de direito realizadas pelo Tribunal da Relação no acórdão recorrido “não são essenciais no sentido consagrado no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, não quebrando, portanto, a dupla conformidade de fundamentação, pois que os fundamentos desenvolvidos pelo acórdão recorrido se situam no domínio dos mesmos institutos e normas jurídicas dos fundamentos expostos pela sentença.” Os Autores não se conformam com tal decisão. 1) Da nulidade da decisão singular por preterição do disposto no artigo 655.º do CPC: Nos termos do artigo 655.º do CPC, aplicável ex vi artigo 679.º do mesmo Código: “1 - Se entender que não pode conhecer-se do objeto do recurso, o relator, antes de proferir decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias. 2 - Sendo a questão suscitada pelo apelado, na sua alegação, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo anterior.” Porém, a decisão singular proferida dispõe que: “Tendo os recorrentes sustentado, na alegação de recurso, a sua posição quanto à admissibilidade do recurso de revista, não se torna necessário proceder à notificação ao abrigo do artigo 655.º, n.º 1 do CPC, a fim de os ouvir quanto à questão prévia da admissibilidade do recurso”. Não podemos concordar com o exposto. De facto, logo no início nas suas alegações de recurso, os Autores alegaram: “O Tribunal a quo julgou improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido, embora com fundamentação essencialmente diferente da decisão da primeira instância.” Nada adiantaram para justificar a diversidade essencial da fundamentação apresentada pelas duas instâncias, apenas se limitando, adiante, a transcrever partes das decisões proferidas pelos dois Tribunais. Ora, ao contrário do que considera a decisão singular proferida, a transcrição de partes das decisões proferidas não configura a invocação de qualquer alegação por parte dos Autores, nomeadamente, no que concerne à sustentação da alegada “fundamentação essencialmente diferente” e, consequentemente, quanto à admissibilidade do recurso enquanto revista ordinária, ao abrigo do artigo 671.º, n.º 1 do CPC. Pelo que, os Autores não se pronunciaram, de fundo, quanto à admissibilidade do recurso de revista, nem tiveram oportunidade de sustentar a existência da diversidade essencial de fundamentação entre o acórdão recorrido e a sentença da primeira instância. Acresce que, a inadmissibilidade do recurso, pela inexistência de fundamentação essencialmente diferente (nos termos considerados pela decisão singular), não foi suscitada pelas Rés nas suas contra-alegações de recurso e, como tal, não é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 655.º supra citado. E mesmo que tivesse sido alegado a inadmissibilidade do recurso pelos motivos aqui em causa – o que não se aceita e meramente se equaciona – sempre os Autores deveriam ter sido ouvidos, nos termos do disposto no artigo 654.º, n.º 2 do CPC, uma vez que não tiveram oportunidade de responder. Pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 655.º do CPC, deveriam os Autores ter sido ouvidos antes de proferida a decisão singular aqui em causa. No mesmo sentido, escreveu Alberto dos Reis, em “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, Coimbra, 1952, página 437, a propósito do artigo 704.º do DL 329-A/95 (a que corresponde o artigo 655.º do actual CPC): “O apelante é ouvido, apesar de já ter alegado, quando a questão é levantada pelo apelado na sua alegação; pela mesma razão deve ser ouvido, posto que já tenha alegado, quando a questão é levantada oficiosamente.” Conforme dispõe Abílio Neto, em “Código de Processo Civil Anotado”, 21.º Edição, 2009, Ediforum – Edições Jurídicas, Lda., página 1088, em anotação ao artigo 704.º do DL 329- A/95 (a que corresponde o artigo 655.º do actual CPC): “A violação do dever de ouvir a parte contrária, previsto nos arts. 702.º, 703.º e 704.º [actual artigo 655.º do CPC], com consagração genérica no art. 3.º-3, não integra a nulidade do Acórdão proferido, prevista na al. a) d0 n.º 1 do art. 668.º, mas sim a nulidade contemplada no n.º 1 do art. 201.º [actual artigo 195.