Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
253/21.0T9FND.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: ABSOLVIÇÃO CRIME
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
MATÉRIA DE FACTO
ERRO DE JULGAMENTO
PODERES DA RELAÇÃO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 10/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I. O recurso tem por objeto um acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação que aplica uma pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, em recurso interposto de um acórdão absolutório da 1.ª instância [n.º 1, al. e), do art.º 400.º do CPP, redação da Lei n.º 94/2021].

II. O acórdão recorrido conheceu dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição entre a fundamentação e a decisão [artigo 410.º, n.º 2, al. b) e c), do CPP], modificou a matéria de facto dada como provada e absteve-se de conhecer o recurso na parte em que impugnou a decisão em matéria de facto por alegado erro de julgamento.

III. Suscita-se a questão prévia de saber se o Tribunal da Relação poderia ter modificado a matéria de facto com base em declarações gravadas em audiência, por considerar verificados aqueles vícios.

IV. As relações conhecem de facto (artigo 428.º do CPP) nos recursos em que é impugnada a matéria de facto nos termos previstos no n.º 3 do artigo 412.º do CPP, sendo que a lei processual não atribui às relações poderes de conhecimento oficioso de erros de julgamento em matéria de facto.

V. Como se consignou nos acórdãos de 22.06.2022 e de 19.12.2023 (processos 215/18.5JAFAR.E1.S1 e 1066/16.7T9CLD.C3.S1, em www.dgsi.pt), a possibilidade de a relação modificar a matéria de facto na sequência da verificação de vício a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP só pode ocorrer nas condições impostas pelos artigos 426.º e 431.º, al. a), do CPP, em vista da superação desse vício, para uma boa decisão de direito.

VI. Impõe-se ao tribunal da Relação uma dupla decisão ou uma decisão em dois momentos: em primeiro lugar, a deteção e aferição (determinação e concretização) do vício e, em segundo lugar, a verificação e avaliação das possibilidades de sanação do vício e, sendo caso disso, a respetiva sanação, com base num juízo sobre a suficiência das provas necessárias para essa finalidade, que são as provas existentes no processo que serviram de base à decisão [al. a) do artigo 431.º do CPP].

VII. Fora do âmbito do recurso em matéria de facto ou dos casos de renovação da prova – que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido [artigos 412.º, n.ºs 1 e 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP] –, o Tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto, para remover um vício que impeça a decisão de direito, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base» [al. a) do artigo 431.º do CPP].

VIII. Como se extrai da história do artigo 431.º do CPP, introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25/08, este preceito veio suprir uma lacuna do regime processual do direito ao recurso em matéria de facto, inspirando-se no artigo 712.º («Modificabilidade da decisão de facto»), n.º 1, al. a), do CPC de 1961, então vigente, segundo o qual, «[a] decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida».

IX. O Tribunal da Relação, depois de reconhecer a existência de vícios, prosseguiu na sanação desses vícios, fundando a sua decisão de modificação da decisão em matéria de facto em elementos estranhos ao texto da decisão recorrida e em depoimentos de testemunhas, bem como em juízos de valoração formulados a partir desses elementos e desses depoimentos, aditando, ainda, factos que não constavam da descrição dos factos provados e não provados.

X. Os erros indicados correspondem a erros de julgamento, identificados na decorrência de apreciação e valoração das provas efetuadas pelo Tribunal da Relação, em divergência da decisão da 1.ª instância.

XI. Ora, não contendo o processo todas as provas que serviram de base à decisão (aqui não se incluindo as provas gravadas) e não estando em apreciação o recurso da decisão em matéria de facto, não podia o Tribunal da Relação, verificados os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, modificar a decisão em matéria de facto dada como provada e como não provada na 1.ª instância, em suprimento desses vícios, face ao disposto no artigo 431.º, al. a) e b), do CPP.

XII. Ao proceder ao suprimento dos vícios, por recurso a declarações gravadas, alterando a matéria de facto, o Tribunal da Relação pronunciou-se sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento, o que constitui causa de nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia, prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma.

XIII. Em consequência, deve a decisão recorrida ser substituída por outra que, em conhecimento do recurso da assistente, aprecie a impugnação da decisão da 1.ª instância em matéria de facto, quanto aos pontos da matéria de facto que aquela considera incorretamente julgados, tendo em conta as provas indicadas como impondo decisão diversa e as provas indicadas pelo arguido em exercício do contraditório, nomeadamente as provas gravadas, em conformidade com o disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 6, do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. No âmbito do Processo n.º 253/21.0T9FND que corre termos no Juízo Central Criminal de ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, foi proferido acórdão, em 13.07.2023, que absolveu o arguido AA da prática de um crime de prevaricação, previsto e punido pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho.

2. Deste acórdão recorreu a assistente, Freguesia da Fatela, para o Tribunal da Relação de Coimbra.

Por acórdão de 21.02.2024, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu:

«A) - Julgar procedente o recurso e, em consequência:

- Nos termos do disposto no artigo 380.º do Código de Processo Penal, determinar a correção de lapso de escrita constante do ponto 16. dos factos provados elencados no acórdão em recurso, por forma a que onde consta: «jazigo J4», dever constar, «Jazigo J7».

- Modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos seguintes termos:

. eliminar o ponto 9. da matéria de facto provada;

. eliminar do elenco dos factos não provados a matéria ali descrita sob as alíneas a) a d), fazendo constar tal matéria do elenco dos factos provados.

B) - Revogar o acórdão recorrida na parte em que absolveu o arguido AA da autoria do crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07.

C) - Condenar o mesmo arguido AA pela prática de um crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.»

3. Do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra vem agora interposto recurso pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça.

Apresenta motivação com as seguintes conclusões:

«1ª – Os vícios invocados no recurso interposto pela Assistente, de que o tribunal “a quo” considerou enfermar o Acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª instância – contradição insanável da fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova -, são meramente aparentes, emergindo essa aparência duma deficiente redação da redação do ponto 8) dos factos dados como provados, da eliminação pelo tribunal recorrido do ponto 9) dos factos provados, duma errada e segmentada análise e apreciação, por parte deste tribunal, da fundamentação do acórdão do tribunal de 1ª instância e errada aplicação da lei. Vejamos:

2ª - No aludido ponto 8), o tribunal de 1ª instância deu como provado o seguinte:

- “Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o ... o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22/4/2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23/4/2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados”.

3ª – Não obstante a redação porventura equívoca e pouco clara do ponto 8) dos factos dados como provados pelo tribunal de 1ª instância, da conjugação deste facto com a matéria dada como provada no ponto 9) e com a fundamentação de decisão que proferiu quanto à matéria de facto, resulta cristalino que na decisão proferida por aquele tribunal não se quis dar como provado que tais regulamentos entraram em vigor, seja em 2011, seja em 2012.

Vejamos:

4ª – No ponto 9) o acórdão da 1ª instância deu como provado que “a Junta de Freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos documentos”, reportando-se aos Regulamentos aludidos no ponto 8).

5º - Por seu turno, na fundamentação da decisão da matéria de facto contida no acórdão do tribunal de 1ª instância refere-se, de forma inequívoca, que o tribunal não deu como provado que os regulamentos estivessem em vigor.

6ª – No acórdão recorrido decidiu eliminar-se o ponto 9) dos factos dados como provados pela 1ª instância e ignorar os segmentos da fundamentação recorrida que permitem perceber que no ponto 8) este tribunal não pretendeu dar como provado que o Regulamento de tabelas e taxas datado de 22/4/2010 entrou em vigor em 2011 e que o Regulamento de Tabelas e Taxas datado de 23/4/2012 entrou em vigor em 2012.

7ª – Para eliminar o ponto 9) dos factos dados como provados pelo tribunal de 1ª instância, a Relação refere que se trata de matéria que não constava da pronúncia ou da contestação, mas, sim, de mera referência a uma diligência de prova, pelo que não constitui facto que, nos termos do disposto no artigo 368.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, releve para as questões enumeradas nas alíneas do citado preceito legal e que deva, por isso, ser considerado em sede de factos provados, como o foi pela 1ª instância, na medida em que só a enumeração destes deve constar da sentença, conforme impõe o artigo 374.º, n.º 2 do mesmo Código.

8ª – Nada de mais errado, como tentaremos demonstrar. Vejamos:

9ª – Ambos os Regulamentos em apreço – que se encontram juntos aos autos - estabelecem, no seu artigo 17.º, o seguinte: “o presente regulamento entre em vigor no primeiro dia útil do mês seguinte à sua aprovação pela Assembleia de Freguesia e após a sua publicação em edital a afixar no edifício da sede da Freguesia”.

10ª - São, assim, os próprios Regulamentos que dispõem quanto ao momento da sua entrada em vigor, bem como às formalidades de publicitação exigíveis para o efeito, expressamente consignando que a sua vigência tem início no primeiro dia útil do mês seguinte à sua aprovação pela Assembleia de Freguesia e após a sua publicação em edital a afixar no edifício da sede da Freguesia.

11ª - Dos mencionados Regulamentos resulta que foram aprovados pela Junta de Freguesia e pela Assembleia de Freguesia, mas deles não resulta que foram objeto de publicação em edital afixado no edifício da sede da Freguesia.

12ª – Para apurar tal facto, o tribunal de 1ª instância ordenou à Assistente que juntasse aos autos certidão dos editais respeitantes aos aludidos Regulamentos, o que esta não logrou fazer, alegando não ter encontrado qualquer edital referente aos ditos Regulamentos, aprovados em 2010 e 2011, juntando, no entanto, aos autos dois editais referentes a orçamentos, um de 2010 e outro de 2011 (sem certificação), ambos assinados pelo arguido, na qualidade de ... da Junta, uma certificação de edital, datado de fevereiro de 2014, também assinado pelo arguido, na mesma qualidade, um edital datado de abril de 2010, assinado pela ... da Assembleia de Freguesia, e cinco editais datados com datas dos anos de 2018 a 2022 referentes ao Regulamento e Tabela de Taxas para os anos de 2019 a 2023, todos assinados pela atual ... da Junta, mas nenhum com certificação de publicação.

13ª - Da prova produzida nos autos na sequência e em consequência das diligências encetadas pelo Tribunal, a requerimento do arguido e oficiosamente, não se demonstrou que os ditos Regulamentos tenham sido publicados em edital, afixado no edifício da sede da Junta ou em qualquer outro local.

