Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P1008
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: DROGAS ILÍCITAS
CONSUMO
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ200806250010083
Data do Acordão: 06/25/2008
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: DR, Iª SÉRIE, Nº 150, 05-08-2008, P. 5235-5254.
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
«Não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»
Decisão Texto Integral:
1. O ACÓRDÃO FUNDAMENTO

Em 18Out06, a Relação do Porto (1), no recurso 3539/06-4, «entendeu fundada uma interpretação que não atribuísse ao n.º 2 do artigo 2.º da Lei 30/2000 uma função vinculativa, que arredasse do ilícito de mera ordenação social as situações de consumo e de aquisição ou detenção de droga para consumo em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, mas lhe reservasse uma função meramente indicativa ou orientadora».


2. O ACÓRDÃO RECORRIDO

Porém, a mesma Relação (2), em 22Nov06, veio a sustentar, no recurso 4664/06-1, que «o disposto no artigo 40.2 do DL 15/93 terá sempre a sua aplicação desde que o estupefaciente destinado ao consumo seja de quantidade superior à prevista no artigo 2.2 da Lei 30/2000».


3. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO

3.1. O MP (3) , ante tal «oposição de julgados», deduziu, em 15Dez06, «recurso extraordinário», propondo que o Supremo assente jurisprudência no sentido de que «a aquisição ou detenção de estupefacientes para consumo próprio de uma quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a contra-ordenação prevista no artigo 2.º da Lei 30/2000, de 29Nov».

3.2. Em 17Mai07, o Supremo Tribunal de Justiça, reconhecendo a invocada «oposição de julgados», admitiu o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência oposto em 15Dez06, pelo MP, ao acórdão da Relação do Porto que, em 22Nov06, decidira, com trânsito em julgado, que «o disposto no artigo 40.2 do DL 15/93 teria sempre a sua aplicação desde que o estupefaciente destinado ao consumo seja de quantidade superior à prevista no artigo 2.2 da Lei 30/2000».

3.3. Dos sujeitos processuais interessados, notificados para apresentarem, por escrito, as suas alegações (artigo 442.1. e 2), só o MP (4) as apresentou, promovendo, em 25Jun07, que se uniformizasse jurisprudência no sentido de que «a detenção ou aquisição de produto estupefaciente, para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, integra o crime previsto e punido no artigo 40º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro»:

«Crê-se que será de toda a conveniência, para já, reflectir por um lado no tratamento dispensado, no âmbito do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, à problemática do consumo de estupefacientes, primeiro em si mesmo e por referência ao tráfico objecto de previsão nos artigos 21º, 25º e 26º e depois por confronto com o ora preconizado na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro e, por outra via, ponderar as razões de ordem estratégica que, na luta contra a droga, estiveram na génese da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro e de que é dado o devido esclarecimento na Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99 (D.R. n.º 122/99, 1ª Série B, de 26.05.1999), ao abrigo da qual foi aprovada a Estratégia Nacional da Luta contra a Droga (5). Nesta perspectiva, caberá ter presente que no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – estabelecendo-se claramente a distinção entre o “tráfico e outras actividades ilícitas” e o “consumo”, traduzida na interligação que o artigo 21º fazia com o artigo 40º e definindo-se como crime quer uma quer outra das condutas - contanto que se apurasse que o cultivo, a aquisição ou a detenção de estupefaciente eram para consumo próprio, apartada ficava desde logo a possibilidade de uma dessas actividades vir a ser punida como tráfico, qualquer que fosse a quantidade da droga detida, cultivada ou adquirida. Quer-se com isto dizer que, ao invés do que viria a suceder com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro não estabelecia qualquer limite quantitativo para efeitos de definição de uma dada conduta como consumo e como assim para distingui-la do tráfico. Desta sorte, e como bem decorre do estatuído no n.º 2 do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (que prevê e sanciona com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias a cultivo, a detenção, a aquisição de plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para consumo médio individual durante o período de 3 dias), não é a quantidade mais ou menos elevada em causa que exclui a sua aplicação, do mesmo passo que não é a quantidade mais ou menos diminuta em presença que fará afastar a aplicação do artigo 21º e seguintes, no que ao tráfico diz respeito, se tiver ficado apurado que ao consumo pelo próprio não se destinavam as aludidas plantas, substâncias ou preparações. Algo diversamente, porém, aconteceu com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro que – conquanto não houvesse alterado substancialmente os termos da questão, estabelecendo que o consumo, a aquisição ou a detenção para consumo próprio até determinada quantidade (não excedente à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, artigo 2º, n.º 2) passariam a integrar mera contra-ordenação – deixou de fora um largo número de condutas até então contempladas no artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Condutas que – desde o cultivo para consumo (independentemente da quantidade em causa), objecto de expressa salvaguarda na norma revogatória do artigo 28º da mesma Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, até à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de quantidades superiores às referidas no seu citado n.º 2 do artigo 2º, o cerne da questão controvertida –, se não fossem os termos em que se encontra redigida a aludida norma revogatória do artigo 28º, todos concordariam que continuavam a ser abrangidas pela previsão do artigo 40º. Feitas estas breves considerações, importa reflectir que, na génese da Lei 30/2000, de 29 de Novembro (que definiu “um novo regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas bem como à protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias, sem prescrição médica”, descriminalizando essas condutas e revogando o artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do mesmo diploma, convertendo-as em ilícito de mera ordenação social), ponderaram razões de ordem vária que vão desde a necessidade de o aparelho judicial dever estar afecto ao combate do tráfico de drogas e da criminalidade complexa que lhe anda associada (branqueamento de capitais, associações criminosas, tráfico de armas, corrupção, etc.) e, por via disto, isentá-lo da luta contra outros ilícitos de menor gravidade e relevância como o consumo de substâncias da aludida natureza, que passam pelas ilações a retirar dos desencorajadores resultados obtidos com a criminalização até então feita destas condutas consideradas menos desvaliosas como forma de dissuadir os consumidores de drogas a utilizarem-nas e que desembocam na diferente perspectiva como devia ser encarada a problemática do consumo e o drama do consumidor: mais um doente a reclamar medidas de protecção sanitária e social, do que um criminoso. E não obstante este evidente e aliás confessado propósito descriminalizador, benfazejo para o consumidor (6), face ao que decorre quer da Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 26.05.1999, pela qual a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro foi aprovada, quer do próprio texto desta, dúvidas não subsistem de que com o novo regime jurídico visou o legislador não legalizar de todo o consumo das referidas substâncias mas, apenas e tão só, descriminalizar as situações que, com ele relacionadas, considerava revestirem-se de menor gravidade, como, de resto, foi profusamente proclamado e com linear nitidez flui do que ficou estatuído, primeiro nos artigos 1º e 2º e, depois, no artigo 28º da mesma Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro. Feito que fica este apontamento e não perdendo de vista a questão concreta em análise [o modo como enquadrar sob o ponto de vista jurídico – isto, naturalmente, para o caso de se considerar que a entrada em vigor da lei nova não comprometeu tal possibilidade – as condutas consistentes na detenção ou aquisição de estupefacientes para consumo próprio que, antes abrangidas pelo n.º 2 do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, escaparam à sua directa previsão, por a quantidade em causa exceder a necessária para consumo médio individual durante 10 dias (n.º 2 do artigo 2º do mesmo diploma legal)], importará, então e na sequência de tudo quanto mais atrás se aduziu, expor as razões por que se entende que a verificada oposição de acórdãos deverá ser resolvida nos termos do decidido no acórdão recorrido. Porém, para cumprir tal desiderato, importará desenvolver um esforço para interpretar as normas convocadas para o efeito (maxime, a norma revogatória do artigo 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro). Esforço de interpretação que – passando por chamar à colação o artigo 9º do Código Civil, que regula genericamente a matéria relativa à interpretação da lei, tendo por fio condutor a ideia de que ela deverá reconstituir, a partir dos correspondentes textos, o pensamento do legislador, possuindo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada e tendo como seus limites os princípios da legalidade, que veda o recurso a analogia, e da tipicidade – há-de permitir descobrir o sentido que se encontra por detrás da respectiva expressão e, dentro das suas significações possíveis, eleger a que, coincidente com o que se presume ter sido a vontade real do legislador, constituirá a verdadeira e decisiva, no dizer de Pires de Lima e Antunes Varela (7). E não deixando de ser certo que, em sede de interpretação jurídica, o texto da lei constitui importante elemento de interpretação, não é todavia o elemento literal o único nem porventura o mais valioso, devendo por isso e a par dele curar de apelar-se ao elemento lógico-racional, conjugando-o com os elementos histórico e sistemático (8). Fazendo então uso deste indispensável instrumento de trabalho que constitui a interpretação da lei, cumpre desde logo observar que, se as normas dos artigos 2º, n.ºs 1 e 2 e 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro e 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro fossem interpretadas no seu sentido puramente literal, a conclusão a extrair seria, efectivamente, a de que a detenção ou a aquisição, para consumo próprio, de estupefaciente em quantidade superior à necessária para consumo individual durante 10 dias não havia de ser punida quer pelo n.º 2 do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (revogado) quer pelo artigo 2º, n.º 1 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (por via da limitação negativa feita no n.º 2 do mesmo normativo). Porém, recorrendo a uma interpretação teleológica e de cariz objectivo e fazendo intervir o elemento lógico-racional de interpretação em conjugação com o elemento histórico, uma solução do tipo não poderá deixar de ser entendida como ilógica, incongruente, incompreensível (9). Na realidade, não postergando que na fixação do sentido e do alcance da lei o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (n.º 3 do artigo 9º do Código Civil), seria carecido de qualquer sentido lógico que o legislador punisse (n.º 1 do artigo 2º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro) a conduta menos grave (o consumo, a aquisição e detenção para consumo próprio de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas em quantidade que não excedesse a necessária para consumo médio individual durante 10 dias) e despenalizasse o comportamento mais desvalioso. De facto, e como com inteira razão argumentam os que recusam uma solução do género (10) , resultaria de todo ininteligível que a detenção de doses para 10 dias constituísse contra-ordenação e para 11 dias não integrasse qualquer infracção, quando é certo que quem detém 11 doses também detém 10 (11, engloba 10 e sobra 1). É que uma solução deste tipo, além de consubstanciar um absurdo jurídico e configurar uma situação de manifesta e flagrante injustiça, sempre representaria uma traição ao espírito do legislador e aos fins de política criminal que, tendo estado na génese da criação de um novo regime jurídico para o consumo, não visou de todo em todo legalizá-lo (11) mas tão só descriminalizar as condutas que se revestissem de menor gravidade. E, a ser assim, como indefensável há-de ter-se a solução que, sufragada pelos (poucos) que, considerando tratar-se de uma verdadeira e pura lacuna sancionatória (12) (insusceptível de integração por proibição do recurso à analogia – n.º 3 do artigo 1º do Código Penal –) a falta de directa previsão na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, da conduta de quem detenha ou adquira, para consumo próprio, estupefaciente em quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, pugnam pela sua descriminalização. Como indefensável se tem igualmente – ora, por razões diametralmente opostas – a solução proposta por aqueles outros que, ainda por aplicação literal do citado artigo 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, entendem ser de remeter para a norma fundamental do artigo 21º (ou do tipo privilegiado do artigo 25º ou até mesmo do artigo 26º) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o encargo de sancionar as condutas de aquisição ou detenção, para consumo próprio, antes abrangidas pelo artigo 40º e que, pela quantidade do produto em causa, não se encaixam na previsão do novo diploma legal. E isto porque a uma solução do tipo se é certo que, desde logo, se opõem as finalidades visadas pela Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro – uma lei benfazeja para o consumidor, surgida no âmbito de um movimento de despenalização das condutas menos desvaliosas de consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e imbuída da noção do “consumidor-doente” a reclamar, mais do que censura legal, a sua inclusão em programas virados para o tratamento e integração social – na medida em que, na prática e contra toda a lógica, tal traduzir-se-ia em transmudar um “doente” em traficante (13) por via de mais uns gramas de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas que porventura detivesse ou adquirisse para consumo próprio, não menos verdade é que essa solução, desproporcionada e aberrante [à luz quer do novo diploma quer da própria Lei n.º 15/93, de 22.01 (que, distinguindo claramente o tráfico e outras actividades ilícitas do consumo, não transformava um crime noutro pelo mero facto de o agente deter maior ou menor quantidade de produto)] importaria ainda a violação dos princípios da culpa e bem assim da necessidade (ou da justa medida) e da proporcionalidade (ou da proibição do excesso) das penas (14), para além de que, sob o ponto de vista dogmático, só com manifesta afronta ao princípio da legalidade, e consequente proibição da analogia (15) e da tipicidade isso seria possível. É que, nos moldes em que se encontra configurado no DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro o tipo base do tráfico de estupefacientes (e quem diz este, diz o tipo privilegiado do artigo 25º ou até mesmo o do artigo 26º) – com exclusão dos casos previstos no artigo 40º –, ele não pode aplicar-se às situações em que a substância detida ou adquirida se destina a consumo próprio do agente, qualquer que seja a quantidade em causa. Por outro lado, mal se compreenderia que o simples facto de a quantidade de estupefaciente detido ou adquirido pelo agente, para consumo próprio, exceder o necessário para consumo médio individual durante 10 dias levasse o legislador da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro a transformar o crime de consumo em tráfico quando, expressa e inequivocamente salvaguardando da norma revogatória do artigo 28º o cultivo – conduta bem mais desvaliosa –, preveniu que ele continuasse a ser sancionado, ainda no âmbito do consumo, como crime e nos termos do preceituado na norma do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. E também indefensável se entende ser a solução avançada pelos que sustentam que a detenção ou aquisição de estupefacientes, para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante 10 dias configura apenas e tão só um ilícito de natureza contra-ordenacional, previsto e punido pelo artigo 2º, n.º 1 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro. E isto porque começando por uma interpretação puramente literal que se faça do texto da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, “maxime” do artigo 2º, com particular enfoque para o seu n.º 2, de constatar impõe-se que a ideia directa e imediatamente apreensível é que o legislador não quis punir como contra-ordenação o agente que detivesse ou adquirisse, para consumo próprio, produto estupefaciente em quantidade que excedesse a necessária para consumo médio individual durante 10 dias. É que se não fosse este o pensamento do legislador então inexplicável, incompreensível, carecida de qualquer sentido sempre resultaria a limitação que no n.º 2 do citado artigo 2º fez à quantidade que, no seu entender, relevava para efeitos de integração da conduta como ilícito contra-ordenacional. Depois, não deixando certo que em sede de interpretação da lei, não devendo o interprete cingir-se à letra da lei, mas reconstituir, a partir dos textos, o pensamento do legislador, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições em que é aplicada (artigo 9º, n.º 1 do Código Civil), privilegiando a interpretação teleológica de cariz objectivo, não perdendo de vista que, na fixação do sentido e alcance da lei, o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir em termos adequados o seu pensamento que, na letra da lei, há-de ter em mínimo de correspondência verbal, ainda que de forma imperfeita, por irrazoável tem-se que ao fazer aquela limitação ao consumo dos 10 dias pretendesse o legislador dizer coisa diametralmente oposta, isto é que, excedesse não aquele limite a quantidade de estupefaciente detida ou adquirida para consumo próprio, a conduta do agente sempre enquadraria mero ilícito contra-ordenacional. Ao invés, porém, numa interpretação, quer literal quer teleológica de cariz lógico-racional que se faça do referenciado texto legal, tudo parece indicar que este não teria sido necessariamente o pensamento do legislador, pois se assim não fosse não teria procedido à indicação de qualquer limite, relegando para o intérprete o encargo de optar e decidir se estava na presença de um mero ilícito contra-ordenacional ou de um crime (16). E, contra esta perspectiva de ver as coisas, não se oporão a intenção do legislador e os fins da política criminal que o teriam levaram a conceber um novo regime legal para o consumo. É que, como antes anotado, se a intenção do legislador não foi obviamente a de legalizar o consumo (como bem o demonstra o próprio texto legal), também não foi descriminalizá-lo integralmente, mas apenas naquelas situações que, considerando revestir-se de menor gravidade [tais sejam, as consistentes no consumo, na detenção ou aquisição, para consumo próprio, de estupefaciente em quantidade que não excedesse o limite que fixou no n.º 2 do artigo 2º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro], transmudou de crime para ilícito de mera ordenação social. Propósito este bem patente, de resto, na ressalva que, quanto ao cultivo (ainda que para consumo próprio) de substâncias estupefacientes e psicotrópicas, o legislador fez na norma revogatória do artigo 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro que, numa óptica mais concordante – julgamos nós – com o que terá sido o seu pensamento, limitar-se-ia a ponderar apenas para as situações ora abrangidas pelo artigo 2º da citada Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, ficando tudo o mais (designadamente as situações relativas ao cultivo e as não cabimentadas no n.º 1, por via do estatuído no n.º 2 do mesmo artigo 2º) para o regime previsional do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (17). É certo que contra um entendimento do tipo sempre se poderá argumentar que, a suceder assim, então o legislador não precisava de ter formulado nos moldes em que fez a norma do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro já que, por via da incompatibilidade existente entre as novas e as precedentes regras, estas claudicariam tacitamente perante aquelas. Porém, a uma tal crítica poder-se-á, efectivamente (18) , refutar que, experimentando o legislador necessidade de introduzir uma disposição sobre a revogação do artigo 40º por forma a salvaguardar a vigência deste quanto ao cultivo, acabou por utilizar uma fórmula ambígua que o levou a dizer mais do que queria e que era tão só que ficava revogado o artigo 40.º para os casos abrangidos pela nova contra-ordenação. Interpretação (restritiva) esta que, ao invés do que sustentam os que defendem que integra uma mera contra-ordenação a situação prefigurada na questão de direito que se suscita, não acarreta uma ampliação incriminatória, com afectação do princípio da legalidade. Mas isto ver-se-á mais em pormenor já a seguir. Assim, crê-se que a solução da questão controvertida passa por interpretar a norma revogatória do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, com o sentido restritivo de que o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro foi por ele efectivamente revogado, excepto quanto ao cultivo e bem assim na parte em que vai além do estatuído no artigo 2.º da lei (o que vale dizer na parte em que a aquisição ou a detenção, para consumo próprio, exceda o limite definido no n.º 2 do artigo 2º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro como condição para que a conduta seja sancionada como contra-ordenação, logo nos termos do n.º 1 do mesmo dispositivo), caso em que a punição do comportamento do agente se fará de acordo com o preceituado no n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Na verdade, recuperando tudo quanto mais para trás ficou referido e seguindo muito de perto a posição defendida por Cristina Líbano Monteiro (19) e bem assim o entendimento sufragado nos paradigmáticos arestos deste Supremo Tribunal de 03.07.2003, de 07.04.2005 e de 16.02.2006 (20), crê-se que a solução que se vem buscando para suprir a aparente lacuna (pois disto apenas se trata na medida em que, parecendo embora que não foi regulada pela lei, efectivamente foi, como a interpretação que dela se faça, de acordo com os critérios gerais previstos no artigo 9º do Código Civil, facilmente o demonstrará) que a situação plasmada na questão controvertida prefigura, só pode passar por aí, de sorte que, no citado dispositivo do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, onde as palavras parecem apontar no sentido de um total desaparecimento do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (excepto no que diz respeito ao cultivo, salvaguardado expressa e inequivocamente na mesma norma revogatória), deve entender-se que ele continua a aplicar-se aos casos da detenção ou aquisição para consumo próprio, não transmutados em ilícito de mera ordenação social, visto ter sido intenção do legislador manter incólume tal segmento previsivo de que decorre que a norma existe, de facto (21). Interpretação restritiva que, ao invés do que dizem os que para o caso a criticam, conducente à manutenção da situação anterior (a existente no artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), não consubstancia uma ampliação incriminatória, mediante recurso à analogia e, como assim, não acarreta violação dos princípios da legalidade e da tipicidade (22), com assento constitucional (artigo 29º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa). De resto, e como com inteira oportunidade, citando Simas Santos e Leal Henriques (23) , se refere nos arestos deste Supremo Tribunal de 03.07.2003, de 07.04.2005 ou de 16.02.2006, proferidos nos processos n.ºs 1799/03, 446/05 e 111/06, todos da 5ª Secção, a interpretação extensiva ou restritiva da lei penal é admitida no nosso direito. E, como defendem os referidos autores na citada obra e se sufraga naqueles arestos do Supremo Tribunal de Justiça, sendo o «sentido literal possível» dos termos linguísticos utilizados na redacção do texto legal o limite máximo de interpretação da lei penal, e não havendo qualquer espaço a percorrer, por via interpretativa, entre o «sentido literal possível» e o «mínimo de correspondência verbal» a que se refere o n.º 2 do artigo 9º do Código Civil, tem-se igualmente de partilhar do entendimento de que, no caso aqui em análise, esse «mínimo de correspondência verbal» pode ser surpreendido no facto do legislador não ter revogado totalmente o aludido artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na medida em que, tendo posto a recato da revogação o cultivo para consumo próprio, «deixou a porta aberta para uma vigência parcial dessa norma» (24). (...) Daí que – nada obstando a que se proceda a uma interpretação restritiva da norma revogatória do artigo 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, no sentido de que o artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro foi apenas revogado na parte relativa às situações ora previstas no artigo 2º daquela Lei n.º 30/2000, mantendo-se no mais em vigor – se entenda que a detenção ou a aquisição de estupefaciente, para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, excluída que está da previsão da contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 2º, n.º 2 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, integra o crime previsto e punido pelo artigo 40º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.