º do CPC], geradora da nulidade de todos os termos do processo, subsequentes à fatal da prática dessa formalidade, dado ser manifesto que a irregularidade cometida é susceptível de ter influído na decisão tomada.” Ao não terem sido previamente ouvidos os Autores sobre a não admissão do recurso, a decisão singular proferida é, assim, nula, nos termos do artigo 195.º do CPC, por falta da prática da formalidade prevista no artigo 655.º do CPC, o que aqui se invoca, com as legais consequências. Caso assim se não entenda, 2) Da reclamação da decisão singular de não admissão do recurso de revista: O artigo 671.º, n.º 3 do Código de Processo Civil dispõe: “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.” Tratando-se de um conceito vago/indeterminado fornecido pelo legislador, o conceito de “fundamentação essencialmente diferente” deve ser densificado/concretizado no sentido de entender que “há fundamentação essencialmente diferente” quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radical ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão recorrida. Assim, não basta que entre as decisões proferidas existam apenas discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representem efectivamente um percurso jurídico diverso, ou um mero reforço argumentativo levado a cabo pelo Tribunal da Relação para fundamentar a mesma solução alcançada pela decisão apelada e/ou ocorra um mero aditamento de outro fundamento jurídico, que não tenha sido considerado e que não saia do âmbito/perímetro normativo/substancial/material em que se moveu a decisão recorrida. No nosso caso, não obstante o Tribunal de 1.ª Instância e o Tribunal da Relação julgarem improcedentes os pedidos formulados pelos Autores, a fundamentação vertida no douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora é essencialmente diferente da vertida na douta sentença do Tribunal de 1.ª Instância e, como tal, é admitida a revista do acórdão proferido. Vejamos: Na acção dos autos, os Autores/Recorrentes peticionam a prolação de sentença que declare transferido para si o direito de propriedade sobre o imóvel identificado no artigo 4.º da petição inicial, bem como a condenação dos Réus no pagamento aos Autores dos danos morais que vierem a liquidar-se em liquidação de sentença. Subsidiariamente, para o caso de ser julgado improcedente o primeiro pedido, os Autores peticionam a condenação solidária dos Réus a pagarem-lhes a quantia de danos patrimoniais já liquidados no montante de 56.000,00€ (cinquenta e seis mil euros) e nos que vierem a apurar-se em liquidação de sentença e, bem assim, a indemnizar os danos morais que os Autores já sofreram e aqueles que vierem a sofrer em consequência da actuação das Rés, a liquidar da mesma forma, e no mais que for de Lei. A primeira instância julgou a acção improcedente, por entender que os poderes conferidos na procuração passada pela ré CC “ao Sr. Solicitador se encontram confinados à prática de actos junto do Serviço de Finanças competente” e, por isso, concluiu que “a comunicação para o exercício de direito de preferência em causa não produziu efeitos em relação à ré, e, assim, considerar-se como não tendo sido proferido, por esta ou por intermédio de terceiro, uma declaração com efeitos jurídicos que a vinculem de qualquer forma.” Entendeu, assim, o Tribunal da 1.ª instância que a procuração outorgada pela Ré CC conferia apenas ao Sr. Solicitador poderes para a prática de actos junto do Serviço de Finanças competente e, como tal, aquele não tinha poderes para fazer à Autora a comunicação que lhe fez para o exercício do direito de preferência, não produzindo tal comunicação efeitos em relação à Ré CC. Por seu turno, no acórdão recorrido, a Relação de Évora não acompanhou tal entendimento da primeira instância, por entender que não estava em causa “qualquer eventual falta de coincidência entre a exteriorização da vontade e o sentido real da vontade da ré CC” e concluiu “que através daquela procuração aquela ré conferiu ao senhor solicitador HH poderes de representação para proceder, também, às notificações dos proprietários dos prédios confinantes, no caso aos autores, para o exercício do direito de preferência relativamente à alienação do prédio melhor identificado nos autos.” Assim, quanto ao objecto e extensão dos poderes de representação conferidos pela Ré CC ao Sr. Solicitador, o Tribunal da Relação de Évora concluiu que o Sr. Solicitador tinha legitimidade para representar a referida Ré CC e que tais poderes de representação incluíam, também, poderes para proceder às notificações dos proprietários dos prédios confinantes, nomeadamente e no caso em apreço aos autores, para o exercício do direito de preferência relativamente à alienação do prédio em causa. Ou seja, ao contrário do Tribunal da 1.