14ª- O Tribunal de 1ª instância deu, por isso, como provado que “a Junta de Freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos documentos” – facto que no Acórdão recorrido foi eliminado.

15ª - Na fundamentação da matéria de facto vertida no Acórdão do tribunal de 1ª instância refere-se que “em qualquer caso, também se não deu como provado que o regulamento estivesse em vigor, pois a Junta de Freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital, alegando não ter encontrado edital certificado, conforme depoimentos do legal representante da Junta de Freguesia/atual ... e informação vertida no requerimento de 6/07” –segmento da fundamentação que o Acórdão recorrido omitiu, não obstante a sua manifesta relevância para a interpretação do sentido das expressões “em vigor no ano de 2011” e “em vigor no ano de 2012”, vertidas no ponto 8) dos factos provados.

16ª – Seja como for, o certo é que da vasta prova - documental e testemunhal produzida em julgamento quanto à questão de facto em apreço, não resultou demonstrado – nem sequer minimamente indiciado – que os Regulamentos em causa foram objeto de publicitação através de edital, afixado no edifício da sede da Junta de Freguesia ou em qualquer outro local

17ª - Presumir o contrário consubstancia manifesta violação do princípio “in dubio pro reo”, que constitui um dos baluartes do nosso ordenamento jurídico penal.

18ª - Embora a redação dada ao ponto 9) dos factos provados possa não ser a melhor, não estamos perante a mera referência a uma diligência de prova, como se afirma no Acórdão recorrido, mas, sim, perante matéria factual essencial ao preenchimento ou não dos pressupostos do tipo de ilícito pelo qual o arguido foi pronunciado e julgado.

19ª - Ao invés do entendimento seguido no acórdão recorrido, o facto de tal matéria não constar da pronúncia ou da contestação não impede o tribunal de a conhecer e de lançar mão da mesma para sustentar a decisão que proferiu.

20ª - A tal não obsta a estrutura acusatória do nosso processo penal (artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa), que tem como escopo essencial a proteção do arguido.

21ª – Com efeito, pese embora tal princípio, por razões de economia processual e no próprio interesse do arguido, a lei permite expressamente ao Juiz que este possa comunicar aos sujeitos processuais, mesmo no decurso da audiência de julgamento, quer uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art.358.º do C.P.P.), quer uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art.359.º do C.P.P.).

22ª - No caso sub judice não estamos perante factos desfavoráveis ao arguido e foi, inclusivamente, este que os suscitou, pelo que não havia que dar cumprimento ao citado artigo 358.º do CPP.

23ª - Revelando-se tal factualidade essencial para a boa decisão da causa, não podia o tribunal de 1.ª instância deixar de atender à mesma e de a considerar no acórdão que proferiu.

24ª - O artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estabelece que na fundamentação da sentença deve constar, entre outros elementos aí descritos, “(…) a enumeração dos factos provados e não provados (…)”, que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.».

25ª - Os factos provados e não provados são os que foram alegados pela acusação e pela defesa e, ainda, os que resultarem da discussão da causa e sejam relevantes para a sua decisão (artigo 368.º, n.º 2 do CPP), pelo que, se da discussão da causa resultarem factos relevantes para a sua decisão, designadamente para a questão do preenchimento dos pressupostos do tipo de ilícito e da culpabilidade, os mesmos devem ser integrados na sentença.

26ª - O tribunal recorrido errou clamorosamente ao eliminar o ponto 9) dos factos dados como assentes no acórdão da 1ª instância, quer porque tal matéria resultou da prova produzida em julgamento, quer porque, embora não constasse da pronúncia, nem da defesa, foi apurada no decurso do julgamento e é de extrema relevância para as questões enumeradas no n.º 2 do artigo 368.º do CPP, designadamente para o apuramento da verificação dos elementos do tipo de crime e aferição se o arguido o praticou.

27ª – A prova inequívoca de que os Regulamentos em causa nos autos foram publicitados, pelo menos através de editais, e a data em que tal sucedeu, constitui, assim, elemento essencial para se apurar se se mostram preenchidos os pressupostos do tipo de ilícito por cuja prática foi o arguido pronunciado, o crime de prevaricação, p. e p. nos termos do disposto no artigo 11.º da Lei 34/87, de 16/7, que estatui que “o titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos”.

28ª - A expressão “contra direito”, contida no citado normativo, tem, necessariamente, o sentido de contra direito positivo, que seja aplicável, que tenha eficácia externa, pelo que os Regulamentos em causa nos autos não constituem direito cujo cumprimento fosse exigível a quem quer que seja, pois, não se tendo demonstrado a sua publicitação, não pode concluir-se, sem margem para dúvidas, que constituíam, à data dos factos imputados ao arguido, direito positivo, direito vigente ou com eficácia externa.

29ª – Tais Regulamentos só produzem efeitos e o seu cumprimento só é legalmente exigível após a sua entrada em vigor.

29ª – Se, porventura, os referidos Regulamentos não contivessem uma norma específica relativa à sua entrada em vigor, seria aplicável a lei geral relativa aos atos de conteúdo genérico do poder local. [nota: numeração repetida]

30ª - Com efeito, o artigo 91.º da Lei das Autarquias Locais, quer na redação inicial, quer na redação conferida pela Lei 5-A/2002, de 11 de janeiro, veio exigir a publicação das deliberações dos órgãos autárquicos simultaneamente em edital afixado nos lugares de estilo – Ac. do STA de 13/3/2019, proferido no processo nº 0425/15.7BEMDL (disponível em www,dgsi.pt).

31ª - Ulteriormente, a Lei 75/2013, de 12 de setembro (Regime Jurídico das Autarquias Locais), no seu artigo 56º , nº 1, veio determinar que, “para além da publicação em Diário da República quando a lei expressamente o determine, as deliberações dos órgãos autárquicos locais, bem como as decisões dos respetivos titulares destinadas a ter eficácia externa, devem ser publicadas em edital afixado nos lugares de estilo durante cinco dos 10 dias subsequentes à tomada da deliberação ou decisão, sem prejuízo do disposto em legislação especial”.

32ª - Tal obrigatoriedade de publicitação decorre do imperativo constitucional, expressamente previsto no nº 2 do artigo 119.º da CRP, implicando o seu incumprimento a ineficácia jurídica do ato, que tem como consequência não poderem com base nele serem impostas obrigações aos particulares.

33ª – Ainda que a prova existente nos autos permitisse ao tribunal “a quo” concluir, sem margem para dúvidas, que o arguido conduziu ou decidiu conscientemente o procedimento em apreço, intervindo no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma se beneficiar – no que não se concede, porque se considera que a matéria de facto que o tribunal de 1ª instância deu como não provada, foi, errada e infundadamente, dada como provada pelo tribunal da Relação -, sempre faltaria o pressuposto consistente na decisão “contra direito”, porquanto os Regulamentos em apreço só após a sua publicitação constituiriam direito positivo, vigente na ordem jurídica e, assim, aplicável a qualquer cidadão. Assim

34ª- O Acórdão recorrido ao eliminar o ponto 9) dos factos assentes, eliminou matéria factual relevantíssima para a boa decisão da causa e ao interpretar o ponto 8) da matéria dada como provada com o sentido em que o fez, ou seja, que os Regulamentos aí aludidos entraram em vigor em 2011 e em 2012, fê-lo contra a prova produzida nos autos, da qual resulta, pois, como se afirma na fundamentação do Acórdão do Tribunal de 1ª instância, este não se deu como provado que os Regulamentos estivessem em vigor, dado que a Junta de Freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação dos mesmos por edital, alegando não ter encontrado edital certificado. Assim

35ª – O Acórdão recorrido, ao condenar o arguido pela prática do crime de prevaricação, sem que se tenha demonstrado nos autos que os Regulamentos em causa foram publicitados e que, consequentemente, se encontravam em vigor à data dos factos que lhe são imputados, consubstancia interpretação inconstitucional do artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16/7. Mais:

36ª - Ao modificar a decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto que esta deu como não provada, vertida nas alíneas a) a d) dos factos não provados, considerando tal factualidade como provada, o tribunal “a quo” fá-lo de forma absolutamente infundada.

37ª - Embora o recurso interposto para o Tribunal da 2ª instância tenha por objeto, para além dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, erro de julgamento relativo à matéria de facto descrita nas alíneas a) a d) dos factos não provados, o certo é que este tribunal modificou o Acórdão da 1ª instância, quanto a tal matéria de facto, dando-a como provada, quando aquele a havia dado como não provada, sem analisar toda a prova produzida em julgamento, mas, sim, sustentando a sua decisão apenas em alegado erro notório na apreciação da prova, como expressamente se refere a fls. 49 do aresto recorrido.

38ª - Como vem sendo unanimemente entendido pela jurisprudência, citando o douto acórdão do TRC de 10/7/2018, proferido no processo n.º 26/16.2GESRT.C1 (disponível em www.dgsi.pt), “o erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum. Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá como provado, ou por não provado, um facto que contraria em toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Por essa razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374º, nº 2, do Código de Processo penal)”.

39ª - Face à prova produzida nos autos, aos factos dados como provados e à fundamentação em que tal decisão se estriba, é manifesto que o Acórdão proferido pelo tribunal de 1ª instância, ao dar como não provada a matéria vertida nas alíneas a) a d), não contraria, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

40ª - Com efeito, além de se ter dado como provado no ponto 9) que não se provou que os Regulamentos estivessem em vigor e de tal se afirmar, de forma clara, na fundamentação da decisão de facto, o tribunal de 1.ª instância levou em consideração os depoimentos das testemunhas BB e CC, que integraram, conjuntamente com o arguido, o órgão Junta de Freguesia da Fatela, durante o período a que se reportam os factos, o primeiro com as funções de ... e o segundo com as funções secretário, que foram de opinião que este não devia pagar qualquer taxa para a construção do jazigo.

41ª - O Acórdão proferida pelo tribunal de 1ª instância não enferma, por isso, de erro notório na apreciação da prova, assim como também não enferma de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

42ª - Ainda que se entenda que ocorre alguns desses vícios – no que não se concede -, deve revogar-se o acórdão recorrido e ordenar-se o reenvio do processo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426.º, n.º 2, do CPP.

