Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CELSO MANATA | ||
Descritores: | HABEAS CORPUS ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECLAMAÇÃO REFORMA DE ACÓRDÃO INDEFERIMENTO | ||
Data do Acordão: | 06/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
Decisão: | ACLARAÇÃO INDEFERIDA | ||
Sumário : | I - O indeferimento de pedido de habeas corpus e a aplicação da sanção processual, relativa à manifesta falta de fundamento legal do mesmo (art. 223.º, n.º 6, do CPP), não são suscetíveis de impugnação, seja pela via de recurso (a não ser o recurso de constitucionalidade, a interpor para o Tribunal Constitucional, verificando-se os respetivos requisitos legais), seja através de reclamação. II - Com efeito, proferido o respetivo acórdão, ficou esgotado o poder jurisdicional do STJ, não lhe sendo possível debruçar-se, de novo, sobre a fundamentação jurídica operada, em ordem à eventual modificação do julgado; III - O regime de reforma da sentença, previsto no art. 616.º do CPC, não é aplicável em processo penal, face à disposição própria do art. 380.º do CPP; IV - Este art. 380.º não permite a modificação essencial do decidido, quer quanto aos fundamentos que levaram o STJ a negar o pedido de habeas corpus, quer quanto aos motivos que determinaram a condenação do peticionante na sanção processual acima referida, pelo que não pode deixar de ser indeferida a reclamação que solicitava ao Presidente deste Alto Tribunal a reparação do decidido quanto a esta última matéria. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça: A – RELATÓRIO A.1. O Pedido AA, notificada do acórdão de 08 de maio de 2024 que lhe indeferiu, por manifesta falta de fundamento legal, a pretensão de habeas corpus, veio apresentar reclamação nos termos seguintes, que se transcrevem integralmente: “NOTA PRÉVIA A requerente optou pela presente reclamação ao Colendo Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por lhe caber a responsabilidade da decisão em matéria tão delicada como a afectação da liberdade individual Constitucionalmente estatuída em sequência das declarações universais sobre a mesma matéria (neste texto referidas), porquanto já se encontra interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra da aplicação da prisão preventiva à arguida AA, não se justificando por isso a interposição de um novo recurso, que seria repetitivo, enquanto se aguarda a prolação do acórdão do recurso já interposto. A verdade é que esse recurso não pede apreciação da mal decidida manifesta falta de fundamento legal pretendida justificada nos termos do disposto no artigo 223º nº4 do CPP, nem da condenação em custas e na sanção processual prevista no nº6 do artigo 223º do CPP que também não tem qualquer fundamento legal como neste requerimento se faz notar. Verdade é por isso que não existe essa manifesta falta de fundamento legal no recurso a esta providência Constitucional. Justifica-se por isso a reparação do decidido que só pode caber ao Colendo Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em reclamação do decidido. O Pedido AA, arguida nos autos principais de que os acima identificados constituem apenso, presa preventivamente à ordem desses mesmos autos, na sequência de despacho proferido a 11 de abril de 2024, veio requerer a providência de Habeas Corpus “nos termos do artigo 31º da Constituição da República Portuguesa e do nº2 da alínea b) do artigo 222º do Código do processo Penal”. Por despacho proferido no dia 11-04-2024 às 09H30 o MM. Juiz de Direito que presidiu ao auto de interrogatório de arguida detida, decidiu que as suas condutas “figuram pois como actividade preponderante delituosa indiciada: importando, detendo, cedendo e distribuindo o produto estupefaciente em causa MDMB-4en-PINACA, destinado a difusão no EP ..., assim constituindo a arguida em co-autoria material na forma consumada de um crime de tráfico de estupefaciente agravado, previsto e punido pelos artigos 21º nº1 e 24º alínea h) do Decreto-Lei nº 13/93 de 22/Janeiro, com referência à tabela II, com a pena de prisão de 5 a 15 anos”. É todavia falso que a arguida tenha importado, sendo a verdade que apenas deteve e por curto espaço de tempo, para entrega que lhe foi pedida por seu marido, o