Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
282/18.1T9BRR.L1-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: PROCESSO PENAL
RECURSO PENAL
JUÍZ DESEMBARGADOR
RECUSA DE JUÍZ
PRAZO
Data do Acordão: 01/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Na determinação de uma suspeição que justifique o afastamento do juiz por recurso à cláusula geral enunciada no n.º 1 do artigo 43.º do CPP deve atender-se a que a preocupação que anima o regime legal é prevenir, impedir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade quanto às condições para atuar de forma imparcial.

II. Independentemente de outras dimensões de tutela da imparcialidade, a efetivar em sedes legais próprias, é esta a única que releva em incidente processual de suspeição, nele se comportando, delimitando e conformando os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

III. Na disciplina do processo, a recusa do juiz está sujeita a prazos determinados, limitados e conformados em função dos momentos processuais em que se expressa e esgota o poder jurisdicional do juiz – do juiz de instrução, do juiz de julgamento e do juiz do recurso, conforme o caso –, de modo a evitar que a sua participação na decisão possa suscitar “o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

IV. Proferida a decisão que ao juiz compete, em cada uma dessas fases processuais, esgotou-se o seu poder jurisdicional (cfr. artigos 613.º, 666.º e 685.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 4.º do CPP). O risco da desconfiança, que justifica o regime da recusa, já não poderá ser evitável.

V. O requerimento de recusa de juiz desembargador, na fase de recurso, só é admissível até ao início da conferência (artigo 44.º do CPP).

VI. Nos termos do artigo 45.º, n.º 4, primeira parte, do CPP, o tribunal deve proceder à apreciação preliminar do requerimento, recusando-o, se for caso disso, na ocorrência de motivo que obste ao conhecimento de mérito.

VII. Tendo o requerimento sido apresentado após a conferência em que foi adotado o acórdão de que o juiz desembargador teve intervenção, impõe-se a sua rejeição, por inobservância do prazo estabelecido no artigo 44.º do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA e BB, arguidos nos autos em referência, deduzem incidente de suspeição com pedido de recusa dos Senhores Juízes Desembargadores CC, juiz desembargador relator, e DD, juiz desembargador adjunto, e das Senhoras Juízas Desembargadoras EE, presidente da ... Secção, e FF, juíza desembargadora adjunta, intervenientes no julgamento do recurso que interpuseram do acórdão condenatório do Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, porque «entendem que, no magistério exercido pelos Senhores Desembargadores, ocorreram factos sérios e graves, aptos a gerar um sentimento de suspeição e desconfiança sobre a sua imparcialidade e isenção, sendo a conduta dos Senhores Desembargadores além do mais, idónea a gerar profunda desconfiança sobre a sua metodologia decisória, sobre a própria natureza da segunda instância de recurso e a Justiça de um Estado de Direito Democrático», nos termos e com os seguintes fundamentos:

«Por Requerimento de 04.05.2024, com a referência citius ......40, os arguidos interpuseram ao Tribunal a quo - o Venerando Tribunal da Relação de ..., Recurso ordinário de Apelação da Sentença do Tribunal de primeira instância - Juiz 2 do Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – que condenou, o arguido recorrente BB, como autor material de 2 (dois) crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, número 1, alínea a), do Código Penal, nas penas parcelares de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e, em cúmulo jurídico de tais penas, aplicar-lhe a pena única de 3 (três) anos de prisão; a arguida recorrente, AA, como autora material de 2 (dois) crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, número 1, alínea a), do Código Penal, nas penas parcelares de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e, em cúmulo jurídico de tais penas, aplicar-lhe a pena única de 2 (dois) anos de prisão; e suspendeu a execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos, BB e AA, pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, tudo nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal, acompanhada de regime de prova.

Na interposição de recurso os recusantes impetraram o pedido de julgamento em Audiência no Tribunal de 2ª instância, tendo para o efeito inscrito os pontos e matéria especifica que queriam ver debatidos, requereram na sua alegação e conclusão recursiva o pedido de reapreciação da prova, tendo para o efeito impugnado especificadamente a matéria de facto que reputaram incorretamente julgada e procederam à enumeração dos meios de prova que impunham decisão diversa, que fizeram por referencia aos elementos constantes dos autos e das transcrições dos depoimentos que identificaram e transcreveram.

Em 08.05.2024, com a referência citius .......40, foi proferido despacho de admissão do recurso e, em 12.07. 2024, foi o recurso remetido a este Tribunal da Relação de ..., e aqui distribuído à ...secção.

O Exame preliminar corresponde ao despacho de 28.10.2024 com a referência citius .......8 e tem o seguinte teor:

“Não existem, a nosso ver, circunstâncias que obstem ao conhecimento do recurso; não existem motivos de rejeição, nem qualquer causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal, ou outra causa que permita o julgamento por decisão sumária. Mantem-se o efeito atribuído ao recurso.

Aos vistos e à conferência de 6.11.2024. ..., data e assinatura digitais, Processei e revi O Relator escreve de acordo com a antiga ortografia”

Despacho este que não foi notificado aos recusantes e que não se pronunciou sobre o pedido de julgamento em audiência, que requereram ao abrigo do artigo 411º, nº 5 e 421º a 425º do Código de Processo Penal.

Sucedeu que, em 06.11.2024, com a referência citius ......18, foi proferido o douto Acórdão da Relação de ..., de que se recorreu e que confirmou a decisão do Tribunal de primeira instância.

