Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17777/18.0T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
Data do Acordão: 09/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- Beneficiando o sinistrado da presunção de existência de um contrato de trabalho, cabe ao empregador ilidir essa presunção.

II- Existe um horário de trabalho quando o trabalhador tem que estar disponível no seu local de trabalho em determinado intervalo temporal para intervir se for necessário (no caso para pilotar uma aeronave de combate a incêndios).

III- O empregador é obrigado a celebrar um seguro de acidentes de trabalho e essa obrigação legal não é cumprida com a celebração de um qualquer outro seguro.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 17777/18.0T8PRT.P1. S1

Acordam, em Conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Everjets- Aviação Executiva S.A., Ré nos presentes autos veio arguir a nulidade do Acórdão proferido a 1 de junho de 2022, ao abrigo do disposto no artigo 615.º n.º 1 alínea d) e n.º 4 do CPC.

Em primeiro lugar (números 4 a 20 da Reclamação) a Recorrente considera existir uma nulidade por o Tribunal ter decidido que existia um horário de trabalho do sinistrado. Para a Recorrente “[é] precisamente pela questão do horário que, salvo melhor opinião, principia o labor equívoco do presente Acórdão” (n.º 7 da Reclamação). Com efeito, sustenta que não existiria um verdadeiro horário – “[m]ais do que um horário, trata-se de uma maximização da janela temporal de combate nos incêndios” (n.º 17 da Reclamação; ver também o n.º 10 da Reclamação) – e que “[j]amais este “horário” [poderia] ser equiparado a um verdadeiro horário com entrada e saída, próprio de outros tipos de contrato de trabalho mais comuns” (n.º 18 da Reclamação). A decisão do Tribunal teria sido tomada sem atender a outros factos, mormente os respeitantes à disponibilidade do trabalhador (os factos 85, 92 e 93) o que acarretaria a nulidade do Acórdão por aplicação da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Acresce que “a livre disponibilidade de o prestador de serviços optar por disponibilizar os seus préstimos em 1, 2, 10 ou 20 dias de um mês não é irrelevante, sendo o fator determinante (e não o “horário”) para aferir ou não do indício de laboralidade” (n.º 14 da Reclamação).

Os números 21 a 28 referem-se ao poder disciplinar, afirmando-se que “a decisão ora proferida dá como assente a existência de um poder disciplinar completamente ao arrepio dos factos provados” (n.º 21 da Reclamação), falando-se em “saltos de lógica” (n.º 22) e dizendo-se que “[o] não sancionar quem falta não significa que não o possa fazer é uma pura consideração, não sustentada em nenhum elemento probatório” (n.º 26).

Em seguida, nos números 29 a 33 a Recorrente insurge-se contra a “simplicidade com que sustenta a decisão ora em escrutínio, o facto de o malogrado piloto estar inserido na organização da ré”, a qual, mais uma vez, implicaria a não consideração de certos factos que teriam “uma importância nevrálgica” (n.º 29).

Nos números 34 a 44 a Recorrente refere-se à questão da dependência económica, pretendendo que, quanto a essa, haveria não apenas “uma ostensiva desconsideração de factos provados”, como “um erro na subsunção dos factos no Direito” (n.º 34), uma vez que, para a Recorrente o facto de a prestação de trabalho ser temporalmente limitada afastava que se pudesse falar em dependência económica (números 36 e 37) e só se poderia falar em dependência económica se se tivesse provado a imposição de exclusividade (número 39).

Nos números 46 a 75 a Recorrente tece uma série de considerações sobre o contrato de seguro cuja celebração lhe era exigível, bem como aqueloutro que tinha celebrado. Depois de afirmar que reconhece a sua obrigação legal de ter um seguro de acidentes de trabalho para os seus trabalhadores subordinados, e de reiterar que este sinistrado não seria um deles, realça que não tinha o ónus de verificar a dependência económica do sinistrado (números 54 a 55). Seguidamente afirma que “o dano ressarcido pelo pagamento efetuado ao abrigo do seguro de passageiros é o mesmo que resultaria de um seguro de acidentes de trabalho, ainda que se reconheça a maior tutela que decorre de um seguro de acidentes de trabalho (mas não exigível in casu)” (número 58), com um “inegável duplo ressarcimento do mesmo dano” (número 63).

Defende que haveria uma nulidade do Acórdão ao negar a aplicação ao caso do artigo 17.º n.º 2 da LAT (n.º 66), e um enriquecimento injustificado dos beneficiários das prestações (n.º 65).

