Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1094/22.3GBPNF.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO RATO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
FURTO
REABERTURA DA AUDIÊNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :

I – As concretas circunstâncias verificadas neste caso e que redundaram na condenação do arguido como autor dos dois mencionados crimes de furto simples (desqualificado) e de violação do domicílio, em substituição do de furto qualificado por que fora pronunciado, integram uma verdadeira alteração de factos, embora não substancial, resultante da redução dos factos da pronúncia e da consequente alteração da qualificação jurídica dos que se mantiveram no acervo factual provado, sem que a mesma fosse resultado de qualquer pedido ou intervenção do recorrente nesse sentido.

II - Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379º, n.º 1, al. b), 358º, n.ºs 1 e 3, e 1º, al. f), a contrario, do CPP, a alteração não substancial dos factos, por redução da matéria de facto imputada na pronúncia, e consequente alteração da qualificação jurídica dos que dela se mantiveram no elenco dos provados no acórdão recorrido tinham de ser comunicadas ao recorrente e arguido antes do encerramento da audiência e, se por ele requerido, concedido prazo para defesa relativamente a uma e outra dessas alterações e produção da prova pertinente eventualmente requerida, sob pena de nulidade do acórdão e baixa do processo ao tribunal recorrido para a respetiva sanação, reabrindo-se a audiência para aqueles efeitos e reformulando-se o acórdão em conformidade, com intervenção do mesmo tribunal e dos mesmos juízes, salvo impossibilidade destes, hipótese em que se manterá o mesmo tribunal com a sua atual composição.

III - Por outro lado, se é certo que os pontos 1 e 4 da contestação nada de factual refletem, por isso não merecendo qualquer pronúncia do tribunal acerca dos mesmos, já os pontos 2 e 3 se referem a factos concretos relativos à inserção social e familiar do arguido, integrantes do objeto do processo e merecedores de apreciação e decisão pelo tribunal, sob pena de nulidade, pois a prova ou não prova dos mesmos pode relevar, entre o mais, na escolha e dosimetria das penas, parcelares e única.

IV - Essa nulidade, nos termos do artigo 122º do CPP, implica, neste caso, a invalidade do acórdão e a sua consequente reformulação no sentido de nele se conhecerem e decidirem aqueles factos, sem necessidade de reabertura da audiência, na medida em que a prova oferecida pelo arguido foi a da acusação, integralmente produzida em audiência de julgamento, a que acresceu a produzida por determinação do tribunal, designadamente a que resultou do relatório social, sem a colaboração do arguido, que não prestou declarações, salvo quanto aos seus elementos de identificação.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1094/22.3GBPNF.S1

(Recurso Per Saltum)

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Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

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I. Relatório

1. Por acórdão de 23.04.2024, do Juízo Central Criminal de ... (...) – J 5, do Tribunal Judicial da Comarca do ..., foi o arguido AA, nascido a ... de ... de 1986, com os demais sinais dos autos, condenado, nos termos do seguinte dispositivo (transcrição):

«(…) IV – DECISÃO

Pelo exposto, delibera este tribunal coletivo condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de:

 5 (cinco) crimes de furto qualificado (NUIPCs 116/23.5..., 122/23.0..., 113/23.0..., 129/23.7..., 124/23.6...), previstos e puníveis pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, e) do Código Penal, nas penas de 3 anos e 2 meses de prisão cada um;

 1 (um) crime de furto qualificado, previsto e punível pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, e) do Código Penal (NUIPC 1094/22.3...) na pena de 3 anos e 5 meses de prisão;

 1 (um) crime de furto qualificado, previsto e punível pelo artigo 203º, n.º 1 e 204º, n.º, 1, e) do Código Penal (NUIPC 119/23.0...), na pena de 1 ano e 3 meses de prisão;

 1 (um) crime de furto simples, previsto e punível pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal (NUIPC 123/23.8...), na pena de 6 meses de prisão;

 1 (um) crime de violação de domicílio, previsto e punível pelo artigo 190º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal (NUIPC 123/23.8...), na pena de 8 meses de prisão;

 em cúmulo jurídico de penas, nos termos dos artigos 77º e 78º do Código Penal, na pena única de 8 anos de prisão.».

2. Inconformado, interpôs o referido arguido, em 7.05.2024, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apresentando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

«(…) CONCLUSÕES:

1. O tribunal errou por omissão de ato de julgamento legalmente obrigatório, dado que não comunicou a alteração dos factos a que a lei obriga.

2. Como tal, o acórdão é nulo nessa parte devendo essa invalidade ser sanada em novo julgamento.

3. É também nulo por não mencionar o conteúdo da contestação oferecida em tempo e vertendo no relatório que o arguido não apresentou contestação, o que é falso.

4. Tal irregularidade/nulidade arrasta como consequência a necessidade de reformulação do acórdão, porque a contestação baliza e enquadra a estratégia da defesa que o tribunal não conheceu e cujo conteúdo não ponderou.

5. Desse modo restringindo um dos direitos fundamentais da defesa.

6. É também inválido o acórdão, porque incorreu em vários vícios processuais, o mais saliente, o de real exame crítico da prova no que respeita a cada um dos apensos e factualidade por que foi condenado.

7. Para além dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

8. Mas também, por tratamento injusto e iníquo como ficou descrito na motivação.

9. Em particular, porque, ostensivamente, atuou contra legem ao apontar ao arguido o ónus de explicitar elementos que serviriam para a sua auto condenação.

10. Mais errou porque indicou a agravante da culpa, expondo vários confrontos anteriores sem ter o cuidado de se informar quais e quantos desses crimes e condenações se encontram extintos.

11. Finalmente, errou ao condenar o arguido em pesadas e desproporcionais penas parcelares na sua medida, bem sabendo que essa medida desmesurada, não deixaria de se refletir num cúmulo jurídico de 8 anos de prisão, também ele exagerado.

12. Feriu assim o acórdão os arts. 359º a contrário sensu; 374º nºs 1, al. d) e 2 in fine; 379º nºs 1, als. a) e c); 410º nºs 1, 2, als. a) e c) e 3; do CPP; 40º nº 2; 50º, 70º; 71º e 77º do C. Penal; arts. 20º nº 4 in fine e 204º da Constituição da República Portuguesa; art. 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Devendo ser revogado e declarado nulo pelos motivos exclusivamente de direito expostos e os autos reenviados para reformulação ou, sem prescindir, ser renovada a prova nos termos conjugados dos artigos explicitados do CPP.

Ou, finalmente, seja a decisão condenatória reformulada e diminuída, a pena cumulada nos termos e segundo as opções explicitadas pela defesa. Não devendo a pena cumulada ser em todo o caso superior a 4 anos de prisão e 3 meses de prisão suspensa na sua execução com regime de prova.

Assim farão V. Excelências

JUSTIÇA!».

3. O recurso foi admitido por despacho do Juiz presidente do ... - J 5, de 4.06.2024, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. O Ministério Público junto do ..., respondeu, em 8.07.2024, ao recurso do arguido, pronunciando-se pela sua improcedência, com os fundamentos sintetizados nas seguintes conclusões (transcrição):

(…) . VI – Conclusões.

1. A condenação do arguido pelo aludido crimes de violação de domicílio tem a ver com a qualificação jurídica dos factos que emergem da discussão e que provados ficaram, reportando-se, pois, a um momento posterior à do decurso da audiência.

2. Os factos apurados com base nos quais se decidiu integrarem eles, além do mais, o mencionado tipo legal de crime, já constavam da acusação deduzida e que, nos seus precisos termos de facto e de direito, foi recebida.

3. Nada da realidade factual provada a imputar ao arguido extrapolou ou foi além da factualidade narrada na acusação. Não tem, pois, sentido dizer-se que o arguido foi colhido de surpresa, ficando impossibilitado de se defender eficazmente e em tempo útil.

4. Ao ser notificado o arguido da acusação, do despacho de pronúncia e do despacho que a recebeu, ele foi confrontado com os factos que se lhe imputavam e, nessa medida, teve a oportunidade de deles se defender.

5. Realidades diversas são os factos vertidos na acusação e na pronúncia e, como tal, imputados ao arguido, e outra coisa é a qualificação jurídica, o enquadramento jurídico-penal que esses mesmos factos devam merecer à luz do direito penal vigente.

6. Nenhuma alteração de factos em relação à acusação existiu na decisão recorrida.

7. Estando já os factos descritos na acusação e no despacho de pronúncia, nenhuma comunicação haveria que ser feita ao arguido, pelo que improcede a alegada nulidade.

8. Nenhum dos direitos de defesa do arguido foi prejudicado com a menção, errónea de que não havia apresentado contestação.

9. Todos os factos que alegou na sua contestação, em que, baseou a sua estratégia de defesa, foram objecto de apreciação pelo Tribunal, como bem decorre da fundamentação.

10. É de tal forma inócua e irrelevante a falta de menção à apresentação de contestação, que nem sequer se justifica a simples rectificação de tal lapso.

11. Vigora em processo penal o denominado princípio da taxatividade das nulidades - art. 118º do Código de Processo Penal, de acordo com o qual “A violação ou inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.

12. Não existe qualquer norma legal que comine a valoração dos aditamentos ao auto de notícia acompanhados de imagens com explicações dos agentes do Órgão de Polícia Criminal, com nulidade.

13. A insuficiência da matéria de facto para a decisão não se confunde com a insuficiência da prova e só pode ter-se como evidente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão proferida ou, por outras palavras, não há insuficiência se os factos apurados preenchem, tanto na sua objectividade como na sua subjectividade, os crimes que se dão como verificados.

14. O que o arguido contesta é que a prova produzida seja suficiente para dar como provada a factualidade que lhe foi imputada.

15. Logo do “preâmbulo” da fundamentação se colhe um elemento importante, e que permite a identificação do arguido por parte dos elementos da Guarda Nacional Republicana: o facto de ser sobejamente conhecido das autoridades policiais.

16. Decorre, desde logo uma conclusão lógica, e que permite a atribuição de credibilidade aos agentes, como seja a de que a identificação do arguido, através da análise dos fotogramas, e dos videogramas se revela tarefa mais simplificada.

17. Sendo o arguido, a sua imagem e os seus traços físicos conhecidos, mais fácil se torna a sua identificação por confronto destes últimos com os referidos fotogramas e videogramas.

18. O arguido não logra demonstrar qualquer erro na apreciação da prova, decorrente do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

19. Sendo o veículo automóvel usado pelo arguido, como referiram os militares inquiridos e a testemunha BB, seu amigo, e que, para além do mais, é seu proprietário registal, sendo este visto a chegar ao local do furto momentos antes, e verificada a sua saída do local cerca de 45 minutos depois, a única conclusão possível, lógica e conforme às regras da experiência comum é que seria o arguido o seu condutor, e quem se dirigiu ao local do furto.

20. Salvo se for fornecida uma outra explicação lógica, racional e igualmente conforme às regras da experiência comum.

21. O arguido, optando pelo silêncio, privou o Tribunal de uma qualquer explicação susceptível de pôr em causa o sobredito raciocínio.

22. O arguido, com tal atitude, “abandonou-se à prova”, ou seja, não exerceu um, também seu, direito, de pôr em causa a prova forte, firme e segura assente no raciocínio explicitado pelo Tribunal.

23. Ao abdicar da oportunidade de apresentar a sua própria versão dos factos, sujeita-se a que o tribunal se possa apenas valer de outras provas.

24. O silêncio não beneficia o arguido, apenas não o prejudica.

25. Considerando que a medida da concreta da pena, assenta na “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é constituído pelo ponto ideal da proteção dos bens jurídicos e o limite mínimo aquele que ainda é compatível com essa mesma proteção, que a pena não pode, contudo, exceder a medida da culpa, e que dentro da moldura da prevenção geral são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum da pena a aplicar, dentro da moldura penal abstrata prevista para os crimes cometidos pelo arguido, entende-se que as mesmas são justas, adequadas e proporcionais.

26. Relativamente a todas as condenações sofridas pelo arguido nenhuma preenche os requisitos previstos no art. 11º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio, atenta a data do seu trânsito em julgado, e o seu cumprimento, e ainda o não preenchimento do requisito “desde que, entretanto não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza.”

27. Nada impede a valoração dos antecedentes criminais do arguido.

28. A pena única aplicada ao arguido é justa, adequada e proporcional.

29. A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição.

30. Da matéria de facto provada as circunstâncias exteriores são conscientemente procuradas e criadas pelo arguido, procurando lugares e vítimas diferentes. Foi o próprio arguido que criou as condições para a prática dos crimes.