ª Instância, o Tribunal da Relação de Évora entendeu que o Sr. Solicitador estava devidamente munido pela Ré CC dos poderes necessários para proceder à comunicação para o exercício do direito de preferência em causa. E, como tal, a comunicação feita à Autora pelo Sr. Solicitador vinculou a Ré CC. Contudo, não obstante considerar que a Ré CC estava vinculada pela comunicação realizada pelo Sr. Solicitador, a Relação de Évora considerou que “ao efetuar aquela comunicação à autora para o exercício da preferência relativamente à alienação do prédio melhor identificado nos autos, identificando-se ali «como representante dos herdeiros da sra. II e de JJ, na qualidade de proprietários do prédio misto denominado “Quinta ...”» (cfr. facto provado n.º 7), o sr. Solicitador HH agiu, na verdade, sem poderes de representação relativamente às rés EE e FF. […] Desta feita, não tendo as rés FF e EE assinado a carta contendo a comunicação à autora para o exercício de preferência ou dotado o sr. solicitador HH de poderes representativos para também em nome delas fazer aquela comunicação à autora, aquela comunicação não tem eficácia vinculativa para aquelas duas rés EE e FF que, por isso, não ficaram obrigadas à celebração do contrato definitivo de compra e venda.” Pelo exposto, verifica-se que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora tem uma fundamentação essencialmente diferente da aduzida pelo Tribunal da 1.ª instância, uma vez que assenta, de modo profundamente inovatório, numa interpretação distinta e autónoma da elaborada pelo Tribunal da 1.ª instância. Atente-se que, não obstante estarem em causa “os poderes do procurador” nos dois segmentos decisórios, num está em causa o âmbito e extensão dos poderes efectivamente conferidos (objecto da procuração), noutro está em causa a legitimidade e representação das demais herdeiras na procuração outorgada (mandantes da procuração). De facto, enquanto o Tribunal da 1.ª instância considerou que o âmago da procuração não incluía poderes para o Sr. Solicitador proceder à comunicação para o exercício do direito de preferência, o Tribunal da Relação, não acompanhando, de forma explícita e clara, a decisão da 1.ª instância, entendeu que a outorgante da procuração (Ré CC) não actuou em nome das demais herdeiras, não obstante estar legitimada para tal. O Tribunal da 1.ª instância considerou que o teor da procuração não confere poderes para o Sr. Solicitador proceder às comunicações para o exercício do direito de preferência, enquanto o Tribunal da Relação considera que a procuração outorgada pela Ré CC confere ao Sr. Solicitador poderes para fazer essas comunicações, mas não lhe confere poderes para o fazer em nome das demais herdeiras, porque entende que a procuração não foi outorgada em nome das demais herdeiras e, por isso, concluiu que estas não ficaram obrigadas à celebração do contrato definitivo de compra e venda, não se concluindo um contrato-promessa entre os autores e todos os herdeiros das heranças proprietárias dos imóveis em causa, de forma a haver lugar à execução específica ou ao pagamento de indemnização por danos decorrentes do seu incumprimento. O que configura duas interpretações absolutamente distintas e autónomas entre si. Assim, não obstante ambas as decisões colocarem em causa os poderes do procurador, as decisões assentam em pressupostos absolutamente distintos e independentes entre si. No acórdão proferido é claro o afastamento da fundamentação aduzida pelo Tribunal da 1.ª Instância, quando é afirmado o seguinte: “O tribunal a quo entendeu que a procuração em causa não conferia ao sr. solicitador HH os poderes necessários para realizar a comunicação à autora referida no enunciado de facto provado n.