recluso BB, também identificado nos autos, para entregar uma única vez a duas pessoas por ele também indicadas e que – ao que julga – partilham a mesma cela, sendo verdade que nunca distribuiu, nem cedeu o produto estupefaciente suprarreferido, nem comparticipou de qualquer acordo de distribuição desse ou de qualquer outro produto no EP .... Consequentemente, é inconclusiva a pena de prisão que se afirma indiciada e conclusiva é sim a manifesta desnecessidade da prisão preventiva por desconsideração da sua natureza subsidiária (nº2 do artigo 28º da Constituição da República Portuguesa), sendo que qualquer interpretação da Lei que admita que possa ser “decretada ou mantida a prisão preventiva, sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na Lei” é ostensivamente inconstitucional. São as seguintes as medidas de coação previstas na Lei processual penal: - Termo de identidade e residência (TIR) – artigo 196º; - Obrigação de apresentação periódica – artigo 198º; - Suspensão de exercício de profissão, de função, de actividade e de direito – artigo 199º; - Proibição e imposição de condutas – artigo 200º; - Obrigação de permanência na habitação – artigo 201º; e - Prisão preventiva – artigo 202º como última ratio. Medidas que só podem ser decretadas em substituição da prisão preventiva, em caso de inadequação ou insuficiência nas situações previstas nas alíneas a); b); c); d); e); e f); do artigo 202º nº1. A matéria dos factos investigados não inclui a conduta assacada à arguida AA em nenhuma destas alíneas, o que implica de imediato a ilicitude da prisão preventiva decretada. Se assim menos bem não for entendido, importaria então verificar a necessidade de substituição da prisão preventiva ordenada, não por atenuação das exigências cautelares, mas pela sua efectiva desnecessidade (nº3 do artigo 212º do CPP). Não entendeu assim o MM. Juiz de Direito que presidiu ao auto de interrogatório da arguida detida. Para além do desacerto da decisão como melhor referiremos infra, face aos factos provados no inquérito, o que ao caso importa é essa manifesta desnecessidade de tão gravosa medida e consequente desconsideração da sua natureza excepcional, impondo-se ao Julgador a sua Constitucional subsidiariedade “não podendo ser decretada sempre que” - como no caso concreto – “possa ser aplicada medida(s) mais favorável(eis) prevista(s) na lei”. Trata-se de uma imposição ao Julgador, que incumprida além do mais determina de imediato a ilegalidade da prisão, pelo que a prisão preventiva é como todas as outras submetidas aos Princípios da Legalidade, da Proporcionalidade e da Necessidade. Impunha consequentemente uma escolha das soluções complementarmente aplicáveis em alternativa imposta à prisão. No caso concreto, a prisão preventiva que foi decretada, traduz-se numa efectiva punição antecipada, desconsiderando que se trata de uma medida preventiva para inocentes, ainda que eventualmente presumidos. Trata-se precisamente da mais gravosa das medidas de coação a implicar que a sua aplicação se tenha que pautar, no respeito pela subsidiariedade Constitucional. Repetimos que, Esta medida só poderá ser aplicada quando as outras medidas se mostrarem efectivamente insuficientes ou inadequadas. E para que não padeça de ilegalidade a sua aplicação, terão que estar verificados os pressupostos que o nº1 do artigo 202º do CPP elenca taxativamente, a saber: “a) Fortes indícios de prática de crime doloso, punível com pena prisão de prisão com máximo superior de 5 anos; b) Fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta; c) Fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada, punível com pena de prisão com máximo superior a 3 anos; d) Fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática nas comunicações, receptação, falsificação ou contrafação de documentos, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com penas de prisão de máximo superior a 3 anos; e) Fortes indícios de prática de crime doloso de detenção de arma proibida, de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; f) Tratando-se de pessoa que tiver penetrado ou permaneça de forma permanente em território nacional ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão”. Excluída a categoria dos