E, com a referência citius ......65 consta o teor da ATA DE SESSÃO EM CONFERÊNCIA:

“Em 06 de Novembro de 2024 às 11:00, na sala de sessões do Tribunal da Relação desta cidade de ..., deu-se início à sessão presidida pela Excelentíssima Senhora Juíza Desembargadora Presidente da Secção, Dra. EE, comigo Escrivã Adjunta GG, tendo sido apresentados os autos de Recurso Penal acima identificados, em que é Relator o Exmo. Juiz Desembargador Dr. CC, e Adjuntos os Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Dra. FF e Dr. DD, a fim de se proceder à respetiva conferência.

Os autos são provenientes do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, ... – JL Criminal – Juiz 1, em que são:

Recorrente: AA

Recorrido: Ministério Público.

Após discussão e deliberação dos Excelentíssimos Juízes Desembargadores nesta sessão, o acórdão foi inserido no sistema CITIUS tendo o resultado do mesmo sido publicado. A presente ata foi integralmente revista e por mim, GG elaborada.”

Os recusantes invocaram a nulidade absoluta e insanável deste processo, nos termos do artigo 119º, alínea a) e para os efeitos previstos no artigo 122º, nº 1 do Código de Processo Penal, que afecta todo o processado posterior à distribuição, por violação dos comandos legais dos artigos 411º, nº 5; 412º, nº 6; 421º a 425º todos do Código de Processo Penal, por ter aquele Tribunal decidido em Conferência, sem prévia realização da Audiência legalmente requerida.

Porque, no requerimento de interposição de recurso, dando cumprimento às exigências de tal norma, os arguidos recusantes impetraram o pedido de realização da audiência, e especificaram os pontos da motivação que pretendiam que fossem debatidos (pontos 2 e 3 da motivação), respeitando os pressupostos para que a audiência tivesse lugar.

Contudo, aquele Venerando Tribunal da Relação não atendeu ao pedido dos recusantes e decidiu o recurso, em Conferência, sem a realização da audiência a que se referem os artigos 421º e 423º do Código de Processo Penal, que violou, actuação que constitui nulidade processual, que afectou o julgamento do recurso.

Em concreto, em vez de o recurso ser julgado em audiência, acabou por ser julgado em conferência (cfr. artigo 419º, nº 3, do CPP), sem que dos autos e da Acta da Conferência haja sinal do sentido de voto e das deliberações dos Senhores Juízes Desembargadores.

Mais se constatou, através das ferramentas disponibilizadas pelo citius, que a conferência para discussão e deliberação do recurso dos recusantes ocorreu as 11:00 horas do dia 06. 11.2024 e nesta, “após discussão e deliberação dos Exmos. Juízes Desembargadores desta secção, o Acórdão foi inserido no sistema Citius” (Cfr. ponto 6),

Neste sentido, a assinatura do douto Acórdão pelos senhores Juízes Desembargadores – Relator e Adjuntos - e a disponibilização, na plataforma Citius, só poderia ocorrer após o termo da Conferência, (discussão e deliberação), ou seja, após as 11:00 horas do dia 06. 11.2024.

Porém, não foi isto que aconteceu porque, consultada a plataforma de apoio aos tribunais, verificaram os recusantes que:

A assinatura digital do Senhor Juiz Desembargador Relator Dr. CC foi aposta às 00:13:53 horas do dia 06. 11.2024;

A assinatura digital da Senhora Juíza Desembargadora Drª. FF (1ª adjunta) foi aposta às 00:16:09 horas do dia 06. 11.2024;

As assinaturas digitais do Senhor Juiz Desembargador Dr. DD (2º adjunto), foram apostas às 06:01:56 horas e 06:02:32 horas, ambas do dia 06. 11.2024;

E a Acta de Sessão em Conferência foi assinada digitalmente pela Senhora Juíza Desembargadora Presidente da Secção, Drª EE, às 23:34:39 horas do dia 06. 11.2024;

Verifica-se, das propriedades do documento, que a criação do dito acórdão recorrido na plataforma citius foi iniciada a 2024.11.06 pelas 00:13:46 com a assinatura do Senhor Juiz Desembargador relator, Dr. CC e foi concluída com a assinatura do último Juiz Conselheiro Adjunto, Dr. DD no dia 2024.11.06 pelas 06:02:32.

O que permite concluir que o Acórdão posto em crise, proferido nestes autos pelo Tribunal da Relação de ..., já se encontrava redigido e assinado por todos os Senhores Juízes Desembargadores (Juiz Relator e Adjuntos) em momento anterior à Conferência que se destinava, precisamente, à discussão e deliberação, a que se seguiria a sua assinatura e publicação;

E, afinal que o que consta da Acta nesse sentido, não ocorreu.

A decisão estava tomada, redigida e assinada antes do Julgamento em Conferência.

Em suma, a alegada Conferência não teve qualquer valia processual, nem jurídica, porque nem a discussão, nem a deliberação, constantes da Acta, ocorreram, como ali consignado. O julgamento não ocorreu.

Factualidade que era naturalmente do conhecimento de todos os Senhores Desembargadores visados, incluindo da Senhora Desembargadora Presidente da 3ª Secção Criminal deste Tribunal que assinou a Acta daquela Conferência.