43ª – O acórdão recorrido viola, designadamente, o disposto nos artigos 368.º, n.º 2, 374.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, e 426.º, n.º 1, todos do CPP, 11.º da Lei 34/87, de 16/7, 56.º, n.º 1, da Lei 75/2013, de 12/9 (Regime Jurídico das Autarquias Locais) e 119.º n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, pelo que deve julgar-se o presente recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido e mantendo-se a decisão absolutória proferida pelo tribunal de 1ª instância, ou, quando se considere que se verifica algum dos vícios previstos no artigo 410.º do CPP, decretando-se o reenvio, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 426.º do CPP (…)»

4. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Coimbra apresentou resposta em que se pronuncia no sentido da improcedência do recurso, concluindo (transcrição):

«(…)

- Não estão verificados vícios que determinem a revogação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.

- Foi feita acertada interpretação e aplicação do Direito aos factos provados.

-O acórdão está muito bem fundamentado.

-Não houve violação de lei.

-O recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se o decidido.».

5. Respondeu também a assistente pugnando pela improcedência do recurso, dizendo em conclusões (transcrição):

«(…)

- Não estão verificados vícios que determinem a revogação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

- Foi feita acertada interpretação e aplicação do Direito aos factos provados. - O acórdão está muito bem fundamentado.

- Não houve violação de lei.»

6. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a posição do Ministério Público no tribunal recorrido, emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos, que se transcrevem:

«(…)

6. Analisado o recurso, verifica-se o recorrente, sob a capa de uma incorreta aplicação do direito, na verdade mais não faz do que apresentar uma argumentação que tem sempre como pano de fundo a sua discordância quanto à valoração dos diversos elementos de prova que serviram ao Tribunal recorrido para formar a sua convicção.

Com efeito, esta tentativa de por em causa a factualidade provada, que enforma toda a argumentação expendida, emerge aqui e ali em afirmações de que é exemplo a contida na conclusão 16ª, onde se diz que, citamos, “Seja como for, o certo é que da vasta prova - documental e testemunhal - produzida em julgamento quanto à questão de facto em apreço, não resultou demonstrado – nem sequer minimamente indiciado – que os Regulamentos em causa foram objeto de publicitação através de edital, afixado no edifício da sede da Junta de Freguesia ou em qualquer outro local.”

Como o recorrente bem saberá, estamos aqui no domínio da (re)apreciação da matéria de facto, definitivamente fixada pelo Tribunal recorrente e subtraída aos poderes de cognição deste Supremo Tribunal. (…)

Prossegue depois, o recorrente, afirmando, na conclusão 17ª, que “Presumir o contrário consubstancia manifesta violação do princípio “in dubio pro reo”, que constitui um dos baluartes do nosso ordenamento jurídico penal.”

Ora, princípio in dubio pro reo incide sobre a matéria de facto e, por isso, só neste domínio ganha pertinência a sua invocação.

Sendo um corolário do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, contemplado no art. 32º nº 2 da Constituição da República, pressupõe que uma dúvida quanto aos factos ocorridos se mantenha insanável, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas.

Só então o Tribunal estaria obrigado a resolver a dúvida à luz princípio aqui em causa, considerando os factos como não provados e solucionando a questão em favor do arguido.

Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido, fica afastado o princípio do in dubio pro reo.

Como ensina Figueiredo Dias, este princípio “vale só, evidentemente, em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão-de-direito: aqui a única solução correcta residirá em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto” .

Acresce que, tratando-se de um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP.

Como parece ser razoavelmente evidente, estamos aqui muito longe desse lugar jurídico-processual. Com efeito, do que aqui, neste recurso, se trata é da mera discordância do ora recorrente quanto à forma como o Tribunal, perante os meios de prova produzidos, construiu a sua convicção, determinou a factualidade provada e, em consonância, aplicou – bem – o direito.

Por fim, a impugnação que faz da condenação por crime de prevaricação, cujos elementos constitutivos considera não estarem provados, reconduz-se também, ao fim e ao cabo, à revisitação dos factos dados por assentes pelo Tribunal recorrido.

O recorrente não alega que os factos provados não suportam tal subsunção, o que faria cair o acórdão recorrido no vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, vício esse que, como já atrás se referiu, é do conhecimento oficioso por este Tribunal.

O que ele diz é que sem que se tenha demonstrado nos autos que os Regulamentos aqui em causa foram publicitados e que, consequentemente, se encontravam em vigor à data da prática dos factos, aquela subsunção não pode ser efetuada.

Com efeito, afirma na conclusão 34.ª que, “O Acórdão recorrido ao eliminar o ponto 9) dos factos assentes, eliminou matéria factual relevantíssima para a boa decisão da causa e ao interpretar o ponto 8) da matéria dada como provada com o sentido em que o fez, ou seja, que os Regulamentos aí aludidos entraram em vigor em 2011 e em 2012, fê-lo contra a prova produzida nos autos, da qual resulta, pois, como se afirma na fundamentação do Acórdão do Tribunal de 1ª instância, este não se deu como provado que os Regulamentos estivessem em vigor, dado que a Junta de Freguesia, apesar de expressamente lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação dos mesmos por edital, alegando não ter encontrado edital certificado.”

Ora, a decisão recorrida alterou a matéria de facto fixada pela primeira instância, dela retirando o facto nº 9 - A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos – ao mesmo tempo que fez incluir no seu elenco os factos constantes das alíneas a) a d) dos factos não provados, a saber:

a) O arguido não pagou a taxa aproveitando-se das suas funções e ... da Junta.

b) O arguido sabia que era devida a taxa para construção do jazigo.

c) O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado d) O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Estes são os factos fixados e para que o Supremo Tribunal de Justiça pudesse aqui exercer o seu poder, necessário seria que tivesse ocorrido um, ou mais do que um, dos vícios do artigo 410, nº 2, do CPP.

O recorrente não ignora este facto e invoca a falta de fundamentação e o erro notório na apreciação da prova para suportar a sua tese de que o acórdão recorrido deve ser revogado. Porém, ao invés de indicar os segmentos da decisão que evidenciariam tais vícios, regressa sempre à invocação da “prova dos autos” para confrontar a decisão recorrida e para demonstrar como o Tribunal a quo errou na apreciação da prova.

Como tantas vezes acontece, o que o recorrente verdadeiramente pretende é impugnar a matéria de facto dada como assente pelo Tribunal da Relação, já que não se conforme com ela e pretende, por isso, a sua alteração.

7. Face ao exposto e examinados os fundamentos do recurso, sufragamos integralmente a resposta ao recurso apresentada pela Senhora Procuradora Geral Adjunta, que aqui damos por reproduzida e, em conformidade, emitimos parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente mantendo-se a decisão recorrida.»

7. Não houve resposta ao parecer do Ministério Público.

8. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi apresentado à conferência, para decisão – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

Factos

9. O Juízo Central Criminal de Castelo Branco proferiu decisão de facto, nos seguintes termos:

9.1. Factos provados:

«1. O arguido, AA, exerceu funções de ... de Junta da Freguesia da Fatela no mandato de 2009 a 2013 e no mandato de 2013 a 2017.

2. Aquando das partilhas feitas no processo de inventário n.ᵒ 723/07.3..., que correu termos no 2.ᵒ Juízo do Tribunal Judicial ..., relativamente à herança dos pais do aqui arguido, DD e EE, foi decidido que o jazigo da família, registado na Junta de Freguesia da Fatela com o n.ᵒ J..., fosse atribuído ao irmão do arguido, FF.

3. Nesse jazigo, estava sepultado o corpo da mulher do aqui arguido, GG, falecida a ...-...-2010.

4. Por sua vez, foi autorizado pelo Executivo (do qual o arguido fazia parte) a permuta de sepulturas entre a assistente e HH (registado na acta n.ᵒ 48 de 27-04-2012), tendo sido realizado um contrato de permuta da sepultura, registado na acta n.ᵒ 49 de 25-05-2012, em que HH cedeu as sepulturas n.ᵒˢ .44 e .46, em troca da sepultura n.ᵒ .13, propriedade da assistente.

5. Além disso, foi realizado um outro contrato de permuta, desta feita da sepultura n.ᵒ .45, pertença de II, o qual foi registado na acta n.ᵒ 51 de 2012 de 27-07-2012, onde este cedeu a referida sepultura em troca da sepultura n.ᵒ .28, propriedade da assistente.

6. Tais acções tiveram como finalidade que as sepulturas n.ᵒˢ .44 e .45 fossem posteriormente adquiridas pelo arguido para a construção de um jazigo.

7. O arguido comprou as sepulturas n.ᵒˢ .44 e .45, tendo tal acto sido registado na acta n.ᵒ 52 de 2012, realizada no dia 31-08-2012, sendo emitido o alvará de concessão de terreno no cemitério da Fatela, a que foi atribuído o n.ᵒ .61.

8. Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o ..., o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-04-2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados;

9. A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos.» [nota: ponto eliminado pelo acórdão da Relação, infra, 10]

«10. O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta.» [nota: passou a ser o n.º 9 – acórdão da Relação, infra, 10]

«11. Em data não apurada, mas não anterior a Julho de 2011, mas posteriormente à aquisição das sepulturas, e antes de 15-11-2012, o arguido construiu nessas um jazigo (que viria a ser registado como jazigo n.ᵒ J...na Junta de Freguesia da Fatela)». [nota: passou a ser o n.º 10, com alterações – acórdão da Relação, infra, 10]

«12. Não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.» [nota: passou a ser o n.º 11 – acórdão da Relação, infra, 10]

«13. No dia 15-11-2012, foi requerida pelo arguido a trasladação do corpo da sua falecida esposa, do jazigo n.º J4 para o jazigo entretanto contruído no local das sepulturas adquiridas sob os n.ᵒˢ .44 e .45, agora registado com o n.ᵒ J7 na assistente.» [nota: passou a ser o n.º 12 – acórdão da Relação, infra, 10]

«14. Tal pedido foi deliberado pelo Executivo no «Ponto 4 – Requerimento para Trasladação» da ordem de trabalhos, na reunião ordinária da Junta da Freguesia da Fatela, registada na acta n.ᵒ 55 de 2012 de 30-11-2012.» [nota: passou a ser o n.º 13 – acórdão da Relação, infra, 10]

«15. A trasladação do corpo de GG foi efectuada no dia 08-02-2013 para este «novo» jazigo.» [nota: passou a ser o n.º 14 – acórdão da Relação, infra, 10]

«16. À data da construção do jazigo J4, a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2.» [nota: passou a ser o n.º 15, alterado, com aditamento – acórdão da Relação, infra, 10]

«17. O arguido não pagou a taxa pela construção do jazigo, que lhe não foi solicitada.» [nota: eliminado, passando o seu conteúdo, com alterações, para o aditamento ao novo n.º 15 – acórdão da Relação, infra, 10]

«18. Não foi preenchido o averbamento no alvará de concessão de sepultura.» [nota: passou a ser o n.º 17 – acórdão da Relação, infra, 10]

(…)»

O acórdão da Relação aditou ainda os novos pontos 18 a 22 da matéria de facto provada [infra, 10]

9.2. Factos não provados:

«a) O arguido não pagou a taxa aproveitando-se das suas funções e ... da Junta.

b) O arguido sabia que era devida a taxa para construção do jazigo.

c) O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.

d) O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.»