delitos incaucináveis, estão estabelecidos os pressupostos gerais para aplicação das medidas de coação (excepção do TIR previsto no artigo 196º), impedindo a aplicação de qualquer das medidas se em concreto se não verificar no momento da aplicação da medida, a saber: a) “Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou, c) Perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a vida e a tranquilidade públicas.” Importa não esquecer em primeiro lugar, que dos elementos probatórios carreados para os autos … no confronto e em conjugação com as declarações da arguida não resulta um único facto por si praticado por iniciativa própria, sendo apenas referidas situações de resto muito parcas, concretamente dois encontros a pedido do seu marido, o primeiro junto ao Restaurante P... com CC, pai do recluso DD (13-12-2023, ponto 6), que foi contactado directamente pelo seu filho, e o outro com o recluso EE (dia 03-01-2024, ponto 9) na Rua.... Em ambos a arguida deu satisfação a um pedido de seu marido o recluso BB, com quem se encontra casada, facto que a investigação confirmou, mas que foi desconsiderado no interrogatório e no despacho judicial subsequente. Foi também este seu marido, que se encontra detido no EP ..., que no dia 15-01-2024, diz o inquérito “instruiu a arguida AA a utilizar a aplicação Telegram para efectuar uma encomenda de 10 folhas de papel (ponto 12)”. O que já não é verdade, porque na realidade ela foi meramente destinatária de uma encomenda posta em seu nome pelo seu marido numa saída precária. E mais intervenções da arguida não existem referenciadas pela investigação, sendo que esta última até coincide, como se disse, com uma saída precária, em que segundo ela afirmou, foi por ele utilizado o seu telemóvel, segundo veio a constatar. Aliás a investigação não diz que tenha sido feita por ela qualquer encomenda, mas tão só que o seu nome e direcção figuram como de destinatária, o que é muito diferente (!!). Ser um destinatário pode não implicar qualquer responsabilidade. E não havendo mais nada referido para além destas três situações, terminado o interrogatório e sendo dada a palavra à defesa, em alegações produzidas, informou o tribunal que a prisão preventiva pedida pelo Ministério Público, além de desproporcionada padecia de ilegalidade por ostensiva desnecessidade. É por isso certo que em futura audiência contraditória, face às provas constantes dos autos e referimo-nos às duas únicas intervenções a pedido do seu marido, não se vislumbra preenchida a moldura penal exigida para aplicação ou manutenção de uma prisão preventiva. As intervenções são apenas duas de entrega de uma encomenda adquirida provavelmente pelo seu marido numa saída precária. Como se pode entender, seguramente que nunca foi como co-autora de um crime de tráfico de estupefacientes agravado que não encontra – para ela – o mínimo suporte na prova recolhida. E ainda acresce à ilegalidade da aplicação de uma medida de prisão preventiva, a não inverificação ao momento da sua aplicação, de qualquer das exigências no nº1 do artigo 204º do CPP, o que reforça a sua ilegalidade. O MM. Juiz entendeu que isto seria para eventual procedência do recurso interposto que não para o Habeas Corpus, daí que no entendimento da defesa, posto que fosse mantido o TIR já prestado, acompanhado da obrigação de apresentação e da proibição de contactos com o arguido seu marido, que ela própria solicitou, passa a estar desde logo prevenida a continuação “da putativa actividade criminosa”, porque a sua intervenção foi a pedido e respeitando uma intenção dele (seu marido), porquanto nem sequer conhece nenhum dos restantes arguidos, que, ao que a investigação diz, partilham os três a mesma cela na prisão. E o que lhe pediu que entregasse foram dois envelopes, cada um deles com 2 folhas sem terem absolutamente nada escrito. Estando excluído o perigo de fuga, que o próprio Juiz considera de fraca incidência, uma vez que já se encontra em Portugal o seu irmão FF desde 26-04-2023, trabalhando na W..... ........ e residindo no... do ... em ..., e tendo juntado dinheiro para a vinda da sua mãe, GG, divorciada, que passará a viver em Portugal a partir do próximo dia 31-07, com viagem já paga de ... nesse dia, (adquirida por economias desta sua filha arguida AA), passando também a viver no nosso país, reunindo assim toda a família mais próxima em Portugal, A arguida AA por sua vez já tem a sua residência em Portugal, encontrando-se social e profissionalmente integrada como chefe da recepção de uma unidade hoteleira de 4 estrelas, lugar conseguido com elevado mérito reconhecido pela própria entidade profissional. Tudo foi desconsiderado no despacho do interrogatório, desconhecendo a sua actividade profissional, o seu esforço de reunião familiar e a verdadeira intenção de viver em Portugal e de não ter mais contactos de qualquer natureza com o arguido, ainda seu marido. Esta medida proposta pela defesa é obviamente a medida adequada, porque cumpre a subsidiariedade Constitucional da prisão preventiva, satisfazendo na totalidade as finalidades previstas (nº1 do artigo 204º). Medida Constitucionalmente imposta por ilegalidade da prisão, porque os fins das penas, não se esgotam “quia pecatum”, ainda que o pecado existisse e fosse essa a questão, que que aqui cumpre decidir. Deve por isso, Colendo Conselheiro Presidente, por apelo ao seu saber, conceder provimento ao Habeas Corpus, ordenando a imediata libertação da arguida, aguardando a sua eventual presença em audiência de julgamento, em liberdade, para que possa retomar a sua actividade profissional no hotel, com TIR prestado e fixação de obrigações, sobretudo de nenhum contacto com o detido BB, de quem pretende divorciar-se, porque esta situação tornou de facto impossível a vida em comum. Assim se fazendo Justiça e não pelo Acórdão do STJ em crise, que se decidiu pela “manifesta falta de fundamento” da petição de Habeas Corpus, que a ele Juiz fez luz a uma pretendida simplicidade do processo, conforme o declarou. Não é realmente assim tão simples qualquer questão de afectação da liberdade Senhor Doutor Juiz. Deve por isso ser-se mais humilde, prevenindo o desacerto em matéria tão difícil. Aos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra era pedido por mim esse cuidado e atenção nas aulas quando nos foi confiada a regência do Processo Penal. A informação judicial A informação judicial prestada em obediência ao disposto no artigo 223.º, nº 1, do Código de Processo Penal, diz que: “Em conformidade com o preceituado nos art.ºs 222.º e 223.º, n.º 1, do Cód. de Processo Penal, envia-se, com a petição de habeas corpus foi enviada a seguinte informação: a) A requerente foi detida em 09 de Abril de 2024; b) Foi sujeita a primeiro interrogatório judicial de arguido detido em 10 de Abril de 2024, prosseguindo tal acto processual, no dia 11 de Abril de 2024; No dia 11 de Abril de 2024, considerando-se indiciada a prática, pela mesma, como co-autora material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos art.ºs 21.º, n.º 1, e 24.º, al. h), do Dec.- Lei 15/93, de 22/01, e a existência dos perigos de continuação de actividade criminosa, de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas e de fuga, foi decida a aplicação, à arguida, da medida de coacção de prisão preventiva, situação em que, desde então, se mantém.”. Mas não é verdadeira a existência destes perigos. Foi tratada como uma vulgar traficante de estupefacientes, quando nunca na vida sequer traficou ou consumiu. Desde que chegou a Portugal que a função que vem desempenhando tem sido de eficiente recepcionista e chefe de serviço numa unidade hoteleira de 4 estrelas. A decisão deu por preenchidos os perigos de continuação de actividade criminosa, de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas e de fuga, não porque constassem dos autos factos que os indiciassem, mas porque são estas as exigências da ilicitude da medida de prisão preventiva que se quis decretar, pelo que a questão a decidir seria a “eventual ilegalidade da privação da liberdade da requerente” por facto pelo qual a Lei a não permite, quando o que devia era ter-se ordenado a sua imediata libertação, porque o que se encontra provado são as exigências do Habeas Corpus. FUNDAMENTAÇÃO Os factos Considerou como factos a fundamentar a prisão preventiva que: No dia 9 de abril de 2024, na sequência de investigações em curso, a Polícia Judiciária, em execução do respetivo mandado, deteve a ora