31. O consumo habitual de produto estupefaciente e a ausência de rendimentos de proveniência lícita para prover ao seu sustento e satisfazer as necessidades daquele consumo que constituíram a motivação para a prática dos ilícitos destinados a proporcionar proveitos financeiros para fazer face a tais necessidades, são factores endógenos da pessoa do recorrente e não consubstanciam qualquer condicionalismo exterior que tivesse actuado como propiciador e facilitador das sucessivas condutas delituosas.

Termos em que:

Negando provimento ao recurso, mantendo in totum o douto acórdão recorrido, farão V. Exa. a esperada

JUSTIÇA.»

5. Neste Tribunal, o Ministério Público, em 10.09.2024, emitiu fundamentado parecer, de que se transcrevem os seguintes excertos, sem notas de rodapé:

«(…) 3. O Senhor Magistrado do Ministério do Público na 1ª instância apresentou fundamentada resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção integral da decisão recorrida.

4. Não obstante acompanharmos a resposta do Senhor Procurador da República no que respeita às nulidades invocadas pelo recorrente, divergimos no que toca à resposta à questão prévia.

Vejamos:

Importa começar por dizer a este propósito que, ao contrário do que alega o recorrente, não há nos autos nenhuma violação de obrigação imposta ao Tribunal pelo artº 359º do CPP, pela simples razão de – mesmo nos exatos contornos definidos no recurso - este preceito não ter aplicação ao caso aqui em apreciação.

Com efeito, ao contrário do que alega, a questão que emerge do seu recurso coloca-se relativamente à qualificação jurídica dos factos imputados ao recorrente no processo 123/23.8... e não aos factos propriamente ditos.

Para o que aqui importa, pode ler-se o seguinte, a este propósito, no acórdão recorrido:

(…)

Perante este acervo fáctico, que reproduz a imputação constante da acusação e da pronúncia, exceto no que respeita ao valor dos objetos furtados, entendeu o Tribunal a quo não poder manter a incriminação ali em causa. Isto porque, citamos, (…).

Conforme tem sido jurisprudência constante dos nossos tribunais, há alteração da qualificação jurídica dos factos quando estes se mantêm inalterados, mudando-se apenas a respetiva qualificação jurídica.

Como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no seu Assento 3/2000 (v. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/assento/3-2000-402546) “Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.ºs 1 e 2, e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.”

Daqui resulta que o está em causa na apreciação desta questão prévia – mas que apenas indiretamente resulta do recurso aqui em apreço – é a aplicação, ou não, ao caso dos autos do regime de comunicações estabelecido no artigo 358.º do Código de Processo Penal, desde logo no seu número 3.

Continuando a citar o Assento nº 3/2000, “o legislador do Código de Processo Penal pretendeu consignar neste diploma um regime específico de defesa da segurança do cidadão que seja arguido num processo criminal, regime este que pode ser sintetizado através da indicação dos seguintes cinco aspectos:

(…)

5) A verificação, em julgamento, da existência de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, e com relevo para a decisão da causa, implica unicamente a possibilidade de concessão de prazo ao arguido para preparação da defesa quanto a tal alteração, e desde que ela não resulte da matéria que por ele já tenha sido alegada (artigo 358.º do referido Código).”

É certo que no caso dos autos não ocorreu qualquer alteração dos factos. Apenas se alterou a qualificação jurídica dos mesmos em virtude de não ter ficado provada uma circunstância de que dependia a qualificação do tipo de crime imputado ao recorrente na acusação e na pronúncia. É certo, também, que o arguido, em primeira linha, se defende de factos e não do enquadramento jurídico deles.

No entanto, ao fixar a obrigação de comunicação no nº 3 do artigo 358º do CPP, o legislador – que quis assim pôr fim a uma querela jurisprudencial e, sobretudo, doutrinária – não distinguiu situações em que a alteração da qualificação jurídica dos factos impusesse o cumprimento daquela obrigação, daquelas em que, pelo contrário, tal cumprimento não seria necessário.

A expressiva literalidade e univocidade do preceito aqui em causa não pode ser ignorada em sede de interpretação jurídica.

Como decidiu o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão recente , “O que se pretende com o regime do artigo 358.º do Código de Processo Penal, em caso de alteração de qualificação jurídica (como também sucede de forma equiparável em caso de alteração não substancial de factos), é que se garantam duas coisas, ambas necessárias à tutela da defesa do arguido: primeiro, que este seja informado da possibilidade de realização de uma convolação jurídica; e depois que, em face de tal advertência, lhe seja concedida uma oportunidade de redirecionar a sua defesa em função dessa novidade; foi este o paralelismo que se procurou traçar entre a alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica dos factos.”

(…)

Na situação aqui em apreço não houve uma mera alteração da qualificação jurídica dentro da hierarquia do crime base, para usar a expressão do Tribunal da Relação de Coimbra. Houve sim uma cisão da subsunção jurídica dos mesmos factos a dois tipos legais distintos, que protegem bens jurídicos também eles distintos, sendo que um deles não era do conhecimento do arguido.

Como afirmou este Supremo Tribunal de Justiça no Assento atrás citado, através destes dispositivos legais, o legislador pretendeu consagrar “um regime específico de defesa da segurança do cidadão que seja arguido num processo criminal”.

Movemo-nos assim, neste caso, dentro do complexo edifício legal que protege o exercício dos direitos da defesa e consagra as respetivas garantias, direitos e garantias essas de evidente dimensão constitucional.

Isso mesmo defende o Tribunal Constitucional na sua abundante jurisprudência sobre esta matéria. Citamos, porque nos parece particularmente útil à apreciação da questão prévia aqui em análise, a acórdão nº 216/2019 , daquele Tribunal:

“(…)

Tratando-se de alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia – a que aqui nos interessa, face ao critério normativo em apreciação – que tenha relevo para a decisão da causa, nela se incluindo a mera alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, permite o artigo 358.º do CPP que essa alteração temática do processo possa ser tida em conta pelo tribunal do julgamento no apuramento e na definição da responsabilidade criminal do arguido. No entanto, por respeito devido aos referidos princípios, o preceito impõe que se comunique ao arguido essa alteração e que se lhe conceda o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

“(…)

A comunicação da alteração temática indiciada e a concessão do tempo necessário para a preparação da defesa – dispensada por razões evidentes de desnecessidade quando a alteração derive de posição tomada pela própria defesa – apresentam-se como modos que procuram dar cabal satisfação às exigências postuladas pelos princípios examinados.” .

A comunicação a fazer ao arguido nos termos do disposto no art.º 358º, nºs 1 e 3, do CPP é, pois, uma obrigação que vincula o Tribunal, desde logo porque só por essa via se garante o exercício pleno do direito do mesmo a poder pronunciar-se sobre as questões que, direta ou indiretamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo.

Consensual tem sido o entendimento que a obrigação de comunicação deve ser cumprida até ao fim da audiência, ou seja, antes da publicação da sentença.

A falta de comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica impede o Tribunal de conhecer e decidir sobre a mesma, sob pena de esvaziamento de conteúdo do nº 3 do preceito aqui em apreço, sendo que a omissão da obrigação de comunicação não pode deixar de afetar a validade da decisão, conforme resulta do disposto no art.º 379º, nº 1, al. c), do CPP. Isto porque apenas o cumprimento dessa obrigação abre as portas ao julgador para, sem violar o princípio da vinculação temática, aceder e conhecer de uma dimensão processual não prevista inicialmente.

A ser assim, como estamos convencidos que será, estamos perante um vício que inquina a decisão, mas não o julgamento, pelo que deve ser anulado o acórdão recorrido, e devolvidos os autos à primeira instância para correção do vício.

5. Caso assim não se entenda, acompanhamos aqui a resposta do Senhor Procurador da República junto do Tribunal a quo, que identifica detalhadamente todas as questões a dirimir, equacionando-as devidamente, e rebate de forma fundamentada e sólida os argumentos do recorrente, demonstrando a sua evidente falta de razão.

(…)

6. Face ao exposto e não sendo acolhido nosso parecer sobre a questão prévia, sufragamos integralmente a argumentação da Senhora Procuradora da República na 1ª instância, que aqui damos por reproduzida e somos de parecer que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente mantendo-se a decisão recorrida.».

6. Observado o contraditório, o arguido não respondeu ao parecer do Ministério Público.

7. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

1. Considerando a motivação e conclusões do recurso, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, as questões nele colocadas cingem-se2:

a) à nulidade do acórdão por não comunicação de alteração dos factos, cuja sanação implica novo julgamento [conclusões 1ª, 2ª e 12ª];

b) à nulidade do acórdão por omissão de referência e consideração da contestação e consequente violação dos direitos de defesa, cuja sanação implica a reformulação do acórdão [conclusões 3ª a 5ª e 12ª];

c) à invalidade do acórdão por omissão de “real” exame crítico da prova [conclusões 6ª e 12ª];

d) à invalidade do acórdão por ter incorrido nos vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [conclusões 7ª e 12ª];

e) à invalidade do acórdão por tratamento iníquo e injusto e atuação contra legem, ao apontar ao arguido o ónus de explicitar elementos que serviriam para a sua autocondenação [conclusões 8ª, 9ª e 12ª];

f) à invalidade do acórdão por agravar a culpa expondo vários confrontos anteriores sem ter o cuidado de se informar quais e quantos desses crimes se encontram extintos [conclusões 10ª e 12ª]3:

g) à medida das penas de prisão aplicadas, parcelares e única, e suspensão da execução desta última [conclusões 11ª e 12ª]

III. Fundamentação

1. Na parte que aqui releva, é do seguinte teor o acórdão recorrido (transcrição):

«(…) II – FUNDAMENTAÇÃO

De relevante para a decisão da causa, o tribunal considerou provada a seguinte matéria de facto:

[NUIPC 1094/22.3...]

1) Na madrugada do dia 28 de Dezembro de 2022, cerca das 01:10 horas, o arguido AA, acompanhado de pessoa que não foi possível identificar, dirigiu-se ao café existente no “...”, explorado por CC, sito na Rua ..., nesta Comarca ..., com intenção de fazer seus e de integrar no seu património, dinheiro, valores ou objetos que lá encontrasse e fossem do seu interesse.

2) Ali chegado, em execução de um plano previamente delineado, o arguido AA abeirou-se da janela existente no lado esquerdo da parte frontal do referido estabelecimento, arrombou a grade da mesma de forma não concretamente apurada, partiu o vidro da referida janela, conseguindo assim aceder ao puxador da referida janela e abrir a mesma, introduzindo-se, assim, no interior do referido estabelecimento, começando a procurar o que lhe interessava pelas diversas divisões.

3) Nessas instalações, apoderou-se então de:

― Moedas no valor de €5,00, que se encontravam na caixa registadora;

— Uma garrafa de whisky, de marca e valores não concretamente apurados;

— Uma máquina de tabaco, que desaparafusou do chão do referido estabelecimento, propriedade da Tabacaria...Lda., representada por DD, contendo no seu interior a quantia de €867,20, €1.081,47 em tabaco de diversas marcas, tendo a máquina o valor de €2.200,00;

— Uma máquina de chocolates, no valor de €375,00, propriedade de EE;

— Duas máquinas de batatas fritas, no valor de €265,00 cada, propriedade de EE;

— Um tablet da marca Samsung, modelo Galaxy, de cor branca, no valor de €400,00;

— Diversos consumíveis (chocolates, doces), no valor de €150,00;

— Uma caixa contendo 50 isqueiros da marca BIC, no valor de €50,00;

Que retirou do interior daquelas instalações e levou consigo.

4) Com o arrombamento das grades daquela porta e a destruição da fechadura da porta que dá acesso ao interior daquelas instalações causou o arguido à ofendida um prejuízo patrimonial no valor de €150,00.

5) Até à presente data, sem qualquer causa justificativa, o arguido não indemnizou total ou parcialmente a ofendida, que se encontra assim patrimonialmente lesada no correspetivo montante.

6) Foi recuperada uma das máquinas de batatas fritas, danificada, tendo o seu proprietário, EE que despender €15,00 para a consertar.

7) Não foi possível, até à presente data, recuperar quaisquer outros dos objetos e valores subtraídos à ofendida.

8) O arguido agiu deliberadamente, com a intenção pré-ordenada de integrar no seu património os objetos acima descritos de que se apoderou, tendo atuado na execução de um plano por si delineado e executado, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que tais objetos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e em prejuízo do dono.