Em 26.11.2024, com a Referência Citius ....70, os recusantes deduziram Reclamação para a Conferência com os fundamentos constantes da mesma e que se dão por integralmente reproduzidos para os legais efeitos, requerendo em suma que fosse declarada a nulidade de todo o processo desde a distribuição neste Tribunal que afecta todos os actos subsequentes e o douto Acórdão de 06.11.2024 e que o recurso interposto fosse objecto de julgamento em audiência, seguindo-se os ulteriores trâmites e ainda que, fosse reconhecida a inconstitucionalidade da interpretação dada no douto aresto, invocada ao abrigo do disposto no artº 70º, nº 1 , alínea b) e 71º, nº 2 da CRP, por tal interpretação contender com os artigos 29º, 203º, 205º, nº 1, 20º, nº 4, 32º, nº 1 , 5º, e 9º da CRP e, finalmente, que fosse reconhecido o impedimento dos Senhores Juízes Desembargadores, nos termos do artº 40º, nº 1, alíneas c) e d), para os efeitos do artº 41º, nº 2 e 3 do CPP, determinando-se nova distribuição.

E, em 10.12.2024, com a Referência Citius ....78, os recusantes recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando, em suma:

i) A nulidade absoluta e insanável deste processo nos termos do artigo 119º, alínea a) e para os efeitos previstos no artigo 122º, nº 1 do Código de Processo Penal, que afecta todo o processado posterior à distribuição, por violação dos comandos legais dos artigos 411º, nº 5; 412º, nº 6; 421º a 425º, todos do Código de Processo Penal,

ii) Que o acórdão de 06.11.2024, já se encontrava redigido e assinado por todos os senhores Juízes Desembargadores (juiz Relator e Adjuntos) em momento anterior à Conferência que se destinava, precisamente, à sua discussão e deliberação, a que se seguiria a sua assinatura e publicação, o que não aconteceu pelo que o teor da acta não ocorreu, que, em recurso, a intervenção dos Juízes, Relator e Adjuntos, no processo de deliberação colegial é sucessiva e não simultânea ( artigos 419º e 374º, nº 3 al. e), ex vi artigos 97º, nº 2 e 380º, nº 3 do Código de Processo Penal),

iii) Que o Acórdão do Tribunal da Relação está ainda ferido de outra nulidade porque, na motivação do recurso que interpuseram, os recusantes apontaram à sentença proferida pelo Tribunal a quo o vício de erro de Julgamento e procederam à impugnação alargada da matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 410º, nº 1 do CPP dando cumprimento às exigências a que se referem as alíneas a), b) e c) do nº 3 e 4 do artigo do 412º CPP, fundamento que consta de fls. 24 a 388 da motivação do Recurso, o acórdão é totalmente omisso quanto ao conhecimento deste segmento da motivação, não conheceu a impugnação de facto, não decidiu sobre cada ponto impugnado, não se pronunciou, nem uma linha sobre a apreciação que lhe cabia dos factos impugnados e da prova invocada como apta a inverter o sentido da decisão de facto da primeira instância,

iv) Invocaram finalmente o impedimento dos Senhores Juízes Desembargadores, nos termos do artigo 40º, nº 1, alíneas c) e d) do CPP, para a prática ou intervenção em qualquer acto ulterior deste processo, o que requerem seja declarado nos termos do artigo 40º, Alínea d) e para os efeitos previstos no artº 41º, nº 2 e 3 do CPP, e isto, para que os Juízes Desembargadores se declarassem impedidos de intervir na decisão acerca das nulidades descritas supra e no julgamento, que não poderá deixar de se realizar em face da procedência daquelas, por já terem participado em conferência anterior realizada em 06.11. 2024, que julgou o recurso interposto pelos recusantes da sentença de primeira instância e que conheceu a final do objecto do processo, não obstante as nulidades que invocavam.

Sucede que, em 12.12.2024, o Senhor Desembargador Relator CC, proferiu o despacho com a referência citius ......28, que não admitiu o Recurso para este Supremo Tribunal de Justiça interposto pelos recusantes em 10.12.2024 com a Referência Citius ...47, com fundamento em verificação do obstáculo da dupla conforme entre as decisões das instâncias.

É este o teor do Despacho de 12.12.2024:

“Aos vistos e à conferência de 18.12.2024.

Do recurso interposto para o STJ:

O recurso para o STJ está regulado pelos artigos 432.º a 447.º do CPP.

São recorríveis para o STJ os acórdãos do Tribunal da Relação que:

1. Apliquem pena de prisão superior a cinco anos (artigo 432.º, n.º 1, alínea c), CPP); ou

2. Resolvem questões de direito que, pela sua relevância jurídica, mereçam uma decisão do STJ para uniformizar jurisprudência (artigo 437.º, CPP).

Nos termos do artigo 432.º, n.º 2, CPP, não são recorríveis as decisões que se limitem a confirmar a condenação com fundamento exclusivo na apreciação da matéria de facto.

In casu, o Tribunal da Relação:

Confirmou a condenação dos arguidos sem aplicar pena superior a cinco anos de prisão.

1. O arguido BB foi condenado a 3 anos de prisão (suspensa na sua execução).

2. A arguida AA foi condenada a 2 anos de prisão (suspensa na sua execução).

O acórdão, ao confirmar a sentença, trata questões de direito e aprecia a motivação do recurso. Não há indícios de questões cuja relevância jurídica justifique uniformização de jurisprudência.

Posto isto:

a) Inadmissibilidade pela duração da pena:

A pena aplicada (inferior a cinco anos) exclui a admissibilidade do recurso ao abrigo do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), CPP.

b) Inexistência de questão relevante de Direito:

O acórdão do Tribunal da Relação não apresenta matéria que justifique recurso extraordinário com fundamento na relevância jurídica da questão para uniformização de jurisprudência (artigo 437.º CPP).

c) Confirmação da decisão pela matéria de facto:

Caso o acórdão do Tribunal da Relação se limite a confirmar a condenação com base na apreciação da matéria de facto, o recurso não será admissível, conforme artigo 432.º, n.º 2, CPP.