requerente, AA; • Em sequência, a requerente foi apresentada ao Juiz de Instrução Criminal de ... – Juiz ..., para primeiro interrogatório de detido, no dia 10 de abril o qual se prolongou até ao dia 11 de abril de 2024. • No final dessa diligência, o aludido magistrado judicial proferiu o seguinte despacho: “A factualidade que ora se indicia é susceptível de constituir a arguida coma co-autora material, e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21º nº 1 e 24º, al. h) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à tabela II-A, com pena de prisão de 5 a 15 anos. O que se não vislumbra a que factualidade concreta se refere o MM. Juiz (!). Demonstra o Acórdão em crise que o MM. Juiz conhece a importância e as exigências de providências de Habeas Corpus, nos termos em que a nossa Constituição da República (artigo 31º) a consagra. E bem assim que a particular gravidade do crime do tráfico de estupefacientes, mormente como entende, quando praticado em estabelecimento prisional, sobretudo pela criminalidade “que em seu torno gravita”, muitas vezes “em criminalidade altamente organizada”. O que não justifica que o seja sempre e muito menos in caso que a arguida AA tivesse conhecimento dessa organização ou dela tenha participado ou obtido algum proveito. Com efeito, ela própria se prontificou a entregar os extratos das suas contas bancárias e na busca que foi realizada ao humilde quarto em que vive, não foram encontrados quaisquer vestígios de comparticipação nessa putativa organização (!!). O que se sabe é apenas que no seu endereço foi destinatária de dois envelopes endereçados por eventuais vendedores, eventualmente também consultados sobre tais produtos. Não foi encontrado qualquer stock de produto como uma organização possui para poder abastecer o mercado, nem quaisquer vestígios da fabricação do produto. Quanto a quem solicitou de facto as eventuais informações de que foi destinatária é trabalho para a investigação e o que não pode é serem-lhe imputadas sem prova consistente. Por si foi explicada a coincidência de datas com saídas precárias de seu marido, de que, entretanto, se não retiraram relevantes conclusões. Mais se diz que “a facilidade de circulação deste produto”; “facilmente dissimulado” e “transportável” gera no seio da Comunidade profundos sentimentos de insegurança e “de intranquilidade”, particularmente a introdução de estupefacientes no meio prisional, “gerando intranquilidade junto da Comunidade”; “consubstanciando tudo isto – acredite-se – um sério perigo da perturbação da Ordem e da Tranquilidade Públicas, o que de facto se nos afigura, perdoe-se, mais literatura do que factualidade e relevante. Direi mesmo que a qualquer normal Cidadão intranquiliza muito mais a venda de estupefacientes no seu bairro ou na sua rua do que dentro de um estabelecimento prisional. Creio que será este o entendimento de toda a gente que seja consultado em inquérito. Na realidade nunca nos tinha ocorrido que o consumo de estupefacientes dentro dos estabelecimentos prisionais e consequentemente a sua introdução – que não é sequer imputável à AA – sendo seguramente um risco para a saúde dos presos, seja mais perturbadora da Tranquilidade Pública, do que a saúde dos consumidores que se não encontram detidos, mormente se a droga estiver a ser vendida no seu bairro ou na sua rua. E bem assim que a “gravidade” e “facilidade da sua execução”, bem como a facilidade de obtenção de proventos que aquela actividade propicia seja “um concreto perigo de continuação de actividade delituosa”, daí concluindo com afrontosa impertinência que a arguida tanto assim “elucidada” caso lhe não seja mantida a prisão, prosseguiria com a “importação, cedência dos estupefacientes”, que nunca ficou provado que a tal se dedicasse, mas sim à função de recepcionista no hotel em que trabalhava. Entende finalmente atenuado e pelo menos aqui bem, o perigo de fuga. Mas são estas injustificadas exigências cautelares que fundamentam a invocada “manifesta insuficiência do TIR” pela “mobilidade e facilidade de contactos que propicia”. Em boa verdade, não é seguramente o abandono da sua actividade profissional e da integração social interrompida pela prisão preventiva desnecessária, que propicia