9) Sabia que não podia entrar e permanecer no interior daquelas instalações àquela hora, por aqueles meios e objetivos e que ao forçar o gradeamento e partir o vidro da janela daquele estabelecimento lhe agravava a responsabilidade.

10) Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punível por lei.

[Apenso A: NUIPC 113/23.0...]

11) Na madrugada do dia 12 de fevereiro de 2023, cerca das 03:14 horas, o arguido AA dirigiu-se ao “Café...”, explorado por FF, sito na Rua ..., nesta Comarca de ..., com intenção de fazer seus e de integrar no seu património, dinheiro, valores ou objetos que lá encontrasse e fossem do seu interesse.

12) Ali chegado, em execução de um plano previamente delineado, o arguido AA abeirou-se da janela existente na arrecadação do referido estabelecimento e, por forma não concretamente apurada, arrombou a mesma, conseguindo assim introduzir-se, no interior do referido estabelecimento, começando a procurar o que lhe interessava pelas diversas divisões.

13) Nessas instalações, apoderou-se então de:

― €125,00 em moedas e os respetivos brindes de duas máquinas ali existentes, máquinas essas com o valor unitário de €62,00, propriedade de GG;

— €150,00 em numerário que se encontrava na caixa registadora;

— €50,00 em numerário que se encontravam numa caneca ao lado da caixa registadora;

— €180,00 em numerário que se encontrava no interior de um pequeno cofre que estava no balcão do referido estabelecimento;

— Duas garrafas de whisky da marca Ballantine’s, no valor unitário de €20,00;

— Uma máquina de chocolates, no valor de €375,00, propriedade de EE;

Que retirou do interior daquelas instalações e levou consigo.

14) O arguido tentou ainda arrombar a máquina de tabaco ali existente, propriedade de HH, provocando danos na mesma no valor de €250,00.

15) Com o arrombamento da referida janela causou o arguido ao ofendido um prejuízo patrimonial no valor de €850,00.

16) Até à presente data, sem qualquer causa justificativa, o arguido não indemnizou total ou parcialmente os ofendidos, que se encontram assim patrimonialmente lesados no correspetivo montante.

17) No referido dia 12.02.2023, cerca das 15:00 horas, uma patrulha da Guarda Nacional Republicana composta pelos militares II e JJ abordou o arguido, quando o mesmo se encontrava no interior do seu veículo de marca Fiat, com a matrícula ..-..-PV parado na Rua ..., em ....

18) Uma vez que sobre o mesmo impendia um mandado de detenção e condução no âmbito do processo sumário n.º 143/23.2..., o arguido foi abordado.

19) Ao verem uma garrafa de whisky da marca Ballantine’s no banco traseiro e tendo tido conhecimento através do Núcleo de Investigação Criminal da Guarda Nacional Republicana de ... que o assaltante vestia roupas e calçava sapatilhas em tudo idênticas às que o arguido vestia, foi efetuada uma busca ao referido veículo, tendo sido encontrados e apreendidos os seguintes objetos:

— Uma garrafa (já parcialmente consumida) de Whisky da marca Ballantine’s;

— €160,00 em numerário;

— as sapatilhas de marca Fila que o arguido calçava e um casaco de cor preta que o arguido vestia.

20) Não foi possível, até à presente data, recuperar quaisquer outros objetos e valores subtraídos à ofendida.

21) O arguido agiu deliberadamente, com a intenção pré-ordenada de integrar no seu património os objetos acima descritos de que se apoderou, tendo atuado na execução de um plano por si delineado e executado, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que tais objetos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e em prejuízo do dono.

22) Sabia que não podia entrar e permanecer no interior daquelas instalações àquela hora, por aqueles meios e objetivos e que ao forçar o gradeamento e partir o vidro da janela daquele estabelecimento lhe agravava a responsabilidade.

23) Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punível por lei.

[Apensos F e G: NUIPC 119/23.0... e 116/23.5...]

24) Na madrugada do dia 15 de Fevereiro de 2023, cerca das 01:56 horas, o arguido AA, vestindo um kispo de cor escura com um emblema colorido da marca “Benetton” na manga esquerda, dirigiu-se à lavandaria designada “BW...”, propriedade de P...Lda., representada por KK, sita na Rua ..., nesta Comarca de ..., com intenção de fazer seus e de integrar no seu património, dinheiro, valores ou objetos que lá encontrasse e fossem do seu interesse.

25) Ali chegado, em execução de um plano previamente delineado, o arguido AA abeirou-se dos moedeiros das máquinas de lavagem de veículos e, por forma não concretamente apurada, utilizando uma chave de fendas, arrombou os mesmos, conseguindo assim retirar do seu interior a quantia de €400,00 em moedas.

26) Não satisfeito, cerca de sete minutos mais tarde, depois de ter retirado todas as quantias em dinheiro existentes nos referidos moedeiros daquelas máquinas, o arguido atravessou a estrada e dirigiu-se ao estabelecimento comercial “Café...”, explorado por LL, sito na Rua ..., nesta Comarca de ..., com intenção de fazer seus e de integrar no seu património, dinheiro, valores ou objetos que lá encontrasse e fossem do seu interesse.

27) Ali chegado, o arguido abeirou-se da porta da frente do referido estabelecimento e partiu o vidro existente na mesma, conseguindo, assim, aceder ao seu interior, começando a procurar o que lhe interessava pelas diversas divisões.

28) Nessas instalações, apoderou-se então de:

— €160,00 em numerário que se encontrava na caixa registadora;

— Isqueiros no valor de €10,00;

— Diversos bens de consumo, designadamente um saco de mortalhas, bolos, atum, salsichas, chouriças de carne, orelha de porco, dois salpicões e vários chocolates, no valor estimativo de €150,00;

— €130,00 em numerário que se encontravam numa caixa escondida numa prateleira da mercearia;

— €535,35 em tabaco e numerário do interior da máquina de tabaco ali existente, que previamente arrombou, máquina explorada pela ...Distribuição Sa., representada por MM;

Que retirou do interior daquelas instalações e levou consigo.

29) Para reparar as máquinas do estabelecimento BW..., o ofendido P...Lda. foi obrigada a despender €3.250,00 (três mil duzentos e cinquenta euros).

30) O arguido provocou danos na referida máquina de tabaco que a deixaram totalmente inutilizada, provocando assim um prejuízo à ...Distribuição Sa. no valor de €2.000,00.

31) Com o arrombamento da referida porta causou o arguido ao ofendido LL um prejuízo patrimonial no valor de €48,00.

32) Até à presente data, sem qualquer causa justificativa, o arguido não indemnizou total ou parcialmente os ofendidos, que se encontram assim patrimonialmente lesados nos correspetivos montantes.

33) Não foi possível, até à presente data, recuperar quaisquer objetos e valores subtraídos aos ofendidos.

34) O arguido agiu deliberadamente, com a intenção pré-ordenada de integrar no seu património os objetos e valores acima descritos de que se apoderou, tendo atuado na execução de um plano por si delineado e executado, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que tais objetos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e em prejuízo do dono.

35) Sabia que não podia entrar e permanecer no interior daquelas instalações àquela hora, por aqueles meios e objetivos e que ao arrombar os moedeiros das máquinas do estabelecimento BW... e ao forçar o gradeamento e partir o vidro da janela daquele estabelecimento lhe agravava a responsabilidade.

36) Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punível por lei.

[Apenso B: NUIPC 122/23.0...]

37) No dia 16.02.2023, cerca das 21:06 horas, o arguido AA dirigiu-se às instalações da empresa de mármores e granitos “S...Lda.”, sita na Rua ..., nesta Comarca de ..., com intenção de fazer seus e de integrar no seu património, dinheiro, valores ou objetos que lá encontrasse e fossem do seu interesse.

38) Ali chegado, em execução de um plano previamente delineado, o arguido AA abeirou-se da janela existente no escritório da referida empresa, e, por forma não concretamente apurada, arrombou a grade nela existente e partiu o vidro daquela janela, conseguindo assim introduzir-se, no interior do referido escritório, começando a procurar o que lhe interessava no seu interior.

39) Nessas instalações, apoderou-se então de:

― €10,00 em numerário que se encontrava no interior de um cofre que o arguido previamente arrombou;

— Uma máquina aparafusadora de marca AEG, sem bateria, com o valor estimativo de €365,00;

— Dois discos de diamante, com o diâmetro de 400mm, no valor de €300,00;

— Seis discos de diamante da marca “Pissarra”, com o diâmetro de 125mm, com o valor de €114,00;

— Seis mós de diamante com 150mm de diâmetro, com o valor estimativo de €230,00;

— Algumas fitas métricas da marca “Stanley”, em valor que não foi possível apurar;

Que retirou do interior daquelas instalações e levou consigo.

40) Com o arrombamento da referida janela causou o arguido à ofendida um prejuízo patrimonial no valor de €188,50.

41) Até à presente data, sem qualquer causa justificativa, o arguido não indemnizou total ou parcialmente a ofendida, que se encontra assim patrimonialmente lesada no correspetivo montante.

42) O arguido agiu deliberadamente, com a intenção pré-ordenada de integrar no seu património os objetos acima descritos de que se apoderou, tendo atuado na execução de um plano por si delineado e executado, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que tais objetos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e em prejuízo do dono.

43) Sabia que não podia entrar e permanecer no interior daquelas instalações àquela hora, por aqueles meios e objetivos e que ao forçar o gradeamento e partir o vidro da janela daquele estabelecimento lhe agravava a responsabilidade.

44) Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punível por lei.

[Apenso C: NUIPC 123/23.8...]

45) Depois de sair do escritório da supra referida empresa, o arguido AA dirigiu-se à residência sita na Rua ..., nesta Comarca de ..., propriedade de NN, onde chegou cerca das 21:30 horas, com intenção de fazer seus e de integrar no seu património, dinheiro, valores ou objetos que lá encontrasse e fossem do seu interesse.

46) Ali chegado, em execução de um plano previamente delineado, o arguido AA abeirou-se da porta de entrada principal da referida residência, que se encontrava encostada, conseguindo introduzir-se no seu interior sem provocar quaisquer danos, começando a procurar o que lhe interessava pelas diversas divisões.

47) Na referida residência, o arguido apoderou-se então de cinco casacos (kispos), de valor não concretamente apurado.

48) Quando estava já a sair da residência, o arguido cruzou-se com a menor OO, que ali reside, fugindo de imediato do local.

49) Até à presente data, sem qualquer causa justificativa, o arguido não indemnizou total ou parcialmente a ofendida, que se encontra assim patrimonialmente lesada no correspetivo montante.

50) Não foi possível, até à presente data, recuperar os objetos subtraídos à ofendida.

51) O arguido agiu deliberadamente, com a intenção pré-ordenada de integrar no seu património os objetos acima descritos de que se apoderou, tendo atuado na execução de um plano por si delineado e executado, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que tais objetos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e em prejuízo do dono.

52) Sabia que não podia entrar e permanecer no interior daquelas instalações àquela hora, por aqueles meios e objetivos e que não estava autorizado a entrar na referida residência.

53) Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punível por lei.

[Apenso D: NUIPC 124/23.6...]

54) Seguidamente, em hora não concretamente apurada mas depois dos factos acima descritos entre a noite do dia 16.02.2023 e a madrugada do dia 17.02.2023, o arguido AA dirigiu-se ao “Café”, propriedade de PP, sito na Avenida ..., nesta Comarca ..., com intenção de fazer seus e de integrar no seu património, dinheiro, valores ou objetos que lá encontrasse e fossem do seu interesse.

55) Ali chegado, em execução de um plano previamente delineado, o arguido AA deslocou-se para as traseiras do referido estabelecimento e, por forma não concretamente apurada, partiu o vidro ali existente, retirou a lã de vidro e partiu o pladur que ali existia, conseguindo assim introduzir-se, no interior do referido estabelecimento, começando a procurar o que lhe interessava pelas diversas divisões.

56) Nessas instalações, apoderou-se então de:

― €150,00 em numerário que se encontravam num armário de apoio à cozinha;

— €50,00 em numerário que se encontrava na caixa registadora do estabelecimento;

— €100,00 em numerário que se encontrava numa caixa castanha, junto à caixa registadora do estabelecimento (dinheiro proveniente da venda de “raspadinhas”); — €55,00 em numerário, que se encontrava num saco transparente, junto da caixa registadora do referido estabelecimento;

— “Raspadinhas” vendidas e por vender, no valor total de €580,00 que se encontravam numa pasta com a inscrição “Tabacaria...Lda.”;

— Dinheiro e tabaco no valor de €350,00, através do arrombamento da máquina de tabaco existente no referido estabelecimento, propriedade da “Casa...”, representada por HH;

Que retirou do interior daquelas instalações e levou consigo.