4. a estratégia nacional de luta contra a droga

4.1. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99 de 26Mai99 (DR I-B 122/99), que aprovou a estratégia nacional de luta contra a droga «optou pela descriminalização do consumo de drogas e pela sua proibição como ilícito de mera ordenação social, com a consequente alteração ( E não propriamente a revogação.) do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro». «Essa opção respeitou não apenas ao consumo propriamente dito mas também à detenção (posse) e aquisição para esse consumo» (26). Em primeiro lugar, porque se entendeu que «a criminalização e a consequente mobilização do aparelho judicial dev[ia]m estar, sobretudo, ao serviço do combate ao tráfico ilícito de drogas e ao branqueamento de capitais». Depois, como decorrência «do princípio humanista, um dos princípios estruturantes da presente estratégia, que exige o respeito pelos princípios humanistas fundamentais do nosso sistema jurídico, nomeadamente os princípios da subsidiariedade ou ultima ratio do direito penal e da proporcionalidade, com os seus corolários que são os sub-princípios da necessidade, da adequação e da proibição do excesso» (27). Em terceiro lugar, porque não se mostraria necessário criminalizar a detenção e a aquisição de drogas ilícitas para consumo «só para viabilizar o combate ao tráfico pelas autoridades policiais», já que «esse propósito fica[ria] integralmente salvaguardado no quadro de um regime sancionador como o ilícito de mera ordenação social» (28). Em quarto lugar, seria desproporcionado representar «a tipificação como ilícito criminal do simples consumo de drogas, bem como da detenção e aquisição de drogas para consumo». Por outro lado, «a opção pelo ilícito de mera ordenação social potencia[ria], pela sua própria natureza, uma mais profunda utilização de certas manifestações do princípio da oportunidade, permitindo introduzir um sistema sancionatório mais flexível com vista a um melhor tratamento processual do caso concreto». Enfim, «a não intervenção do direito penal permitir[ia] criar um espaço próprio para a intervenção de um sistema de controlo administrativo através do ilícito de mera ordenação social e da consequente atribuição de competência para aplicação de sanções e medidas às autoridades administrativas, de modo a favorecer a necessária intervenção das entidades competentes na área da prevenção (primária, secundária e terciária), com ganhos evidentes de eficácia, racionalização e optimização de meios» (29).

4.2. De qualquer modo, «não se trat[ou] de legalizar ou sequer de despenalizar, ao menos no sentido amplo do termo», mas de «de substituir a proibição através de um ilícito criminal pela proibição através de um mais adequado ilícito de mera ordenação social». E isso porque «a prisão ou a multa (...) não [vinham] constituindo a resposta adequada ao problema do mero consumo de drogas», além de que a experiência viria revelando «que a sujeição do consumidor a procedimento criminal, com todas as suas consequências, [não] constitu[ía] o meio mais adequado e eficaz de intervenção, seja nos casos de primeiras infracções ou de consumidores ocasionais, para os quais se t[inha] revelado excessivo, e por isso desproporcionado, mobilizar todo o sistema de reacção penal, seja no caso de toxicodependentes, para os quais se dev[ia] privilegiar a prioridade ao tratamento em alternativa à aplicação de sanções» (30).

4.3. Aliás, «no actual contexto, a manutenção de uma proibição constitui[a], todavia, um imperativo (...). Com efeito, sem a proibição legal seria de prever um aumento do consumo, sobretudo entre os menores, decorrente de uma maior acessibilidade e da ausência de um desvalor legal desse consumo». Além de que, «sem a ilicitude da detenção (posse) de drogas resultaria, na prática, gravemente prejudicado o combate ao tráfico». «Em qualquer caso, a previsão de um ilícito sempre se imp[unha] à luz das convenções internacionais, nos termos das quais o Estado Português está vinculado a proibir a detenção e aquisição de drogas ilícitas para consumo».

4.4. «Assim sendo, o ilícito administrativo constitui[ria] não apenas a solução mais adequada num contexto de proibição do comércio deste tipo de drogas mas também a única alternativa à criminalização (...) compatível com as convenções internacionais em vigor».

4.5. Não se trata, porém, de o Estado «impor abusivamente aos cidadãos comportamentos saudáveis mas, sobretudo, de, respeitando as convenções internacionais, conservar o desvalor legal que possa dissuadir comportamentos potencialmente prejudiciais para a saúde e a segurança públicas, bem como para a saúde dos menores e, ao mesmo tempo, deixar intocados os mecanismos que permitem às autoridades intervir onde a autoridade dos educadores já não chega e, sobretudo, perseguir eficazmente o tráfico».


5. A Lei 30/2000 de 29 de Novembro

5.1. Nesse objectivo (o de definir “o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica” (artigo 1.º, n.º 1), surgiu, em 29Nov00, a Lei n.º 30/2000, que, no seu artigo 2.º, determinou que passassem a constituir contra-ordenação o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior”, sem embargo de continuar a incorrer em infracção criminal, nos termos do artigo 40.º do Decreto-Lei 15/93, quem, para seu consumo, cultivasse substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV. Nesse contexto, o artigo 28.º do Decreto-Lei 30/2000 revogou não só aquele “artigo 40.º, excepto quanto ao cultivo” bem como «as demais disposições que se mostr[ass]em incompatíveis com o [novo] regime».

5.2. «O diploma começa por uma definição ou qualificação dogmática da conduta que descreve: diz que se considera contra-ordenação tanto o consumo como a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao DL n.° 15/93, de 22 de Janeiro (vulgo, drogas ou drogas ilícitas). Vê-se logo a seguir que a fronteira que separa este ilícito do crime de tráfico deve traçar-se de acordo com dois critérios: o fim do agente (a intenção para além do dolo de destinar aquela quantidade de droga ao simples consumo próprio) e a quantidade de produto (não mais do que 10 doses diárias individuais). Se quiséssemos descrever de outro modo a conduta proibida, poderíamos dizer: quem consumir ou, com intenção de consumir, detiver ou adquirir drogas ilícitas, em quantidade que não exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, praticará uma contra-ordenação» (Cristina Líbano Monteiro, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, Tomo 1º) (31)

5.3. Note-se, porém, que «no projecto que serviu de fonte remota à Lei n.° 30/2000 não se previa nenhum limite à quantidade de droga para consumo, considerando-se simplesmente contra-ordenação a aquisição ou a detenção para o consumo), independentemente da quantidade de droga que estivesse em causa» ( 32).

5.4. No entanto, ao corpo do artigo 2.º (do diploma que viria a constituir a Lei 30/2000) foi posteriormente acrescentado um n.º 2, nos termos do qual «a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior» não poderiam, «para efeitos da presente lei», «exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».

5.5. Não houve, todavia, o cuidado (33) de adaptar a redacção do então já redigido artigo 28.º («São revogados o artigo 40.o, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41.o do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime») por forma a deixar explícito que a revogação aí consignada deixava intocada a criminalização da aquisição e da detenção para o consumo de substâncias referidas no artigo 2.º em quantidade superior à necessária para «o consumo médio individual durante o período de 10 dias».

5.6. De qualquer modo, deverá ser esse o alcance a dar ao artigo 28.º quando confrontado com o âmbito («Para efeitos da presente lei») (34) do «novo» n.º 2 do artigo 2.º: «Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias». Na verdade, se para «para efeitos da presente lei» (35), «a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias», essa restrição – não obstante a sua inserção sistemática - haverá de se repercutir em toda a lei, incluindo o respectivo artigo 28.º (que, ao revogar as «disposições (...) incompatíveis com o presente regime», pretenderia, decerto, deixar incólume o artigo 40.º da Lei 15/93 não só «quanto ao cultivo» como quanto à «aquisição e à detenção para consumo próprio» de «substâncias» superiores à «necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»).

5.7. Com efeito, «julgamos que é possível, sem necessidade de torcer conceitos, encontrar saída para a prisão dogmática em que parece estar metido o intérprete. Para tal, convém adentrarmo-nos não tanto na letra quanto na lógica, na teleologia do regime resultante dos artigos acima citados. (...) Parece estar bem longe do espírito (da teleologia) da norma a ideia (a suspeita sequer) de que a teia garantística que forja dê lugar a vazios de punição. Perante isto, está o intérprete obrigado a "buscar o direito através da lei" (...), a encontrar na linguagem do texto a forma de não trair o seu significado» ( 36).