10. O Tribunal da Relação retificou o ponto 16 dos factos provados, dele fazendo constar «jazigo J7» em vez de «jazigo J4», e modificou a matéria de facto, eliminando o ponto 9 da matéria de facto provada – que dizia que: «A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos» –, e a matéria ali descrita sob as alíneas a) a d) do elenco dos factos não provados, fazendo constar tal matéria dos factos provados, e aditando novos pontos à matéria de facto provada, que passaram a constituir os pontos 9 a 22 da matéria de facto provada, com a seguinte redação:

«9. O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta.

10. Em data não concretamente apurada, mas posteriormente à aquisição das sepulturas, e antes de 15-11-2012, o arguido construiu nessas um jazigo (que viria a ser registado como jazigo n.ᵒ J7 na Junta de Freguesia da Fatela).

11. Não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.

12. No dia 15-11-2012, foi requerida pelo arguido a trasladação do corpo da sua falecida esposa, do jazigo n.º J4 para o jazigo entretanto contruído no local das sepulturas adquiridas sob os n.ᵒˢ .44 e .45, agora registado com o n.ᵒ J7 na assistente.

13. Tal pedido foi deliberado pelo Executivo no «Ponto 4 – Requerimento para Trasladação» da ordem de trabalhos, na reunião ordinária da Junta da Freguesia da Fatela, registada na ata n.ᵒ 55 de 2012 de 30-11-2012.

14. A trasladação do corpo de GG foi efetuada no dia 08-02-2013 para este «novo» jazigo.

15. À data da construção do jazigo J7, era exigida uma taxa de construção pela assistente de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2., que o arguido não pagou nem lhe foi solicitada.

17. Não foi preenchido o averbamento no alvará de concessão de sepultura.

18. O direito de a assistente liquidar as taxas devidas pela construção do jazigo, caducou.

19. O arguido omitiu o pagamento da taxa devida pela construção do jazigo, que se computava no caso concreto em 1.200,00 EUR (mil e duzentos euros) – (300,00 EUR (trezentos euros) o m2), aproveitando-se das suas funções de ... da Junta.

20. O arguido sabia que aquela taxa para construção do jazigo era devida.

21. O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.

22. O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.»

11. O acórdão da Relação apresenta a seguinte motivação da decisão da alteração da matéria de facto:

«1. Delimitação do objeto do recurso.

Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal , e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.

Atentas as conclusões formuladas pela Recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

a) – Vícios de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova – Artigo 410º nº2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal [conclusões 1º a 40º]

b) – Erro de julgamento relativo à matéria de facto descrita nas alíneas a) a d) dos factos não provados [conclusões 41º a 106º];

(…)

«3.2. Dos vícios de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova – Artigo 410.º n.º 2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.

Compulsadas as conclusões 1.º a 40.º, constata-se que o Recorrente considera que a decisão em recurso padece de ambos os vícios.

No que concerne ao primeiro, porque existe manifesta contradição entre o teor dos pontos 8., 10. e 16., onde consta que em 2011 e 2012 estavam em vigor regulamentos e tabelas de taxas devidas à Assistente, nomeadamente, pela compra de sepulturas e pela construção de jazigos, sendo que, à data da construção do jazigo por parte do arguido, a Assistente exigia uma taxa de construção de €300,00 por m2, Regulamentos e tabelas aprovadas pelo executivo a que o arguido presidia e o teor da alínea b) dos factos não provados de onde resulta que não se provou que o mesmo soubesse que era devida taxa para construção do jazigo.

Para além disso, existe contradição entre aquela matéria de facto provada e a fundamentação, na parte em que refere que não se deu como provado que o mesmo regulamento estivesse em vigor, pois que, da matéria de facto provada consta expressamente que os regulamentos estavam em vigor e que a Assistente à data da construção do jazigo (portanto, pelo menos, em Julho de 2011) exigia uma taxa de construção de €300,00 por m2.

Quanto ao vício de erro notório na apreciação da prova, de acordo com a Recorrente, o mesmo está relacionado com o primeiro, pois que, atenta a matéria de facto provada, nomeadamente a que consta dos pontos 8., 10. e 16., o juízo de inferência que se impunha era o de considerar provados os factos que se consideraram não provados.

De todo o modo, no que se refere aos vícios em causa, cabe ao Tribunal, conhecer da sua eventual ocorrência, mesmo que os mesmos não sejam invocados.

Na verdade, tal conhecimento oficioso impõe-se também, no que respeita aos vícios a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal, conforme jurisprudência fixada pelo acórdão nº7/95, do STJ, de 19 de outubro, in Diário da República, I. Série-A, de 28/12/1995 – “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”

Dispõe o artigo 410º do Código de Processo Penal: [transcrição]

Como ensina Maria João Antunes1, “os vícios do nº 2 do artigo 410º, do C. P. Penal, não são vícios do julgamento, mas vícios da decisão, que surgem umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, que impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena da nulidade da sentença, mas que com eles se não confundem”.

No mesmo sentido, escreve Gama Lobo2 relativamente aos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º que “une todas estas situações, que o código apelida de “vícios”, o facto de serem endógenas da sentença, isto é, resultam sem mais, da leitura da sentença, não admitindo elementos exteriores para a sua constatação. É inoperante no recurso aludir a quaisquer outros elementos externos à sentença, como sejam declarações no decurso do inquérito ou da instrução ou até mesmo do julgamento, defeito que acontece muitas vezes”.

Analisado o acórdão em recurso, reconhecemos razão à Recorrente, considerando que o mesmo enferma do vício de contradição da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão [artigo 410º nº2 alínea b) do Código de Processo Penal] e bem assim, do vício de erro notório na apreciação da prova [artigo 410º nº2 alínea c) do Código de Processo Penal].

Assim, com as limitações mencionadas supra (recurso apenas ao texto da decisão acima transcrita), analisemos os vícios previstos no nº 2 alíneas b) e c) do artigo 410º do Código de Processo Penal.

3.2.1. – Do vício da contradição insanável entre fundamentação e decisão [Artigo 410º nº2 alínea b) do Código de Processo Penal].

No caso dos autos, ocorre simultaneamente, o vício de contradição insanável entre fundamentação e entre fundamentação e decisão.

Sobre o vício em causa se vem pronunciando abundantemente a Doutrina e a Jurisprudência. (…).

Volvendo ao caso vertente, adiantamos, desde já, que o mesmo se verifica.

É que, o Tribunal a quo considerou provado que:

- Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o ..., o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-04-2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados;

- O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/ m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta.

- À data da construção do jazigo J4 (peia-se, J7), a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2.

Por outro lado, o Tribunal a quo considerou não provado que o arguido soubesse que era devida a taxa para construção do jazigo [alínea b) dos factos não provados].

Trata-se de factos contraditórios, pois não pode dizer-se simultaneamente que os regulamentos em causa (que previam o pagamento de taxas, quer pela compra de sepulturas, quer pela construção de jazigos) foram aprovados pelo executivo a que o arguido presidia e que o mesmo desconhecia que aquela taxa de construção de jazigo era devida.

Note-se que nem sequer se diz que o arguido estava convencido de que aquela taxa não era devida pela concreta construção que levou a cabo, o que se diz é que desconhecia ser aquela taxa devida, o que é bem diferente e que, de todo, não pode afirmar-se sem entrar em contradição com a assinalada matéria de facto provada.

Subscreve-se, nesta parte, o douto parecer da Exmª Procuradora-geral Adjunta quando afirma:

“Na realidade, não se entende que, tendo ficado provado que o arguido foi ... da junta de freguesia no mandato de 2009 a 2013 e no mandato de 2013 a 2017, que no primeiro mandato foi aprovado pelo seu executivo o Regulamento e Tabela de Taxas, em vigor no ano de 2011, datado de 22/04/2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23/04/2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados, se dê, depois, como não provado que sabia que era devida a taxa para construção do jazigo. (…) Assim, e tal como vem alegado, o tribunal o deu como provados factos donde decorre que havia regulamentos em vigor onde era exigida uma taxa que tinham de ser paga relativamente à construção de jazigos, mas depois contradiz-se ao desconsiderar tal facto.”

A contradição é manifesta.

Por outro lado, ocorre contradição entre a fundamentação e a decisão.

Na verdade, o Tribunal a quo decide dar como provado que “Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o ..., o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-04-2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados” e simultaneamente, em sede de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto afirma: “Em qualquer caso, também se não deu como provado que o regulamento estivesse em vigor, pois a Junta de freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital, alegando não ter encontrado edital certificado, conforme depoimentos do legal representante da Junta de freguesia/actual ... e informação vertida no requerimento de 6/07.”

Por outras palavras, o Tribunal a quo em sede de decisão sobre a matéria de facto considera provado que os Regulamentos e Taxas datados de 22-04-2010 e de 23-04-2012 vigoraram, respetivamente, nos anos de 2011 e 2012 e, em sede de fundamentação da mesma decisão começa por afirmar que “Não deu como provado que os regulamentos estivessem em vigor”, discorrendo, depois, sobre as razões de assim entender.

E não se diga, como o faz o Arguido na sua douta resposta ao recurso, que a expressão “que entrou em vigor” constante dos factos provados é meramente identificativa do respetivo Regulamento.