57) Com o arrombamento da referida parede causou o arguido à ofendida um prejuízo patrimonial em valor não concretamente apurado.

58) Com o arrombamento da referida máquina de tabaco, causou o arguido um prejuízo patrimonial no valor de €600,00.

59) Até à presente data, sem qualquer causa justificativa, o arguido não indemnizou total ou parcialmente os ofendidos, que se encontram assim patrimonialmente lesados nos correspetivos montantes.

60) No referido dia 17.02.2023, cerca das 01:30 horas, a 3.ª Equipa de Intervenção e Fiscalização Policial da 2.ª Divisão da Polícia de Segurança Pública ... abordou o arguido quando o mesmo se encontrava no interior do veículo de matrícula ..-..-PV no Largo ..., em local próximo do ....

61) Aquando da abordagem o arguido foi questionado acerca da posse de algo de ilícito, tendo o mesmo entregue substâncias estupefacientes que foram apreendidas no NUIPC 102/23.5..., que o mesmo disse ter adquirido momentos antes no ....

62) Sujeito a revista, foi encontrado no interior de uma bolsa a tiracolo que trazia consigo a quantia de €423,00 em numerário.

63) Realizada busca de segurança ao referido veículo, foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos e valores:

— Uma pasta de cor azul, com a inscrição “Tabacaria...Lda.”, contendo no seu interior 46 raspadinhas “ano do coelho”, no valor unitário de €1,00; 8 raspadinhas “ano para ganhar”, no valor unitário de €2,00; 4 raspadinhas “pé de meia”, com o valor unitário de €3,00; €207,70 em numerário;

— 4 maços de tabaco de marca Ventil, com o valor unitário de €5,00;

— 7 maços de tabaco de marca Português, com o valor unitário de €4,60;

— 1 maço de tabaco de marca John Player Special, no valor unitário de €4,90;

— 1 fita métrica da marca Stanley, Tylon 8m;

— 1 fita métrica de corpo redondo de marca Stanley;

— 1 fita métrica de marca FiberGlass Tape de 10 metros de cor azul;

— 1 fita métrica da marca Alyco de 3 metros de cor cinza e azul;

— 1 fita métrica de marca Total, de cor azul.

64) Foi ainda apreendido o casaco / kispo de cor escura da marca “Benetton”, com emblema colorido da referida marca na manga esquerda, que o mesmo vestia e que foi o por si utilizado nos furtos acima referidos.

65) Não foi possível, até à presente data, recuperar quaisquer outros objetos e valores subtraídos aos acima identificados ofendidos.

66) O arguido agiu deliberadamente, com a intenção pré-ordenada de integrar no seu património os objetos acima descritos de que se apoderou, tendo atuado na execução de um plano por si delineado e executado, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que tais objetos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e em prejuízo do dono.

67) Sabia que não podia entrar e permanecer no interior daquelas instalações àquela hora, por aqueles meios e objetivos e que ao partir o vidro e danificar a parede daquele estabelecimento lhe agravava a responsabilidade.

68) Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punível por lei.

[Apenso E: NUIPC 129/23.7...]

69) Na madrugada do dia 18 de Fevereiro de 2023, cerca das 00:18 horas, o arguido AA, conduzindo o veículo de marca FIAT, com a matrícula ..-..-PV, dirigiu-se ao estabelecimento “Adeja...”, explorado por QQ, sito na Rua ..., nesta Comarca de ..., com intenção de fazer seus e de integrar no seu património, dinheiro, valores ou objetos que lá encontrasse e fossem do seu interesse.

70) Ali chegado, em execução de um plano previamente delineado, o arguido AA abeirou-se da janela existente na cozinha do referido estabelecimento e, por forma não concretamente apurada, partiu o vidro da referida janela, conseguindo, assim, introduzir-se no interior do referido estabelecimento, começando a procurar o que lhe interessava pelas diversas divisões.

71) Nessas instalações, apoderou-se então de:

― 10 Kg de café, que se encontravam debaixo do balcão, no valor de €180,00;

— €200,00 em numerário que se encontrava na caixa registadora;

— Um telemóvel de marca Samsung, modelo Gala, de cor preta, com o IMEI ...52, no valor estimativo de €249,99;

— Uma caixa 4 kg de camarão cozido, no valor de €48,00;

— Uma embalagem de 13 kg de coração de alcatra, no valor estimativo de €170,00;

— Maços de tabaco no valor de €199,10 e €145,00 em numerário que se encontravam na máquina ali existente, propriedade de HH;

Que retirou do interior daquelas instalações e levou consigo, tendo ali permanecido cerca de uma hora.

72) Com o arrombamento da referida janela causou o arguido aos ofendidos um prejuízo patrimonial no valor de €150,00.

73) Com o arrombamento da referida máquina de tabaco causou o arguido ao ofendido HH um prejuízo no valor de €250,00.

74) Até à presente data, sem qualquer causa justificativa, o arguido não indemnizou total ou parcialmente o ofendido, que se encontra assim patrimonialmente lesado nos correspetivos montantes.

75) Não foi possível, até à presente data, recuperar quaisquer objetos e valores subtraídos ao ofendido.

76) O arguido agiu deliberadamente, com a intenção pré-ordenada de integrar no seu património os objetos acima descritos de que se apoderou, tendo atuado na execução de um plano por si delineado e executado, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que tais objetos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e em prejuízo do dono.

77) Sabia que não podia entrar e permanecer no interior daquelas instalações àquela hora, por aqueles meios e objetivos e que ao forçar e partir o vidro da janela daquele estabelecimento lhe agravava a responsabilidade.

78) Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punível por lei.

79) Na sequência dos factos acima descritos, foi determinada a detenção fora de flagrante delito do arguido e, bem assim, busca domiciliária às residências na sua disponibilidade.

80) Realizadas as referidas buscas domiciliárias, nada foi apreendido.

81) No dia 06.03.2023, foi o arguido localizado num parque de estacionamento localizado na Rua ..., em ..., no interior do veículo com a matrícula ..-..-PV.

82)Realizada busca ao referido veículo, foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos:

— Um par de luvas de cor preta da marca Nike;

— Uma luva da mão direita da marca “Safety Jogger”;

— Uma luva da mão esquerda de cor cinza, da marca “Hercules”;

— Uma chave de fendas cm o cabo de cor verde e laranja;

— Um alicate com o cabo de cor amarelo e preto;

— Um par de sapatilhas da marca “Fila”, tamanho 44;

— Oito bolas transparentes contendo no seu interior um papel com uma letra ou um número;

— Um alicate de pontas redondas;

Objetos que o arguido utilizou para a prática dos factos supra descritos.

83) Em todas as ocasiões acima descritas, o arguido agiu deliberadamente, com a intenção pré-ordenada de integrar no seu património os objetos, valores e quantias em dinheiro acima descritos de que se apoderou, tendo atuado na execução de um plano por si delineado e executado, para melhor assegurar o êxito das suas intenções, não obstante saber que tais objetos, valores e dinheiro não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e em prejuízo dos respetivos donos.

84) Sabia que não podia entrar e permanecer no interior daqueles locais àquelas horas, por aqueles meios e objetivos e que ao arrombar os locais onde entrou e entrar na acima referida residência da forma que o fez lhe agravava a responsabilidade.

85) Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente com a perfeita consciência de que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.

86) O arguido foi já condenado:

 no processo n.º 21/..., na ..., por sentença proferida em 01-06-2021 e transitada em julgado em 04-08-2021, em pena de multa por infração relacionada com tráfico de estupefacientes não destinado exclusivamente ao consumo pessoal praticado em 18-01-2020;

 no processo n.º 2021/..., na ..., por sentença proferida em 19-10-2021 e transitada em julgado em 27-12-2021, em pena de multa e suspensão da carta de condução por infrações ao código da estrada cometidas em 12-08-2020;

 no processo n.º 2022/..., na ..., por sentença proferida em 31-01-2022 e transitada em julgado em 17-03-2022, em pena de multa e pena de prisão de 2 anos por um crime de furto, nove crimes de furto após violação de propriedade privada e um crime de tráfico e outras infrações associadas a armas, munições e explosivos cometidos em 02-09-2020, 04-09-2020 e 10-11-2020;

 no processo n.º 2022/..., na ..., por sentença proferida em 18-02-2022 e transitada em julgado em 21-04-2022, em pena de multa e suspensão da carta de condução por infrações ao código da estrada cometidas em 16-01-2020;

 no processo sumário n.º 143/23.2... do juízo local de pequena criminalidade do ..., por sentença proferida em 13-02-2023 e transitada em julgado em 15-03-2023, na pena de 7 meses de prisão substituída por 230 dias de multa à taxa diária de € 5,70 pela prática, em 22-01-2023, de um crime de detenção de arma proibida, substituição que veio a ser revogada por decisão transitada em julgado em 08-04-2024;

 no processo comum coletivo n.º 744/18.0... do juízo central criminal de ..., por acórdão proferido em 19-06-2023 e transitado em julgado em 04-09-2023, na pena única de 4 anos de prisão efetiva pela prática, entre 30-10-2028 e 08-03-2020, de oito crimes de furto qualificado, um crime de furto qualificado tentado e três crimes de furto simples;

 no processo comum singular n.º 29/23.0... do juízo local criminal de ..., por sentença proferida em 01-02-2024 e transitada em julgado em 04-03-2024, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos com a condição de proibição de contactos com a assistente durante 2 anos e 6 meses pela prática, em 13-01-2023, de um crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogo.

87) O processo de desenvolvimento psicossocial de AA decorreu no seio do seu agregado familiar de origem, de modesta condição socioeconómica, na freguesia de ..., em .... Este agregado era composto pelos pais e por mais três irmãos, sendo o ambiente familiar caracterizado pelos seus elementos como positivo e orientado por valores e normas sociais. Neste contexto e tendo em vista a melhoria das condições financeiras do agregado, os progenitores optaram por emigrar para a ..., conjuntamente com os filhos, inclusive o arguido.

O trajeto escolar de AA pautou-se pelo desinteresse pela aprendizagem, pela existência de problemas de comportamento e pelo absentismo escolar, tendo concluído apenas o 4º ano de escolaridade, perspetivando a integração laboral. A este respeito, ao longo do seu percurso de vida, AA desenvolveu atividade profissional como operário no setor da construção civil, nomeadamente como calceteiro, tanto em Portugal, como na ..., país terá permanecido entre os 20 e os 28 anos de modo ininterrupto e, mais tarde, por outro lapso temporal mais curto (2/3 anos).

No entanto, a trajetória de vida do arguido foi negativamente afetada pelo consumo de estupefacientes, com inicio em idade precoce (14 anos) e gradual vinculação e agravamento do consumo e dependência, que interferiu negativamente na sua condição pessoal, familiar e profissional, traduzida em períodos de destruturação do seu quotidiano e na aproximação a grupo de pares associados ao mesmo estilo de vida e a comportamentos delinquentes. Nesta sequência, surgem os contactos com o sistema de justiça penal. Foi preso no Estabelecimento Prisional ... em 21.07.2021, tendo em 03.08.2021 sido transferido para o Estabelecimento Prisional de ... e em 05.08.2021 foi entregue às autoridades ... para cumprimento de uma pena privativa da liberdade naquele país.

Atualmente, o pai de AA mantém-se na ..., inserido profissionalmente na área da construção civil, tendo a mãe falecido há aproximadamente 3 anos. A irmã (RR) optou por regressar a Portugal, fixando-se na residência de família.

À data dos factos, AA mantinha relação afetiva com SS. com quem manteve união de facto na ... e ulteriormente em Portugal, inseridos no meio comunitário de origem (...). Esta relação foi marcada por ciclos de separações e reconciliações, sendo as ruturas relacionadas com recaídas do arguido no consumo de estupefacientes e no acentuar da sua desorganização pessoal. A problemática relacional existente entre o casal deu inclusivamente origem a processo-crime por crime de violência doméstica. O casal habitava uma habitação arrendada sita na Rua ..., em ..., juntamente com os filhos da companheira, com 16 e 3 anos. O agregado subsistia maioritariamente com o recurso à prestação familiar atribuída aos menores no valor aproximado de 300€, bem como dos rendimentos por si auferidos como calceteiro, numa média de 50€/dia. Todavia, o casal veio a separar-se definitivamente em finais de 2022, tendo nesta fase, AA fixado residência na casa da família de origem, onde se encontrava o agregado familiar da irmã, causando desentendimentos entre todos os elementos e a saída desta da habitação, por referência a uma fase de profunda adição do arguido.