5.8. Aliás, «a Lei n.° 30/2000 fornece ao estudioso do direito um bom exemplo do que não deve fazer-se quando se pretende introduzir uma mudança parcelar num todo normativo coerente que já existe». Pois «o que não deve fazer-se é definir tão-só os traços da novidade sem acautelar as zonas de possível sobreposição ou, pelo menos, de necessária fronteira». «Quando — como neste caso — a novidade não consiste apenas numa alteração do regime de sancionamento da conduta proibida, mas mexe igualmente com a própria definição ou delimitação dessa conduta, o cuidado deve redobrar-se. Com efeito, ao alterar para 10 dias o máximo de droga detida ou adquirida para consumo próprio que se considera agora contra-ordenação, ao mesmo tempo que revoga (artigo 28.°) o artigo 40.° da lei antiga e deixa em vigor, intocadas, as normas "velhas" respeitantes ao tráfico nas suas diversas modalidades, o legislador de 2000» pode ter provocado «desfasamentos sancionatórios indesejáveis (e, muito provavelmente não queridos)» (37).

5.9. «A lei derrogada previa, por ordem decrescente de gravidade, o tráfico (comum, de pequena gravidade e para consumo), o consumo (a aquisição ou detenção para consumo próprio em quantidade superior a 3 doses médias diárias: n.° 2 do artigo 40.°) e a aquisição ou detenção para consumo próprio até essa porção (n.° 1 do mesmo artigo). A distingui-los — nos pontos em que poderia haver sobreposição de tipos objectivos de ilícito —, um critério de propósito ou intenção para além do dolo, coadjuvado em alguns casos por limites quantitativos de substância ilícita consumida ou traficada. Mantendo aparentemente o critério, i.é: sancionando também como consumo a detenção ou aquisição de drogas para consumo próprio, a Lei n.° 30/2000 estabelece, contudo, um tecto inultrapassável — a quantidade de droga não pode ir além do correspondente a 10 dias de dose média individual. Ficamos, pois, a saber que quem adquirir tal volume de substância para consumo próprio pratica uma contra-ordenação. Mas deixámos de saber como sancionar quem adquirir, também para consumo próprio, 11 doses diárias, calculadas segundo a mesma média. Já não constitui contra-ordenação. Portanto, deve ser crime. Mas que crime, se o reformador [parece ter] revoga[do] expressamente todo o artigo 40.°? A ter deixado o n.° 2 deste artigo, o juiz saberia que se tratava de um crime de consumo mais grave, punível com prisão até um ano ou multa até 120 dias. Mas não. Desapareceu esse preceito que punia como consumidor quem adquirisse ou detivesse para consumo próprio mais de 3 doses médias diárias de droga, sem limite superior de quantidade. Punir-se-á então como traficante-consumidor? É desde logo impossível, quanto mais não fosse porque a nova lei tão-pouco teve o cuidado de mexer no tecto dos 5 dias aí previsto... e 11 é mais do que 5. Como traficante? O revogado artigo 40.° funcionava como elemento excludente do tipo legal de tráfico. Na sua ausência, deverá ler-se agora o tipo do artigo 21.° colocando em vez de "fora dos casos do artigo 40.°" a sua nova versão "fora dos casos do artigo 2.° da Lei n.° 30/2000"? Se assim for — e nada há de ilógico nessa substituição —, retorna o problema do tecto dos 10 dias e parece não restar outro remédio ao tribunal senão punir o adquirente de droga para consumo pessoal durante 11 dias como traficante. Claro que deve recorrer à figura do tráfico de pequena gravidade (artigo 25.°); mas talvez seja demasiado que um manifesto descuido da lei nova imponha a passagem de uma simples coima para pena de prisão de 1 a 5 anos... só por uma dose diária individual a mais, medida, ainda por cima, por critérios estatísticos fixados por Portaria. O manifesto desajuste da solução encontrada através de um linear processo interpretativo obriga o jurista prudente a procurar "deixar bem" o legislador, explicando que afinal este disse mais do que desejava. Com efeito, não é razoável pensar que uma lei descriminalizadora, benfazeja para o consumidor, pretenda que uns gramas de droga transformem um "doente" a proteger num autêntico traficante, esquecendo-se de salvaguardar situações que a velha lei acautelava. Mais consequente com o espírito do diploma de 2000 será interpretar restritivamente o texto da sua norma revogadora, o artigo 28.° Onde as palavras parecem apontar para um completo desaparecimento do artigo 40.° da lei de 93 (excepto no que diz respeito ao cultivo), deve entender-se que este continua a reger os casos de consumo, aquisição e detenção para consumo não convertidos em contra-ordenações. Por outras palavras: mantém-se incólume (...) a ideia segundo a qual a quantidade de droga nunca transforma o consumidor em traficante. De outro modo ainda: tráfico e consumo são, agora também, tipos alternativos; o que o artigo 40.°, parcialmente revogado, conserva intacta a sua função de delimitar negativamente — através do elemento subjectivo que o caracteriza — o crime de tráfico. Esta proposta de solução, por conduzir a um regime mais favorável ao arguido — a pena não poderá ir além de 1 ano de prisão ou multa até 120 dias — em nada bole com o princípio da legalidade e o seu papel garantístico» ( 38).

5.10. José de Faria Costa, nas suas «Breves notas sobre o regime jurídico do consumo e do tráfico de droga» (39) «não considerou inteiramente adequada uma tal compreensão» (40), sobretudo «porque, mesmo depois de muito excogitar, não encontr[ou] uma única razão que tivesse levado o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo, uma conduta que, com fundamentos vários, decidiu despenalizar» (41).

5.11. Todavia, este raciocínio radicará num pressuposto inautêntico: o de que o legislador decidiu despenalizar, irrestritamente, a aquisição e a detenção, para consumo próprio, de drogas ilícitas (42). Muito pelo contrário, a Assembleia da República – ao introduzir, no articulado da proposta de Lei, a norma que ora consta do n.º 2 do artigo 2.º da Lei 30/2000 («Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias») – terá mesmo querido, limitando claramente aquele objectivo, evitar a descriminalização e, mesmo, a despenalização (ou seja, a sua despromoção a contra-ordenação) da aquisição e da detenção para consumo próprio, em quantidade que excedesse a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, «das substâncias referidas no número anterior».

5.12. Assim sendo, a única (ou, pelo menos, a melhor) forma de conciliar esse objectivo legal (o de evitar a descriminalização e, mesmo, a despenalização da aquisição e da detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, em quantidade que excedesse a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias), com o equívoco texto do art. 28.º da Lei 30/2000 será – na presunção de «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (artigo 9.º, n.º 3, do CC) - confinar a expressa «revogação» do art. 40.º do Decreto-Lei 15/93 (43) ao contexto do próprio diplomaPara efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»). Donde que, limitado (44) o alcance da sua revogação (pelas disposições conjugadas dos artigos 28.º e 2.º, n.º 2, da Lei 30/2000), ao consumo e à aquisição e detenção para consumo próprio de drogas ilícitas em pequenas quantidades (45), o artigo 40.º do Decreto-Lei 15/93, assim derrogado, conservará válido e actual o texto remanescente ( 46): «1 - Quem cultivar plantas compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias. Se a quantidade de plantas cultivadas pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias. 2 - Quem, para seu consumo, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».

5.13. Tanto mais que existe uma «boa razão» para «levar o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo, uma conduta que, com fundamentos vários, decidiu despenalizar»: o perigo de a droga adquirida para consumo próprio, quando superior às necessidades pessoais mais urgentes (as dos dez primeiros dias), vir a ser «oferecida», «posta à venda», «vendida», «distribuída», «cedida», «exportada» ou, por qualquer título, «proporcionada a outrem».


6. JUSTIFICAÇÃO DA CRIMINALIZAÇÃO DA AQUISIÇÃO E DETENÇÃO EXCESSIVAS (I)

«O Direito Penal tem (...) uma inevitável âncora constitucional, na medida em que as suas sanções são restrições fortíssimas dos direitos fundamentais e, por isso, têm de ser justificadas pela defesa necessária, adequada e proporcionada de bens fundamentais. É esse o comando que resulta do artigo 18.°, n.° 2, da Constituição Portuguesa, no qual se ampara o princípio da necessidade da pena ou da intervenção mínima do Direito Penal ('). A decorrência de um tal princípio da tutela dos direitos fundamentais implica alguns corolários que têm relevância nesta matéria: a) O corolário de que há um espaço intangível em que o Direito Penal não pode intervir sob pena de impedir o livre exercício dos direitos fundamentais (...); b) Um outro corolário é o de que certos valores sociais não podem nunca justificar a intervenção penal, porque não podem justificar a restrição de direitos fundamentais implicada no Direito Penal (...); c) A área das relações da pessoa consigo mesma não faz parte do campo do direito, mas apenas da moralidade, não suportando, em geral, intervenções legais restritivas de direitos (...); d) Finalmente, também não se justifica a utilização meramente simbólica do Direito Penal para atingir indirectamente fins de coesão social ou uma mera pacificação da sociedade, sem que esteja em causa uma necessidade efectiva de protecção de bens jurídicos (...). Para além destes aspectos, também a criminalização de condutas pressupõe uma relevância ética prévia das mesmas (..., de modo que a incriminação possa ser sentida como verdadeiramente inibidora da lesão de bens jurídicos. Deste modo, deve haver uma susceptibilidade de sentir a culpa como factor de inibição (ou como critério preventivo). A liberdade de construção de tipos criminais não depende de uma lógica de obediência negadora da autonomia e corresponsabilização dos cidadãos, mas está previamente marcada por uma lógica de responsabilização subjectiva. A Constituição de um Estado de Direito democrático contém implicitamente este princípio sem nome expresso, como decorrência do direito à liberdade (em todas as suas manifestações), do direito à segurança democrática e do próprio primado da dignidade da pessoa humana. Dele decorre que não pode ser o respeito pela lei, em termos formais, a justificar a intervenção penal, mas antes a necessidade inerente à máxima realização da dignidade, da liberdade e da segurança, o critério aferidor de tal intervenção (...). Este princípio, que designarei como o princípio da susceptibilidade de uma motivação de culpa, é afinal um certo conteúdo da própria necessidade da pena concebida em termos não utilitaristas» (47).


7. JUSTIFICAÇÃO DA CRIMINALIZAÇÃO DA AQUISIÇÃO E DETENÇÃO EXCESSIVAS (II)

7.1. «Em nome de que bens jurídicos pode ser incriminado o consumo de estupefacientes (48) ou as condutas que se destinam directamente a permitir o consumo? (...) Não se estará, de algum modo, a invadir o território vedado ao Direito Penal, o território das relações consigo mesmo e dos bens baseados em concepções morais? Quais são os bens jurídicos que numa perspectiva de Estado de Direito democrático legitimam as incriminações e quais as fronteiras que não podem ser ultrapassadas sob pena de se admitir um Direito Penal invasivo dos direitos fundamentais? A resposta a estas questões depende da solução constitucional para o problema do consumo e do modo como o consumidor é encarado pelo sistema penal. Três respostas têm sido dadas: a) O consumidor é uma fonte de perigo para as outras pessoas e para a sociedade, sendo concebido como mero perigo objectivo; b) O consumidor é um doente ou é potencialmente um doente; c) O consumidor é uma pessoa que tomou uma decisão no espaço da sua privacidade e das relações consigo mesmo. Estas respostas cumulam-se no seio de uma mesma orientação legislativa, levando, por vezes, a algumas contradições: por exemplo, o consumidor pode ser tratado como doente para efeitos de sanção pelo consumo e imputável quando pratica certos crimes em estado de privação; o consumidor pode ser encarado como doente e sujeito a sanções que pressupõem a liberdade se recusar o tratamento; ou, ainda, o consumo pode ser descriminalizado apenas em nome da liberdade e da privacidade, mas o tráfico manter-se punido. Das respostas anteriores sobre o consumidor, há duas dificilmente aceitáveis: a ideia de que o consumidor é uma mera fonte de perigo devendo o Direito Penal intervir no consumo em nome da protecção de danos mediatos, meramente potenciais, provocados pelo consumidor ou ainda, mais remotamente, pelas consequências laterais do consumo — a criminalidade associada ao consumo e ao tráfico, a perturbação causada na sociedade, etc.; e a perspectiva de que o consumo é mero assunto privado onde o Estado não pode intervir a título algum. A primeira resposta é inaceitável porque corresponderia a justificar o tratamento penal do consumidor como exclusivo meio de prevenção geral, utilizando a punição do consumo como forma de atingir as consequências potenciais e indirectas do mesmo. Tratar o consumidor como fonte de perigo e não como sujeito de decisões lesivas de bens jurídicos é inadmissível em face do artigo 1.° da Constituição Portuguesa que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é, antes do mais, expressão de que cada pessoa é um fim em si mesmo e deve ser considerada como tal pelo legislador (...). Claro que também não seria compatível com a Constituição a incriminação do consumo em função do dano produzido em si próprio, na medida em que tal finalidade é alheia à legitimidade do poder punitivo de um Estado de Direito democrático e seria uma solução diversa da que, em geral, os sistemas penais dão à incriminação das alterações (...). A resposta segundo a qual o Estado não pode intervir a título algum também é dificilmente sustentável, na medida em que o consumo generalizado de estupefacientes produz danos sociais graves que reclamam a intervenção do Estado: perturbações e rupturas na família, problemas de saúde, problemas de integração social, esforços acrescidos na protecção social dos toxicodependentes e dissolução de relações sociais de autonomia e respeito. O consumo, pelos males sociais que lhe estão associados, não é um puro problema privado mas um problema social e, nesse sentido, por um lado, a descriminalização não pode justificar-se na perspectiva de que se trata da pura esfera de liberdade individual e, por outro lado, a intervenção do Direito no consumo pode ter ainda como justificação a prevenção de danos. Com esta resposta não são afastadas formas de regulação legal do consumo ou de interdição do mesmo nem, por exemplo, imposições alternativas de sanções de tratamento do consumidor toxicodependente, que continuem a visar o consumidor como sujeito de acções e que o responsabilizem enquanto as suas acções se relacionem com aqueles perigos e danos. Mas dificilmente estas razões podem justificar responsabilidade penal dos consumidores pelo facto de consumirem, como se o consumo fosse um crime de perigo, relativamente a meros danos indirectos e potenciais. Com efeito, nos crimes de perigo pressupõe-se uma possibilidade típica de dano directamente ligada à conduta e não meramente um dano, indirecto e mediato, derivado de uma conduta mas realizada através de outras de que o agente não é responsável, como, por exemplo, o tráfico ou a criminalidade a esta associada. Numa primeira conclusão, o consumo não pode ser criminalizado pelos danos potenciais e indirectos que suscita nem, por outro lado, é justificada a sua regulação legal por força desses danos, através de interdições e obrigações várias oponíveis ao consumidor, independentemente da sua responsabilidade penal. A outra resposta que considerámos — a que propõe o tratamento do consumidor como um doente — apesar de também ser problemática sugere que o consumidor seja, fundamentalmente, destinatário de protecção legal e não, sobretudo, de medidas repressivas. Justifica a descriminalização do consumo mas dificilmente permite apoiar, por si, certas medidas reguladoras repressivas do consumo ou uma intervenção preventiva sobre o consumidor em função de meros interesses sociais. É na conjugação da perspectiva do consumo como problema social e da perspectiva do consumidor como doente ou potencial doente que parece, inevitavelmente, brotar uma justificação da tutela penal à luz de princípios constitucionais. A criminalização do consumo é, assim, duvidosamente justificável (49) sem que isso prejudique a tutela penal nessa área, nomeadamente a incriminação das condutas que fomentem ou possibilitem o consumo. Por outro lado, impõe-se a regulação legal, mas não especificamente penal, do próprio consumo, permitindo-se que o consumidor seja destinatário de deveres (por exemplo, o dever de tratamento ou alguma alternativa de comportamento) e sujeito de protecção especial. A intervenção penal sobre o consumo justificar-se-á, assim, pela carência de tutela penal do cumprimento pelo consumidor dos referidos deveres e não do próprio facto do consumo (...)» (50).