A matéria de facto provada e não provada constitui o elemento definidor do objeto do processo e quanto a ela não podem subsistir quaisquer ambiguidades. Se o Tribunal a quo considera que aqueles Regulamentos e taxas não estavam em vigor (independentemente de subscrevermos, ou não a respetiva fundamentação) para que não existisse a apontada contradição impunha-se-lhe que decidisse em conformidade fazendo constar tal facto dos factos não provados, dando apenas como provado que aqueles Regulamentos foram aprovados nos termos resultantes do documento de fls.122 a 127.

Consideramos, pois, que as contradições existem e são, por si só, insanáveis, muito embora, como veremos infra, por considerarmos ocorrer, também, o vício de erro notório na apreciação da prova e ser a sanação desse erro possível com recurso à própria decisão e porque o Recorrente também faz a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, será possível a este Tribunal de recurso, sanar tal vício de contradição.

3.2.2. - Do vício do erro notório na apreciação da prova [Artigo 410º nº2 alínea c) do Código de Processo Penal].

Existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulte que se deu como provado ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – Cfr. artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal.

Como se salienta no Acórdão do STJ de 09/04/2008: [transcrição] (…)

O erro notório na apreciação da prova, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Perante a simples leitura do texto da decisão, o “homem médio” conclui, legitimamente, que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

(…)

Volvendo ao caso dos autos.

Do texto da decisão recorrida resulta que o Tribunal deu como não provado que:

a) O arguido não pagou a taxa aproveitando-se das suas funções de ... da Junta.

b) O arguido sabia que era devida a taxa para construção do jazigo.

c) O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.

d) O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Em sede de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto não provada, (pese embora a dificuldade em destacar essa fundamentação da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto provada), consta do acórdão o seguinte:

“Os factos dados como provados colhem a sua demonstração nas declarações do arguido que declarou (…) Falou com o secretário da junta, que foi medir e começou a construir; mais disse estar convencido de não serem devidas taxas pela construção do jazigo porque começou a diligenciar pelas sepulturas logo após a morte da esposa, embora a aquisição tivesse sido formalizada muito depois (…).

O entendimento/convencimento do arguido de nada dever pagar está reforçado pelos depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação

BB, que foi ... da Junta de freguesia de Fatela (pagamentos/recebimentos), disse que era da responsabilidade do secretário o cumprimento do regulamento; que se recorda de o arguido ter dito "ter conseguido as sepulturas" não se tendo valorado o seu depoimento sobre a data da construção, face ao depoimento da testemunha JJ claro e motivado, nada mais sabendo. Mais disse que a testemunha KK, fazia o trabalho de ...; nada mais acrescentado sobre a conduta do arguido;

- a testemunha CC, que fez parte da junta de freguesia entre 2009 e 2017; recorda-se da comunicação verbal do arguido de ter a posse de duas sepulturas juntas, que não havia taxas antes de Abril de 2010; foi de opinião de que que o arguido não devia pagar pelo jazigo, na medida em que a obra foi iniciada antes da entrada em vigor do regulamento.

Sem prejuízo de, como se deu como provado, que a obra do jazido apenas teve início após Julho de 2011, o certo é que tais testemunhas, executivo da Junta tinham o entendimento que não eram devidas taxas, para além das pagas, sendo que não foi produzida qualquer prova de que o arguido tivesse decidido pelo não pagamento, pelo que se deu com o não provado o facto vertido em a) dos não provados e, ainda não provados os factos atinentes ao elemento subjectivo e vertidos nesta sede.”

Ora, é patente na decisão, o vício de erro notório na apreciação da prova no que concerne aos factos dados como não provados.

Trata-se de factos, mormente os descritos nas alíneas b) e d), relacionados com a consciência e vontade de atuação por parte do arguido, por isso, factos de natureza psicológica que, não tendo sido objeto de confissão por parte do arguido, a sua prova inscreve-se no âmbito da prova indireta ou indiciária.

Como veremos, a matéria de facto provada apreciada criticamente e interpretada à luz das regras de experiência comum conduz, de forma lógica, à conclusão de que tal matéria (não provada) se deve dar como provada.

Não obstante, neste momento, cabe salientar que a fundamentação transcrita revela uma apreciação da prova manifestamente incorreta, desadequada, dando como não provados factos com base em raciocínio que contraria a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

Vejamos, o Tribunal fundou, em parte, a sua decisão de dar como não provado que o arguido soubesse que eram devidas taxas pela construção do jazigo nas declarações prestadas pelo mesmo na parte em que refere que:

- Falou com o secretário da junta, que foi medir e começou a construir

- (…) estar convencido de não serem devidas taxas pela construção do jazigo porque começou a diligenciar pelas sepulturas logo após a morte da esposa, embora a aquisição tivesse sido formalizada muito depois.

Ora, estas declarações são desmentidas pela restante matéria de facto que foi dada como provada e a sua valoração no sentido por que o foi constitui erro patente e que resulta da leitura da própria decisão.

Com efeito, não pode aceitar-se, porque não é esse o normal acontecer, que pretendendo o arguido (... da respetiva Junta, facto que deve ter-se sempre presente na análise da prova) construir um jazigo no cemitério sob jurisdição da Junta de Freguesia a que preside considere uma atuação legítima limitar-se a falar com o secretário que foi medir …

Tal construção, como é do conhecimento geral, está sujeita a um determinado procedimento administrativo, circunstância que o arguido não podia desconhecer.

Mas, na verdade, consta da matéria de facto provada que o arguido, pretendendo proceder a essa construção, omitiu a realização desse procedimento o qual para além do mais, implicava o pagamento de uma taxa.

É o que consta dos pontos 12., 16., 17. e 18., com o seguinte teor:

“12. Não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.

16. À data da construção do jazigo J4 (leia-se J7, conforme correção supra), a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2.

17. O arguido não pagou a taxa pela construção do jazigo, que lhe não foi solicitada.

18. Não foi preenchido o averbamento no alvará de concessão de sepultura.

Em face desta matéria de facto provada, as declarações prestadas pelo Arguido não podiam merecer o convencimento do Tribunal a quo, por surgirem contrárias à lógica e ao normal acontecer.

Se o arguido nem sequer deu início ao procedimento administrativo previsto para obter autorização para a construção, não lhe tendo, por isso, sido cobrada qualquer taxa, não pode afirmar, sem ser manifesta a incoerência do que afirma, que não pagou a taxa porque estava convencido de que a mesma não era devida, e não era devida porque começou a diligenciar pela aquisição das sepulturas onde viria a construir o jazigo, logo após a morte da esposa, isto é, na sua perspetiva, num tempo em que o regulamento e taxa em causa, não tinham, ainda, sido aprovados.

Resulta da matéria de facto provada que a esposa do arguido faleceu em 28-06-2010 (ponto 3.) e que a construção do jazigo ocorreu em data incerta, mas não anterior a julho de 2011 (ponto 11.). Mais consta que o regulamento e taxas relativo, para além do mais, à dita construção foi aprovado pelo executivo do qual o arguido era o ... em 22-04-2010, para vigorar em 2011.

Assim, qualquer cidadão médio que leia o acórdão em recurso, percebe a incongruência do raciocínio que foi feito pelo Tribunal louvando-se em declarações frontalmente contrariadas pela demais matéria de facto dada como provada.

Se o arguido estivesse convencido de não ser devida a taxa em causa, o normal seria dar início ao respetivo procedimento entregando requerimento para obtenção da respetiva autorização e requerendo a isenção do pagamento de taxa com os fundamentos que entendesse pertinentes e não, como aconteceu, construir o jazigo, sem mais.

Depois, a fundamentação apela aos depoimentos das testemunhas refere-se aos mesmos destacando os segmentos que considera que fundamentam a sua decisão quanto aos factos não provados. Mas lida a fundamentação, também nesta parte, é manifesto que os segmentos destacados não podiam fundamentar a decisão em causa porque a ela não conduzem, de forma manifesta.

Vejamos.

Quanto à testemunha BB, destaca o Tribunal que disse que “foi ... da Junta de freguesia de Fatela (pagamentos/recebimentos), disse que era da responsabilidade do secretário o cumprimento do regulamento; que se recorda de o arguido ter dito "ter conseguido as sepulturas" (…) Mais disse que a testemunha KK, fazia o trabalho de...; nada mais acrescentado sobre a conduta do arguido.”

Não vemos como é que este depoimento permite concluir pela decisão de dar como não provada a matéria constante das alíneas a) a d) dos factos não provados quando é certo que qualquer cidadão médio ao ler este texto logo conclui que nada diz sobre a matéria de facto que está em questão.

Quanto à testemunha CC, destaca o Tribunal que disse que “fez parte da junta de freguesia entre 2009 e 2017; recorda-se da comunicação verbal do arguido de ter a posse de duas sepulturas juntas, que não havia taxas antes de Abril de 2010; foi de opinião de que o arguido não devia pagar pelo jazigo, na medida em que a obra foi iniciada antes da entrada em vigor do regulamento”.

Neste segmento não se compreende, de todo, a decisão do Tribunal, que surge ilógica e contrária ao teor do próprio depoimento destacado.

Ora, se a testemunha afirmou que não havia taxas antes de abril de 2010 (pressupondo-se que, a partir dessa data existiam essas taxas) e se se deu como provado que a construção ocorreu, pelo menos, após julho de 2011, como é que pode aceitar-se como boa e fundamentar nela a decisão sobre a matéria de facto a afirmação de que “foi de opinião de que o arguido não devia pagar pelo jazigo, na medida em que a obra foi iniciada antes da entrada em vigor do regulamento”.

Na verdade, a considerar-se este depoimento, o mesmo só poderia conduzir à conclusão contrária, isto é, a de que o arguido sabia que era devida uma taxa e que se eximiu ao seu pagamento aproveitando-se das suas funções de ... da Junta.

Mas pensamos que a parte final da fundamentação é, ainda, mais errónea e ilógica.

Vejamos. Ali se afirma que: “Sem prejuízo de, como se deu como provado, que a obra do jazido apenas teve início após Julho de 2011, o certo é que tais testemunhas, executivo da Junta tinham o entendimento que não eram devidas taxas, para além das pagas, sendo que não foi produzida qualquer prova de que o arguido tivesse decidido pelo não pagamento, pelo que se deu com o não provado o facto vertido em a) dos não provados e, ainda não provados os factos atinentes ao elemento subjectivo e vertidos nesta sede.”