A Recorrente interpreta, depois, o Acórdão como aludindo a uma liberalidade do segurador aos segurados (n.º 73: como é facto público e notório, não constitui uso nem circunstâncias da época as Seguradoras fazerem liberalidades a Segurados), que, em seu entender, seria nula por violação do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais. Além disso, aceitar-se que “uma Seguradora poderia pagar um valor, ao abrigo de contrato de seguro celebrado para efeitos de acidentes de trabalho, como mera liberalidade, sempre seria manifestamente inconstitucional por violação do artigo 20.º do CRP: é reconhecido a todos um julgamento de acordo com um processo equitativo, devendo sempre garantir-se um julgamento justo” (n.º 67; cfr. também números 75 e ss., mormente n.º 80).

Cumpre apreciar.

A primeira nulidade invocada respeita, como se disse, ao reconhecimento pelo Acórdão da existência de um horário de trabalho do sinistrado.

Importa recordar que o Acórdão, objeto da presente reclamação, afirmou o seguinte:

“Tendo-se a relação contratual entre o sinistrado e a Ré, em cuja execução ocorreu o acidente de trabalho, iniciado em junho de 2017 (facto 49), há, desde logo, que ter em conta a presunção de existência de contrato de trabalho prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009 (Lei n.º 7/2009 de 12 de fevereiro, doravante designado de CT). Para que a referida presunção se aplique basta que se verifiquem algumas – ou seja, mais do que uma – das cinco características elencadas no n.º 1 do artigo 12.º. Ora dir-se-á, à partida, que tal é o caso já que, por exemplo, a Ré pagava mensalmente ao sinistrado uma quantia, ainda que variável (factos 24 e 25), o equipamento utilizado, mormente o helicóptero, na execução do trabalho pertencia à Recorrente (facto 48) e o sinistrado estava sujeito a um horário de trabalho (facto 52) – estão, pois preenchidas pelo menos três (em rigor, também estaria a prevista na alínea a) características, operando a referida presunção”.

Ou seja, o trabalhador beneficiaria da presunção consagrada no artigo 12.º do Código do Trabalho, mesmo que não se tivesse provado a existência de um horário de trabalho. Mas, em todo o caso, atendendo à natureza da prestação é claro que existe um horário de trabalho. Um piloto de aeronaves de combate a incêndio não trabalha apenas quando está efetivamente a pilotar a aeronave, mas também quando está na base disponível para a tripular se houver necessidade. Aliás, também no direito europeu é inquestionável que é tempo de trabalho o tempo de disponibilidade no local de trabalho.

Como no Acórdão recorrido se afirmou:

“Estes trabalhadores são contratados para estarem de prontidão para a eventual necessidade de serem chamados a combater incêndios. Sublinha-se este aspeto porque no seu recurso a Recorrente pretende que o trabalhador em rigor só trabalhava quando pilotava o avião, afirmando que não havia propriamente um horário de trabalho e que não pagava em função das horas de trabalho (Conclusões 47 e 51). Tal asserção não é exata. A nossa lei não só se refere a trabalhadores que desempenham atividades de simples presença, como a disponibilidade para intervir pode ser o trabalho a que o trabalhador se obriga. Se em um dos dias em que o sinistrado estava na base de ... de prevenção (facto 10), das 08h00 às 20h00 não houvesse qualquer incêndio e não fosse chamado a pilotar o avião, nem por isso se poderia dizer que não trabalhou, que não executou a sua prestação”.

Quanto ao n.º 14 da Reclamação recorde-se que não existe qualquer duração mínima legal do contrato de trabalho, que pode ser celebrado apenas por uma jornada, alguns dias ou semanas.

Uma vez que o trabalhador beneficiou da presunção consagrada no artigo 12.º do Código do Trabalho, cabia ao empregador o ónus de ilidir a referida presunção.

A este propósito pode ler-se no Acórdão que:

“[O] Recorrente não logrou demonstrar, como lhe competia, que o sinistrado não estava inserido no âmbito da sua organização: era o Recorrente quem dava a formação profissional, era o Recorrente quem “elaborava a escala de serviços mensais que no final de cada mês enviava aos pilotos para ser aplicada no mês seguinte (e que continha os dias de serviço e as folgas)” (facto 15), quem proporcionava o equipamento”.

O Acórdão sublinhava também que a não existência ou aplicação de sanções disciplinares não é sinónimo de inexistência de poder disciplinar (como é evidente, se um trabalhador não cometer qualquer infração poderá nunca ser alvo de sanções, mas tal não implica que o poder disciplinar não exista) – “Sublinhe-se, ainda, que dos factos 87 (“Caso [os pilotos] não comparecessem a Ré limitava-se a não pagar a contrapartida pelo serviço, com o esclarecimento de que DD, salvo os dias de descanso referidos no nº 123 dos factos provados, não teve outras ausências ao trabalho”) e 88 (“Os pilotos de escala, em caso de ausência a pedido destes, eram substituídos pela Ré por pilotos disponíveis”) não resulta que a Ré não tivesse poder disciplinar, mas sim que nunca aplicou sanções disciplinares, limitando-se a não pagar a contrapartida pelo serviço, o que é coisa bem distinta”.