º 7, ou seja, para lhe comunicar o projecto de venda e as cláusulas do respetivo contrato, convidando-a, querendo, a exercer o direito de preferência relativamente à alienação do prédio melhor identificado nos autos. Entendimento que não acompanhamos.” Continuando, de seguida, a expor as circunstâncias que levam a entendimento diferente do indicado pelo Tribunal da 1.ª Instância. Ou seja, o Tribunal da Relação afasta-se, por completo, da fundamentação do Tribunal da 1.ª instância, evidenciando uma absoluta discrepância entre as duas decisões, representando efectivamente um percurso jurídico diverso. De facto, não obstante ambas as instâncias concluírem que o Sr. Solicitador não estava munido dos suficientes poderes para proceder à comunicação para o exercício do direito de preferência, os dois Tribunais percorreram um caminho jurídico diverso, porquanto: a) o Tribunal da 1.ª Instância, não se pronunciando quanto ao facto da Ré CC representar as demais herdeiras na outorga da procuração, considerou que a procuração outorgada pela Ré CC não conferia poderes para o Sr. Solicitador proceder às comunicações para o exercício para o direito de preferência; b) por sua vez o Tribunal da Relação, considerou que a Ré CC conferiu poderes ao Sr. Solicitador para proceder às comunicações para o exercício do direito de preferência (e como tal, a comunicação efectuada, vincula-a), mas que não agiu em nome das demais herdeiras, pelo que o Sr. Solicitador não poderia ter agido em nome das Rés EE e FF. Atesta-se, ainda, que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora não demonstra um mero reforço argumentativo da decisão proferida pelo Tribunal da 1.ª Instância, uma vez que aquele tribunal afastou-se, por completo, da decisão anteriormente proferida, justificando extensivamente as circunstâncias consideradas para se afastar da anterior decisão, não sendo apenas mais exaustivo do que a sentença proferida no Tribunal da 1.ª Instância. Por fim, verifica-se ainda que o fundamento jurídico aditado – que não foi considerado pelo Tribunal da 1.ª instância – sai do âmbito material que justificou a decisão do Tribunal da 1.ª Instância. Reitera-se, a este título, que o percurso jurídico levado a cabo pelos dois Tribunais foi diverso e teve por base pressupostos absolutamente distintos que, por coincidência, levaram à mesma decisão proferida. Perante o exposto, verifica-se que a fundamentação do Tribunal da Relação é totalmente diferente e independente da fundamentação aduzida pelo Tribunal da 1.ª instância e essa diversidade tem natureza essencial. Como tal, não se verifica a dupla conforme na fundamentação apresentada pelo Tribunal da 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação de Évora. Nessa sequência, deve ser admitido o recurso de revista apresentado, ao abrigo do disposto no artigo 671.º, n.º 3 do CPC e, em consequência, conhecer-se do objecto do recurso. Com os fundamentos já expostos e por se congregarem todos os pressupostos processuais, deve ser dado provimento à presente Reclamação e, em consequência, ser admitido o recurso de revista. Nestes termos e pelos fundamentos já expostos deve: a) ser declarada nula a decisão singular proferida em 12.03.2024, por preterição do disposto no artigo 655, n.º 1 do CPC, ou, caso assim não se entenda, b) ser dado provimento à presente Reclamação e, em consequência, ser admitido o recurso de revista apresentado. Assim fazendo V. Exas. a costumada JUSTIÇA!» 6. Os reclamados, notificados da reclamação, responderam afirmando não se verificar qualquer nulidade da decisão singular impugnada e sustentando que o recurso de revista não deve ser admitido por dupla conformidade. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação 7. Os reclamantes, em face da decisão singular de não admissibilidade do recurso de revista por dupla conformidade, colocam duas questões: 1) A falta de notificação ao abrigo do artigo 655.º para se pronunciarem sobre a questão prévia da admissibilidade de recurso gera a nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC; 2) O recurso de revista deve ser admitido, pois a fundamentação dada pelas instâncias à decisão foi essencialmente diferente. 8. Vejamos. Afirmam os reclamantes que, no recurso de revista, não expuseram os seus argumentos para sustentar que a fundamentação do Acórdão recorrido fosse essencialmente distinta da fundamentação aduzida pelo tribunal de 1.