O Tribunal começa por dizer que se deu como provado que a construção se iniciou após julho de 2011 e, depois, faz tábua rasa dessa afirmação e avança como fundamento da sua decisão sobre a matéria de facto não provada (toda ela, note-se) a circunstância de, ao arrepio de tudo o resto que se deu como provado (que o regulamento e em vigor naquele ano foi aprovado em 22-04-2010), aquelas testemunhas terem o “entendimento” de que não eram devidas taxas.

Qualquer pessoa percebe que este raciocínio não é acertado, mas sobretudo, não é lógico.

Remata o Tribunal a quo com o seguinte: “não foi produzida qualquer prova de que o arguido tivesse decidido pelo não pagamento, pelo que se deu com o não provado o facto vertido em a) dos não provados e, ainda não provados os factos atinentes ao elemento subjectivo e vertidos nesta sede.”

Como assim?

Se a conduta descrita nos factos provados é uma conduta omissiva, isto é, o arguido não requereu a autorização para a construção do jazigo, não existindo, por isso, o próprio procedimento que daria origem ao pagamento de uma taxa, como é que pode apelar-se para a necessidade de qualquer prova de que o arguido decidiu pelo não pagamento? É que, mercê da conduta do arguido nem sequer houve lugar a qualquer decisão.

Finalmente, o Tribunal considera, de forma que também não é aceitável, mesmo não ultrapassando os limites da própria decisão, que, por estas razões se deu como não provada, não só a matéria constante da alínea a) como toda a restante, constante das alíneas b), c) e d).

Em suma, a decisão sobre a matéria de facto no que concerne à factualidade não provada é manifestamente errada.

Dá-se, pois, por verificado o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º n.º 2 alínea c) do Código de Processo Penal e tem-se por inteiramente procedente o recurso.

Como resulta do disposto no artigo 428.º do Código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, podendo e devendo modificar as decisões de primeira instância sobre a matéria de facto, nomeadamente, quando, ocorrendo um dos vícios da decisão previstos no artigo 410º do mesmo código, for possível, ainda assim, decidir a causa – Cfr. artigos 431º e 426º nº1 (primeira parte), ambos do Código de Processo Penal.

Assim, sanando, simultaneamente o vício de erro notório na apreciação da prova e de contradição, assinalados supra, os factos dados como não provados, devem passar a integrar o elenco dos factos provados.

Com efeito, tendo em consideração a matéria de facto dada como provada [pontos 1. a 18. dos factos provados], analisada esta conjugadamente e à luz das regras de experiência comum, tem de concluir-se que o arguido não pagou a taxa aproveitando-se das suas funções de ... da Junta; sabia que era devida a taxa para construção do jazigo e como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Finalmente, tem de concluir-se também, que o arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.

Com efeito, resultou provado que não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.

Ou seja, não só o arguido não requereu a autorização em causa previamente à construção, como não o fez posteriormente, pelo que, não foi liquidada a taxa devida. Assim, exercendo o arguido o cargo de ... da junta até 2017, a sua conduta teve como consequência a caducidade do direito de liquidar a taxa referida, que só o seria no âmbito do procedimento administrativo a que o arguido nunca deu início.

Para além disso, o facto descrito em 9. [A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos] da matéria de facto provada é eliminado uma vez que, não sendo matéria constante da pronúncia ou da contestação, tratando-se, antes, de mera referência a uma diligência de prova, não constitui um facto que, nos termos do disposto no artigo 368º nº 2 do Código de Processo Penal, releve para as questões enumeradas nas alíneas do citado preceito legal e que deva, por isso, ser considerado em sede de factos provados, como foi, na medida em que, só a enumeração destes deve constar da sentença, conforme impõe o artigo 374º nº 2 do mesmo código.

Nestes termos, e tendo em conta quer o teor da pronúncia, quer a decisão supra sobre a correção de lapso de escrita e o mencionado sobre o ponto 9. dos factos provados, a matéria de facto assente e a considerar é a seguinte:

1. O arguido, AA, exerceu funções de ... de Junta da Freguesia da Fatela no mandato de 2009 a 2013 e no mandato de 2013 a 2017.

2. Aquando das partilhas feitas no processo de inventário n.ᵒ 723/07.3..., que correu termos no 2.ᵒ Juízo do Tribunal Judicial ..., relativamente à herança dos pais do aqui arguido, DD e EE, foi decidido que o jazigo da família, registado na Junta de Freguesia da Fatela com o n.ᵒ J4, fosse atribuído ao irmão do arguido, FF.

3. Nesse jazigo, estava sepultado o corpo da mulher do aqui arguido, GG, falecida a ...-...-2010.

4. Por sua vez, foi autorizado pelo Executivo (do qual o arguido fazia parte) a permuta de sepulturas entre a assistente e HH (registado na ata n.ᵒ 48 de 27-04-2012), tendo sido realizado um contrato de permuta da sepultura, registado na ata n.ᵒ 49 de 25-05-2012, em que HH cedeu as sepulturas n.ᵒˢ .44 e .46, em troca da sepultura n.ᵒ .13, propriedade da assistente.

5. Além disso, foi realizado um outro contrato de permuta, desta feita da sepultura n.ᵒ .45, pertença de II, o qual foi registado na ata n.ᵒ .1 de 2012 de 27-07-2012, onde este cedeu a referida sepultura em troca da sepultura n.ᵒ .28, propriedade da assistente.

6. Tais ações tiveram como finalidade que as sepulturas n.ᵒˢ .44 e .45 fossem posteriormente adquiridas pelo arguido para a construção de um jazigo.

7. O arguido comprou as sepulturas n.ᵒˢ ..4 e .45, tendo tal acto sido registado na ata n.ᵒ 52 de 2012, realizada no dia 31-08-2012, sendo emitido o alvará de concessão de terreno no cemitério da ..., a que foi atribuído o n.ᵒ .61.

8. Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o ..., o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-042012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados.

9. O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta.

10. Em data não concretamente apurada, mas posteriormente à aquisição das sepulturas, e antes de 15-11-2012, o arguido construiu nessas um jazigo (que viria a ser registado como jazigo n.ᵒ J7 na Junta de Freguesia da Fatela).

11. Não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.

12. No dia 15-11-2012, foi requerida pelo arguido a trasladação do corpo da sua falecida esposa, do jazigo n.º J4 para o jazigo entretanto contruído no local das sepulturas adquiridas sob os n.ᵒˢ .44 e .45, agora registado com o n.ᵒ J7 na assistente.

13. Tal pedido foi deliberado pelo Executivo no «Ponto 4 – Requerimento para Trasladação» da ordem de trabalhos, na reunião ordinária da Junta da Freguesia da Fatela, registada na ata n.ᵒ 55 de 2012 de 30-11-2012.

14. A trasladação do corpo de GG foi efetuada no dia ...-...-2013 para este «novo» jazigo.

15. À data da construção do jazigo J7, era exigida uma taxa de construção pela assistente de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2., que o arguido não pagou nem lhe foi solicitada.

17. Não foi preenchido o averbamento no alvará de concessão de sepultura.

18. O direito de a assistente liquidar as taxas devidas pela construção do jazigo, caducou.

19. O arguido omitiu o pagamento da taxa devida pela construção do jazigo, que se computava no caso concreto em 1.200,00 EUR (mil e duzentos euros) – (300,00 EUR (trezentos euros) o m2), aproveitando-se das suas funções de ... da Junta.

20. O arguido sabia que aquela taxa para construção do jazigo era devida.

21. O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.

22. O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

(…)

Em face desta alteração da matéria de facto, fica prejudicado o conhecimento da segunda questão enunciada supra, isto é, o erro de julgamento relativo à matéria de facto descrita nas alíneas a) a d) dos factos não provados [conclusões 41º a 106º].»

12. No recurso para a Relação, a assistente impugnou a decisão em matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do CPP, indicando os pontos que considerava erradamente provados e as provas que, a seu ver, impunham decisão diversa, dizendo, nomeadamente que «a matéria de facto não provada assentou numa incorrecta valoração dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em julgamento, e das próprias declarações do Arguido», que «o Tribunal recorrido desatendeu parcialmente o que foi dito pelo próprio arguido, pelo legal representante da Assistente, LL, e pelas testemunhas BB, CC, KK, JJ e MM, bem como o que conta dos Regulamentos referidos no ponto 8 dos factos provados desatendendo assim matéria essencial para o julgamento da causa e para a descoberta da verdade material e que levaria (e espera-se, levará) necessariamente à condenação do arguido» e que «os depoimentos, nas partes infra transcritas, demonstram e sustentam cabalmente a tese da Assistente e do Despacho de Pronúncia, no sentido de que à data da construção do jazigo (data não apurada, mas posterior a Julho de 2011 e antes de 15-11-2012 – facto provado n.º 11) existiam taxas que tinham que ser pagas à Assistente pela aquisição de sepulturas e para construção de jazigos; o Arguido não liquidou as taxas relativas à construção do jazigo J7 e apenas liquidou as taxas relativas às sepulturas, baseando-se num Regulamento que estava em vigor, em cuja aprovação participou (como ... do Executivo), uma vez que à data era ... de junta de freguesia e donde resultam discriminado ambos os valores; tendo desta forma, perfeita noção da existência das taxas relativas à construção de Jazigos

Salientava a assistente: «Reitera-se: efectivamente, e esta a pedra de toque, a absolvição assenta (não só, mas também, como infra se aludirá) num erro na análise e apreciação de toda a prova presente nos autos, quer na vasta prova documental junta, quer em coligação com as declarações prestadas pelas testemunhas a que supra se aludiu, não tendo o Tribunal a quo feito a correcta análise da prova junta nos autos», passando, de seguida a indicar as partes das declarações com que justificava a sua pretensão - «o depoimento do arguido, do legal representante da assistente, LL e das testemunhas BB, CC, KK, JJ e MM», todas gravadas através do sistema de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal recorrido.