7.2. Donde que, não se justificando, constitucionalmente, a criminalização do consumo em si (ou seja, «do próprio facto do consumo») (51), já no entanto se justificará, nesse contexto, a criminalização de condutas que, conquanto originariamente destinadas ao consumo próprio, «fomentem ou possibilitem o consumo (alheio)», como será o caso do cultivo de drogas ilícitas ou a sua aquisição ou detenção em quantidades que manifestamente excedam as «necessidades próprias» quotidianas. Com efeito, o «armazenamento para consumo próprio» - que, ao contrário do consumo em si, não poderá considerar-se uma «conduta autolesiva» - constitui um procedimento que, em si, comporta o risco de a droga «armazenada» poder vir, por exceder as necessidades de autoconsumo mais imediatas, a ser «dispensada» a terceiro e, por essa via, a reentrar no mercado (depois de aparentemente haver chegado, com a sua aquisição para autoconsumo, ao termo do seu circuito) e, eventualmente, a reacender a já tendencialmente extinta «relação exploratória» ( 52).

7.3. Com efeito, «ainda será legítimo (...) identificar como fundamento e âmbito da incriminação (de perigo abstracto) a possibilidade de outras pessoas acederem à droga» (53).

7.4. Em suma, porque «o tráfico, como é hoje definido, abrange condutas que exibem um grau diverso de ofensividade» dos bens jurídicos que visa proteger [«o que nele existe de eticamente censurável não é tanto o facto de ele ser um elo de uma cadeia de riscos (...) mas antes o facto de revelar uma específica relação de exploração de outros seres humanos: a utilização da sua saúde física e psíquica para fins económicos»] (54) e porque seria «excessiva» a sua «nivelação incriminatória», justificar-se-á que, do tráfico propriamente dito (maior, comum e menor: art.s 24.º, 21.º e 25.º do Decreto-Lei 15/93), se autonomizem, relegando-os - por ordem decrescente de gravidade - para o fundo da escala (55), o tráfico/consumo (art. 26.1) (56) e a aquisição e detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, de quantidades excessivas (artigo 40.º) (57).

7.5. Esta distinção entre «tráfico» (art. 21.º e ss. do Decreto-Lei 15/93), «consumo» (art. 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei 30/2000) e «aquisição e detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, de quantidades excessivas» (artigos 40.º do Decreto-Lei 15/93 e 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 30/2000) evitará até que se possa extrair «uma presunção inilidível de tráfico» (58) da «a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária pára o consumo médio individual durante o período de dez dias» (59), sem obstacular, em casos-limite (60), à exclusão, através da introdução de uma cláusula de “exigência mínima”, da própria tipicidade criminal da conduta (61).

7.6. Acresce que a proposta redução teleológica do aparente alcance literal do art.º 28.º do Decreto-Lei 30/2000, conduzindo embora à punição criminal (62) do consumidor que adquira ou detenha droga em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias (63), conta ainda a seu favor com a superação, por essa via, da «bem pouco satisfatória solução de reconhecer que há um vazio sancionatório que aconselha(ria) vivamente uma rápida e pontual intervenção legislativa no sentido de se [re]colocar em vigor, pretendendo-se assegurar a existência de um crime de perigo abstracto, uma norma idêntica ao n.° 2 do artigo 40.° do Decreto-Lei n.° 15/53 (com elevação para dez do número de dias de consumo médio)» (64).

7.7. Além de que, contendo o n.° 2 do artigo 2.° da Lei n.° 30/2000 «uma proibição forte, sob cominação penal implícita, de aquisição ou detenção de determinadas quantidades de droga», «concluir que, na falta dessa cominação penal, se deve proceder a um alargamento contra legem do ilícito contra-ordenacional corresponde(rá) ainda a uma violação do princípio de legalidade (explicitado, em matéria de direito de mera ordenação social, no artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro)» ( 65).

7.8. Enfim, o eventual reconhecimento de «um vazio sancionatório» poderia levar a que se «julgasse inconstitucional, por razões de igualdade e proporcionalidade, o [próprio] regime sancionatório previsto na Lei n.° 30/2000»: «Na verdade, se não forem sancionados o consumo, a aquisição e a detenção para consumo de droga em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias, também o não deverão ser as condutas menos graves e censuráveis em que estejam em causa quantidades inferiores de droga, à luz do n.° 1 do artigo 13.° da Constituição» (66).


8. CONCLUSÕES

8.1. Conciliando o equívoco texto do art. 28.º da Lei 30/2000 com o objectivo legal de evitar a descriminalização e, mesmo, a despenalização da aquisição e da detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, em quantidade que excedesse a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, haverá – na presunção de «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» - que confinar a expressa «revogação» do art. 40.º do Decreto-Lei 15/93 ao contexto do próprio diploma («Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»).

8.2. O artigo 40.º do Decreto-Lei 15/93 - circunscrito ao consumo e à aquisição e detenção para consumo próprio de drogas ilícitas em pequenas quantidades, por redução teleológica, o alcance da sua revogação pelas disposições conjugadas dos artigos 28.º e 2.º, n.º 2, da Lei 30/2000 - conservará válido e actual o texto remanescente: «1 Quem, para o seu consumo, cultivar plantas compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias. Se a quantidade de plantas cultivadas pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 5 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias. 2 - Quem, para o seu consumo, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».


9. DECISÃO

Tudo visto, o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência, delibera, confirmando o acórdão recorrido, fixar jurisprudência nos seguintes termos:

«Não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»


Supremo Tribunal de Justiça, 25Jun08


Os juízes conselheiros,

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(José António Carmona da Mota - relator)

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(António Pereira Madeira)

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(Manuel José Carrilho de Simas Santos)

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(José Vaz dos Santos Carvalho)

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(António Silva Henriques Gaspar) («Vencido, nos termos da declaração de voto»)

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(António Artur Rodrigues da Costa)

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(Armindo dos Santos Monteiro) («Vencido, nos termos de declaração de voto do Exmº Cons. Henriques Gaspar»)

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(Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor)

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(José António Henriques dos Santos Cabral)

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(António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes) («Voto vencido de acordo com a declaração apresentada pelo Exmº Cons. Henriques Gaspar»)

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(José Adriano Machado Souto de Moura) (declaração de voto anexa)

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(Eduardo Maia Figueira da Costa) («Vencido nos termos da declaração de voto junta»)

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(António Pires Henriques da Graça) («Com declaração de voto que anexo»)

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(Raul Eduardo do Vale Raposo Borges)

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(António José Bernardo Filomeno Rosário Colaço)

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(Jorge Henrique Soares Ramos)

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(Fernando Manuel Cerejo Fróis)

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(Luís António Noronha Nascimento – presidente)

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1- Desembargadores Coelho Vieira (relator), Luís Gominho (vencido: «Teria provido o recurso, pois que entendo ser a conduta o arguidosubsumível no artigo 40.º do DL 15/93»), António Gama (vencido: «Continuo a entender que as situações de detenção para consumo cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de 10 dias é sancionada como um ilícito criminal, seja por via do artigo 21.º seja por via do artigo 25.º») e Teixeira Pinto (presidente da secção).
2- Desembargadores André da Silva (relator), Francisco Marcolino (vencido), Ângelo Morais (vencido) e Baião Papão (presidente da secção).
3- P-G Adj. Valério Pinto.
4- P-G Adj. Isabel São Marcos.
5- De acordo com o relatório final da Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga, a descriminalização do consumo privado de drogas constantes das tabelas e, por maioria de razão, a descriminalização da detenção e da aquisição das mesmas substâncias para consumo privado. Por via disso, a Comissão sugeriu um movimento descriminalizador e, em consequência, a alteração do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
6- No dizer de Cristina Líbano Monteiro, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, 1º, 89 e ss..
7- Confira-se Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. 1º, 6º edição revista e ampliada, p. 158 e seguintes.
8- Confira-se autores, obra e local citados em (6).
9- Como considerado, entre outros, nos acórdãos de 03.07.2003 e 10.02.2006 do S.T.J., Processos n.ºs 1799/03 e 111/06, ambos da 5ª Secção e disponíveis em www.dgsi.pt e de 28.11.2006 da Relação de Évora, C.J. Tomo V, p. 263 e seguintes; de 04.04.2006 da Relação de Lisboa, C.J. Tomo III, p. 131 e seguintes.
10- De conferir, entre outros o Acórdão da Relação de Coimbra de 16.06.2004, C.J. Tomo III, p. 49;
11- Entendimento defendido por Eduardo Maia Costa, “Breve Nota Sobre o Novo Regime Punitivo do Consumo de Estupefacientes”, Revista do Ministério Público, Ano 22, n.º 87.
12- Entendimento sufragado por , “A Descriminalização do Consumo de Droga”, in “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, p. 1159 e seguintes.
13- No dizer, com toda a propriedade, de Cristina Líbano Monteiro, in “Revista de Ciência Criminal”, Ano 11, p. 89. De conferir ainda, citando a mesma autora, os acórdãos de 25.02.2003, da Relação de Lisboa, C.J. 2003, Tomo I, p. 142; de 17.06.2004 da Relação de Coimbra, C.J. III, p. 52 ou de 12.10.2005, da Relação do Porto, Processo n.º 416952 e de 11.01.2005 da Relação do Porto, Processo n.º 314384, disponível em www.dgsi.pt;
14- Entendimento sufragado, entre outros, nos acórdãos de 04.04.2006 da Relação de Lisboa, C.J. II, p. 131; de 21.11.2002, da Relação de Lisboa, C,J, V, p. 124; da Relação de Évora, de 28.11.2006, C.J. V, p. 1263.
15- De conferir no mesmo sentido os acórdãos de 28.09.2005 do S.T.J., Processo n.º 1831/05, 3ª Secção ou de 18.10.2006 da Relação de Coimbra, Processo n.º 210/05-4ª Secção, disponíveis em www.dgsi.pt, ou ainda de 21.11.2002 da Relação de Lisboa, C.J. Tomo V, p. 124.
16- Opinião defendida, entre o mais, nos acórdãos da Relação de Lisboa de 25.02.2003, C.J., I, p. 141 e da Relação do Porto de 16.11.2005, C.J. V, 221;
17- Entendimento sufragado, entre outros, nos acórdãos da Relação de Lisboa de 21.11.2002, C.J. V, p. 124 e de 25.02.2003, C.J. I, p. 141;
18- Opinião sustentada por Eduardo Maia Costa na obra antes citada.
19- Confira-se obra citada, p. 86 e seguintes
20- Prolatados, respectivamente, nos Processos n.ºs 1799/03, 446/05 e 111/06, todas da 5ª Secção, disponíveis em www.dgsi.pt;
21- De conferir, no mesmo sentido, os acórdãos do S.T.J. de 02.02.2006, Processo n.º 2871/05 e de 06.11.2003, Processo n.º 3254/03, ambos da 5ª Secção, disponíveis em www.dgsi.pt; da Relação de Lisboa de 21.11.2002, C.J. Tomo V, p. 124; 16.02.2005, Processo n.º 8446/04, de 01.10.2002, Processo n.º 0022745, de 21.11.2002, Processo n.º 0003569, disponíveis em www.dgsi.pt; da Relação do Porto de 16.11.2005, C.J. Tomo V, p. 221 e de 06.07.2005, Processo n.º 0445840; de 09.02.2005, Processo n.º 0410428; de 24.05.2006, Processo n.º 0640988; de 12.01.2005, Processo n.º 0314384; de 11.02.2004, Processo n.º 0111514 e de 12.10.2005, Processo n.º 0416952, disponíveis em www.dgsi.pt e ainda da Relação de Coimbra de 13.05.2006, C.J., Tomo III, p. 52; de 16.06.2004, C.J., Tomo III, p. 49;
22- Entendimento defendido, designadamente, nos acórdãos da Relação de Lisboa de 25.02.2003, C.J., I, p. 143; de 08.07.2003, Processo n.º 2725/2003 da 5ª Secção; de 04.04.2006, C.J., II, p. 131; da Relação do Porto de 10,11,2005, Processo n.º 4732/05 da 9ª Secção e de 06.07.2005, Processo n.º 0445840, disponíveis em www.dgsi.pt;
23- Código Penal, Anotado, Iº vol., 3ª edição, p. 95 e seguintes;
24- Veja-se acórdão do S.T.J. de 03.07.2003, Processo n.º 1799/03 da 5ª Secção;
25- E não propriamente a revogação.
26- «Já o cultivo para consumo, porque se alia perigosamente ao tráfico, justifica a manutenção de uma sanção de tipo criminal»
27- «De facto, a criminalização não se justifica por não ser meio absolutamente necessário ou sequer adequado para enfrentar o problema do consumo de drogas e dos seus efeitos, sem dúvida nefastos. Nem a defesa da saúde pública, nem a salvaguarda da segurança pública quando mediatamente ameaçada, nem mesmo a protecção da saúde dos consumidores menores têm necessariamente de fazer-se criminalizando os consumidores de drogas pelo simples facto de consumirem, possuírem, deterem ou adquirirem drogas exclusivamente para o seu consumo. Pelo contrário, esses desideratos podem ser suficientemente alcançados, com não menos eficácia, através da criminalização do tráfico, que sempre diminui a acessibilidade, aliada à proibição administrativa, por via do ilícito de mera ordenação social, do consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como da sua detenção e aquisição para consumo - tudo isto em complemento de reforçadas políticas públicas preventivas e de redução de danos»
28- Daí que a descriminalização da detenção e a aquisição de drogas ilícitas para consumo (também) se impusesse «não tanto por imperativos de coerência lógica face à descriminalização do consumo mas, sobretudo, porque também ela se revela[ria] desnecessária na existência de uma alternativa não menos eficaz. Na verdade, no quadro do ilícito de mera ordenação social podem as autoridades policiais proceder à identificação dos suspeitos, apreender a droga e desenvolver as investigações necessárias ao desencadear de uma perseguição penal dos traficantes, inclusive nos casos de detenção de droga para efeitos de tráfico»
29- «Esta solução, para além de aliviar os tribunais de um número considerável de processos por consumo de droga, com vantagens para o funcionamento da justiça em geral, permitir[ia], ainda, que o consumidor p[udesse] surgir numa posição processual distinta do arguido por tráfico e beneficiar de medidas de protecção adequadas, (...) com nítida demarcação de estatuto (...) actual -, o que contribuir[ia] par uma maior celeridade e eficácia da investigação e reforço da prova relativa a processos por crime de tráfico»
30- «Pelo contrário, em muitos casos o contacto com o sistema judicial e, por vezes, com os próprios estabelecimentos prisionais, aliado ao correspondente estigma social e, em certos casos, ao próprio registo criminal dessas situações, produz[ia] efeitos prejudiciais à desejada recuperação e, sobretudo, à ressocialização dos toxicodependentes»
31- «Esta lei não esclarece o que deva entender-se por "consumo médio individual"; mas continua em vigor o artigo 71.° do DL n.° 15/93, onde se pode ler [n.° 1, al. c)]: "os Ministérios da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal [hoje, Conselho Nacional de Medicina Legal], determinam, mediante portaria, os limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária"». Ora, dispõe a Portaria 94/96, de 26 de Março, no seu n.º 9.º (Limites), que “os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”