Em suma:

In casu, não é admissível recurso para o STJ em face do acórdão proferido por este Tribunal ad quem.

Pelo exposto, não se admite o recurso interposto.

Notifique.

..., data e assinatura digitais

Processei e revi

Grafia em conformidade com o pré-acordo”.

Resulta do Despacho proferido pelo Senhor Desembargador CC que o Acórdão de 06.11.2024, por se ter limitado a confirmar a condenação com base na apreciação da matéria de facto, era fundamento da inadmissibilidade do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.

Ora, tal não corresponde à verdade.

É que pese embora os recusantes tenham, na motivação do recurso que interpuseram, apontado à sentença proferida pelo Tribunal a quo o vício de erro de Julgamento e procederam à impugnação alargada da matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 410º, nº 1 do CPP dando cumprimento às exigências a que se referem as alíneas a), b) e c) do nº 3 e 4 do artigo do 412º CPP, fundamento que consta de fls. 24 a 388 da motivação do Recurso, identificado cuidadosamente os pontos de facto que impugnavam, as concretas provas que impunham decisão diversa e as provas que deveriam ser renovadas, especificando-as por referência às actas e aos suportes magnéticos, tendo ainda procedido à transcrição das passagens concretas da prova em que fundamentavam a sua impugnação, cabia ao Tribunal da Relação convocar a Audiência e proceder à renovação da prova e posteriormente à formulação do seu próprio juízo probatório acerca dos factos questionados, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção.

Tal não aconteceu, uma vez que o acórdão proferido em 06.11.2024 é totalmente omisso quanto ao conhecimento deste segmento da motivação, não conheceu a impugnação de facto, não decidiu sobre cada ponto impugnado, não se pronunciou, nem teceu uma linha sobre a apreciação que lhe cabia dos factos impugnados e da prova invocada como apta a inverter o sentido da decisão de facto da primeira instância.

A decisão proferida pelo Tribunal da Relação de ... limitou-se a confirmar, qua tale, a Sentença Proferida pelo Tribunal a quo, cuja apreciação da matéria de facto e decisão acolheu sem qualquer juízo crítico, permitindo-se os Senhores Desembargadores consignar o seguinte:

“In casu, o tribunal avaliou cuidadosamente os testemunhos das vítimas, relatórios médicos e provas complementares. Como descreve a sentença, os testemunhos das vítimas foram consistentes e coerentes com os danos psicológicos relatados, corroborados por relatórios clínicos que confirmaram a intensidade e o impacto das agressões”, quando dos autos não consta um único relatório Clínico que afirme o descrito!

Aliás, o que resulta dos autos, é que as alegadas vítimas se furtaram, por mais de uma vez, à realização de perícias médicas requeridas pelos arguidos recusantes.

Não existe nos autos prova documental ou pericial que permita semelhante afirmação.

Aliás, da própria prova testemunhal resulta que prestaram depoimento dois médicos de família geral e familiar e uma médica pedopsiquiatra que acompanharam, por vários anos, as alegadas vítimas e que afirmaram nunca lhes ter sido relatado maus-tratos ou terem visto quaisquer marcas que evidenciassem ter sido agredidos pelos recusante.

Constitui íntima convicção dos recusantes que essa frase, essa afirmação – “In casu, o tribunal avaliou cuidadosamente os testemunhos das vítimas, relatórios médicos e provas complementares. Como descreve a sentença, os testemunhos das vítimas foram consistentes e coerentes com os danos psicológicos relatados, corroborados por relatórios clínicos que confirmaram a intensidade e o impacto das agressões” – é demonstrativa de duas realidades igualmente graves e preocupantes num Estado de Direito:

i) Desde logo, que os Senhores Desembargadores aparentemente não leram a integralidade das alegações de recurso que os recusantes impetraram nos autos, nem atentaram a toda a vastíssima documentação constante dos autos, desde Livros de Ocorrências aos Dossiers Individuais escolares e de saúde das alegadas vítimas, por não existir um vislumbre de pronúncia quanto aos mesmos no aresto de 06.11.2024;

ii) Em segundo lugar, porque os Senhores Desembargadores aludem a “relatórios médicos e provas complementares” e a “relatórios clínicos” que confirmam “a intensidade e o impacto das agressões”, que jamais poderiam ter lido nos autos, porque não existem e por esse motivo, não foram em momento algum referidos na sentença proferida pelo Tribunal a quo

De onde concluem, legitimamente, os recusantes que os Senhores Desembargadores visados fizeram deliberadamente constar do Acórdão de 06.11.2024 factualidade desconforme com a verdade, “inventando” relatórios médicos e clínicos que não leram e não valoraram porque não existem, para justificar a bondade de uma decisão que tencionavam manter, e mantiveram, consignando, sem pejo, que o Tribunal a quo “avaliou cuidadosamente os testemunhos das vítimas” sem que resulte do referido aresto que tivessem conhecido ou decidido a impugnação de facto do recurso, ou se tivessem pronunciado sobre cada ponto impugnado, pois nem uma linha foi pelos mesmos escrita sobre a apreciação que lhes cabia fazer dos factos impugnados e da prova invocada como apta a o sentido da decisão de facto da primeira instância, conforme supra já se referiu.