AA deu entrada no Estabelecimento Prisional ... em 08/03/2023, por determinação da sua prisão preventiva à ordem dos presentes autos; em 21-12-2023 foi ligado ao processo n.º 744/18.0... para cumprimento da pena de 4 anos de prisão em que aí foi condenado. Em meio prisional, AA tem mantido um comportamento revelador de algumas dificuldades em se adequar ao normativo disciplinar vigente, uma vez que em 19/05/2023 foi punido com 10 dias de permanência obrigatória em alojamento por posse de telemóvel com cartão de ativação, um rádio modificado para carregamento do mesmo, bem como por negócios não autorizados; e em 07/07/2023 foi também punido com 8 dias de permanência obrigatória no alojamento por comportamento inadequado e disruptivo para com uma oficial de justiça, durante uma saída ao exterior e posteriormente para com o comissário prisional.

AA não mantém ocupação em atividades que lhe permitam manter um quotidiano prisional estruturado, quer a nível laboral, quer formativo. Paralelamente, não beneficia de visitas por parte dos familiares.

Na sequência da atual medida coativa aplicada a AA, a irmã regressou novamente à morada de família e o arguido não tem autorização para habitar naquela residência, decisão motivada pelos comportamentos desajustados e pela adoção de um estilo de vida associado ao consumo de estupefacientes e conduta pró-delinquente, com desgaste emocional no núcleo familiar.

AA é capaz de identificar a necessidade de se manter afastado de ambientes associados ao abuso de estupefacientes, todavia revela ausência de critica quanto ao acompanhamento especializado na área da toxicodependência, o que tem interferido negativamente na sua trajetória de vida. A ausência de critica face à problemática aditiva compromete o adequado tratamento, pelo que, até à data, o arguido ainda não foi sujeito a uma intervenção estruturada.

Vivencia atualmente uma situação económica precária, não estando atualmente a trabalhar em meio prisional, único rendimento possível para as suas despesas pessoais, assim como não possui condições económicas para sua subsistência de modo autónomo em meio livre.

*

Factos não provados:

A – No facto descrito em 46º, a porta da residência estava fechada com o trinco.

B – No facto referido em 47º, os casacos valiam pelo menos € 150,00.».

**

1. 1. Matéria de facto assente na seguinte motivação:

«O Tribunal baseou a sua convicção na apreciação crítica da prova produzida em audiência de julgamento, testemunhal, documental e pericial, tendo por pilar os princípios de apreciação da prova ínsitos nos artigos 127º e 163º do Código de Processo Penal.

O arguido optou por não prestar declarações, opção similar à que havia tomado em primeiro interrogatório judicial.

Sucede que AA é sobejamente conhecido pelas autoridades policiais da zona em que se insere e tal foi determinante para a sua associação a quase todos os factos. Vejamos um a um:

NUIPC 1094/22.3... (factos 1) a 10))

A testemunha CC, exploradora do estabelecimento, fechou a sede na noite anterior pelas 23:50 horas e apercebeu-se na manhã do dia 28-12-2022 que as grades das janelas tinham sido cortadas e levantadas, os vidros das janelas partidos, o interior remexido: encontravam-se alimentos e moedas no chão, uma máquina de venda de batatas fritas estava partida e outra máquina tinha desaparecido (cfr. imagens de fls. 7-8 e relatório tático de inspeção judiciária de fls. 14-20 dos autos principais). Sendo quem diariamente atendia no estabelecimento e provia pelo abastecimento, atestou os bens furtados e respetivo valor, bem como que nada foi recuperado.

DD e EE, respetivamente empresário grossista de máquinas de tabaco e jogos Santa Casa e proprietário de máquinas de chocolates e batatas fritas, confirmaram o ocorrido quanto às suas máquinas e respetivos valores nos termos provados.

Assente a factualidade, restava a sua associação ao arguido, que nos foi trazida de forma inequívoca pelo militar da GNR TT, instrutor do processo, suportado na análise das imagens de videovigilância extraídas do sistema instalado na sede e objetivadas a fls. 29-31, mais especificamente no fotograma n.º 11, cuja comparação com os traços físicos do arguido está plasmada a fls. 33, resultando do aditamento ao auto de notícia que acompanha as imagens que o arguido surge, enquanto decorre o furto, a espreitar a um postigo junto à caixa registadora.

Resulta ainda do depoimento de DD que a máquina de tabaco foi desaparafusada do chão e retirada do local, o que, pelo seu peso, só seria possível por mais do que uma pessoa, o que vai de encontro às imagens de fls. 29-31 e ao aditamento referido no sentido de terem sido vistas duas pessoas naquela madrugada na sede.

NUIPC 113/23.0... (factos 11) a 23))

FF, gerente do Café..., tendo tomado conhecimento do assalto por uma funcionária pelas 7:00 horas do dia 12-02-2023, confirmou a grade e a janela do armazém, a cerca de 0,5 metro do solo, arrombadas, os bens em falta por referência à lista que forneceu à GNR a fls. 5 desse NUIPC (apenso B) e respetivos valores.

HH e EE, respetivamente proprietários das máquinas de tabaco e de chocolates, atestaram os factos a elas atinentes.

Quanto à autoria dos factos, se as imagens do suporte de fls. 27-30 desse NUIPC não permitem com muita nitidez percecionar o rosto do autor (de boné e com um lenço a tapar-lhe parcialmente a face), permitem sim ver a sua indumentária: casaco preto, calças azuis escuros e sapatilhas escuras com rebordo na sola branco e indicação branca da marca na pala.

Ora, na tarde seguinte o arguido foi abordado pelos militares da GNR II e JJ em ... (localidade do Café...) no interior do veículo Fiat 600 com a matrícula ..-..-PV de sua propriedade (cfr. certificado de matrícula de fls. 448 os autos principais) – veículo que o arguido sempre utilizava, até para dormir durante o dia, o que foi atestado pelo militar TT e pelo amigo do arguido BB. Nesse momento o arguido estava a consumir o conteúdo de uma garrafa Ballantine’s (semelhante às retiradas do Café... na noite anterior) e envergava um casaco preto e umas sapatilhas pretas com a inscrição “Fila”, em tudo idênticas às visualizadas nas imagens recolhidas no café, conforme atestaram os militares que o abordaram. Tinha ainda na sua posse € 160,00 (8x€5,00 + 2x€10,00 + 5x€20,00), o que, não lhe sendo conhecida à data atividade profissional pelos militares da GNR e pelo amigo BB e, conforme resulta do seu relatório social e deste último depoimento, vivendo em função dos consumos de estupefacientes, nos leva com segurança a concluir, relacionando a posse desse numerário com a garrafa igual à furtada e as sapatilhas com as mesmas caraterísticas das usadas pelo autor do furto no café, que foi o arguido esse autor e do café provieram as quantias de que dispunha no veículo.

NUIPC 119/23.0... e NUIPC 116/23.5... (factos 24) a 36))

KK, gerente da BW..., confirmou o arrombamento das portas e moedeiros em inox das máquinas de lavagem de veículos (cfr. fls. 6-7 do NUIPC 119/23.0...), o habitual apuro diário e o valor da reparação, ancorado no orçamento de fls. 456 dos autos principais.

De fls. 11-26 (fotogramas extraídos do sistema de videovigilância do centro de lavagem) é perfeitamente visível que o autor dos factos, com chave de fenas e berbequim na mão, vestia um casaco escuro com um símbolo na manga esquerda (“Benetton”) e usava umas sapatilhas escuras com sola branca. Acresce que, conhecido das autoridades, por TT, UU, VV e WW é reconhecida no videograma a forma de caminhar do arguido, que balanceia as pernas para fora, e a sua compleição física.

Logo após esse furto na BW... (o arguido abandona essas instalações pouco antes das 2:00 horas – cfr. imagem 31 de fls. 16 desse NUIPC e informação de atraso na hora registada de fls. 10), foi assaltado o Café... situado do lado oposto da mesma rua.

LL, proprietário do estabelecimento, apercebeu-se na manhã seguinte do vidro da porta partido e dos bens em falta, cujos valores confirmou, e MM, chefe de vendas da ...Distribuição Sa., proprietária da máquina de tabaco, atestou o seu estroncamento e inutilização e valores daí furtados por referência aos seus registos diários.

Foram ainda valorados o relatório tático de inspeção judiciária e respetivas fotografias de fls. 4-8 do NUIPC 116/23.5... e as imagens de videovigilância de uma residência no local a fls. 10-15 do mesmo NUIPC, de onde, com os depoimentos já referidos dos quatro militares que sem hesitação reconheceram o arguido pelos traços físicos e forma de se locomover, se extrai de forma límpida que o mesmo saiu diretamente da BW... para o Café..., precisamente os dois locais assaltados nessa noite.

Dois dias depois, a 17-02-2023, foi o arguido abordado numa operação policial no ... e, sujeito o veículo PV a busca, foi, além do mais, apreendido o casaco escuro com emblema “Benetton” na manga esquerda (cfr. auto de notícia e auto de apreensão de fls. 193-197 dos autos principais e fls. 40 do NUIPC 122/23.0...), em tudo idêntico ao usado na noite de 15-02, o que reforça a nossa convicção, aliada ao imediatamente anterior furto na BW..., em que foi reconhecido, e ao visualizado trajeto efetuado pelo arguido na direção do café assaltado na mesma noite, que foi ele quem perpetrou esses factos.

NUIPC 122/23.0... (factos 37) a 44))

XX, gerente da sociedade “S...Lda.” recebeu chamada de alarme da Securitas pelas 21.15 horas e, deslocando-se ao local, viu a grade da janela estroncada e o vidro partido e confirmou os bens e valores retirados.

Aí, no terraço próximo do local de tratamento de águas, conforme relatório tático de inspeção judiciária de fls. 20-28, foram recolhidas imagens de pegadas (cfr. fotogramas 2 a 4), que vieram em sede pericial a concluir-se ter sido produzidas por uma sapatilha de marca Fila, tamanho aproximado 43 (cfr. fls. 670 dos autos principais) e, por comparação com as sapatilhas apreendidas ao arguido em 06-03-2023 (cfr. autos de busca e apreensão de fls. 331-333), conclui-se como provável que esses vestígios/pegadas tenham resultado da sapatilha do pé direito do arguido (cfr. relatório pericial de fls. 904-908, vestígios B1 e B2).

Acresce que no dia seguinte ao furto, na operação policial já referida no ... em 17-02-2023, foram apreendidas ao arguido, que as fazia transportar no veículo PV, duas fitas métricas Stanley, precisamente a marca de fitas furtadas na S...Lda., sem que ao arguido fosse conhecida qualquer atividade profissional que delas necessitasse (aliás, nenhuma atividade em absoluto).

NUIPC 123/23.8... (factos 45) a 53))

Nessa mesma noite, como sublinharam NN e a sua filha menor de 10 ano de idade OO, o arguido foi visto a sair da residência destas com 5 casacos do filho de NN. Entrou por uma porta encostada, sendo que era frequentador da casa por ser amigo do proprietário dos casacos. Foi essa circunstância de ser seu conhecido desde pequena, aliada ao facto de o arguido se encontrar de rosto destapado, que levou OO, primeira pessoa a entrar em casa, a reconhecê-lo sem a menor dúvida quando o viu a passar na varanda na zona traseira e a saltar para o campo, munido dos casacos, tendo depois a família percebido que havia remexido as gavetas dos quarto os filhos de NN.

Confrontada com as fotografias de fls. 15 e 18 do NUIPC 123/23.8..., já que nessa altura o arguido fora afastado da sala de audiências, OO não hesitou em identificar o “AA”.

Já quanto ao valor e caraterísticas dos casacos, não foi feita a menor referência por nenhuma das duas testemunhas, nem junto qualquer comprovativo da aquisição, razão pela qual não dispomos de elementos que corroborem que valiam, em conjunto, € 150,00 nem qualquer outro valor.

Na mesma noite – e cumpre aqui referir que pelo militar TT foi frisado que estes três locais (S...Lda., residência de NN e Café) distam entre si não mais do que 200 metros em linha reta – houve um terceiro furto, agora no Café, tendo PP, empregada de balcão, confirmado a quebra do vidro traseiro, a retirada do pladur e o arrastamento do armário da cozinha conforme imagens de fls. 10-11 e 20-24 desse NUIPC, bem como os bens furtados e respetivos valores (cfr. também relatório por si elaborado de fls. 13), sem recuperação de qualquer deles. É ainda de relevar o facto, relatado pela mesma, de as raspadinhas se encontrarem no interior de um saco com a indicação “Tabacaria...Lda.”, precisamente o saco que veio a ser encontrado no veículo do arguido na operação policial do dia seguinte (cfr. auto de notícia e auto de apreensão de fls. 193-197 dos autos principais e fls. 38 do NUIPC 122/23.0...))