uma adequada resposta às exigências cautelares, mas sim e concretamente a proposta proibição de contacto com o seu ainda marido a cujos pedidos acedeu em dois casos referidos pela investigação. (!) E a procedência do Habeas Corpus foi por isso e muito bem apresentada. Refira-se apenas que a “Justiça” in caso insiste em falar de “continuação da importação e cedência/difusão de estupefacientes” em frontal impertinência com a prova alcançada pela investigação. E certo é que a prisão preventiva se não pode fundamentar na conveniência por eventuais maiores facilidades para a investigação. O Direito Daí quanto ao Direito: O art. 27º da Constituição da República Portuguesa estabelece, designadamente, que: “1 - Todos têm direito à liberdade e à segurança. 2 - Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. 3 – Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos seguintes casos: (…) b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão, cujo limite máximo seja superior a três anos” E mostra a Justiça aqui muito bem que Estas normas se inspiraram, diretamente, nos artigos 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 9º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, garantindo, designadamente, o direito à liberdade física e à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar (assim, por todos, o acórdão de 29.12.2021, Proc. 487/19.8PALSB-A.S1, em www.dgsi.pt). Mais recentemente estes princípios foram reafirmados no artigo 6º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da qual Portugal faz parte. Pelo que, Com vista a pôr termo à privação da liberdade ilegal, decorrente de abuso de poder, o nº 1 do art. 31º da Lei Fundamental veio consagrar o instituto do habeas corpus, a requerer perante tribunal competente. E não é da privação da liberdade que decorre de abuso do poder, como erradamente também se diz, mas o abuso de poder é que é decorrente da privação ilegal da liberdade. Por isso e consequentemente não existe privação ilegal de liberdade que não se identifique com o abuso do poder. É por isso sempre justificante de Habeas Corpus porque não existe prisão ilegal oponível ao Habeas Corpus. Qualquer interpretação da Lei, ainda que suportada em “condições determinadas em Lei especial” limitadora da garantia do Habeas Corpus, constitui um regresso ao número 4º do artigo 8º da Constituição de 1933, ou seja, a uma frontal violação desta garantia Constitucional, que “só se suspende nos casos de Estado de Sítio por Sedição, Conspiração, Rebelião ou Invasão Estrangeira”. Diz aqui bem este acórdão em crise que, O habeas corpus sempre foi concebido como um mecanismo de utilização simples, sem grandes formalismos, de rápida atuação - dado que o constrangimento de um direito fundamental, como o direito à liberdade, não se compactua com atrasos e demoras - e que deve abarcar todas as situações de privação ilegal de liberdade. Estando inserido no Título II, da Parte I, da Constituição da República Portuguesa tem, por força do disposto no artigo 18º da Lei Fundamental, aplicabilidade direta e vincula entidades públicas e privadas. (Todo o sublinhado é nosso). Estamos totalmente de acordo. Afirma o Acórdão que Este “remédio”, de consagração constitucional, visa solucionar situações anormais, em que a pessoa foi restringida de sua liberdade por via de abuso de poder, colocando o Estado à pessoa que sofre dessa restrição, um meio idóneo e célere para que seja apreciada a ilegalidade, ou não, daquela limitação de liberdade. Mas, corrija-se, porque se não trata de um “remédio” para solucionar situações anormais, uma vez que constatada uma prisão ilegal, impõe-se desde logo a liberdade como imediata reposição da legalidade. Tem por isso a nossa Doutrina e Jurisprudência, entendido que o habeas corpus constitui uma providência expedita e urgente, de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição. E também se diga que o abuso de poder não é um pressuposto constitucional da garantia do direito à liberdade porque o que lhe é inerente em caso de prisão ilegal. Como muito bem entende o nº1 do artigo 222º do CPP. Já nos merece sempre reparo o seu nº2, sobretudo, quando afirma “(…) deve fundamentar-se em ilegitimidade de prisão proveniente de”. O nosso