Com todo o respeito, considera-se inaceitável a postura processual adoptada pelos Senhores Desembargadores visados na apreciação e tramitação do recurso interposto pelos recusantes, notória no aresto de 06.11.2024, cuja leviandade e gravidade determinaram este incidente,

Verifica-se desde logo que, das cerca de 300 páginas de impugnação da matéria de facto, não resulta ter sido apreciado um único facto, nem os senhores Desembargadores deram a conhecer qual a leitura que fizeram da mesma, o que de par com o facto de não ter sido acolhido o pedido de julgamento nos termos do artº 411º, nº 2 do CPP, - afastando os recusantes da discussão pública dos factos submetidos ao seu escrutínio -, fazendo além do mais consignar em auto, um debate/conferência que garantidamente não aconteceu, - pelo menos não nos termos expressamente consignados na respectiva acta, - de um acórdão que consigna factualidade falsa, - designadamente a existência de relatório médicos e clínicos comprovativos da intensidade e do impacto das agressões, - legitima os recusantes a questionar, in casu, a existência de uma verdadeira segunda instância, especialmente quando esta confirma e louva a apreciação que a decisão da primeira instância alegadamente fez de prova documental que não existe, nem a própria refere, e fundamenta-se em jurisprudência que não existe – dos 14 acórdãos identificados, apenas se encontraram 2.

A visão simplista da questão decidenda plasmada no resumo escrito a “azul”, cuja finalidade não é clara, evidencia o preconceito que inquina toda a decisão que se lhe segue e que manifestamente não atentou às questões, de facto e de direito, submetidas à sua apreciação, nem à vasta prova clínica junta aos autos e constante dos dossiers individuais das alegadas vítima e que corresponde apenas e tão só às suas patologias de foro psicológico ou psiquiátrico, quase exclusivamente pré-existentes ao seu acolhimento residencial, e doença normais de qualquer jovem da sua idade.

Por outro lado, a intencionalidade sentida pelos recusantes, de manter a todo o custo, a decisão sob recurso, nem que para tanto tivessem de contornar ou consignar inverdades (documentais ou jurisprudenciais), fazendo constar de Actas de Conferência deliberações que não existiram e ainda consignar em Despacho, designadamente na decisão singular de 12.12.2024, terem os Senhores Desembargadores procedido à apreciação da matéria de facto, o que é manifestamente falso, para obstar à admissão de Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, revela um preocupante preconceito e um pré-juízo que consideram determinar a falta de idoneidade dos Senhores Desembargadores visados para continuarem a tramitar os autos.

Os recusantes entendem existir fundamento jurídico e fáctico apto a desacreditar os Senhores Juízes Desembargadores, existindo um notório sinal de proteccionismo do interesse de uma parte em desfavor de outra e da mobilização errada da função jurisdicional em função de interesses que não o da Justiça e da verdade material, um tratamento processual discriminatório e uma actuação desconforme com os princípios da independência, da imparcialidade ou do zelo profissional, na aplicação do Direito, verificando-se uma pré-disposição para artificialmente pretender atingir, directa ou indirectamente, um determinado resultado processual: a manutenção da decisão da primeira instância, sob recurso, e do acórdão proferido em 06.11.2024, cujo recurso não foi, por essa razão, admitido.

Aos recusantes e ao comum dos cidadãos que conheçam a ligeireza e inconsequência com que a decisão foi tomada em sede recursória, antes da realização de conferências onde deveria ser debatida e deliberada, fundamentada em acórdãos que não se encontram em qualquer base de dados, e com a invocação de documentos com relevância probatória e que não existem (relatórios médicos e clínicos), põe em causa o mais íntimo sentimento de Justiça e a própria crença num Estado de direito democrático onde a mesma se possa realizar, conferindo aos recusantes toda a legitimidade para colocar em causa se a decisão foi efectivamente colegial e se a própria conferência existiu!

Porque a ter ocorrido, o que lá deliberaram os Senhores Desembargadores?

E que matéria de facto reexaminaram das mais de 300 páginas e 26 pontos impugnados que não mereceram nem uma linha de análise crítica, de reexame, sobre a prova que elencaram apta a inverter o sentido da decisão de facto recorrida?

Não se concebe que os Senhores Desembargadores tenham acolhido a decisão condenatória e os seus fundamentos sem qualquer análise e julgamento dos fundamentos do recurso, cujo conhecimento não resulta do douto acórdão que subscreveram e que o Juiz Desembargador Relator, contra legem, evitou que fosse submetido ao escrutínio do Supremo Tribunal de Justiça, com a alegação, desconforme à verdade, de que houve “confirmação da decisão pela matéria de facto”, que determinou a inadmissibilidade do recurso dos recusantes, nos termos do artº 432º, nº 2 do CPP, sem antes aguardar o decurso do prazo do contraditório da Procuradoria Geral Distrital de Lisboa, e da parte contrária (assistente), tendo esta sido notificada da decisão singular de não admissão do recurso, quando ainda não haviam decorrido os 3 dias para que se considerasse notificada do próprio recurso (artº 221º do Código de Processo Penal), violando de forma ostensiva o princípio do contraditório que, salvo melhor opinião, também se aplica nesta fase processual.