Como se vê é inexata a asserção da Reclamante que “a decisão ora proferida dá como assente a existência de um poder disciplinar completamente ao arrepio dos factos provados” (n.º 21 da Reclamação) – o que se afirma é coisa bem distinta, a saber, que da não aplicação de sanções disciplinares não se pode inferir automaticamente a inexistência de poder disciplinar.

A decisão de que o empregador não logrou ilidir a presunção de liberalidade resultou do peso acrescido que o Tribunal atribuiu a certos factos, e não a outros, o que quando muito representaria um erro de julgamento e não uma nulidade, não sendo objeto possível de uma reclamação, a qual, como é sabido, não é um recurso.

Relativamente à questão da subordinação económica importa destacar que mesma carece de relevância para a solução do pleito. Com efeito, e ainda que no Acórdão recorrido se tenha efetivamente dito que:

“Em todo o caso, deve também considerar-se que o sinistrado estava na dependência económica da Recorrente. Com efeito, provou-se que durante a relação contratual em causa o sinistrado não exerceu qualquer outra atividade (facto 64) e viveu exclusivamente dos rendimentos do seu trabalho, pagos pela Everjets (factos 65 e 66), não se discutindo se existia, ou não, uma cláusula de exclusividade”.

No entanto, esta passagem é, no contexto do Acórdão, obter dicta. Com efeito, e uma vez que o empregador não logrou ilidir a presunção de laboralidade, carece de relevância determinar se o sinistrado estava ou não dependente economicamente do Recorrente e ora Reclamante. A LAT aplica-se aos trabalhadores juridicamente subordinados e, também, aos trabalhadores autónomos, mas economicamente dependentes. Sendo o sinistrado um trabalhador juridicamente subordinado, carece de relevância se estava ou não na dependência económica do seu empregador, Everjets.

Relativamente ao contrato de seguro reitera-se o que se disse no Acórdão objeto da presente reclamação.

Em primeiro lugar, o empregador tinha a obrigação legal de celebrar um contrato de seguro que cobrisse o risco de acidentes de trabalho do sinistrado. O empregador não pode pretender que está a cumprir essa obrigação, celebrando um contrato de seguro distinto desse.

Como se disse, no Acórdão recorrido, “nada impede que o empregador celebre outros contratos de seguro, mas a sua eventual existência não pode suprir a exigência legal de um seguro de acidentes de trabalho”.

Relativamente ao artigo 17.º, n.º 2 da LAT, não se verifica qualquer nulidade.

Como se pode ler no Acórdão, “com efeito, a responsabilidade por acidentes de trabalho e o respetivo seguro, não havendo culpa do empregador, só abrange certos danos típicos resultantes da perda da capacidade de trabalho ou de ganho – não são abrangidos, designadamente, os danos não patrimoniais sofridos pelas filhas do sinistrado com a morte trágica deste. Em suma, o empregador (ou o segurador de acidentes de trabalho) que pretenda invocar o artigo 17.º, n.º 2 da LAT tem o ónus de provar que a indemnização recebida de terceiro tinha o escopo de reparar o mesmo dano, bem como a medida em que o dano é comum, porque só nessa medida é que haveria um enriquecimento injustificado do lesado – ónus da prova que não foi cumprido no caso dos autos. Como bem destaca o Parecer do Ministério Público junto deste Tribunal, “não há elementos suficientes para afirmar que foram ressarcidos os mesmos danos que à entidade patronal compete reparar no âmbito da LAT”.

Em suma, não se pode aplicar o artigo 17.º n.º 2 porque no processo não se provou em que medida é que o dano era comum e também não se pode aplicar a proibição do enriquecimento injustificado, já que tão pouco se provou a medida do enriquecimento.

Finalmente e quanto à referência à liberalidade, trata-se não de uma liberalidade do segurador aos destinatários da prestação, mas de uma eventual liberalidade do empregador. Tal resulta com toda a clareza do Acórdão:

“a conduta do empregador que celebra um contrato de seguro, o qual não é legalmente exigido – e que, como já foi dito, não pode substituir o tipo de seguro que a lei requer – pode ser interpretada como uma liberalidade, uma vontade de beneficiar os destinatários da prestação”.

Tratou-se apenas de mais um motivo, aliás secundário, para afastar neste processo qualquer apelo ao enriquecimento injustificado: não só não se sabe e não foi provada a medida do eventual enriquecimento, como não se determinou qual a motivação do empregador ao celebrar um contrato de seguro que não estava legalmente obrigado a celebrar. O que se pode afirmar com segurança é que não celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho, como era sua obrigação legal.

Decisão: Acorda-se em indeferir a presente reclamação.

Custas pelo Reclamante

7 de setembro de 2022

Júlio Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Domingos Morais