ª instância, pelo que, perdendo uma oportunidade de o fazer pela decisão singular não antecedida de notificação ao abrigo do artigo 655.º do CPC, teria havido uma violação do princípio do contraditório. Na decisão singular a este propósito exarou-se o seguinte: «Tendo os recorrentes sustentado, na alegação de recurso, a sua posição quanto à admissibilidade do recurso de revista, não se torna necessário proceder à notificação ao abrigo do artigo 655.º, n.º1, do CPC, a fim de os ouvir quanto à questão prévia da admissibilidade do recurso. 4. Os recorrentes invocaram, para sustentar a diversidade essencial de fundamentação entre o acórdão recorrido e a sentença, o seguinte, que agora se transcreve: «A primeira instância julgou a acção improcedente, por entender que os poderes conferidos na procuração passada pela ré CC “ao Sr. Solicitador se encontram confinados à prática de actos junto do Serviço de Finanças competente” e, por isso, concluiu que “a comunicação para o exercício de direito de preferência em causa não produziu efeitos em relação à ré, e, assim, considerar-se como não tendo sido proferido, por esta ou por intermédio de terceiro, uma declaração com efeitos jurídicos que a vinculem de qualquer forma.” Por seu turno, no acórdão recorrido, a Relação de Évora não acompanhou tal entendimento da primeira instância, entendeu que não estava em causa, “qualquer eventual falta de coincidência entre a exteriorização da vontade e o sentido real da vontade da ré CC” e concluiu “que através daquela procuração aquela ré conferiu ao senhor solicitador HH poderes de representação para proceder, também, às notificações dos proprietários dos prédios confinantes, no caso aos autores, para o exercício do direito de preferência relativamente à alienação do prédio melhor identificado nos autos.” Contudo, a Relação de Évora considerou que “ao efetuar aquela comunicação à autora para o exercício da preferência relativamente à alienação do prédio melhor identificado nos autos, identificando-se ali «como representante dos herdeiros da sra. II e de JJ, na qualidade de proprietários do prédio misto denominado “Quinta ...”» (cfr. facto provado n.º 7), o sr. Solicitador HH agiu, na verdade, sem poderes de representação relativamente às rés EE e FF.” Embora a ré CC tivesse poderes de representação das demais herdeiras, as ora rés, para, em nome e representação das mesmas «prometer vender ou vender quaisquer bens imóveis ou móveis que pertençam e integrem a herança aberta por óbito de II e por KK, pelo preço e nas restantes condições que entenderem por conveniente, praticando e assinando tudo quanto necessário for, nomeadamente o contrato-promessa de compra e venda e o contrato definitivo de compra e venda, seja por documento particular ou escritura pública de compra e venda, recebendo o preço e dando a devida quitação, declarando tudo o necessário seja aos respetivos atos de disposição e bem assim requerer, praticar e assinar tudo o mais que se torne necessário aos indicados fins» (facto provado n.º 28), do texto da procuração aqui em causa consta que CC (…) pelo presente constitui seu bastante procurador GG, solicitador (…) a quem, (…) confere os mais amplos poderes, incluindo os de substabelecer, para proceder em seu nome e na qualidade de herdeira e em sua representação (…)». Ou seja, no documento que corporiza a atribuição de poderes de representação ao solicitador HH a ré CC não age em representação das demais herdeiras. Não há no texto declarativo da procuração qualquer segmento que permita afirmar o contrário. Através da referida procuração a ré CC outorgou poderes ao senhor solicitador (apenas) para em seu nome pessoal, na qualidade de herdeira, ele praticar os atos ali discriminados. Desta feita, não tendo as rés FF e EE assinado a carta contendo a comunicação à autora para o exercício de preferência ou dotado o sr. solicitador HH de poderes representativos para também em nome delas fazer aquela comunicação à autora, aquela comunicação não tem eficácia vinculativa para aquelas duas rés EE e FF que, por isso, não ficaram obrigadas à celebração do contrato definitivo de compra e venda. Logo, não se concluiu um contrato-promessa entre os autores e as herdeiras de II e de JJ, não podendo, por isso, haver lugar à execução