A postura evidenciada pelo Senhor Desembargador Relator Doutor CC e a celeridade que imprimiu àquele Despacho de não admissão de Recurso, tendo designado o dia 18.12.2024 para a Conferência onde irá ser apreciada a Reclamação de dia 26.11.2024, sem que tenha havido lugar ao contraditório do Ministério Público e da Assistente, legitima a leitura de que para o Senhor Magistrado Desembargador visado, os recusantes praticaram os factos pelos quais foram condenados, tendo confirmado a decisão da primeira instância sem analisar o recurso que interpuseram, ou sequer tentar demonstrar tê-lo feito, conferindo notório desvalor a tudo quanto foi alegado no mesmo e dando uma imagem profundamente negativa da justiça, apta a gerar total descrença na Justiça e nos Tribunais.

A aferição da suspeição deve ser extraída de factos ou eventos concretos, inequívocos e concludentes que sejam susceptíveis de colocar em causa a independência e a imparcialidade do julgador e a objectividade do julgamento e a factualidade agora trazida aos autos é claramente demonstrativa da existência de comportamentos que comprovam, no caso dos autos, que os Senhores Desembargadores não têm idoneidade para continuar a intervir nos autos.

Ora, a tudo quanto se disse, e que poderia sem mais ser apenas um fundamento para o mecanismo do recurso, ganha contornos aptos a gerar a suspeição, quando se constata a absoluta falta de julgamento, discussão e deliberação pelos Senhores Juízes Desembargadores visados, da motivação dos recusantes já que, como atrás se consignou de forma minuciosa, o acórdão proferido pelos Senhores Juízes Desembargadores, já se mostrava redigido e assinado por todos eles, antes, muito antes, da hora agendada para a realização a Conferência que visava essa actividade jurisdicional que, a coberto de uma acta cujo o teor, em face de tal realidade, não pode ter ocorrido nos termos ali consignados, com a garantia da Exma. Juiz Desembargadora Presidente da ... Secção.

A motivação dos recusantes mediante a qual suscitaram os fundamentos de facto e de direito que opuseram á decisão de primeira instância, não foram objecto de julgamento em conferência, reexame, discussão da matéria de facto, pelos Senhores Juízes Desembargadores visados (Relator e Adjuntos), o que não pode deixar de gerar suspeita suficientemente forte sobre a imparcialidade dos Senhores Magistrados que, sem análise da motivação, se limitam a confirmar a decisão de primeira instância.

Aos recusantes é lícita a dúvida sobre a imparcialidade dos Meritíssimos Juízes Desembargadores visados, ante os fundamentos invocados, que constituem motivo sério e grave, adequado a sustentar, com segurança, desconfiança da sua actividade de julgar e da garantia de lhes ser assegurado, um julgamento justo e equitativo, que notoriamente não ocorreu.

Não pode, de modo algum, ter-se como imparcial, a actividade jurisdicional que decide sem julgar, sem criticar a posição das partes, limitando-se a conferir credibilidade à decisão de primeira instância.

Um tal comportamento não garante à sociedade a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, a legalidade democrática, a igualdade processual, o tratamento igual e isento dos interesses das partes.

A realização da Justiça com independência e isenção pelos Senhores Magistrados passa pelo escrupuloso respeito pela Lei e pelos princípios éticos da função que, salvo o devido respeito, no caso concreto dos autos, não se verificou.

Os Senhores Juízes Desembargadores visados, permitindo-se decidir sem discussão da motivação e reapreciação da prova a que estavam obrigados, já deixaram transparecer, de forma muito clara, a leitura que fizeram da decisão sob recurso e da prova e bem assim, o sentido com que a irão apreciar caso se mantenham nos autos, sendo a gravidade, intencionalidade, repercussão no decisório dos comportamentos dos Senhores Juízes Desembargadores, suficiente a gerar dúvida razoável sobre a sua isenção e imparcialidade, apta à confirmação da suspeição e recusa.

Assim,

Atento todo o exposto, mostram-se a nosso ver provados os elementos que constituem fundamento de suspeição que determina a recusa dos Senhores Desembargadores Doutor CC, Doutora FF, Doutor DD e Doutora EE da ... Secção do Venerando Tribunal da Relação de ..., por violação do preceituado nos artigos 6º-C e 7º-D do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei nº21/85, de 30 de Julho) e ainda do artº 20º, nº 4 da CRP, que se deduz e cuja procedência se requer, com as legais consequências.»

2. Nas respostas, as Senhoras Juízas Desembargadoras e os Senhores Juízes Desembargadores visados, para além de afastarem o juízo de suspeição formulado pelos requerentes sobre a sua imparcialidade, consideram, em síntese, não vir invocado qualquer motivo que, nos termos da lei do processo, possa constituir fundamento de recusa.

Cumpre apreciar e decidir.

3. A independência dos tribunais (artigo 203.º da Constituição) contém uma exigência de imparcialidade do juiz que, na projeção do direito fundamental a um tribunal independente e imparcial, constitucionalmente garantido e reconhecido em instrumentos que integram o sistema internacional de proteção dos direitos humanos [Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) – artigo 6.º – e Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – artigo 14.º], justifica, como se tem afirmado, uma previsão suficientemente ampla de suspeições do juiz (assim, entre outros, o acórdão de 13.7.2023, Proc. n.º 4332/04.0TDPRT.P4-A.S1, em www.dgsi.pt, que se segue de perto, citando Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal, § 2. A tutela da imparcialidade: impedimentos e suspeições, Coimbra, 2015).

A independência dos juízes manifesta-se na função de julgar segundo a Constituição e a lei, na direção da marcha do processo e na gestão dos processos que lhes forem aleatoriamente atribuídos [artigos 4.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) – Lei n.º 21/85, de 30 de julho – e 4.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto]. No exercício das suas funções, os juízes devem agir com imparcialidade, assegurando a todos um tratamento igual e isento quanto aos interesses particulares e públicos que lhes cumpra dirimir (dever de imparcialidade, inscrito no EMJ – artigo 6.º C – pela Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto).