PP destacou ainda que o arguido era cliente esporádico do café, por isso conhecido, e confrontada com o vídeo e os fotogramas de fls. 26-31 do NUIPC 124/23.6..., pareceu-lhe, sem certeza, identificá-lo no print 12.

Já certeza houve quanto à marca/pegada de calçado/sapatilha deixada numa folha de papel que se encontrava no chão do café (prints 5 e 7 de fls. 28 e 29), produzido, segundo relatório pericial de fls. 673-674, por sapatilha Fila e concluindo-se, segundo relatório pericial de fls. 904-908, que este vestígio A1 foi produzido pelas sapatilhas apreendidas ao arguido no dia 06-03-2013 (cfr. autos de busca e apreensão de fls. 331-333).

Baseou-se ainda o Tribunal na fatura da Tabacaria...Lda. quanto ao número e valor das raspadinhas a fls. 25 deste NUIPC e no depoimento de HH quanto ao valor retirado do noteiro da máquina de tabaco.

NUIPC 129/23.7... (factos 69) a 85))

QQ, gerente da Adeja..., foi o primeiro a chegar na manhã seguinte ao furto e deparou-se com o vidro da janela da cozinha partido e o interior remexido, confirmou bens e valores em falta, a máquina de tabaco estroncada e a falta de recuperação de qualquer bem (cfr. imagens de fls. 7 e relatório tático de inspeção ocular e respetivos fotogramas de fls. 9-13); HH atestou o arrombamento da máquina de tabaco e os valores e maços de tabaco daí retirados, bem como o valor necessário para a reparação da máquina.

Das imagens de videovigilância recolhidas a fls. 15-17 e respetivo suporte vídeo é visível a chegada à Adeja... momentos antes do furto do veículo do arguido e a sua saída posterior cerca de 45 minutos depois. Este veículo, como referiram todos os militares inquiridos e a testemunha BB, amigo do arguido e que chegou a acolhê-lo em sua casa, era usado por ele que era, aliás, o seu proprietário registado.

À míngua de qualquer explicação dada por este para que o PV fosse utilizado por outrem, de noite, separado que estava da companheira, vivendo sozinho, tendo sido abordado três vezes nestes autos nesse veículo (12-02-2023, 17-02-2023 e 06-03-2023), o que denota que era o seu utilizador habitual, e tendo os factos sido praticados em moldes em tudo idênticos aos anteriores num período de profunda adição de estupefacientes do arguido, tendo-lhe até sido apreendidos após esses factos luvas, chave de fendas e alicates, bens comummente usados na prática deste tipo de ilícito e arrombamento, não hesitamos em concluir que foi o arguido quem assaltou também a Adeja....

Em todos os episódios descritos, revelada até pelo facto de ter efetivamente logrado apoderar-se deles, é evidente a intenção do arguido de fazer seus bens e valores que não lhe pertenciam, ciente de que não estava autorizado pelos respetivos proprietários, tanto que, à exceção do NUIPC 123/23.8..., teve que forçar a sua entrada nos estabelecimentos e nos noteiros das máquinas, e de que, como é do conhecimento geral, as suas condutas eram proibidas por lei.

Quanto ao NUIPC 123/23.8..., encontrando-se a porta encostada, não teve que forçar a sua abertura, mas bem sabia não estar autorizado a entrar, o que é bem patente no facto de ter fugido quando se apercebeu da presença de alguém, no caso OO.

Baseou-se ainda o Tribunal:

- nos autos de busca e apreensão juntos aos autos;

- quanto aos antecedentes criminais, no último CRC junto aos autos;

- e, quanto às suas condições de vida, no relatório social de fls. 882-884».

2. Avancemos para a apreciação das questões antes enunciadas e que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra da sua precedência lógica também ali referida.

2. 1. A invalidade/nulidade do acórdão recorrido.

Nas conclusões 1ª a 10º e 12ª, o arguido suscita a questão da invalidade do acórdão recorrido, que classifica, ora como nulidade, ora sem especificação da respetiva natureza, a que atribui consequências também variáveis entre a repetição do julgamento e a sua mera reformulção.

Efetivamente, como acima enunciado, suscita: (a) a nulidade do acórdão por não comunicação de alteração dos factos, cuja sanação implica novo julgamento [conclusões 1ª, 2ª e 12ª]; (b) a nulidade do acórdão por omissão de referência e consideração da contestação e consequente violação dos direitos de defesa, cuja sanação implica a reformulação do acórdão [conclusões 3ª a 5ª e 12ª]; (c) a invalidade do acórdão por omissão de “real” exame crítico da prova [conclusões 6ª e 12ª]; (d) a invalidade do acórdão por ter incorrido nos vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [conclusões 7ª e 12ª]; (e) a invalidade do acórdão por tratamento iníquo e injusto e atuação contra legem, ao apontar ao arguido o ónus de explicitar elementos que serviriam para a sua autocondenação [conclusões 8ª, 9ª e 12ª]; (f) a invalidade do acórdão por agravar a culpa expondo vários confrontos anteriores sem ter o cuidado de se informar quais e quantos desses crimes se encontram extintos [conclusões 10ª e 12ª].

Pese embora na resposta apresentada pelo Ministério Público junto do tribunal recorrido se tenha refutado a verificação de qualquer daqueles vícios, no parecer emitido no STJ, que acompanhou e sufragou genericamente tal posição, o senhor Procurador-Geral Adjunto subscritor divergiu da mesma quanto à verificação da nulidade do acórdão recorrido por não cumprimento do dever de comunicação da alteração da qualificação jurídica operada no acórdão, face à pronúncia, relativamente aos factos do apenso C (NUIPC 123/23.8...), pugnando pela sua declaração e consequente reformulação do acórdão, sem necessidade de repetição do julgamento.

Em caso de procedência dessa questão ou de qualquer das demais suscitadas pelo recorrente no sentido da invalidade do acórdão, deverá ser reaberta a audiência e/ou prolatado novo acórdão, pelo mesmo tribunal e juízes ou, não sendo possível a intervenção destes, pelo mesmo tribunal com a composição atual, prejudicando o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso, nomeadamente a da medida das penas de prisão aplicadas, parcelares e única, e a suspensão da execução desta última e outras com elas relacionadas, como será o caso da pluralidade ou unidade criminosa a que acima se aludiu e nos termos aí explicitados.

Por isso, atendendo aos princípios da economia processual e da concentração dos atos, apreciar-se-ão todas elas discriminadamente e pela ordem indicada, de molde a estabilizar-se a validade do acórdão recorrido ou daquele que venha a ser proferido na sequência do presente recurso.

*

2. 1. 1. A nulidade do acórdão por não comunicação de alteração dos factos, cuja sanação implica novo julgamento

Nas conclusões 1ª, 2ª e 12ª, o arguido e recorrente, em harmonia com os fundamentos da respetiva motivação, considera que o acórdão recorrido, ao condená-lo por um crime de furto simples, rectius, desqualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1, 204º, n.ºs 1, al. f), e 4, e 202º, al. c) do Código Penal (CP) e por um crime de violação de domicílio p. e p. pelo artigo 190º, n.ºs 1 e 3, do mesmo diploma legal, relativamente aos factos do Apenso C (NUIPC 123/23.8...), diferentemente do único crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1, e 204º, n.º 1, al. f), do CP, que lhe vinha imputado na pronúncia por referência aos factos do mesmo Apenso C, incorreu na nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, al. b), do CPP, por referência ao artigo 359º do mesmo CPP, nulidade de que decorre a necessidade de repetição do julgamento, a fim dessa alteração, que considera de factos e substancial, ser comunicada aos sujeitos processuais, com concessão de prazo para a sua defesa, se requerido.

Vejamos.

Segundo o parecer do Ministério Público no STJ, tal como na resposta ao recurso, a referência ao artigo 359º do CPP não está correta, antes devendo o caso analisar-se à luz do artigo 358º do mesmo Código, visto a situação não configurar uma alteração de factos, substancial ou não substancial, mas antes uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos que, em seu entender se mantiveram intocados.

No entanto, nessas intervenções, o Ministério Público diverge quanto aos efeitos dessa mera alteração da qualificação jurídica, propendendo na resposta para a desnecessidade de qualquer comunicação, por não ter havido agravação da posição do arguido, cujas garantias de defesa se mantiveram na plenitude, ao passo que no parecer se entende terem elas sido postergadas, na medida em que o crime de violação de domicílio protege bens jurídicos distintos dos do crime de furto, como, aliás, se afirma no acórdão recorrido, e a lei não distingue entre situações que agravem ou não a posição processual do arguido, impondo sempre que lhe seja comunicada qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos e concedido prazo para a defesa, se assim o requerer, sob pena de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379º, n.º 1, al. b), e 358º, n.ºs 1 e 3, do CPP, como conclui ter ocorrido neste caso, com a consequente necessidade de reformulação do acórdão, sem beliscar a validade do julgamento.

Sem dúvida que a posição sustentada pelo Ministério Público no parecer emitido neste STJ é a que melhor se compagina com as concretas circunstâncias do caso em apreço, em linha, de resto, com a jurisprudência comum e constitucional que convoca e com a as posições doutrinárias assumidas, respetivamente, por Sandra Oliveira e Silva e Rui Soares Pereira, com Paulo Pinto de Albuquerque, no ponto 13 da nota prévia aos artigos 358º e 359º nas notas 8, 18 e 19 ao primeiro desses artigos e na nota 2, e) i), 12 e 13, ao artigo 379º, no “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 5ª Edição atualizada, ..., UCP Editora, 2023, e Oliveira Mendes, em anotação aos mesmos preceitos no “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, Almedina, 2021, e a vasta resenha jurisprudencial de ambos constante, incluindo do Tribunal Constitucional (TC) e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), a que se adere e aqui se seguem de perto.

Só que, diferentemente do sustentado naquele parecer e em conformidade com as referidas posições doutrinárias, as concretas circunstâncias verificadas neste caso e que redundaram na condenação do arguido como autor dos dois mencionados crimes de furto simples (desqualificado) e de violação do domicílio, em substituição do de furto qualificado por que fora pronunciado, integram uma verdadeira alteração de factos, embora não substancial, nos termos das citadas disposições legais do CPP, conjugadas com a do seu artigo 1º, al. f), resultante da redução dos factos da pronúncia e da consequente alteração da qualificação jurídica dos que se mantiveram no acervo factual provado, como resulta inequívoco do confronto entre os pontos 45 a 53 da matéria de facto indiciariamente imputada ao arguido na pronúncia e a dos pontos 45 a 53 da matéria de facto provada e alíneas A e B da não provada no acórdão condenatório e respetiva (des)qualificação jurídico-criminal dos mesmos factos nele operada, sem que a mesma fosse resultado de qualquer pedido ou intervenção do recorrente nesse sentido.

Essa diferença e contexto reforçam o acerto da posição sustentada naquele parecer, afastando qualquer dúvida sobre a obrigatoriedade de, in casu, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379º, n.º 1, al. b), 358º, n.ºs 1 e 3, e 1º, al. f), a contrario, do CPP, a alteração não substancial dos factos, por redução da matéria de facto imputada na pronúncia, e consequente alteração da qualificação jurídica dos que dela se mantiveram no elenco dos provados no acórdão recorrido serem comunicadas ao recorrente e arguido antes do encerramento da audiência e, se por ele requerido, concedido prazo para defesa relativamente a uma e outra dessas alterações e produção da prova pertinente eventualmente requerida, sob pena de nulidade do acórdão e baixa do processo ao tribunal recorrido para a respetiva sanação, reabrindo-se a audiência para aqueles efeitos e reformulando-se o acórdão em conformidade, com intervenção do mesmo tribunal e dos mesmos juízes, salvo impossibilidade destes, hipótese em que se manterá o mesmo tribunal com a sua atual composição.

Não tendo neste caso sido observadas essas obrigações, como evidenciam as atas das 3 sessões da audiência de discussão e julgamento, que tiveram lugar nos dias 30.01, 10.04 e 23.04.2024 (referências 94265011, 94988608 e 951207239, respetivamente), o acórdão recorrido mostra-se inquinado pela referida nulidade, impondo-se a baixa do processo ao ..., para os referidos efeitos.