reparo é dirigido, como se vê, à expressão “proveniente de” que sob o ponto de vista interpretativo terá que ser desconsiderado, bem como as suas alíneas a) e c), que são meramente repetitivas. Assim, em sintonia e no desenvolvimento destes princípios constitucionais e por forma a permitir a sua adequada aplicação prática, o artigo 222º do Código de Processo Penal estabelece o seguinte: (o que se passa a citar é o acórdão em crise) “1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus. 2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.” Ou seja, e como tem repetida e uniformemente decidido o Supremo Tribunal de Justiça, “(A) providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais – perante ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, ou seja, sem lei ou contra a lei que admita a privação da liberdade, referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, e que não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reação tendo por objeto a validade ou o mérito de atos do processo através dos quais é ordenada ou mantida ou que fundamentem a privação da liberdade do arguido ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis (artigos 399.º e segs. Do CPP), que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (assim e quanto ao que se segue, por todos, de entre os mais recentes, o acórdão de 22.03.2023, Proc. n.º 631/19.5PBVLG-MC.S1, em www.dgsi.pt). Corrija-se que a providência de Habeas Corpus, não é uma medida extraordinária ou excepcional que acresce a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais. Na realidade não acresce a nada, porque do que se trata é de uma garantia primeira que antecede e não que acresce à reposição imediata de legalidade em benefício de qualquer Cidadão privado do seu direito á liberdade por facto pelo qual a Lei não consinta essa privação [nº2, alínea b) do artigo 222º do CPP]. Quanto à diversidade do âmbito de proteção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, em que aquela providência permite preencher um espaço de proteção imediata da pessoa privada da liberdade perante a inadmissibilidade legal da prisão.” Ac. do STJ de 10 de maio de 2023 – Proc. 196/20.5JAAVR-B.S1 in www.dgsi.pt. Daí que não possamos subscrever que os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessária e exclusivamente, às situações previstas nas alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, que afirma de enumeração taxativa. Ainda que se tenha que entender como meramente exemplificativas as alíneas a) e c). Realmente o ter sido ordenada por entidade competente (nº1 do artigo 222º) ou mantida para além dos prazos fixados pela Lei ou decisão judicial [alínea c)] não são se não condições compreendidas na “motivação de facto pela qual a lei a não permite” (a prisão preventiva, obviamente). Seja então que a alínea a) e c) do artigo 222º são meramente exemplares e não taxativas (no errado sentido de apenas elas) da posição estatuída na alínea b), sendo essa, que não outra, a razão por que a citamos como fundamento da proibição da prisão preventiva. E é importante esta constatação evidente, porque concebendo-se o elenco como taxativo, acaba confundindo mais do que esclarecendo. Melhor seria que não estivesse escrito (!) O elenco do nº2 do artigo 222º do CPP, considerado taxativo, na realidade é meramente explicativo, porque se bem se vir, nada acrescenta e acaba por gerar confusão e é confundido, por este facto, que o acórdão em crise parte para o caso concreto, acabado até por punir a requerente para além do pagamento das custas em multa de 10 unidades de conta, ao que diz por “manifesta falta de fundamento” onde é evidente que a requerente se encontra presa. O caso concreto A Requerente não coloca em causa a competência do Juiz de Instrução Criminal de ... para proferir o despacho que determinou a sua prisão preventiva, nem refere que tenham sido ultrapassados os prazos previstos na lei para a aplicação e manutenção dessa medida coativa. São circunstâncias arroladas no nº 2 do artigo 222º, mas, como dissemos, qualquer uma delas também e sempre se reconduz a “uma prisão motivada por facto que a lei não permite”. Situações Ilegais, portanto, mas repetitivas, porque já englobadas no artigo 