13. Contestava o arguido perante a Relação esta posição da assistente quanto ao julgamento da matéria de facto, alegando, para além do mais, que a prova produzida não permitia essas conclusões e ainda que «Independentemente dos depoimentos prestados em julgamento, que foram todos no sentido de que à data em que o arguido iniciou a construção não era devida a taxa em causa nos autos, dos Regulamentos e tabelas de taxas para 2011 e 2012 juntas aos autos resulta inequivocamente que a sua entrada em vigor dependia de aprovação da Assembleia de Freguesia e publicação em edital, vigorando decorridos 30 dias após a sua publicação, que não se demonstrou que tenha sido feita» e que «Por isso, o tribunal “a quo” refere perentoriamente na fundamentação da decisão fáctica que não se deu como provado que os aludidos regulamentos, nomeadamente o elaborado para o ano de 2011, tenham entrado em vigor, salientando que a Junta de Freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital, alegando não ter encontrado edital certificado – conforme depoimentos do legal represente/ ... da atual Junta e informação vertida no requerimento da Assistente de 6/7», pelo que concluía: «Face à prova produzida em julgamento, não podia o tribunal “a quo” ter concluído que os Regulamentos e tabelas de taxas elaborados para os anos de 2011 e 2012 entrarem em vigor e, caso tal tivesse sucedido, em que data ocorreu

14. O acórdão da 1.ª instância, que absolveu o arguido, encontrava-se assim fundamentado (destacam-se os aspetos mais relevantes):

«Motivação

Os factos dados como provados colhem a sua demonstração nas declarações do arguido que declarou ter exercido as funções de ... da Junta no período referido em 1) conjugado com a cópia das actas e/ou termos de posse do órgão autárquico de fls 50 e 51; que a sua esposa faleceu em 28/06/2010, (certidão do assento de óbito de fls 108) e foi sepultada no jazido da família, mandado construir por seu pai. Tal jazigo de que veio a ser atribuído em partilhas ao seu irmão, pelo que pensou em adquirir sepulturas juntas para construir um jazido, tendo de imediato começado a diligenciar pela aquisição das sepulturas, o que conseguiu. Falou com o secretário da junta, que foi medir e começou a construir; mais disse estar convencido de não serem devidas taxas pela construção do jazigo porque começou a diligenciar pelas sepulturas logo após a morte da esposa, embora a aquisição tivesse sido formalizada muito depois, tal como resulta dos contratos de permuta e aquisição das sepulturas resulta dadas como provadas nos pontos 4 a 7 que colhem a sua demonstração na guia de recebimento relativo à venda de sepulturas (alvará n.ᵒ .51 e sepultura n.ᵒ .83) a NN, datado de ...-...-2009 (fls. 109); acta da Assembleia da Freguesia de Fatela em que se deliberou o deferimento da venda da sepultura n.ᵒ .58 do Cemitério de ... a OO (fls.110); - guia de recebimento relativo à venda de sepulturas (alvará n.ᵒ .52 e sepultura n.ᵒ.58) a OO, datado de ...-...-2009 (fls. 111), com a respectiva cópia do cheque (fls. 111 verso); - acta da Assembleia da Freguesia de Fatela em que se deliberou o deferimento da venda de terreno para jazigo com a área de 6.875 m2, ocupando os lugares das sepulturas n.ᵒˢ .47 e .48 do Cemitério de ... a PP (alvará n.ᵒ 52), revertendo a sepultura n.ᵒ .43 para a Freguesia (fls. 112); - ficha da sepultura relativa ao jazigo J6 pertencente a PP e datada de ...-...-2014 (fls. 113); - guia de recebimento relativo à «venda de sepulturas – terreno para jazigo» a PP, datado de ...-...-2009 (fls. 114); - acta da Assembleia da Freguesia de Fatela relativa ao averbamento da sepultura n.ᵒ .56 (.43) – alvará n.ᵒ 52, datada de ...-...-2012 (fls. 115);

O entendimento/convencimento do arguido de nada dever pagar está reforçado pelos depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação BB, que foi ... da Junta de freguesia de Fatela (pagamentos/recebimentos), disse que era da responsabilidade do secretário o cumprimento do regulamento; que se recorda de o arguido ter dito "ter conseguido as sepulturas" não se tendo valorado o seu depoimento sobre a data da construção, face ao depoimento da testemunha JJ claro e motivado, nada mais sabendo. Mais disse que a testemunha KK, fazia o trabalho de ...; nada mais acrescentado sobre a conduta do arguido; a testemunha CC, que fez parte da junta de freguesia entre 2009 e 2017; recorda-se da comunicação verbal do arguido de ter a posse de duas sepulturas juntas, que não havia taxas antes de Abril de 2010; foi de opinião de que que o arguido não devia pagar pelo jazigo, na medida em que a obra foi iniciada antes da entrada em vigor do regulamento. Sem prejuízo de, como se deu como provado, que a obra do jazido apenas teve início após Julho de 2011, o certo é que tais testemunhas, executivo da Junta tinham o entendimento que não eram devidas taxas, para além das pagas, sendo que não foi produzida qualquer prova de que o arguido tivesse decidido pelo não pagamento, pelo que se deu com o não provado o facto vertido em a) dos não provados e, ainda não provados os factos atinentes ao elemento subjectivo e vertidos nesta sede.

Em qualquer caso, também se não deu como provado que o regulamento estivesse em vigor, pois a Junta de freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital, alegando não ter encontrado edital certificado, conforme depoimentos do legal representante da Junta de freguesia/actual ... e informação vertida no requerimento de 6/07.

A testemunha KK prestou depoimento no sentido de apenas cumprir ordens, não tendo poder de decisão.

Sobre o facto de a junta ter cobrado taxas, nada mais se concluindo, valorou-se a acta da Assembleia da Freguesia de Fatela relativa ao averbamento da sepultura n.ᵒ .56 (.43) – alvará n.ᵒ 52, datada de ...-...-2012 (fls. 115); - assento de óbito n.ᵒ .11, de PP falecido a ...-...-2014 (fls. 116); guia de recebimento relativo à venda de sepulturas (alvará n.ᵒ .54 e sepultura n.ᵒ 31) a QQ, datado de ...-...-2010 (fls. 117); guia de recebimento relativo à venda de sepulturas (alvará n.ᵒ .55 e sepultura n.ᵒ .38) a RR, datado de ...-...-2010 (fls. 118); guia de receita relativa à venda de terreno para a construção de jazigo Subterrâneo (sepultura n.ᵒ 21) a SS, datado de ...-...-2018 (fls. 119); - regulamento e tabela de taxas, aprovada em sede de Executivo da Junta de Freguesia de Fatela, durante o mandato autárquico 2009-2013, ... por AA, que entrou em vigor a 22-04-2010 (fls. 122 a 127); -edital no qual foi solicitado à população da Freguesia de Fatela a actualização dos alvarás, relativa à operação de reorganização do cemitério, devido à falta de sepulturas disponíveis e desactualização de dados, datado de 05-04-2018 (fls. 128).

As datas referidas no ponto 10 colhem a sua demonstração nas declarações da testemunha JJ que referiu que só após do pai em Julho de 2011, lhe foi solicitada a permuta, pelo que só após essa data se iniciou a construção; mais afirmando que se deslocava ao cemitério e não viu as obras de construção do jazigo; que a sua lembrança é dele construído.»

E mais adiante:

«No caso está provado que o executivo e assembleia de freguesia, em reunião e sessões ordinárias de 22 e 23/04/2010 aprovaram o regulamento e tabela de taxas da freguesia da Fatela, regulamento que veio a ser actualizado em 30 de Março e e 22 e Abril de 2102.

Dispunha o art.º 17 do citado regulamento que " o presente regulamento entra em vigor no primeiro dia útil do mês seguinte à sua aprovação pela assembleia de freguesia e após a sua publicação edital a afixar na sede da freguesia.

A publicação dos atos de conteúdo genérico dos órgãos do poder local, já decorre do consignado no art.º 119º da Constituição da República Portuguesa (CRP), sendo uma forma de os potenciais destinatários dos regulamentos deles terem conhecimento.

Acresce referir que a falta de publicidade destes regulamentos determina a sua ineficácia jurídica, o que significa que não são obrigatórios, nem oponíveis a terceiros.

Assim, não estando em vigor na data dos factos, o regulamento não poderia a Freguesia exigir o pagamento da referida taxa e nessa medida verifica-se que o arguido não incumpriu qualquer regulamento, nem nessa medida decidiu contra regulamento, mesmo na hipótese errónea de o ter por estando em vigor.

Mas mesmo que assim se não entendesse, face à materialidade dada como provada resta concluir que os factos apurados não integram a previsão normativa do citado art. 11º - não se mostram provados os elementos típicos objectivos e/ou subjectivos do crime (que o arguido tenha agido – sabendo que tal acção ou omissão era contrária ao direito ou com o propósito de prejudicar ou beneficiar alguém) pelo que há que absolver o arguido.»

Âmbito e objeto do recurso

15. O recurso tem por objeto um acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação que aplica uma pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, em recurso interposto de um acórdão absolutório da 1.ª instância, sendo a decisão recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça (n.º 1, al. e), do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21.12).

De acordo com o artigo 434.º do CPP, na parte que agora releva, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.

Tratando-se de um recurso de acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro).

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, se for caso disso, dos poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP [acórdão de fixação de jurisprudência («AFJ») n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995], de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

16. Tendo em conta as conclusões da motivação, o arguido pretende a revogação do acórdão recorrido, por discordar da decisão da Relação que modificou a matéria de facto dada como provada no acórdão da 1.ª instância com fundamento na verificação dos vícios de erro na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (artigo 410.º, n.º 2, al. b) e c), do CPP), que considera violadora de várias normas processuais penais, mantendo-se a decisão absolutória da 1.ª instância, ou, caso se considerem verificados estes vícios, seja ordenado o reenvio do processo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426.º, n.º 2, do CPP.

17. O objeto do recurso suscita a questão prévia de saber se o Tribunal da Relação poderia ter modificado a matéria de facto nos termos em que o fez (supra, 9, 10 e 11), por considerar verificados os vícios de erro na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (artigo 410.º, n.º 2, al. b) e c), do CPP).