Termos em que procede esta primeira questão.

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2. 1. 2. a nulidade do acórdão por omissão de referência e consideração da contestação e consequente violação dos direitos de defesa, cuja sanação implica a reformulação do acórdão

O recorrente, nas conclusões 3ª a 5ª e 12ª do recurso, também de modo concordante com a respetiva motivação, suscita a nulidade do acórdão por omissão de referência e pronúncia sobre a contestação que oportunamente apresentou, em prejuízo das suas garantias de defesa.

E, na verdade, contrariamente ao que se consignou no relatório da decisão recorrida, em 6.12.2023 (referência 47345973/9248413), o arguido apresentou a seguinte contestação (transcrição):

«TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA ...

JUIZO CENTRAL CRIMINAL DE ...

JUIZ 5

PROCESSO COMUM (COLETIVO)

PROC. Nº 1094/22.3...

AA, arguido com os sinais dos autos, vem perante V. Exª., contestar, dizendo:

1. Não cometeu os crimes por que está acusado, pelo menos na formulação que lhe é conferida.

2. É bem considerado no local de residência.

3. Tem apoio familiar.

4. De qualquer modo oferece o merecimento do que se apurar em audiência, bem como das atenuantes que ao caso couberem.

PROVA:

I - Testemunhal: dos factos: toda a arrolada pela acusação

A defensora oficiosa»

E sobre ela, além da incorreta afirmação de que não tinha sido apresentada, nada se mostra refletido na decisão recorrida.

Por outro lado, se é certo que os pontos 1 e 4 da contestação nada de factual refletem, por isso não merecendo qualquer pronúncia do tribunal acerca dos mesmos, já os pontos 2 e 3 se referem a factos concretos relativos à inserção social e familiar do arguido, integrantes do objeto do processo e merecedores de apreciação e decisão pelo tribunal, sob pena de nulidade, conforme referem Rui Soares Pereira e Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. e loc, cit,, com ilustração jurisprudencial concordante, e que aqui também se acompanha, pois a prova ou não prova dos mesmos pode relevar, entre o mais, na escolha e dosimetria das penas, parcelares e única.

Essa nulidade, nos termos do artigo 122º do CPP, implica, neste caso, a invalidade do acórdão e a sua consequente reformulação no sentido de nele se conhecerem e decidirem aqueles factos, sem necessidade de reabertura da audiência, na medida em que a prova oferecida pelo arguido foi a da acusação, integralmente produzida em audiência de julgamento, a que acresceu a produzida por determinação do tribunal, designadamente a que resultou do relatório social, sem a colaboração do arguido, que não prestou declarações, salvo quanto aos seus elementos de identificação, conforme evidenciam as atas antes referenciadas.

É certo que, como refere o Ministério Público na resposta ao recurso, secundada pelo parecer emitido no STJ, tais factos foram averiguados e apreciados no acórdão recorrido, podendo considerar-se inócua e carecida de relevância justificativa de correção sanação aquela omissão do acórdão, que, de resto, qualifica como mero “lapso” do respetivo relatório, e que, assim sendo, nenhuma omissão de pronúncia e consequente nulidade se verifica nesta sede.

Com efeito, com base no relatório social, o acórdão levou à matéria de facto provada elementos factuais relativos à condição pessoal, social e familiar do arguido, como se vê do ponto 87 dos factos provados, mas não retirou daí qualquer consequência sobre a prova ou não prova dos factos alegados nos pontos 2 e 3 da contestação , nem se pronunciou expressa e inequivocamente sobre ter ficado provado ou não provado que o arguido “É bem considerado no local de residência” e que “Tem apoio familiar”, pronúncia que, como dito, pode relevar, pelo menos, para a escolha e determinação da medida das penas, parcelares e única.

Assim sendo, dispondo o tribunal de elementos suficientes, face ao teor do aludido relatório social, e considerando a necessidade de reformulação do acórdão já resultante da procedência da questão anterior e nos termos aí referidos, esta nulidade não implicará qualquer outra consequência que não seja a da reconfiguração da matéria de facto em conformidade com essa avaliação e pronúncia sobre tais factos e sua eventual relevância na escolha e dosimetria das penas, do mesmo passo que se procede à respetiva sanação, numa clara concretização do princípio da economia processual.

Procede, assim, também esta segunda questão.

*

2. 1. 3. a invalidade do acórdão por omissão de “real” exame crítico da prova

Nas conclusões 6ª e 12ª do recurso, o arguido suscita ainda a questão da nulidade do acórdão por falta de exame crítico da prova, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, al. a), do CPP, sendo que na correspondente motivação se espraia em considerações negativas sobre preconceitos e pré-juízos do tribunal acerca da sua pessoa e dos seus atos, refletidos nas questões seguintes.

Sem razão, no entanto,

O arguido é livre de interpretar ao seu jeito o que se escreveu no acórdão, mas essa leitura não tem necessária correspondência com a realidade, se e quando aquele for analisado de forma global e conjugada e não de modo desgarrado e truncado, como é o caso das frases/afirmações que tanta e severa crítica lhe merecem, ao ponto de considerar que, perante o crédito atribuído aos elementos da autoridade policial que procedeu à investigação e a “irritação” do tribunal pelo exercício do seu direito ao silêncio, “para isto, nem era preciso julgamento”, conforme consignou no ponto 19 da sua motivação.

Na verdade, as expressões constantes dos parágrafos 2º e 3º da motivação “O arguido optou por não prestar declarações, opção similar à que havia tomado em primeiro interrogatório judicial”, e “Sucede que AA é sobejamente conhecido pelas autoridades policiais da zona em que se insere e tal foi determinante para a sua associação a quase todos os factos (…)”.não têm, na economia do acórdão em geral e desse segmento em particular o sentido que o arguido lhes pretende atribuir, antes se perfilando como desenvolvimento do 1º parágrafo, em que se consignou “O Tribunal baseou a sua convicção na apreciação crítica da prova produzida em audiência de julgamento, testemunhal, documental e pericial, tendo por pilar os princípios de apreciação da prova ínsitos nos artigos 127º e 163º do Código de Processo Penal”.

O que claramente se mostra explicitado na análise individualizada dos factos atinentes a cada um dos processos apensados, na qual, perante situações em que, apesar de a presença e participação do arguido não ter sido diretamente percecionada por qualquer das testemunhas ouvidas, proprietários e funcionários e/ou residentes dos estabelecimentos e habitações assaltadas, agentes policiais envolvidos na investigação e o seu amigo BB, o tribunal, conjugando os respetivos depoimentos com todo o restante acervo probatório recolhido e produzido em audiência, designadamente os relatórios de inspeção judiciária, imagens - fotogramas e videogramas – que o mostravam e ao seu veículo Fiat 600, com a matrícula ..-..-PV, com maior ou menor nitidez no local e hora dos acontecimentos, relatório pericial do LPC (n.º ...47 – CBM ..80, de 29.02.2024), sobre marcas/impressões de sapatilhas recolhidas nalguns daqueles locais confrontadas com o rasto das sapatilhas usadas e apreendidas ao arguido, com resultado de probabilidade e de certeza, dos autos de revistas e buscas a que foi sujeito na sua pessoa e na residência e veículo referido e objetos aí apreendidos, indumentária usada, ferramentas apropriadas à prática dos factos e bens subtraídos, recorrendo também às presunções judiciais fundadas nas regras da experiência e do normal acontecer, formou a sua convicção no sentido de ter sido ele, sozinho e/ou acompanhado, pelo menos numa ocasião, a cometer os factos que lhe eram imputados na pronúncia..

Conclusão que se impunha perante tal acervo probatório, analisado segundo o princípio da livre apreciação da prova conjugado com as regras da experiência comum, tanto mais que nenhuma outra versão plausível dos acontecimentos foi trazida ao conhecimento do tribunal, nomeadamente pelo arguido, que, por ser a pessoa mais bem posicionada para evitar essas ilações, podia, querendo, ter apresentado essa tal versão alternativa e plausível que, mesmo que não totalmente convincente, pudesse fazer germinar uma dúvida razoável naquela convicção do tribunal, ao qual, perante a segurança e certeza adquiridas daquele modo, não cabe, em sua substituição, cogitar especulativamente quaisquer outras hipóteses sobre a verdade dos acontecimentos.

E é aqui que reside o erróneo entendimento do arguido acerca da “irritação” que o exercício do seu direito ao silencio teria provocado nos julgadores, pois, na verdade, não foi qualquer aversão ao exercício livre desse direito que os levou a concluir sobre a factualidade tal como plasmado na fundamentação, mas antes a sua certeza de que os factos assim aconteceram, adquirida nos descritos termos, numa correta interpretação do direito ao silencio do arguido, conforme, aliás, decorre explicitamente do interrogatório do arguido em audiência de julgamento e das amplas possibilidades de defesa que aí, como é de lei, lhe foram proporcionadas, com a correta informação da existência do direito e de cujo prevalência nenhum prejuízo para ele decorreria, a possibilidade de que fez uso de requerer a produção e a exibição de meios de prova em audiência e de, após as alegações, dizer o que entendesse em sua defesa.

Apesar disso, o recorrente manteve a vontade inicialmente manifestada de se remeter ao silêncio no exercício legítimo do correspondente direito e sem qualquer prejuízo da presunção da inocência de que todos os cidadãos gozam.

Mas o que desse exercício não é legítimo esperar é qualquer benefício, recaindo sobre o arguido a responsabilidade de arcar com as consequências que dessa estratégia processual possam advir, nomeadamente quanto à fortaleza dos meios de prova que, sem o seu contributo, possam conduzir a uma verdade processual que lhe seja desfavorável, obtida segundo as regras legais de produção e valoração da prova em processo penal, como aqui, indiscutivelmente aconteceu, e não em função de qualquer desvio a essas regras decorrente da “irritação” causada pelo exercício do direito ao silêncio.

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Como é sabido, o princípio da presunção da inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da CRP e o seu “contra face” do in dubio pro reo refletem-se necessária e transversalmente no processo penal, em particular no âmbito da produção e valoração da prova, impondo ao juiz que, qualquer non liquet seja decidido em favor do arguido. Nessa medida interferem também com o princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz, impondo-lhe que a apreciação da prova produzida, segundo as regras e dentro dos limites legais, seja motivada quanto ao respetivo valor probatório e contributo para a formação da sua convicção, diretamente ou em conjugação com as regras da experiência comum, ou seja, procedendo à indicação e exame crítico das provas, de modo a permitir o escrutínio interno e externo do percurso racional da formação da sua convicção para dar como provado ou não provado determinado facto.

O que, indiscutivelmente, o acórdão recorrido patenteia.

De facto, depois de elencar a matéria de facto que considerou provada e não provada, em que se incluíram as condições pessoais e os antecedentes criminais do arguido, expõe de modo cristalino e cabal os meios de prova produzidos, que diferenciou dos meios de obtenção de prova, considerados e valorados, todos examinados e debatidos em audiência de discussão e julgamento ou como tal considerados, nomeadamente algumas provas validamente pré-constituídas no processo, como os relatórios periciais, de inspeção judiciária, revistas, buscas e imagens recolhidas durante a investigação, em modo de foto e de videograma, com que foram diretamente confrontados os agentes policiais participantes e subscritores ouvidos em audiência de discussão e julgamento como testemunhas, o mesmo sucedendo com os ofendidos.

Meios de prova que se mostram exaustiva e especificadamente identificados na motivação e criticamente examinados ao pormenor, por referência aos factos abrangidos por cada um dos inquéritos apensados e aos bens subtraídos e estragos causados relativos a cada um deles, tudo concatenado com as regras da experiência comum e que permitiu a formação da convicção do tribunal para a fixação dos factos dados como provados e não provados.

Sem descurar a explicitação e ponderação da razão de ciência e credibilidade de cada um daqueles depoimentos e as razões que levaram o tribunal a dar-lhes crédito total ou apenas parcial, e permitiram formular um juízo concludente sobre a intervenção do arguido nos factos por que foi condenado, nomeadamente, os ditos relatórios e imagens, corroborados pelos agentes policiais e pelos bens, vestuário e instrumentos relacionados com a atividade delituosa em apreço, apreendidos aquando das revistas na sua pessoa e buscas no seu veículo e na sua residência, concatenados com as regras da experiência comum.