A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é processualmente assegurada pela categoria dos impedimentos, que se encontram especificados nos artigos 39.º e 40.º do CPP, e, complementarmente, pelo instituto das suspeições (acórdão de 13.7.2023, cit. e de 4.12.2014, Proc. 147/13.3JELSB.L1.S1, apud acórdão de 30.10.2019, Proc. 1958/15.0T9BRG.G2-A.S1, em www.dgsi.pt.), que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa (artigos 43.º a 45.º do CPP). Independentemente de outras dimensões de tutela da imparcialidade, reveladas, em particular, em violação de deveres legal e constitucionalmente impostos, a determinar em sedes legais diversas, é esta a única que agora releva, em conhecimento de incidente processual de suspeição perante o Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com as regras aplicáveis, nele se comportando, delimitando e conformando os poderes de cognição deste tribunal.

4. Os impedimentos baseiam-se em fatores de ordem pessoal (relações com algum sujeito ou participante processual) (artigo 39.º) ou resultam de intervenção anterior no processo, como juiz ou noutra qualidade (artigo 40.º), nomeadamente por participação em julgamento anterior [n.º 1, al. c)]. Logo que conhecidos, devem ser declarados oficiosamente pelo juiz, por despacho nos autos (n.º 1 do artigo 41.º). Quando o não sejam, pode a declaração ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (n.º 2 do artigo 41.º).

5. No que respeita a suspeições (recusas e escusas) – tema em que os requerentes enquadram a sua pretensão –, dispõe o artigo 43.º do Código de Processo Penal (CPP):

«1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis. (…)».

Como se tem sublinhado, na determinação de uma suspeição que justifique o afastamento do juiz do processo por recurso à cláusula geral enunciada no n.º 1 deste preceito deve atender-se a que esta revela que a preocupação central que anima o regime legal é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade (assim, entre os mais recentes, exprimindo jurisprudência constante, para além do acórdão de 13.7.2023, cit., o acórdão de 01.02.2023, Proc. n.º 39/08.8PBBRG.G1-A.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada).

Estando em causa o princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (assim, o mencionado acórdão de 01.02.2023 e jurisprudência mencionada), como requer o artigo 43.º, n.º 1, do CPP. Para que a suspeição se atualize num afastamento do juiz é suficiente, atentas as particulares circunstâncias do caso, a demonstração de um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial (como notam Figueiredo Dias /Nuno Brandão, loc. cit., p. 27).

6. Conforme jurisprudência consolidada (assim também o citado acórdão de 01.02.2023), os fundamentos da recusa podem referir-se à imparcialidade subjetiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa em circunstâncias objetiváveis, ou à imparcialidade objetiva, que permite verificar se o juiz oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima a este respeito, nomeadamente por verificação de «circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa», como «circunstâncias ou contingências de relação com algum dos interessados» (assim, Henriques Gaspar, anotação ao artigo 43.º, Código de Processo Penal comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2016, e, com referência à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH); Harris, O’Boyle & Warbrick, Law of the European Convention on Human Rights, 2.ª ed., Oxford, 2009, p. 291).

O critério objetivo, que se exprime na célebre formulação do sistema inglês justice must not only be done: it must be seen to be done, (“a justiça não deve apenas ser feita: deve ser vista como sendo feita”), enfatiza a importância das «aparências», como tem sublinhado a jurisprudência do TEDH, a propósito da definição do conceito de «tribunal imparcial» inscrito no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (acórdão Sramek c. Áustria, 1984, § 42). O que está em jogo é a confiança que o tribunal deve inspirar no público e, sobretudo, no que diz respeito aos processos penais, no acusado (acórdão Fey c. Áustria, 1993) (cfr., por todos, na jurisprudência do TEDH, salientando a sujeição da imparcialidade aos testes objetivo e subjetivo, e realçando a importância das «aparências», o acórdão Şahiner c. Turquia, n.º 29279/95, de 25.09.2001, §36, e outros nele citados).

7. Na disciplina do processo, a recusa do juiz está sujeita a prazos determinados, limitados e conformados em função dos momentos processuais em que se expressa e esgota o poder jurisdicional do juiz – do juiz de instrução, do juiz de julgamento e do juiz do recurso, conforme o caso –, de modo a prevenir que a sua participação na decisão possa suscitar “o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

Proferida a decisão que ao juiz compete, em cada uma dessas fases processuais, esgotou-se o seu poder jurisdicional (cfr. artigos 613.º, 666.º e 685.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 4.º do CPP), não podendo a decisão proferida ser posteriormente posta em crise mediante invocação de alegados fundamentos de recusa.

É assim que o artigo 44.º (Prazos) do CPP estabelece que «O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate.»

8. Estando em causa a intervenção de um juiz desembargador do tribunal da relação na elaboração e aprovação de um acórdão que conhece de recurso de uma decisão proferida em 1.ª instância, realizada a conferência em que o recurso é julgado, não mais é possível requerer a sua recusa, que, a proceder, sempre constituiria um ato inútil nesse processo, já não adequado a evitar o risco de parcialidade.