18. Como se viu (supra, 2, 3 e 11), do acórdão absolutório da 1.ª instância interpôs a assistente, Freguesia de Fatela, recurso para a Relação, colocando duas questões: «a) Vícios de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova – Artigo 410.º n.º 2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal [conclusões 1º a 40º]; b) Erro de julgamento relativo à matéria de facto descrita nas alíneas a) a d) dos factos não provados [conclusões 41º a 106º]»

Começando por apreciar os invocados vícios (primeira questão), concluiu a Relação que (a) ambos os vícios se verificaram pelo que, «sanando, simultaneamente o vício de erro notório na apreciação da prova e de contradição, assinalados supra, os factos dados como não provados, devem passar a integrar o elenco dos factos provados», (b) que «tem de concluir-se também, que o arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado», e (c) que «o facto descrito em 9. [A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos] da matéria de facto provada é eliminado», pelo que, (d) «tendo em conta quer o teor da pronúncia, quer a decisão supra sobre a correção de lapso de escrita e o mencionado sobre o ponto 9. dos factos provados, a matéria de facto assente e a considerar» é a que se especifica nos pontos 9. e 10. (supra), com eliminação do n.º 9 dos factos provados em 1.ª instância, a inclusão dos factos não provados na enumeração dos factos provados e o aditamento de novos factos, como descritos nos pontos 9 a 22 da matéria de facto provada estabelecida pela Relação.

Em consequência, julgou prejudicado o conhecimento da impugnação da decisão em matéria de facto (segunda questão).

19. Dispõe o artigo 410.º, n.º 1, do CPP, que, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. Estabelecendo o n.º 2 que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.

Pretendendo impugnar a decisão em matéria de facto, questionando erro de julgamento dos factos e das provas, deve o recorrente, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do mesmo diploma, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, se for o caso, as provas que devem ser renovadas, estabelecendo o n.º 6 que o tribunal procede à audição ou visualização das passagens das gravações indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

20. As relações conhecem de facto (artigo 428.º do CPP) nos recursos em que é impugnada a matéria de facto, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 412.º do CPP, sendo que a lei processual não atribui às relações poderes de conhecimento oficioso de erros de julgamento em matéria de facto.

O conhecimento dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, entre os quais se inclui o vício de erro notório na apreciação da prova, o qual, sendo manifesto, ostensivo e evidente à observação do leitor, se traduz num vício de lógica da decisão resultante do texto da decisão, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, que não se confunde com o erro de julgamento na apreciação da prova produzida em audiência, limita-se pelo texto da decisão recorrida, não sendo admissível o apelo a elementos exteriores que não constem desse texto.

Citando de entre muitos outros, o eloquente acórdão deste Supremo Tribunal de 08.07.2020 (Raul Borges), Proc. 142/15.8PKSNT.L1.S1, em www.dgsi.pt, refletindo jurisprudência sólida e reiterada: «XIII – A sindicância de matéria de facto consentida pelo artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tem um âmbito restrito, pois as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410.º têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma. XIV – O erro-vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. XV – Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo suscetível de apreciação. XVI – Por outras palavras. Uma coisa é o vício de erro notório na apreciação da prova, outra é a valoração desta, o resultado da prova, (…). XVII – Enquanto a valoração da prova (…) obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova. XVIII – Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialético das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos. XIX – A primeira relaciona-se com a atividade probatória que consiste na produção, exame e ponderação crítica dos elementos legalmente admissíveis - excluídas as provas proibidas - a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto. XX – O erro vício será algo detetável, necessariamente a jusante desse iter cognoscitivo/deliberativo, lançado no texto da decisão, cujo sentido e conformação resultou da convicção assumida, que tem a natureza intrínseca de um “produto” de uma reflexão sobre dados adquiridos em registo de oralidade e imediação e que a partir daí ganha alguma cristalização. (…) XXII – Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova».

21. É assim que, em harmonia com estas disposições, o artigo 431.º do CPP impõe requisitos específicos e restrições aos poderes das relações para modificação, em recurso, das decisões proferidas em matéria de facto, ao dispor que:

“Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova.”

A Relação não estaria, assim, impedida de, embora com fortes restrições, alterar a matéria de facto constante da sentença da 1.ª instância, mesmo que não tivesse sido interposto recurso da decisão em matéria de facto, por alegado erro de julgamento [caso previsto na al. b)]. Porém, como se consignou nos acórdãos de 22.06.2022 e de 19.12.2023, proferidos nos processos 215/18.5JAFAR.E1.S1 e 1066/16.7T9CLD.C3.S1, em www.dgsi.pt, que se seguem de perto, esta possibilidade só poderia ocorrer por via e na sequência da verificação e declaração de vício a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP nas condições impostas pelos artigos 426.º e 431.º, al. a), do CPP, em vista da superação desse vício, para uma boa decisão de direito.

Estabelece o n.º 1 do artigo 426.º que «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio». O que impõe ao tribunal da relação uma dupla decisão ou uma decisão em dois momentos: em primeiro lugar, a deteção e aferição (determinação e concretização) do vício e, em segundo lugar, a verificação e avaliação das possibilidades de sanação do vício e, sendo caso disso, a respetiva sanação, com base num juízo sobre a suficiência das provas necessárias para essa finalidade, que são as provas existentes no processo que serviram de base à decisão [al. a) do artigo 431.º do CPP].

Fora do âmbito do recurso em matéria de facto ou dos casos de renovação da prova – que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido (artigos 412.º, n.ºs 1 e 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP) –, o Tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto, para remover um vício que for identificado e que impeça a decisão de direito, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base» [al. a) do artigo 431.º do CPP – neste sentido, designadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.1.2002 (Armando Leandro), Proc. 3264/01-3.ª, apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª ed., Quid Juris, 2020, p. 1067-1068, de 23.3.2006 (Santos Carvalho), Proc. 06547, em www.dgsi.pt, e de 24.5.2018 (Carlos Almeida), Proc. 632/13.7PARGR.L2.S1, apud Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, cit., 3.ª ed., p. 1384.

22. Como se afirmou nos mencionados acórdãos de 22.06.2022 e de 19.12.2023, havendo arguição de vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, o Tribunal da Relação deve verificar se «é possível decidir da causa» (artigo 426.º, n.º 1, do CPP) com os «elementos de prova que constam do processo», excluindo a documentação (gravação) da prova em audiência, que apenas pode servir de base à modificação da decisão em matéria de facto «se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º» – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2000, p. 368, onde se lê: «Não havendo lugar a reenvio para novo julgamento [por existirem os vícios do n.º 2 do artigo 410.º], a decisão do tribunal da 1.ª instância em matéria de facto pode ser impugnada (art.º 431.º): a) Se do processo constarem todos os elementos de prova quer serviram de base á decisão; b) Se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3; c) Se tiver havido renovação da prova. (…) Havendo documentação da prova, para que o tribunal possa modificar a decisão em matéria de facto, é necessário que esta tenha sido impugnada» (no mesmo sentido, Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, Católica Editora, 2007, p. 1181).

Se assim não fosse, perderia sentido a autonomização das alíneas a) e b) do artigo 431.º, pois que a previsão da al. a) absorveria a da al. b), conferindo à apreciação dos vícios em matéria de facto um âmbito e uma dimensão idêntica à da impugnação da matéria de facto, a que é imposto o ónus de especificação do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, ou mesmo mais alargada na ausência de tal ónus. Assim se devendo considerar que a eliminação da expressão «havendo documentação da prova» constante da al. b), pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, não introduziu qualquer elemento de novidade na sua previsão, que se define pela conjugação com o n.º 4 do artigo 412.º, que se refere à gravação (documentação) das provas.

Com efeito, como se extrai da história do artigo 431.º do CPP, introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25/08, este preceito veio suprir uma lacuna do regime processual do direito ao recurso em matéria de facto (cfr., a este propósito, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 322/93 e respetivos votos de vencido), inspirando-se no artigo 712.º («Modificabilidade da decisão de facto»), n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil de 1961, então vigente, segundo a qual, «[a] decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida».

23. Como se vê da fundamentação do acórdão recorrido, o Tribunal da Relação, depois de reconhecer a existência de vícios, prosseguiu na sanação desses vícios, fundando a sua decisão de modificação da decisão em matéria de facto em elementos estranhos ao texto da decisão recorrida e em depoimentos de testemunhas, bem como em juízos de valoração (de «inferência») formulados a partir desses elementos e desses depoimentos, aditando, ainda, factos que não constavam da descrição dos factos provados e não provados.

E foi com base nestas provas e nessa valoração que concluiu no sentido de que se mostravam preenchidos os elementos objetivos e subjetivo (dolo) do tipo de crime que justificou a aplicação da pena.

24. Atendendo ao discurso argumentativo que fundamenta a decisão, mostra-se que os erros indicados correspondem, na avaliação da Relação, a erros de julgamento, identificados na decorrência de apreciação e valoração das provas efetuadas pelo Tribunal da Relação, em divergência da decisão da 1.ª instância.

Ora, não contendo o processo todas as provas que serviram de base à decisão (aqui não se incluindo as provas gravadas) e não estando em apreciação o recurso da decisão em matéria de facto, não podia o Tribunal da Relação, verificados os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, modificar a decisão em matéria de facto dada como provada e como não provada na 1.ª instância, em suprimento desses vícios, face ao disposto no artigo 431.º, al. a) e b), do CPP.

25. Assim sendo, se conclui que o acórdão do Tribunal da Relação, ao proceder ao suprimento dos vícios, se pronunciou sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento, o que constitui causa de nulidade, por excesso de pronúncia, prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma.

Devendo, em consequência, a decisão recorrida ser substituída por outra que, em conhecimento do recurso da assistente, aprecie a impugnação da decisão da 1.ª instância em matéria de facto, quanto aos pontos da matéria de facto que aquela considera incorretamente julgados, em particular quanto à controversa questão da vigência dos regulamentos da junta de freguesia aplicáveis aos caso, tendo em conta as provas indicadas como impondo decisão diversa e as provas indicadas pelo arguido em exercício do contraditório, nomeadamente as provas gravadas, em conformidade com o disposto no artigo 412.º, n.º 6, do CPP.

III. Decisão

26. Nestes termos, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em declarar nulo o acórdão do Tribunal da Relação, o qual deve ser substituído por outro que conheça do recurso interposto pela assistente em impugnação da decisão em matéria de facto, nos termos expostos.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 16 de outubro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria do Carmo Silva Dias

Antero Luís

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1. In “Revista Portuguesa de Ciência Criminal” Ano 4, 1994, pgs. 118/123.

2. In “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 3ª ed., pág. 895.