específica ou ao pagamento de qualquer indemnização por danos morais decorrentes de incumprimento do invocado contrato-promessa.” Confrontando-se estes excertos da alegação do recurso de revista dos autores (para onde se remete) citados na decisão singular, tem de se concluir que estes já se pronunciaram, e de forma exaustiva, sobre o que consideram ser uma fundamentação essencialmente diferente entre as instâncias e ilustraram esse entendimento com a transcrição de excertos das duas decisões. Assim, é perfeitamente aplicável a orientação que tem sido adotada por este Supremo Tribunal quanto à desnecessidade de notificação, ao abrigo do artigo 655.º do CPC, quando o recorrente, na sua alegação de recurso, sustenta já o seu ponto de vista e argumentação em relação à questão prévia da admissibilidade do recurso. A este propósito, veja-se o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19-01-2023, proc. n.º 19096/19.5T8LSB.L1.S1, onde se sumariou o seguinte: «Nas situações em que é o próprio apelante que, antecipando-se à contraparte, nas alegações de recurso suscita a questão da admissibilidade deste, pronunciando-se favoravelmente, tendo o apelado a oportunidade de abordar essa questão na resposta às alegações, na observância do dever de gestão processual previsto no art. 6.º do CPC, não se justifica o cumprimento do art. 655.º, n.º 1, do CPC, que, nesta hipótese, iria conferir às partes a possibilidade de emitirem uma opinião sobre uma questão, relativamente à qual já se tinham pronunciado, numa repetição de atos inúteis». Em consequência, não se verifica qualquer violação do princípio do contraditório, suscetível de ferir a decisão singular de nulidade. 9. Entendem os reclamantes que o recurso de revista deve ser admitido por não existir dupla conformidade de fundamentação. Dispõe o n.º 3 do artigo 671.º do CPC que, “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”. A jurisprudência do Supremo Tribunal tem sido particularmente exigente com o conceito de fundamentação essencialmente diferente para o efeito de quebra da dupla conformidade, entendendo que «Para efeitos de descaracterização da dupla conforme nos termos do nº 3 do artigo 671º do CPC, verifica-se fundamentação essencialmente diferente quando o acórdão da Relação, embora confirmativo da decisão da 1ª instância, sem vencimento, o faça com base em fundamento de tal modo diferente que possa implicar um alcance do caso julgado material diferenciado do que viesse a ser obtido por via da decisão recorrida» (cfr. Acórdão de 13-10-202, proc. n.º 1373/17.1T8STS.P1.S1), e ainda que, «Não obsta à existência de uma relação de dupla conformidade, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, a circunstância de o Tribunal da Relação, face ao recurso interposto quanto à decisão de 1ª instância incidente sobre a matéria de facto, ter modificado em parte a matéria de facto, quando essa alteração não teve influência no sentido de ser alterada a decisão recorrida ou a sua fundamentação» (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-09-2018, proc. n.º 311/13.5TTEVR.E2.S1). No mesmo sentido, afirma-se no Acórdão de 29-09-2022 (proc. n.º 19864/15.7T8LSB.L1-A.S1) que «II - O Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que somente deixa de atuar a dupla conforme, a verificação de uma situação, conquanto a Relação, conclua, sem voto de vencido, pela confirmação da decisão da 1ª Instância, em que o âmago fundamental do respetivo enquadramento jurídico seja diverso daqueloutro assumido neste aresto, quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada. III. Os elementos de aferição da conformidade ou desconformidade das decisões das Instâncias têm de se conter na matéria de direito, donde, nenhuma divergência das Instâncias sobre o julgamento da matéria de facto é passível de implicar, por si só, a desconformidade entre aquelas decisões que importem a admissibilidade da revista, em termos gerais, sublinhando-se que a apreciação do obstáculo recursório respeitante à figura da dupla conforme terá sempre e necessariamente de se deter nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto Tribunal de revista, acentuando-se que qualquer alteração da decisão de facto pela Relação, apenas será relevante para aquele efeito quando implique uma modificação, também essencial, da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da conformidade ou desconformidade das decisões». 