32- Rui Carlos Pereira, A Descriminação do Consumo de Droga, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003.
33- Tanto mais que «o diploma sofre (...) de um problema de "falta de convicção": é um Ersatz, um mau sucedâneo da solução ideal (mas jus-internacionalmente impossível): não sancionar» (Cristina Líbano Monteiro, loc. cit.): «A impressão que fica ao intérprete — confirmada pela leitura da Resolução do Conselho de Ministros que aprova a estratégia nacional de luta contra a droga (cf. DR, I – B, n.º 122/99, de 26 de Maio) — é a de que o legislador optou à contre-coeur pelo direito sancionatório de mera ordenação social. Rendeu-se ao parecer jurídico segundo o qual as convenções internacionais ratificadas pelo Estado português nesta matéria o impediam de retirar do número das infracções a detenção e a aquisição de drogas para consumo. Criou contra-ordenações com o propósito de afastar a dureza das sanções penais e o estigma que trazem consigo. Mas a sua confiança não está posta na eficácia preventiva das novas sanções: tudo leva a crer que a aposta vai no sentido de que a dissuasão da toxicodependência seja conseguida sobretudo pela capacidade humana e pela experiência neste campo dos membros das comissões aplicadoras das coimas. Dito de outro modo: a comissão (...) tem de aplicar sanções porque existe inserida num sistema legal sancionatório; quer-se, contudo, que cumpra de tal maneira bem o seu papel que, na mais optimista das previsões, não chegue a executar nenhuma, pois terá logrado encaminhar todos os agentes toxicodependentes para as instituições de saúde, onde livremente se submeterão a tratamento, e convencer todos os consumidores não toxicodependentes de que a droga sobra na sua vida».
34- Note-se – e sublinhe-se - que «para efeitos da presente lei» e não apenas «para efeitos do número anterior».
35- Que, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º, «tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas» e, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º, despromoveria a contra-ordenação, quando em pequenas quantidades, «o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior».
36- Cristina Líbano Monteiro, loc. cit.
37- «A lei da droga tinha, antes da modificação, uma lógica. Boa ou má (...) mas lógica, i. é: reinava a harmonia formal e material entre as suas normas. O intérprete — ajudado aliás por um relatório bem feito, peça de que a nova lei prescindiu — apreendia facilmente o sentido do sistema no seu todo e o lugar de cada peça nesse sistema. Para o que nos importa, a lei de 93 contemplava dois pólos criminosos: o do tráfico, mais grave, e o do consumo. O tipo fundamental de tráfico (artigo 21.°) pormenorizava as condutas proibidas: "quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou ilicitamente detiver" drogas... O delito de consumo (artigo 40.°) previa, para além do acto simples de consumir, também os de deter ou adquirir para consumo próprio as mesmas drogas. Era o elemento subjectivo do tipo, o propósito para além do dolo de destinar aquelas substâncias ao consumo do agente que perfilava o ilícito: a quantidade de droga detida ou adquirida para esse fim servia apenas para separar o consumo de pequena gravidade do outro. Sublinhe-se esta última afirmação: deixando de lado as questões de prova e a altíssima probabilidade de uma elevada dose de estupefacientes não se destinar ao consumo de uma única pessoa, a quantidade só por si nunca afastava uma conduta do âmbito de aplicação do tipo legal do artigo 40.° Tráfico e consumo eram tipos alternativos, de modo que o preenchimento de um afastava o do outro e vice-versa. Haveria áreas de sobreposição, não fora o elemento negativo integrante do tipo do artigo 21. ° "fora dos casos do artigo 40.°": assim se excluía ab initio a possibilidade de a detenção e a aquisição para consumo próprio alguma vez constituírem tráfico. Era como se o legislador dissesse: desde que a detenção ou a aquisição (na sua objectividade abrangidas também no elenco de condutas descritas pelo artigo 21.°) se destinem ao consumo de quem detém ou adquire, nunca há tráfico, por maiores que sejam as quantidades de droga em causa. Estipulavam-se — e neste ponto a lei não foi alterada — penas duras para os traficantes comuns (sempre mais de 4 anos de prisão). A ordem jurídica via neles os verdadeiros alimentadores da pandemia, os que destroem personalidades com a mira do lucro, os que são em toda a linha responsáveis: fortes que exploram a fraqueza alheia. Prudente, o legislador sabia, contudo, que nem todo o tráfico tem estas características e previu um crime especial de tráfico de menor gravidade (artigo 25.°), punível com prisão de 1 a 5 anos, nuns casos, ou com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, noutros. E compreendeu ainda outra coisa: que é diferente a situação de quem trafica para lucrar, mesmo que em pequena escala, da de quem o faz com a exclusiva finalidade de arranjar meios para se "abastecer" da substância de que talvez já dependa. E aqui entra a figura do traficante-consumidor, caracterizada pela lei não apenas em função do fim que persegue, como também — compreensível cautela — da quantidade de droga que maneja (não mais do que a correspondente à dose média individual para 5 dias). O legislador de 93 teve uma mão justificadamente branda para estes, para os que — digamo-lo por extenso —, sem autorização, cultivam, produzem, fabricam, extraem, preparam, oferecem, põem à venda, vendem, distribuem, compram, cedem ou por qualquer título recebem, proporcionam a outrem, transportam, importam, exportam, fazem transitar ou ilicitamente detêm, fora dos casos do artigo 40.°, substâncias ilícitas, tendo por finalidade exclusiva conseguir droga para uso pessoal (cf. artigo 26°). A penalidade descia, não podendo ultrapassar, na hipótese mais gravosa, 3 anos de prisão ou multa em alternativa e, nas outras, 1 ano de prisão ou 120 dias de multa» .
38- Cristina Líbano Monteiro, loc. cit.
39- Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134.º, n.º 3930.
40- «Se aquela conduta não pode ser contra-ordenação porque expressamente excluída pela letra da lei, e também não pode ser inteiramente livre, então ela terá de continuar a constituir um crime. Todavia, foi revogado o artigo 40.° do Decreto Lei n.° 15/93, que previa o crime de consumo de estupefacientes. Pelo que, aparentemente, o agente teria de ser punido pelo crime de tráfico. Esta não parece, porém uma solução razoável para o problema: seria contraditório o legislador ter despenalizado o consumo ter quantidade até 10 dias e, ao mesmo tempo, ter objectivamente agravado a punição do consumo de quantidade superior a 10 dias, a que passaria à caber, enquanto crime de tráfico, uma pena muito mais severa. Por força deste entendimento, há quem defenda que, não podendo considerar-se tal conduta uma contra-ordenação, ela deverá continuar a qualificar-se como criminosa, mas ainda no âmbito do crime de consumo. O que só será possível à luz de uma interpretação correctiva da norma revogatória do artigo 40.º do Decreto-Lei n.° 15/93 considerando-se que este está ainda parcialmente em vigor. O que equivale a dizer que, em Portugal; subsiste um crime de consumo de estupefacientes»
41- «Mais: como compreender que a posse de 1 (uma!) dose de droga a mais faça variar extraordinariamente não só a sanção mas também a própria natureza do ilícito (de contra-ordenação para crime)? E isto quando são conhecidas as diferentes críticas à forma como é definida a dose individual diária para as várias drogas à luz de um critério que só pode ser estatístico e que, por isso, sempre terá que desconsiderar as especificidades daquele consumidor de estupefacientes. O legislador despenalizou, portanto, todo o consumo. Mas não liberalizou, certamente, o consumo de quantidades superiores de droga. O que equivale a afirmar que a posse de droga em quantidade superior às 10 doses diárias, quando for para consumo próprio; terá de considerar-se uma contra-ordenação. Estar-se-á, deste modo, a desconsiderar inteiramente o valor-limite previsto no artigo 2.° da Lei n.º 30/2000? Julgamos que não. O que o legislador teve em mente foi que a detenção de quantidades maiores de droga indicia que esta pode destinar-se ao tráfico. Ora, sendo assim, as comissões terão de deixar de considerar-se ab initio competentes, enviando o processo para a entidade a quem a lei comina a direcção da investigação criminais: o Ministério Público. Mas se, durante o inquérito; se concluir pela inexistência de indícios suficientes para fundar à acusação por tráfico, então o processo deve ser apreciado por quem deve conhecer as situações de consumo: as Comissões de Dissuasão da Toxicodependência. Deve continuar a considerar-se que a qualificação de uma conduta como contra-ordenação de consumo ou como crime de tráfico tem de depender do propósito do agente de destinar ou não a droga ao seu próprio uso. Por ser assim, continuamos a poder deparar-nos com situações de tráfico apesar de o agente ser encontrado com menos droga do que as 10 doses diárias (as associações criminosas recorrem, de resto, cada vez mais a distribuidores finais que nunca têm consigo mais do que aquela quantidade fazendo várias curtas "viagens de abastecimento") e com situações de mero consumo em que o agente tem consigo mais do que as 10 doses»
42- Apesar de ter sido esse, porventura, o propósito governamental decorrente da Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99 de 26Mai99 (DR I-B 122/99), que aprovou a estratégia nacional de luta contra a droga.
43- Um «manifesto erro do legislador» (Maria Fernanda Palma, Consumo e tráfico de estupefacientes e Constituição, RMP 96).
44- Por «redução teleológica (...) ditada por princípios constitucionais e pela adequada compreensão das necessidades de tutela dos bens jurídicos» ( (A Descriminação do Consumo de Droga, Líber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003)
45- Iguais ou inferiores à «necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»
46- E, no seu todo, «como elemento excludente do tipo legal de tráfico»: “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos” (Decreto-Lei n.º 15/93, de 20 de Janeiro, artigo 21º, n.º 1).
47- Maria Fernanda Palma, Consumo e tráfico de estupefacientes e Constituição, RMP 96.
48- Ou, mais exactamente, de drogas que, na expressão de (A Descriminação do Consumo de Droga), «acarretem uma perda do senhorio de si».
49- «Apesar de ser legítimo punir o tráfico de droga, na. medida em que constitui um "fazer mal a outrem", dotado da ressonância ética negativa exigida pelo princípio da culpa e, em última instância, pelo princípio da essencial dignidade da pessoa humana (artigo 1.° da Constituição), não será legítimo aplicar penas públicas ao consumo de droga, em si mesmo, visto que este se configura como um "fazer mal a si próprio" destituído daquela ressonância». De qualquer modo, a descriminação do consumo não implicará o «reconhecimento de um direito subjectivo ao consumo de droga» (, ibidem).
50- Maria Fernanda Palma, ibidem.
51- «As perspectivas constitucionalmente justificadas inculcam políticas penais em que, sendo o consumo o vértice e o fim da intervenção, ele deve estar ausente do elenco de incriminações nessa área» (Maria Fernanda Palma, ibidem)
52- «No tráfico, o que existe de eticamente muito censurável não é tanto o facto de ele ser um elo de uma cadeia de riscos, tal como também a venda de álcool pode ser encarada — isso não seria bastante para tão grave censura —, mas antes o facto de revelar uma específica relação de exploração de outros seres humanos (a utilização da sua saúde física e psíquica para fins económicos) (I2). É essa ideia que torna a imagem do traficante diferente da do agente que meramente viola a ordenação social» (Maria Fernanda Palma, ibidem).
53- , ibidem.
54- «A perigosidade e a danosidade social não podem decorrer apenas da proibição legal do tráfico, nomeadamente da organização ilícita do mercado, mas hão-de, sim, resultar dos danos para os consumidores e para a sociedade» (Maria Fernanda Palma, ibidem).
55- Por se tratar de «condutas que, do ponto de vista da directa lesão de bens jurídicos [neles incluído o «danos das vítimas», o «domínio sobre as vítimas», a «saúde pública» e, acessoriamente, o «abstracto interesse colectivo em proibir o mercado ilícito»], têm significados muito diversos»
56- «Quando, pela prática de algum dos factos referidos no art. 21.º [que ressalva os «casos previstos no artigo 40.º»], o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal»
57- Se «não está absolutamente demonstrado (em termos de prognose) que a descriminalização do tráfico não potencie o aumento do consumo, que é o mal individual e social a evitar, como também que, apesar da descriminalização, não permaneça, no essencial, o fenómeno da exploração humana do toxicodependente com a venda livre de estupefacientes» (Maria Fernanda Palma, ibidem), também o não estaria – sem perigo se reactivação do circuito exploratório - o da descriminalização da aquisição, ainda que para consumo próprio, de quantidades manifestamente superiores às necessárias ao autoconsumo imediato.
58- Como certa jurisprudência, sem oposição do Tribunal Constitucional, já extraiu (cfr. TC 12Jun03, acórdão 295/2003: «A posse, por alguém que para tanto não está licitamente autorizado, de uma quantidade de substâncias que excede aquela que serviria para, pelo mesmo, ser consumida durante um determinado período de tempo (...), constitui (ou, ao menos, potencia) - por si e independentemente da falta de intenção do detentor de, ao detê-la, a oferecer, proporcionar, ceder, distribuir ou vender a terceiros, de a pôr à venda, distribuir, transportar ou transitar - um risco de essas mesmas substâncias assumirem a acessibilidade para algumas daquelas situações que se não incluíam ou incluem na vontade do agente. E, justamente por isso, não se crê que a norma que preveja e puna a detenção nessas condições seja reveladora de um manifesto excesso relativamente ao perigo de lesão dos bens jurídicos que se querem proteger e que não justificariam a criminalização, o que vale por dizer que se não descortinam razões que possam levar a efectuar um juízo de censura do legislador penal fundado na desadequação ou desproporcionalidade»).
59- «Delimitando o legislador o consumo de droga através da técnica legislativa própria dos crimes de perigo abstracto. Se alguém dispuser de determinada quantidade de droga — mesmo que a destine integralmente ao consumo por ser um "consumidor previdente" — será punido ipso facto como traficante, bastando, para tanto, que saiba que possui essa droga (para se afirmar o dolo, nos termos gerais dos artigos 14.° e 16.°, n.° 1, do Código Penal), e independentemente de se comprovar sequer que houve o perigo de a droga ser transmitida a um terceiro, criando o risco de consumo alheio (como se exigiria num crime de perigo concreto)» (, ibidem).
60- «Quando a defesa conseguir provar estar completamente fora de causa a possibilidade de transmissão da droga a terceiros» (, ibidem).
61- «Sem pôr em causa a legitimidade desta técnica em geral — de que depende a compatibilidade dos crimes de perigo abstracto in totum com princípios constitucionais como o princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança, imediatamente derivado do artigo 18.°, n.° 2, e recondutivel, em última instância, ao artigo 2.° da Constituição (princípio democrático) —, deve aceitar-se a introdução de uma cláusula de "exigência mínima" que afaste a punição (por exclusão da tipicidade), quando a defesa conseguir provar que estava completamente fora de causa a possibilidade de transmissão da droga a terceiros. Esta restrição é imposta, precisamente, pelo princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança e por um direito penal que apresenta como finalidade expressa a defesa dos bens jurídicos (artigo 40.°, n.° 1, do Código Penal). E tal restrição não implica uma confusão entre crimes de perigo abstracto e crimes de perigo concreto: nestes, recorde-se, o perigo constitui um resultado normativo, cuja verificação e conexão com a conduta do agente a acusação tem de provar positiva e casuisticamente. Refira-se ainda que a atribuição do "ónus da prova", nestes casos, à defesa não promove uma inversão desse "ónus" nem subverte o princípio do acusatório. A admissibilidade de a defesa provar que não seria possível criar perigo num crime de perigo abstracto corresponde a uma verdadeira redução teleológica do âmbito de protecção norma incriminadora, ditada por princípios constitucionais e pela adequada compreensão das necessidades de tutela dos bens jurídicos» (, ibidem).
62- Nos termos do n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei 15/93.
63- Que «seria facilmente defensável se tal norma não tivesse sido expressamente revogada pelo artigo 28.° da Lei n.° 30/2000. Com efeito, na ausência dessa revogação expressa, a lógica da incompatibilidade de regimes deveria implicar a persistência de um crime de consumo agravado (artigo 40.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 15/93), referido, todavia, a uma quantidade de droga superior à necessária para dez (e não apenas para três) dias de consumo médio (artigo 2.°, n.° 2, da Lei n.° 30/2000)» (, ibidem).
64- Ou «através de uma regra de subsidiariedade que previsse a norma que contempla a contra-ordenação só seria aplicada se o não fosse a norma incriminadora (do n.° 2 do artigo 40.° do Decreto-Lei n.° 15/93), devido á cláusula de exigência mínima ou por qualquer outra razão)» (, ibidem).
65- Rui Pereira, ibidem.
66- Rui Pereira, ibidem.