Da mesma forma que, quanto às condições pessoais e aos antecedentes criminais do arguido, cuidou de analisar o respetivo certificado de registo criminal e relatório social. No caso em apreço não se verifica, assim, qualquer violação dos princípios da presunção da inocência e da livre apreciação da prova convocados pelo recorrente, bastando para tanto ter em conta a fundamentação do acórdão recorrido, no qual, como dito, para além da indicação e identificação das provas consideradas, se procedeu ao seu exame crítico de modo objetivo e conjugado com as regras da experiência, numa cabal demonstração do iter racional percorrido na sua apreciação, valoração e contributo para a formação da convicção do tribunal, de molde a permitir o seu escrutínio externo pelos sujeitos processuais e pelos tribunais de recurso, sem que delas ressalte qualquer dúvida capaz de justificar a intervenção da “contra face” daquele princípio, é dizer o do in dubio pro reo, quanto a essa convicção, tendo sido plenamente respeitado o disposto nos artigos 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 127º do CPP.

Do exposto impõe-se concluir que o acórdão é exemplarmente cumpridor do especial dever de fundamentação das sentenças estabelecido no artigo 374º, n.º 2, do CPP, assim como do correspondente dever geral de fundamentação dos atos jurisdicionais decisórios e das decisões dos tribunais, consagrados nos artigos 97º, n.º 5, do mesmo CPP e 205º, n.º 1, da CRP, procedendo à enumeração dos factos provados e não provados, salvo quanto aos da contestação, e à exaustiva indicação dos meios de prova considerados e à sua análise crítica, quanto à respetiva relevância probatória e contributo para a formação da convicção do tribunal, o que, naturalmente, afasta a correspondente nulidade estabelecida no artigo 379º, n.º 1, al. a), do CPP, aqui arguida pelo recorrente.

Improcede, pois, esta questão

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2. 1. 4. a invalidade do acórdão por ter incorrido nos vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

Nas conclusões 7ª e 12ª, convoca o recorrente a invalidade do acórdão condenatório aqui escrutinado, por ter incorrido nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, previstos no artigo 410º, n.º 2, als. a) e c), do CPP.

Independentemente da consequência jurídico-processual da verificação dos vícios previstos em tal preceito, é pacífico que eles constituem vícios da decisão e não erros de julgamento, devendo, por isso, necessariamente, resultar do seu texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência, sem necessidade e/ou possibilidade de recurso a elementos externos para os evidenciar.

E que, podendo embora coexistir na mesma decisão de cujo texto, por si só ou conjugada com as regras da experiência, devem emergir, a sua verificação alternativa ou subsidiária se afigura incompatível com a respetiva substância, conforme esclarecida diferenciação de Pereira Madeira e da jurisprudência por ele referenciada em anotação ao artigo 410º, n.º 2, do CPP, no “Código de Processo Penal Comentado”, de Henriques Gaspar e outros, supra mencionado, que aqui se acolhe a acompanha e para cuja leitura se remete.

No caso em apreço, além de não se descortinar na motivação qualquer expressa alusão a tais vícios, dela e das referidas conclusões se percebe imediatamente que o recorrente incorre na muito comum confusão entre os vícios da decisão convocados e o do erro do julgamento da matéria de facto, que efetivamente não impugnou.

Pois que, em vez de os evidenciar, explicando, por referência ao texto do acórdão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, a matéria de facto provada e não provada que não deu resposta integral aos factos que constituíam o objeto do processo fixado pela acusação/pronúncia e, desse modo, insuficiente para suportar a sua condenação, ou que se apresenta como conclusão ilógica, irracional e ostensivamente contrária às regras da experiência, limita-se a proclamar, num juízo próprio, que a prova produzida foi mal apreciada e não tem virtualidade para fixar a matéria de facto considerada provada e que conduziu à sua condenação, recorrendo aos elementos de prova produzidos, de que retira ilações necessariamente subjetivas acerca do seu envolvimento nos factos que lhe eram imputados na acusação/pronúncia, o que, obviamente, não integra os invocados vícios, antes uma divergência sobre a matéria de facto provada, só passível de contrariedade mediante a respetiva impugnação ampla, nos termos do artigo 412º do CPP.

Não tendo optado por essa via de impugnação e não consubstanciando a sua alegação os aludidos vícios, que, quanto a ambos, se limita à sua mera proclamação e efetivamente não se verificam, prejudicada fica a possibilidade de o tribunal de recurso, que, nesse caso seria o TRL, de modificar a matéria de facto fixada no acórdão recorrido, a qual, por isso, se manterá incólume nessa parte, com a improcedência das questões suscitadas pelo recorrente neste segmento do recurso.

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2. 1. 5. a invalidade do acórdão por tratamento iníquo e injusto e atuação contra legem, ao apontar ao arguido o ónus de explicitar elementos que serviriam para a sua autocondenação

Nas conclusões 8ª, 9ª e 12ª, imputa o recorrente ao acórdão sub judice vícios dele invalidantes, por tratamento injusto, iníquo e contra legem, ao apontar-lhe o ónus de explicitar elementos que serviriam para a sua autocondenação.

Trata-se, em rigor, de alegação recondutível à questão apreciada no ponto 2. 1. 3., a propósito do reclamado não “real” exame crítico da prova, que o recorrente considera eivado de pré-juízos e preconceitos pela “irritação” desencadeada pelo seu exercício do direito ao silêncio, de que teriam sido retiradas ilações probatórias em seu manifesto desfavor e violadoras dos também ali referidos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo.

Com o devido respeito por diferente opinião e como ali se demonstrou, nenhum desses princípios ou direitos do arguido se mostra ofendido na apreciação crítica da prova levada a cabo no acórdão em apreço e na formação da convicção do tribunal acerca da matéria de facto provada e não provada.

Por outro lado, como ali também se consignou o processo e, em particular a fase do julgamento, decorreu segundo todas as regras legais de produção e valoração da prova e com integral respeito dos direitos de intervenção e de participação do arguido e recorrente, salvo na parte atinente às duas primeiras questões suscitadas e acima analisadas em consonância com a sua pretensão.

Assim sendo, sem necessidade de outras considerações para além daquelas desenvolvidas no ponto 2. 1. 3., para as quais se remete, forçoso é concluir no sentido de o processo se ter pautado pelos princípios e regras do due process and fair trial, ou seja, da justiça, da equidade e assegurando as mais amplas garantias de defesa do arguido, nos termos dos artigos 20º, n.º 4, e 32º da CRP, e, consequentemente, pela improcedência deste segmento do recurso.

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2. 1. 6. a invalidade do acórdão por agravar a culpa expondo vários confrontos anteriores sem ter o cuidado de se informar quais e quantos desses crimes se encontram extintos

Por fim, nas conclusões 10ª e 12ª, o recorrente convoca a invalidade do acórdão recorrido por agravar a sua culpa expondo os vários confrontos anteriores sem ter o cuidado de se informar quais e quantos desses crimes se encontram extintos.

Sem o dizer expressamente, refere-se à consideração do certificado de registo criminal (CRC) como meio de (obtenção de) prova em que se sustentou o ponto 86 da matéria de facto provada, relativa aos seus antecedentes criminais, que considera valorado acriticamente e, assim, gerador da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia sobre a atualidade das inscrições constantes do certificado de registo criminal /CRC) e/ou sua deficiente apreciação crítica, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, als. a) e c), do CPP.

Mais uma vez sem razão.

Nos termos do artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015, de 5.05, que estabelece os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento da identificação criminal, esta “(…) tem por objeto a recolha, o tratamento e a conservação de extratos de decisões judiciais e dos demais elementos a elas respeitantes sujeitos a inscrição no registo criminal e no registo de contumazes, promovendo a identificação dos titulares dessa informação, a fim de permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes”.

O âmbito do registo criminal, elementos inscritos e acesso à informação dele constante mostram-se regulados nos artigos 6º a 9º da mesma Lei, estabelecendo-se no n.º 1 deste último preceito que “o conhecimento da informação constante do registo criminal, ou da sua ausência, concretiza-se com a emissão de um certificado do registo criminal”, cujo conteúdo está definido no artigo 10º, ressalvados os casos de cancelamento definitivo ou provisório previstos nos artigos 11º e 12º da mesma lei.

O cancelamento definitivo das decisões nele extratadas ocorre ou deve ocorrer “(…) logo que decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos ou superior a 8 anos, respetivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza”.

No caso em apreço, no CRC em que o tribunal assentou os factos provados sob o n.º 86, estão inscritas 7 (sete) anteriores condenações do recorrente, por factos praticados e decisões condenatórias dos anos de 2020 e seguintes, por tribunais portugueses e ....

Portanto, mesmo que alguma das penas aplicadas pelas decisões inscritas no CRC já tivessem sido declaradas extintas, a informação manter-se-ia validamente inscrita no registo e suscetível de valoração como antecedente criminal, por não ter decorrido aquele prazo mínimo de 5 (cinco) anos para o cancelamento, constatação de evidente notoriedade, e, por isso, carecida de qualquer outra demonstração, que não a consideração do tempo decorrido até à data do acórdão condenatório.

Sem prejuízo, naturalmente, do que dessa eventual extinção das penas pudesse relevar no âmbito do cúmulo jurídico a efetuar em razão de um eventual concurso de crimes de conhecimento superveniente, que não se confunde com a questão aqui em apreciação

Acresce que, perante essa evidência, não constitui qualquer omissão de pronúncia a ausência de referência expressa no acórdão à validade de tais elementos informativos, uma vez que a mesma só se imporia se e na medida em que o prazo de cancelamento definitivo já tivesse sido ultrapassado e, ainda aí, apenas e na medida em que a inscrição e a sua valoração pelo tribunal pudessem integrar causa de proibição de produção e valoração de prova, nos termos dos artigos 125º e 126º do CPP, o que, manifestamente não ocorre in casu, nem o recorrente o afirma.

Termos em que, por não verificação de qualquer omissão de pronúncia ou valoração proibida de prova, o acórdão recorrido não padece da invalidade aqui suscitada, com a improcedência deste segmento recursivo.

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2. 2. Medida das penas de prisão aplicadas, parcelares e única, e suspensão da respetiva execução [conclusões 11ª e 12ª].

O conhecimento destas questões está prejudicado pela procedência das apreciadas sob os pontos 2. 1. 1. e 2. 1. 2, e consequente baixa do processo ao tribunal recorrido para reabertura da audiência e reformulação do acórdão em conformidade com o que ali se consignou.

IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

a) Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido AA, e, em consequência:

- declarar a nulidade do acórdão recorrido, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379º, n.º 1, als. b) e c), e 358º do CPP:

- determinar a reabertura da audiência para comunicação da alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica operada relativamente ao Apenso C) (NUIPC 123/23.8...), concessão de prazo para organização da defesa e produção de prova pertinente, se requerida e admitida;

- determinar a prolação de novo acórdão pela 1.ª instância que, reconfigure a matéria de facto e respetiva matéria de direito, em conformidade com aquela prova e com a pronúncia sobre os factos alegados na contestação do arguido.

b) Sem custas (cfr. artigo 513º, n.º 1, do CPP).

Lisboa, d. s. c.

(Processado e revisto pelo relator e assinado eletronicamente pelos subscritores)

João Rato (relator)

Agostinho Torres (1º adjunto)

Jorge Gonçalves (2º adjunto)

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1. Cfr. artigo 412º do Código de Processo Penal (CPP) e, na doutrina e jurisprudência, as correspondentes anotações de Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar et al., 2021 - 3ª Edição Revista, Almedina.

  Tudo sem prejuízo, naturalmente, da necessária correlação e interdependência entre o corpo da motivação e as respetivas conclusões, não podendo nestas acrescentar-se o que não encontre arrimo naquele e sendo irrelevante e insuscetível de apreciação e decisão pelo tribunal de recurso qualquer questão aflorada no primeiro sem manifestação nas segundas, não podendo igualmente, salvo as de conhecimento oficioso, conhecer-se de questões novas não colocadas nem consideradas na decisão recorrida, como se afirmou no acórdão deste STJ, de 23.11.2023, proferido no processo n.º 687/23.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.↩︎

2. Apesar de a não ter incluído nas conclusões, na motivação, a propósito da medida das penas, o recorrente suscita a questão do crime continuado relativamente a dois grupos de factos, a qual, por isso e conforme antes consignado, se não conhecerá autonomamente, sem prejuízo de alguma breve alusão no âmbito da questão da medida das penas.↩︎

3. Tem correspondência na motivação, inserta no âmbito da medida das penas, ao questionar a validade probatória dos CRC sem que o acórdão aprecie se algumas das penas já estariam extintas e cancelado algum registo, mas sem invocar e menos demonstrar que alguma delas estivesse extinta ou devesse o respetivo registo ter-se por cancelado.↩︎