10. Tendo como paradigma a jurisprudência acima citada, entendemos que não se verifica o requisito da diferença essencial de fundamentação quando o Tribunal da Relação, dentro do enfoque jurídico da decisão recorrida – que se baseou na interpretação do texto da procuração em litígio nos autos nos termos do artigo 236.º do Código Civil e nos poderes do procurador – atribui a uma declaração negocial um alcance distinto, mas insuficiente para fazer proceder a pretensão dos apelantes. A diferença entras as instâncias residiu na circunstância de o Tribunal da Relação ter considerado, diferentemente da sentença de 1.ª instância, que a procuração passada pela ré CC ao Solicitador incluía poder para notificar os proprietários dos prédios confinantes, os autores, para o exercício do direito de preferência, vindo, todavia, a não conferir a esta procuração os efeitos pretendidos pelos autores, por ter entendido que a ré CC não tinha legitimidade para conferir tais poderes ao Solicitador pois não agiu em representação de todas as herdeiras. Ambas as instâncias entenderam, assim, que estamos perante uma representação sem poderes. As divergências entre as instâncias na interpretação na declaração negocial não constituem uma pura questão jurídica, mas dependem dos contornos fácticos específicos do caso, não representando uma resposta inovadora a uma questão de direito ou situada fora das normas jurídicas e institutos jurídicos aplicados pelo tribunal de 1.ª instância. Com efeito, o acórdão recorrido serviu-se de argumentos que extravasam o teor literal do texto, como o contexto da procuração e o comportamento da ré CC subsequente à comunicação para o exercício da preferência, factos a partir dos quais as instâncias fizeram inferências ou deduções distintas. Mas estas inferências assumem uma natureza casuística e situam-se fora dos poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça, não integrando o conceito de «fundamentação essencialmente diferente». Por último, as divergências assinaladas quanto à interpretação do texto da procuração não vieram a ter relevo na solução do caso, pois o acórdão recorrido decidiu que a ré CC atuou sem poderes de representação de duas das herdeiras, sendo por este motivo que soçobrou a posição sustentada pelos autores, independentemente do sentido a atribuir ao texto da procuração. Logo, a questão que foi decidida de modo distinto pelas instâncias não foi ratio decidendi do acórdão recorrido, não podendo também por este motivo integrar o conceito de diferença essencial de fundamentação. 11. Assim, sendo confirma-se a decisão singular de não admissibilidade do recurso de revista. 12. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC: I - A diferença entras as instâncias residiu na circunstância de o Tribunal da Relação ter considerado, diferentemente da sentença de 1.ª instância, que a procuração passada pela ré CC ao Solicitador incluía poder para notificar os proprietários dos prédios confinantes para o exercício do direito de preferência, vindo, todavia, a não conferir a esta procuração os efeitos pretendidos pelos autores, por ter entendido que a ré CC não tinha legitimidade para conferir tais poderes ao Solicitador, por não ter agido em representação de todas as herdeiras, convergindo as instâncias na aplicação das normas da representação sem poderes. II - As assinaladas divergências entre as instâncias na interpretação na declaração negocial não constituem uma pura questão jurídica, mas dependem dos contornos fácticos específicos do caso, não representando uma resposta inovadora a uma questão de direito ou situada fora das normas jurídicas e institutos jurídicos aplicados pelo tribunal de 1.ª instância, não integrando, por isso, o conceito de «fundamentação essencialmente diferente» para o efeito de quebra da dupla conformidade. III – Decisão Pelo exposto, decide-se no Supremo Tribunal de Justiça indeferir a reclamação e confirmar o despacho reclamado. Custas pelos recorrentes. Lisboa, 2 de julho de 2024
Maria Clara Sottomayor (Relatora) Jorge Arcanjo (1.º Adjunto) Manuel Aguiar Pereira (2.º Adjunto) |