1. Mantendo a posição que subscrevi, como relator, no acórdão de 28/09/2005, proferido no processo nº 1831/05, coincidente com a formulação proposta pelo magistrado recorrente, não acompanho a interpretação que fez vencimento, reiterando as razões que determinaram a anterior decisão e que me parecem inafastáveis segundo os princípios, os critérios e as metodologias de interpretação sedimentados no património jurídico.

2. Na execução de uma nova intenção política enunciada na Resolução do Conselho de Ministros nº46/99, de 26/5/99 (DR nº 122/99; I série-B), que aprovou a estratégia nacional de luta contra a droga, sobre o tratamento sancionatório do consumo de droga, foi publicada a Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, que, tendo como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica, descriminalizou o consumo, a detenção e a aquisição para consumo de plantas, substâncias e preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro.
Dispõe o nº 2 da Lei nº 30/2000, sob a epígrafe de “consumo”:
«l - O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.
2 - Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».
Por seu lado, o artigo 28º - disposição revogatória – determina que «são revogados o artigo 40°, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis» com regime aprovado pela nova lei.
O artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, punia como crime o consumo privado, o cultivo, a aquisição ou a detenção para consumo privado de substâncias estupefacientes (nº 1), com disposição específica (nº 2) para os casos em que o consumidor detivesse quantidade que não excedesse a necessária para o consumo médio individual durante três dias.
Foi neste quadro normativo que a jurisprudência e a doutrina encontraram soluções diversas para a questão suscitada, referidas no texto do acórdão e que determinaram a necessidade de fixar jurisprudência.

3. A solução para a enunciada vexata questio tem de partir nuclearmente da intervenção e aplicação dos princípios: – conjunto de valores e regras essenciais sedimentadas na dogmática, e pressupostos permanentes no enquadramento e na leitura das hipóteses controversas.
Em matéria penal (e no direito sancionatório em geral), há princípios rectores, imamentes, que comandam a teoria do direito penal, desde a formulação à interpretação das respectivas normas: o princípio da legalidade e as especificidades da interpretação das normas de direito penal, nomeadamente a proibição da analogia.
O princípio da legalidade, com inscrição constitucional (artigo 29º, nº1 da Constituição) significa, no conteúdo essencial, que «não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege (cf. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, “Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime”, 2004, pág. 165).
É princípio inscrito como direito fundamental também em instrumentos internacionais, com conteúdo e sentido determinado através de referências objectivas e com modelação operativa.
O artigo 7° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por exemplo, constitui também uma norma fundamental de direito penal material, e mesmo de direito constitucional penal, afirmando o princípio nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege, a legalidade dos crimes e das penas e a não retroactividade da lei penal.
A densificação convencional da garantia reverte à certeza, clareza ou previsibilidade da estatuição e suas consequências — estatuição que pode constar de lei escrita, mas ser igualmente constituída por formulações próprias do sistema de common law; o que releva, para efeitos da garantia, é que a estatuição seja clara, precisa, acessível e previsível. Do ponto de vista da protecção dos direitos do homem é decisivo o princípio segundo o qual o legislador deve fixar de uma forma precisa e clara os limites entre os comportamentos permitidos e os comportamentos puníveis penalmente, interessando neste aspecto a previsibilidade da condenação por certo comportamento (acção ou omissão).
Na elaboração que tem sido desenvolvida a propósito das noções utilizáveis na integração do princípio, tem-se entendido que a clareza da estatuição (norma, lei escrita, antecedente preciso) está preenchida quando o indivíduo possa saber, a partir do texto pertinente, e se necessário com o recurso e o auxílio da interpretação pelos tribunais, quais os actos ou omissões que constituem infracção e pelos quais pode ser criminalmente responsabilizado, mesmo que para tal tenha de recorrer a um conselho esclarecido para avaliar, com adequado grau de razoabilidade, as consequências que podem resultar de determinado acto.
Nesta perspectiva de ordenação da garantia, uma norma não pode ser considerada como “lei” para efeito da protecção contida no artigo 7° da Convenção, se não for formulada com suficiente precisão, de modo a que habilite um indivíduo a regular a sua conduta: este deve poder antever e prever, com um grau de razoável exigência nas circunstâncias do caso, quais as consequências de natureza penal que podem resultar de uma sua acção ou omissão (cf., v. g., entre outros, as formulações do acórdão do TEDH, de 15 de Novembro de 1996, no caso Cantoni c. França).
Nos termos em que a garantia do artigo 7° da Convenção tem sido considerada, o princípio da legalidade exige, pois, que a infracção esteja claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal; a disposição tem de se revelar suficientemente clara. A amplitude da noção de previsibilidade depende em larga medida do conteúdo do texto que esteja em causa, do domínio que cobre, bem como do número e qualidade dos seus destinatários. Por outro lado, a previsibilidade da lei não é incompatível com a exigência de adequada informação, nem deixa de ser considerada mesmo que o interessado deva recorrer a conselhos esclarecidos para avaliar, em medida razoável e perante as circunstâncias do caso, quais as consequências que podem resultar de determinado acto, especialmente quando se trate de situações em que os agentes, pelo rigor e exigências próprias das respectivas actividades, devam fazer prova de uma grande prudência, esperando-se que coloquem um particular cuidado na avaliação dos riscos que a sua actividade comporta.
Por isso, o princípio significa «que por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos» (cf. Figueiredo Dias, op. cit, pág. 168).
O princípio da legalidade significa também a proibição da analogia, importando sempre determinar o que é susceptível de interpretação permitida (o sentido literal, as expressões polissémicas, os conceitos normativos e descritivos) e o que pertence já à analogia proibida em direito penal pelo princípio da legalidade.
De todo o modo, toda a interpretação possível em direito penal tem de ser «teleologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e por outro que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assume no sistema» (cfr. Figueiredo Dias, op. cit., pág. 178).

4. A coordenação normativa das disposições dos artigos 2º, nºs 1 e 2 e 28º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro (entre o – aparente - limite da contra-ordenação e a clara e intensa intenção revogatória da criminalização do consumo) pode sugerir a existência de uma disfunção normativa («esquecimento», «lacuna», «deficiência») ou um «vazio sancionatório» (como se exprime, p. ex. Rui Pereira, “ A Descriminalização do consumo de doga”, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, pág. 1159, ss, desig. pág. 1171, onde refere ser «óbvio que esta “lacuna sancionatória” resultou de um “erro” do legislador de 2000»).
Mas se fosse assim, então não seria função da interpretação em direito penal manipular instrumentos hermenêuticos para, ou «deixar bem» o legislador, ou, não melhor, para sustentar uma razão (subjectiva) do que seria (deveria ser ou mereceria) o sentimento de justiça do intérprete.
Há, por isso, que fazer intervir na interpretação os princípios fundamentais de direito penal como chave da solução. A interpretação em direito penal (e sancionatório, em geral) não pode desconsiderar princípios fundamentais – tipicidade; legalidade; não retroactividade in malam partem; proibição de analogia.
Nesta perspectiva, os princípios – da legalidade e da consequente proibição da analogia, e da interpretação teleologicamente comandada – apontam, logo e decisivamente, para a impossibilidade estrutural e dogmática de fazer apelo à disciplina típica dos artigos 21º ou 25º (ou 26º) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Na verdade, e uma vez que anteriormente à Lei nº 30/2000 nunca o consumo fora punido nos termos das restantes actividades de largo espectro da tipicidade do artigo 21º (ou dos artigos 25º ou 26º) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, a superação por tal modo de um hipotético «vazio legislativo», isto é, «a punição de quem detenha droga para consumo em quantidade superior à referida no n° 2 do artigo 2° da Lei n° 30/2000 só pode resultar de uma aplicação analógica de normas incriminadoras, expressamente proibida pelo artigo 29°, nºs l e 3, da Constituição (e pelo artigo 1º, nºs l e 3, do Código Penal)» (cfr. Rui Pereira, op. cit. pág. 1172).
Por seu lado, a solução que fez vencimento – a detenção de droga em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias integraria o crime p. e p. no artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro - faz apelo, na construção interpretativa, a uma interpretação restritiva da norma revogatória do artigo 28º da Lei nº 30/2003, de 29 de Novembro, construção que, embora sem argumentação densificada, parece utilizar como instrumento a redução teleológica.
Todavia, o princípio da legalidade opõe-se também, decisivamente, a esta solução, justamente por causa da revogação expressa que foi operada.
Desde logo pela construção interpretativa.
A função de garantia do princípio da legalidade exige a qualidade da lei, previsibilidade e acessibilidade, de modo a que qualquer pessoa possa perceber e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua acção ou omissão.
A qualidade da lei supõe que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente díspares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida.
A conjugação normativa entre o âmbito material da Lei nº 30/2000 e a sua norma revogatória (o artigo 28º) e o direito penal anterior sobre a matéria que regula, revela, como se referiu, alguns problemas de qualidade da lei com afectação irremediável do princípio da legalidade.
Com efeito, a norma do artigo 28º da Lei nº 30/2000 é peremptória, directa, e com alcance imediatamente apreensível por si – o artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro foi expressamente revogado, excepto – o que também é directo e imediato – no que se refere ao cultivo de plantas para consumo privado próprio. Não contém, pois, qualquer incerteza de escrita, nem ambiguidade ou polissemia nas palavras, nos conceitos ou na construção gramatical.
A revogação expressa de uma norma penal incriminatória não é compatível, na perspectiva de garantia plena do princípio da legalidade penal, com uma interpretação que privilegie uma (possível) compreensão no plano sistémico, contrariando pelo mecanismo interpretativo da compatibilidade (óptima) de sistemas o efeito da revogação expressa.
A interpretação restritiva de norma expressamente revogatória de uma norma incriminadora, encurtando o sentido e o alcance da revogação, constitui, no plano material, não uma restrição, mas uma extensão que faria permanecer em parte a norma incriminadora apesar da revogação, contrariando decisivamente o conteúdo essencial do princípio da aplicação in melius em caso de sucessão de leis sancionatórias.
E o plano material é aqui decisivo, não sendo compatível com nominalismos de referência com efeitos contrários à substância das coisas. A construção formal não poderá esconder uma ampliação da incriminação sem afectar a legalidade material, que constitui princípio da constituição penal.
O exercício metodológico que conduziria a manter parcialmente em vigor uma norma expressamente revogada, restringindo o sentido da revogação, equivale, no rigor material das coisas, a uma extensão da norma revogada, que seria determinada pela teleologia que uma particular concepção do intérprete considerasse presente no plano do legislador ao formular a sequência normativa na execução de uma ideia, directamente expressa, de política legislativa.
Mas nem tal concepção teleológica é patente (bem em diverso, a nova ideia de política criminal foi precisamente a descriminalização do consumo de drogas como resulta da intenção política enunciada na Resolução do Conselho de Ministros nº46/99, de 26/5/99 que aprovou a estratégia nacional de luta contra a droga, sobre o tratamento sancionatório do consumo de droga), nem a consequente extensão teleológica (descriminalização do consumo apenas quando o consumidor detivesse produto para o consumo de dez dias) é admissível como instrumento metodológico com o efeito de adensar a dimensão penal de comportamentos, enfraquecendo e encurtando o princípio da legalidade.
Na verdade, pelos elementos disponíveis de interpretação, não se encontra uma única razão que tivesse levado o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo da detenção de produto, uma conduta – o consumo - que decidiu descriminalizar.
A posição que fez vencimento trabalha inteiramente sobre um modelo imaginado, que nem sequer constituía ou tinha correspondência no modelo da construção típica, dogmática e valorativa do (revogado) artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Também por aqui se expõe alguma inconsistência metodológica e argumentativa da posição que fica adoptada no acórdão.
Com efeito, o artigo 40º nunca esteve construído como crime de perigo, muito menos de perigo abstracto, em relação às quantidades detidas ou adquiridas para consumo. Por isso, as quantidades só tinham relevo para as duas molduras penais previstas, não por diferente construção dogmática do tipo em função da quantidade detida ou adquirida, mas pelo maior ou menor dano potencial do consumo para o consumidor, e não pelo risco, adjacente, de disseminação ou desvio de fim se as quantidades para consumo fossem maiores.
Não sendo o artigo 40º, no que respeitava ao consumo, construído como crime de perigo (como o artigo 21º e os demais), mas de prevenção do dano (para a saúde e bem estar do consumidor) era inteiramente estranha à construção do crime o perigo, rectius, o risco, de a maior quantidade detida ser (abstractamente) susceptível de vir a ser desviada ou disseminada.
Mas, sendo assim, não se poderá, por efeito de interpretação, pretender ressuscitar uma infracção com base em configurações valorativas e em análise de impressões sobre a identificação de um crime de perigo que não existiam ou concorriam no original ou antes da revogação que se pretende apenas parcial.
Mesmo se fosse apenas conceptual, a Fénix não poderá ser essencialmente diferente depois de renascida das cinzas.
Como melhor refere o voto do Senhor Conselheiro Maia Costa, «a posição maioritária, na sua tentativa de justificar materialmente a sobrevivência do artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de forma a abranger as situações de aquisição ou detenção de quantidades superiores a 10 doses diárias, chega a um resultado paradoxal: o da criação de um novo crime, denominado “aquisição e detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, de quantidades excessivas”, que é afinal um crime de tráfico, uma vez que é o perigo de as drogas detidas serem lançadas no mercado que [seria] aí tutelado».
E - sublinhe-se – um novo crime que, como tal, como crime de perigo, com a configuração e construção que resulta da posição maioritária, nunca existira no anterior regime.