Neste sentido tem este Supremo Tribunal de Justiça decidido em jurisprudência uniforme e constante. Assim, nomeadamente, o acórdão de 26-02-2020 (Manuel Augusto de Matos) Proc. 39/08.8PBBRG-K-A.S1 (https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/07/sum_acord _penal_fevereiro.pdf), onde se lê:

“O art. 44.º, do CPP é claro na definição dos momentos processuais até aos quais, segundo as diversas fases do procedimento, a recusa do juiz pode ser deduzida. Caso vise juiz de 1.ª instância, o requerimento de recusa é admissível até ao início do debate instrutório (tratando-se de recusa do juiz de instrução) ou até ao início da audiência (tratando-se de recusa do juiz de julgamento). (…) não tendo sido deduzida no prazo delimitado pelo artigo 44.º do CPP, a recusa é intempestiva” (no mesmo sentido, podem ver-se os acórdãos de 13.2.2020, Proc. 5553/19.7T8LSB-C.L1-A.S1, de 25.01.2017, Proc. 10/11.2JALRA.C1-A, de 10.03.2016, Proc. 96/07.4TAPDL.L2-A.S1, e outros mencionados em anotação ao artigo 44.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, cit.).

E o acórdão de 13.07.2023, Proc. 4332/04.0TDPRT.P4-A.S1, cit.:

“III. Proferida a decisão que ao juiz compete, em cada uma dessas fases processuais, esgotou-se o seu poder jurisdicional (cfr. artigos 613.º, 666.º e 685.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 4.º do CPP). O risco da desconfiança, que justifica o regime da recusa, já não poderá ser evitável.

IV. O requerimento de recusa de juiz desembargador, na fase de recurso, só é admissível até ao início da conferência (artigo 44.º do CPP).

V. Tendo o requerimento sido apresentado após a conferência em que foi adotado o acórdão de que o juiz desembargador é relator, impõe-se a sua rejeição, por inobservância do prazo estabelecido neste preceito.”

9. O Tribunal Constitucional já se pronunciou pela conformidade constitucional do artigo 44.º do CPP no acórdão n.º 143/2004, de10.03.2004, no qual decidiu «não julgar inconstitucional o artigo 44º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual o pedido de recusa de juiz se deve formular até ao início da conferência ou da audiência mesmo quando os factos geradores da suspeita só cheguem ao conhecimento do invocante após a prolação do acórdão do qual se arguiu a nulidade e antes da sua apreciação e decisão em conferência, negando, consequentemente, provimento ao recurso.»

Lê-se nesse acórdão: «Tanto no que se refere às decisões de primeira instância como à decisão do recurso, a não admissão da arguição de nulidade poderá justificar‑se numa perspectiva de razão de ser da recusa, a qual consiste em evitar o risco da desconfiança dos intervenientes processuais e de todos em geral. Com efeito, tal risco já não será verdadeiramente evitável quando as decisões, embora não transitadas, já tiverem sido tomadas e tornadas públicas. (…) O sentido fundamental do impedimento do risco de não imparcialidade está ligado, indiscutivelmente, à decisão principal, ao “poder de decidir” do juiz suspeito e não tem de cobrir decisões sobre incidentes em que o poder jurisdicional do juiz fica esgotado quanto à matéria da causa (artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil) – e em que, portanto, já não é possível impedir que uma decisão não imparcial do processo seja tomada. Por outro lado, não deixa o Direito, também, de fornecer meios reparadores de uma situação efectiva de não imparcialidade que se venha a detectar tardiamente, em face dos prazos legais justificados pela natureza do instituto da recusa de juiz. Assim, tanto a revisão da sentença (artigo 449º do Código de Processo Penal), como, de algum modo, a responsabilidade penal e civil do juiz são formas de reparar os danos de uma decisão não imparcial de um juiz, impedindo que o valor constitucional em causa, agora na perspectiva da sua reparação e não já da sua prevenção, seja postergado.»

10. Resulta dos autos – e vem assumido pelo requerente, que questiona o acórdão anteriormente proferido pela Relação – que o requerimento de recusa foi apresentado no passado dia 17 de dezembro de 2024 e tem por objeto, para além do mais, a anterior intervenção das Senhoras Juízas Desembargadoras e dos Senhores Juízes Desembargadores na elaboração e assinatura do acórdão de 6 de novembro de 2024 e na conferência do mesmo dia, em que foi adotado.

Resulta também que desse acórdão foi apresentada reclamação com arguição de nulidade em 26.11.2024 e apresentado recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em 10.12.2024, não admitido por despacho de 12.12.2024.

11. Nos termos do artigo 45.º, n.º 4, primeira parte, do CPP o tribunal deve proceder à apreciação preliminar do requerimento, recusando-o, se for caso disso, na pressuposta ocorrência de motivo que obste ao conhecimento de mérito. Como sucede no caso de o requerimento ser apresentado fora de prazo.

Assim, tendo o requerimento sido apresentado após a conferência em que o acórdão foi adotado, impõe-se, como se decide, a sua rejeição, por inobservância do prazo estabelecido no artigo 44.º do CPP.

A rejeição impede que se apreciem os invocados fundamentos da recusa.

Decisão

12. Pelo exposto, nos termos do artigo 45.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, acorda-se em recusar o requerimento de recusa apresentado pelos arguidos AA e BB, por ter sido apresentado fora do prazo previsto no artigo 44.º do mesmo diploma.

Custas pelo requerente fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, a pagar por cada um deles, nos termos do artigo 7.º, n.º 4, e da Tabela II do Regulamento das Custas Processuais ex vi artigo 524.º do Código de Processo Penal.

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de janeiro de 2025.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Horácio Correia Pinto

Luís Augusto Teixeira