5. Com todo o respeito pela análise que empreende, pela metodologia de abordagem que acolheu e pelo resultado que alcançou, a solução maioritária, bem vistas as coisas, não enfrentou a questão essencial, e como alguma doutrina que acolhe, parece ter querido não «deixar mal» o legislador, situando o plano normativo não tanto na perspectiva do legislador, mas na (ou também na) perspectiva do intérprete.
No essencial, a solução adoptada parte do pressuposto de que, na passagem da criminalização do consumo de drogas para o ilícito contra-ordenacional, não foi contemplada a totalidade do plano normativo do legislador, ficando uma imperfeição ou incompletude nesse plano, ou um plano ordenador não acabado em relação àqueles casos (detenção ou aquisição de drogas para consumo próprio em quantidades superiores a 10 doses diárias) que não deixariam de exigir também uma solução segundo o plano traçado pelo legislador.
Mas uma incompletude desta natureza não é dizer menos do que o legislador quereria; diversamente, é não dizer nada do que se deveria ou quereria dizer. Uma tal imperfeição («esquecimento»; «vazio sancionatório», como alguma doutrina se exprime sobre a questão) só pode ser metodologicamente qualificada como “lacuna”.
Mesmo supondo que o legislador se «esqueceu», o intérprete não pode dizer qual seja a natureza e muito menos o conteúdo do «esquecimento»: se o esquecimento foi da sanção penal, renascendo o artigo 40º, ou se foi de uma outra sanção, na fórmula plástica comparável à do modelo anterior, mas no âmbito das contra-ordenações.
E, como é dos princípios, em direito penal (e sancionatório) não há integração de lacunas. Como se referiu, «esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos».

6. O legislador descriminalizou todo o consumo, mas não liberalizou o consumo de drogas. O que equivale a dizer que a posse de droga em quantidades superiores ao necessário para o consumo médio durante dez dias, desde que tenha por finalidade exclusiva o consumo privado próprio, terá se ser considerada como contra-ordenação, nos termos do artigo 2º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro.
O sentido da norma do nº 2 do artigo 2º da referida Lei, na coordenação possibilitada pelo princípio da legalidade, será o de que o legislador teve em mente que a detenção por consumidor de quantidades maiores de droga pode indiciar a possibilidade de risco de disseminação, dependendo a qualificação, no fim de contas, da prova, em processo penal (inquérito ou julgamento) de que o produto detido se destina exclusivamente a consumo privado próprio (cf. José de Faria Costa, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134º, nº 3930, pág. 275 ss.).
Fixaria, por isso, jurisprudência no sentido proposto pelo Magistrado recorrente.

António Silva Henriques Gaspar



DECLARAÇÃO DE VOTO


Votei o presente acórdão pelas razões seguintes:

Como se sabe, o D.L. 15/93 de 22 de Janeiro relativo ao “Tráfico e consumo de estupefacientes” criou um tipo de crime matricial, o do artº 21º, com referência ao qual se previram os tipos derivados dos artºs 24º 25º e 26º. Estes, distinguem-se sobretudo pela verificação de circunstâncias qualificativas agravantes, pela diminuição sensível da ilicitude, pela circunstância de o agente traficar para consumir, respectivamente. No artº 40º do diploma previu-se o crime de consumo de estupefacientes, num capítulo, o IV, reportado a “Consumo e tratamento”, e por isso é que, no artº 21º citado, a propósito da descrição dos comportamentos que integram o tipo, se acrescentou, “fora dos casos previstos no artº 40º”. Portanto, a problemática do consumo era tratada de modo privilegiado à parte, mantendo-se embora numa área de criminalização.
Acontece que a Lei 30/2000, de 29 de Novembro, no seu artº 28º, revogou o artº 40º do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, “excepto quanto ao cultivo”. Ao mesmo tempo, previu o consumo como actividade ilícita, mas em termos contra-ordenacionais, no seu artº 2º. Só que, segundo o nº 2 do dito artº 2º, “Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias.”
Assim, por um lado pretendeu-se deslocar a reacção ao fenómeno do consumo para a área das contra-ordenações, mas, por outro, circunscreveu-se bastante o círculo de comportamentos considerados relevantes, em materia de consumo, para o efeito de se poder beneficiar de uma reacção sancionatória de espécie diferente.
O artº 9º, bem como o Mapa Anexo, da Portaria 94/96 de 26 de Março, elucidam sobre as quantidades a ter em conta para efeito do que deve ser tido por consumo médio individual diário. No tocante a resina de “cannabis” é de 0,5 gr..
A partir da entrada em vigor da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, suscitaram-se fundadas dúvidas sobre o regime a aplicar, aos casos em que houvesse detenção só para consumo, e de quantidades de estupefaciente superiores ao necessário para o período de dez dias, à luz da Portaria indicada.
As opiniões divergiram tanto na jurisprudência como na doutrina, desde quantos entenderam ter-se operado não só uma descriminalização, como uma total despenalização do consumo ou detenção para consumo (sempre excluído o caso do cultivo), a quantos consideraram que estaria em causa, sempre, uma contra-ordenação, e independentemente da quantidade de droga detida.
Também se defendeu que o artº 40º do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro teria ficado só parcialmente revogado, mantendo-se em vigor na parte não prevista no artº 2º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro. Finalmente, já se considerou que o artº 21º e, eventualmente, até com mais probabilidade, o artº 25º, se aplicariam também a casos de consumo, estando em causa quantidades superiores a dez doses diárias.
Não é possível ignorar que na génese da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, terá estado a Resolução de Conselho de Ministros 46/99 de 22 de Abril, que aprovou a “Estratégia Nacional de Luta contra a Droga” a si anexa. Nos termos desta, ficou claro que o Governo se pronunciou, entre o mais, pela descriminalização do consumo de estupefacientes, pelo enquadramento do consumo (ou detenção para consumo) no âmbito das contra-ordenações, pela excepção expressa do cultivo, o que haveria de passar para o artº 28º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro.
Mas, na “Estratégia”, nada se diz sobre a relevância que, para efeitos de reacção sancionatória, poderia ter a quantidade de droga detida (cfr. pag.74 a 77 da edição do Conselho de Ministros Dep. Leg. 140101/99).
A partir daqui, é legítimo pensar que as fontes da Lei 30/2000 não podem reduzir-se àquela Resolução do Conselho de Ministros, e que obviamente passaram a ser tidos em conta, no sector, outros interesses, para além do da protecção do consumidor, ou da necessidade de se encarar este como doente.
Claro que, tendo em atenção o disposto no nº 3 do artº 9º do C.C., “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” Ora, no passo da descriminalização, o legislador não pode ter ignorado a problemática gerada pelos pequenos tráficos que se escondem detrás de alegadas detenções para consumo, para além do modestíssimo efeito que as sanções pecuniárias vêm tendo junto de toxicodependentes.
A questão pôs-se com acuidade em Espanha, com a descriminalização que se operou em 1983, sem que a lei estabelecesse condições, e logo se teve que recorrer à jurisprudência, para estabelecimento de critérios que permitissem distinguir o que no caso estava verdadeiramente em causa, se uma detenção só para consumo, ou não. Recorde-se que é o artº 368º do C.P. espanhol que pune o “tráfico e outras actividades ilícitas”, mas sem se incluir aí o consumo ou detenção para consumo.
A toxicodependência do possuidor, a apresentação disposição e repartição da droga, a existência de instrumentos para a sua adulteração ou divisão, e, acima de tudo, a quantidade da droga detectada foram então apontados como critérios (cfr. Cuesta Arzamendi, “Características de la Actual Politica Criminal Española en Matéria de Drogas Ilícitas”, in “La Actual Política Criminal Sobre Drogas – Una Perspectiva Comparada”, coorden. Diéz Ripollés/Laurenzo Copello, pag. 61, ou Serrano Gomez/Serrano Mailló in “Derecho Penal – Parte Especial” pag. 698).
Na Alemanha, alegou-se que “O legislador fundamenta a punição da posse de drogas, por um lado, no perigo de que se entreguem essas drogas a outros, e por outro lado, na necessidade de evitar dificuldades probatórias em processo penal, porque em muitos casos não é possível averiguar ou provar os fins da posse da droga.” (Walter Perron, in “Legislacion Penal Vigente y Proyectos de Reforma Sobre Trafico y Consumo de Drogas en la Republica Federal de Alemania”, ob. cit. pag. 281).

Somos obrigados a pensar, que o nosso legislador não ignorou as dificuldades probatórias, quando estão em causa quantidades que, apesar de relativamente elevadas, se alega serem só para consumo, e sem que seja possível provar que não são só para consumo. Acresce que o legislador não pode ter querido que a descriminalização do consumo de droga, ou a sua aquisição e posse, alegadamente só para consumo, se transformassem num instrumento jurídico, para explorar ao serviço da proliferação de redes de pequeno e médio tráfico.
Vejamos então a menos má das soluções que pode resultar das normas em confronto.
O artº 1º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, determina no seu nº 1 o objecto do diploma, como a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.
Ora, no nº 1 do artº 2º da Lei diz-se que “o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação”. Mas, como se viu, logo o nº 2 acrescenta Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias.”
Ou seja, pretendeu-se que a lei tivesse um papel protector para o consumidor, tanto na dimensão do regime jurídico aplicável, como da protecção sanitária e social. Mas, para os efeitos da mesma lei, o regime jurídico que se pretendeu introduzir em termos mais benevolentes para o consumidor, em termos de contra-ordenação, não poderá ser aplicado, quando se estiver em face de mais de dez doses diárias de estupefaciente.
O nº 2 do artº 2º da Lei 30/2000 é claro quando usa a expressão “Para os efeitos da presente lei”. Um dos efeitos da lei em causa é a abordagem do consumo como contra-ordenação. Se a quantidade for superior ao correspondente ao consumo para dez dias, a lei quis que os seus efeitos se não fizessem sentir, é dizer, pretendeu que a situação não fosse abrangida pela disciplina que introduziu.
Com duas consequências.
Por um lado, não seria razoável aplicar-se sempre a mesma contra-ordenação, independentemente da quantidade que estivesse em causa, porque assim se estaria a ignorar completamente a vontade legislativa, a qual estabeleceu expressamente um limite quantitativo, e isso para alguma coisa.
Em tal hipótese, seria o intérprete a revogar pura e simplesmente o nº 2 do artº 2º da Lei 30/2000. Ou seja, estar-se-ia a proceder a uma interpretação abrogatória do dito nº 2, com os obstáculos que tal tipo de interpretação tem no nosso sistema jurídico. E, ver no nº 2 do artº 2º “uma mera indicação”, do que é razoável considerar uma quantidade para consumo, depara-se a nosso ver com a seguinte dificuldade: o preceito adoptou uma redacção categórica, na exclusão dos efeitos da lei (e portanto do regime contra-ordenacional introduzido), estando em causa quantidades superiores a dez doses diárias.
Por outro lado, não seria correcto ter em conta o dito nº 2, só para concluir que, não se censurando o comportamento mais grave (detenção de mais de dez doses), também se não podia censurar o menos grave. Nesse caso, a detenção para consumo, fosse em que quantidade fosse, nunca seria portanto perseguida, nem sequer como contra-ordenação.
A nosso ver, não tem por que se chegar a essa conclusão, igualmente abrogatória, mas agora tanto do nº 1 como do nº 2 do artº 2º. Desde logo, porque ainda está por demonstrar que não possa continuar a haver reacções de ordem criminal para a detenção superior a dez doses. Depois, porque nem a solução mais razoável da lei, nem o propósito do legislador histórico, passam pela eliminação completa de toda e qualquer reacção, ao consumo e à detenção para consumo de estupefacientes.
Fica agora a questão de saber se tem lugar o cometimento do crime do artº 40º do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, ainda parcialmente em vigor, ou o do artº 21º (e mais provavelmente do artº 25º) do mesmo D.L ., estando em causa a detenção de uma quantidade de droga superior ao necessário para consumo durante dez dias.
De notar que o artº 21º está epigrafado “Tráfico e outras actividades ilícitas”. E, efectivamente, o conteúdo do preceito é bem compatível com comportamentos que se não analisam na acepção corrente de tráfico: vender, por à venda, comprar para vender. Importante é a verificação de que inexiste no artº 21º um dolo específico. Não se exige aí um qualquer fim lucrativo, e a vulgarização da expressão “tráfico” para designar os crimes dos artºs 21º, 24º, 25º, e 26º, resultou fundamentalmente da contraposição à previsão do consumo, no artº 40º.
Revogado este artº 40º (excepto quanto ao cultivo), passaram a ser excluídos da previsão do artº 21º, e tipos derivados, apenas os comportamentos a que o legislador quis continuar a proporcionar tratamento diferenciado, traduzido em protecção do consumidor. Ora, o tratamento privilegiado do consumidor antes previsto no artº 40º, passou a estar agora, à primeira vista, só no artº 2º da Lei 30/2000 (para além da excepção do cultivo). Mas, como já se viu, esse tratamento privilegiado tem a limitação do seu nº 2, que não podemos ignorar.
O caminho que vimos seguindo levar-nos-ia a concluir que se optou, em termos de política criminal, por um endurecimento inaceitável no tratamento da posição do consumidor, o que remaria contra a orientação da Resolução do Conselho de Ministros acima referida.
Mas, se por um lado a Lei 30/2000 não é um diploma do Governo, por outro, não pode ser completamente excluída uma opção de política criminal que quisesse separar nitidamente as águas. Estando em causa o consumo, sempre se poderia aduzir que, para introduzir uma maior segurança, o legislador quis que a situação relevante como consumo, fosse aquela em que não estivesse em causa mais do que certa quantidade de droga. Só nesse caso é que a reacção sancionatória se distanciaria, com clareza, da do artº 21º e 25º do D.L. 15/93, sendo muito mais branda. Assim, do crime do artº 40º passar-se-ia para uma contra-ordenação.
Em todas as restantes situações que a lei não quis tratar como de consumo relevante, à luz do artº 2º nº 2 da Lei 30/2000, ter-se-ia então operado um efectivo endurecimento da reacção, no caso, criminal.
Será de acatar este entendimento?
A via seguida apresenta-nos uma dificuldade que se não vê como ultrapassar. É que o cultivo de produto estupefaciente para consumo, em qualquer quantidade superior à exigida para dez dias, constitui indubitavelmente o crime do nº 2 do artº 40º. Mas a mera detenção de produto estupefaciente para consumo, em quantidade equivalente aos mesmos mais de dez dias, representaria o cometimento do crime, pelo menos, do artº 25º do D.L. 15/93. O primeiro é punido com a pena de prisão até um ano e o segundo com a pena de prisão de um a cinco anos.
Não pode ser.
Resta-nos portanto ver se não se mantem o crime de consumo, do artº 40º do D.L. 15/93.
Para chegarmos à manutenção em vigor, parcial, do nº 2 do artº 40º, poderá enveredar-se pela interpretação restritiva da norma revogatória do artº 28º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro (tal como, aliás, da norma do nº 2 do artº 40º do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, porque as quantidades correspondentes a um consumo, próprio de entre 3 e 10 dias, não caberiam na previsão do crime).
É certo que o artº 28º, do D.L. 15/93 citado, não se limita a revogar em bloco o apontado artº 40º, antes prevê explícitamente uma excepção, a do cultivo de droga. Ora, por via interpretativa, o aplicador irá então criar outra excepção, não resultante da literalidade da lei: o nº 2 do artº 40º permanecerá ainda em vigor, no tocante a simples consumidores, mas só para os casos em que estivessem em causa quantidades de droga superiores ao necessário para dez dias (e não ao necessário para três dias, tal como resulta da redacção da norma).
Depois de excepcionar o caso do cultivo, ao revogar o artº 40º, o legislador não poderia ter pretendido, mais, do que revogar o preceito só na parte abrangida pelo artº 2º nº 2, da Lei 30/2000. E uma vez chegados a esta conclusão, por via interpretativa, a disposição do artº 40º nº 2 não fica a padecer da falta de claridade, nem o princípio da precisão dos tipos legais de crime ficará postergado. Pena de prisão até um ano ou de multa até trinta dias, para quem cultivar “plantas, substâncias ou preparações” em quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante três dias, e para quem detiver para consumo quantidade superior à necessária ao consumo individual por mais de dez dias.
É evidente que se não está perante uma técnica desejável de criação de tipos penais. Mas também é certo que não se vê melhor solução, designadamente no que respeita às críticas que se podem tecer numa perspectiva de respeito pelo princípio da legalidade. Vigora no domínio das contra-ordenações o mesmo princípio, e com a solução alternativa do acórdão fundamento acabam-se por punir comportamentos que não estão previstos na lei, face à limitação, imperativa, do nº 2 do artº 2º da Lei 30/2000.
Crê-se necessária, sob pena de se chegar a resultados completamente absurdos, na linha das considerações anteriores, uma verdadeira redução teleologica da norma do nº 2 do artº 40º do D.L. 15/93 de 22. de Janeiro (de interpretação restritiva nos fala, a propósito, Cristina Líbano Monteiro, in “O Consumo de Droga na Política e na Técnica Legislativas: Comentário à Lei nº 30/2000”, Rev.Port. de C. Crim., Ano 11, Fasc. 1º, pag.89).
Tenta-se assim reconstruir um pensamento legislativo que em termos de política criminal se integra no espírito do sistema: atende à vontade em manter a ilicitude do consumo, à consideração de que a reacção adequada para o consumo é de tipo contra-ordenacional, mas que também teve presente a possibilidade de, a coberto de uma justificação com o consumo, se ir proporcionar droga a outrem.
Crê-se, por outro lado, que a posição adoptada faculta uma correcta proporção, entre a gravidade da ilicitude das condutas e as reacções sancionatórias, no domínio global do consumo e tráfico de estupefacientes.

Por tudo isto entendi dever votar o presente acórdão para unificação de jurisprudência.




José Souto de Moura



VOTO DE VENCIDO

Votei vencido, pelas razões que passo a expor.
A Lei nº 30/2000, de 29-11, que veio descriminalizar o consumo de estupefacientes previsto pelo art. 40º do DL nº 15/93, de 22-1, converteu-o em ilícito contra-ordenacional (art. 2º, nº 1), mas restringiu quantitativamente a descriminalização à aquisição ou detenção de dez doses diárias (nº 2 do mesmo artigo).
Não tendo o legislador previsto directamente a hipótese de a aquisição ou detenção para consumo ser de quantidade superior àquele limite, e tendo, por outro lado, simultaneamente revogado, através do art. 28º da citada Lei nº 30/2000, o crime de consumo, que enquadramento atribuir àquela situação de facto?
Esta a questão colocada neste recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
Quatro foram as soluções avançadas pela jurisprudência e pela doutrina:
A) Uma interpretação restritiva do art. 28º da Lei nº 30/2000, em termos de se manter a vigência do art. 40º do DL nº 15/93 apenas quanto a essa situação (para além do caso do cultivo, expressamente ressalvado pelo legislador), que continuaria, assim, a constituir crime;
B) Uma interpretação extensiva do art. 2º, nº 1 da mesma Lei, em termos de considerar despenalizada toda e qualquer detenção para consumo, independentemente, portanto, da quantidade;
C) Incriminação pelo crime de tráfico de menor gravidade do art. 25º do DL nº 15/93;
D) Existência de um “vazio legislativo”, de carência de cominação punitiva, determinante da não punibilidade da situação.
As posições que se confrontam neste recurso são as indicadas sob as letras A) e B), sendo a primeira acolhida pela acórdão recorrido, e consagrada agora como jurisprudência vinculativa pela maioria vencedora, e a segunda pelo acórdão-fundamento.
Numa brevíssima referência às duas restantes "teses", dir-se-á que a identificada com a letra C) é sustentável, porque seria aberrante agravaro enquandramento penal do consumo de estupefacientes (do art. 40º para o art. 25º do DL nº 15/93), passando a punir como crime de tráfico, punido com uma pena nitidamente mais gravosa, uma situação que era qualificada como um crime de menor ilicitude (o crime de consumo), quando o legislador confessadamente pretendeu, pretensão que é aliás a razão de ser ad emissão da Lei nº 30/2000, desagravar a punição do consumo. A "imperfeição" legislativa não pode ser suprida com o agravamento de uma situação que o legislador queria tratar de forma mais benevolente.
É também a posição identificada com a letra D) é insustentável. O legislador não pretendeu obviamente despenalizar a detenção de estupefacientes em quantidade superior a dez doses diárias. Seria absurdo punir o menos (detenção de estupefacientes até 10 doses diárias) e despenalizar o mais (detenção de quantidades superiores). Aliás, o nº 1 do art. 2º da lei nº 30/2000 enuncia, como adiante referirei melhor, uma opção globalpela descriminalização do consumo de estupefacientes e a sua punição enquanto contra-ordenação.
Posto isto, abordando as posições em confronto neste recurso, considero que a posição acollhida não traduz a melhor interpretação da lei.
É de lembrar, antes de mais, toda a ênfase posta pela Estratégia Nacional de Luta contra a Droga (ENLCD), aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 46/99, de 26-5, na necessidade de descriminalização do consumo. Mais do que ênfase: a descriminalização do consumo é um dos eixos daquela ENLCD. E não se esqueça que a ENLCD enuncia e anuncia um “programa” legislativo de que a Lei nº 30/2000 é apenas uma das peças anunciadas por esse programa (sendo a outra peça, de um programa não integralmente cumprido, o DL nº 183/2001, de 21-6, sobre redução de danos, outro eixo da Estratégia). Por isso, a ENLCD não pode deixar de funcionar como elemento orientador da interpretação da Lei nº 30/2000.
É perfeitamente claro, na perspectiva da Estratégia, que a descriminalização tem um sentido global e irrestrito, ou seja, pretende abranger todo o consumo e todos os consumidores, agora encarados como “doentes” em vez de “delinquentes” (esta é uma afirmação recorrente em todo o texto da ENLCD), sendo pois estranha a essa concepção qualquer distinção de tipo quantitativo, quanto aos estupefacientes consumidos, adquiridos ou detidos pelos consumidores.
A preocupação fundamental da ENLCD, no que concerne aos consumidores, é precisamente a de separar o consumo do tráfico, de estabelecer regimes jurídicos diversos para consumidores (ilícito contra-ordenacional) e traficantes (ilícito penal).
Aliás o nº 1 do art. 2º da Lei nº 30/2000 descriminaliza todo o consumo, convertendo-o em contra-ordenação. A restrição quantitativa constante do nº 2 terá que harmonizar-se e compatibilizar-se com o nº 1, não podendo de forma alguma esvaziá-lo. Essa compatibilização só pode passar pelo respeito pelo enunciado do nº 1, funcionando a previsão do nº 2 como complemento da regra enunciada naquele. Um complemento com que, o legislador traça um critério, meramente indicativo ou indiciário, das situações em que a detenção deve ser considerada para consumo. Como tal, um critério que cede perante a prova de que uma quantidade superior se destina inteiramente ao consumo pessoal.
Por isso, entendo que a aquisição ou detenção de estupefacientes para consumo pessoal está sempre abrangida pelo art. 2º da Lei nº 30/2000, constituindo portanto uma contra-ordenação, independentemente da quantidade adquirida ou detida, sem prejuízo do funcionamento do nº 2 do mesmo artigo como critério indiciário da separação entre tráfico e consumo.
A posição maioritária, na sua tentativa de justificar materialmente a sobrevivência do art. 40º do DL nº 15/93, de forma a abranger as situações de aquisição ou detenção de quantidades superiores a 10 doses diárias, chega a um resultado paradoxal: o da criação de um novo crime, denominado “aquisição e detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, de quantidades excessivas”, que é afinal um crime de tráfico, uma vez que é o perigo de as drogas detidas serem lançadas no mercado que é aí tutelado.
E um crime de tráfico de duvidosa constitucionalidade. Porque a protecção do perigo recua aqui a uma fase remota, em que o bem jurídico identificável (saúde pública) só de forma aleatória, incerta ou atípica pode correr perigo, pois necessário se torna, para que esse perigo se possa configurar, que previamente o detentor da droga a desafecte do consumo pessoal.

Eduardo Maia Costa



Declaração de voto

Votei a favor da decisão, por se me afigurar que, de entre outras interpretações possíveis da lei, a jurisprudência ora fixada, é a que melhor traduz a amplitude de protecção legal do bem jurídico, em conjugação teleológica com razões de política criminal, perante os princípios da legalidade e tipicidade, na unidade e harmonia do sistema, mas, como é óbvio, sem prejuízo da valoração, nas circunstâncias concretas, se a quantidade – ou cultivo - excedente, das substâncias ilícitas, invocada para consumo pessoal, se apresenta, num critério de razoabilidade, adequadamente compatível com o exclusivo consumo dessas substâncias pelo agente, ou se integra ilícito criminal de tráfico, ainda que de menor gravidade.
Na verdade:
I - O Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro começa por estabelecer no artigo 1º que: - “O presente diploma tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas”
II - Posteriormente a Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro: - “Define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.”
III - O legislador ao rever e alterar o anterior regime jurídico aplicável ao consumo de substâncias estupefacientes, veio defini-lo, com a Lei nº 30/2000, descriminalizando esse consumo, e remetendo-o para o ilícito contra-ordenacional, mas, somente até determinada quantidade das substâncias adquiridas ou detidas para consumo, quantidade essa que foi ampliada em relação à quantidade anterior - artº 40º nº 1 do Dec-Lei 15/93 - que era constitutiva de crime.
IV - O nº 2 do artº 2º da Lei nº 30/2000 é uma norma definidora e, limitativa, do pressuposto formal típico integrante do ilícito contra-ordenacional, delimitando o âmbito factual dessa ilicitude, através de uma quantidade determinada por um máximo, das substâncias, adquiridas ou, detidas para consumo próprio: “não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
V - Ainda que se considerasse que o pensamento legislativo vazado na Lei nº 30/2000, quis integrar todo o consumo de estupefacientes, em ilicitude de mera ordenação social, porém, ao definir o regime jurídico aplicável, há que ter em conta o preceituado no nº 3 do artigo 9º do Código Civil, sobre interpretação da lei: “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais adequadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
VI - O nº 1 do artº 2º da referida Lei é pois, integrado e limitado pelo disposto no nº2 do preceito.
VII - Ao ampliar a quantidade de droga para consumo e, considerar este como contra-ordenação, mas somente até determinada quantidade, significa que a quantidade de substâncias adquiridas ou detidas para consumo, excedente à indicada por lei, deixa de constituir contra-ordenação.
VIII - Poderia argumentar-se que se o artº 40º, do Decreto-lei nº 15/93 de 22 de Janeiro, foi revogado expressamente pelo artigo 28º da Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro, “excepto quanto ao cultivo”, o excesso da quantidade necessária (legal e temporalmente delimitada), das substâncias adquiridas e detidas e, cultivadas para consumo próprio, não poderia integrar crime previsto e punível em norma revogada por contrariar o princípio da legalidade, visto que:
- O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções - artº 2º nº 2 do C.Penal
- Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime.- artº 1º nº 3 do C.Penal.
Poderia ainda esgrimir-se com a inviabilidade de uma interpretação restritiva do artigo 28º, da Lei nº 30/2000, no sentido de considerar em vigor o citado nº 2 do artigo 40º, pois que: Não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso - cfr -artigo 9°, n° 2 do Código Civil - e, do ponto de vista literal, o artº 28º da Lei 30/2000 é claro ao revogar o citado artº 40º (excepto quanto ao cultivo) do Dec-Lei nº 15/93, “bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime
Nesta ordem de ideias, a quantidade de substâncias superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, bem como o cultivo excedente ao necessário para consumo, seria susceptível de integrar o ilícito típico de tráfico, pois que o crime p. e p. no artº 21º nº 1 e 4, do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, como base genérica de incriminação do tráfico, engloba autonomamente diversas actividades ilícitas com referência aos estupefacientes proibidos por lei, quais sejam as de “cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações (…) podendo, eventualmente integrar o crime de tráfico de menor gravidade, nos termos do artigo 25º do DL 15/93 de 22 de Janeiro se, “a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações”.
“Fora dos casos previstos no artigo 40º”, deveria, agora, por força da Lei nº 30/2000, reportar-se, ao excesso da quantidade necessária para consumo médio individual durante 10 dias, incluindo o cultivo excedente ao necessário para consumo, nos precisos termos dos artigos 2º nº2 e 28º da Lei nº 30/2000, face ao princípios da legalidade e tipicidade.
IX - Só que a submissão dessa quantidade ilícita excedentária , ao regime criminal geral do artº 21º - eventualmente artº 25º - do Decreto-Lei nº 15/93, redundaria numa incriminação analógica, e, mais grave do que o existente no artº 40º nº2, o que não era permitido por lei – artº 1º nº 3 do Código Penal.
X - Tendo em conta que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (artº 9º nº1 do Código Civil), e, considerando que a Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro, tem um alcance delimitado: define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica, somente uma interpretação restritiva do seu artº 28º, quanto ao âmbito de revogação do artº 40º, no sentido de apenas descriminalizar o consumo das referidas substâncias até à quantidade máxima legalmente indicada como necessária para o mesmo, corresponde mutatis mutandis à factualidade da fattispecie, que pretendeu revogar: o nº 1 do artº 40º (com excepção do cultivo)
XI- Por isso dou o meu aval à decisão maioritária ora fixada, mas sem prejuízo da concreta valoração probatória jurídico-criminal, nos termos em que supra referi.


António Pires Henriques da Graça