222º. O presente requerimento é feito com base no disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal, o que é dizer, por “ser (a prisão) motivada por facto pelo qual a lei a não permite.” E sempre seria, ainda que esse facto fosse qualquer um dos previstos nas alíneas a) e c) como é evidente. Não há nenhum caso em que o Juiz seja incompetente ou o prazo da prisão preventiva esteja ultrapassado e que não obstante que a lei o permita. Salvo o imenso respeito, parece ter sido mal-entendida a posição da requerente, não obstante ser evidente a inexistência de indícios exigidamente fortes do crime que lhe vem imputado. Mais evidente a inexistência dos perigos acautelados no nº1 do artigo 204º do CPP, consequentemente não sendo por desproporcionalidade, que obviamente também existe, mas mais objectivamente por evidente desnecessidade da prisão preventiva. Diz a decisão recorrida que estas questões “não podem ser colocadas a este alto Tribunal no âmbito da providência de Habeas Corpus, dado ser evidente a sua falta de enquadramento, quer na letra, quer no sentido e alcance no disposto na alínea b) do nº2 do artigo 222º do CPP”. E a razão que apresenta é apenas o Juiz de Instrução Criminal ter consignado com clareza “entender existirem fortes indícios de que a arguida/ora requerente praticou um crime de tráfico de estupefacientes agravado”. O que além de não ser verdade, não é por si fundamento para que seja decretada ou mantida uma prisão preventiva, se a mesma não for necessária. Mas ao que importa, não basta realmente que o MM. Juiz entenda que face ao disposto nas alíneas a) e b) do nº1 do artigo 202º lhe não surjam dúvidas de que “a lei permite a aplicação de prisão preventiva”. O argumento extraído do nº1 do artigo 202º do CPP é imprestável, não escapando à inconstitucionalidade flagrante este entendimento, porque sendo subsidiaria a prisão preventiva, não pode ser decretada ou mantida, existindo medida menos gravosa que possa garantir o mesmo ou até melhor (do que uma prisão preventiva decretada ou mantida). Não se respeita a subsidiariedade, desconsiderando a existência de medida menos gravosa (!). Ora a medida proposta pela defesa e pretendida pela própria arguida, tornou a prisão preventiva desnecessária, sendo essa medida Constitucionalmente a mais adequada. Ao contrário afirma o Acórdão em crise que, Saber se estão reunidos os demais requisitos para a aplicação de prisão preventiva (v.g. existência de perigo de fuga ou de grave perturbação do decurso do inquérito e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova ou de continuação da atividade criminosa) é algo que excede o âmbito da providência de Habeas Corpus. Mas a verdade é que não excede porque justifica a ilicitude da prisão decretada. E é neste ponto que se situa a nossa principal divergência, por se tratar, a nosso ver, de um erro de interpretação. Conclui por isso e em consequência deste erro que O requerimento tem de ser indeferido, por manifesta falta de fundamento legal. Em consequência e para além de manter uma prisão ilegal, consequentemente em ostensivo abuso de direito, entendeu indeferir a petição de Habeas Corpus nos termos da alínea a) do nº 4 do artigo 223º do CPP, ou seja, “por falta de fundamento bastante”, sendo este o fundamento que invoca no decidido, não se compreendendo então sequer a lógica da punição nos termos do nº6, seja, por entender “manifestamente infundado o peticionado”, daí incompreensivelmente acabar condenando a requerente em 10 UC que é a multa prevista no nº6 do artigo 223º do CPP. Afastando-nos de mais sérios, ainda que merecidos reparos, a faculdade de considerar a petição manifestamente infundada, não toca seguramente o caso destes autos, mas uma situação excepcional de condenação do peticionante no pagamento de multa, que obviamente é uma situação excepcional para prevenir abusos de direito, em que se exige a culpa do peticionante e não o exercício de um Direito Constitucional, que, proibido ou punido, se vem a traduzir num atentado á sua própria liberdade. In caso e a nosso ver com evidência, deveria ter sido declarada a ilegalidade da prisão preventiva por adequação da medida mais favorável, tornando ilícita a sua aplicação ou manutenção. Deve por isso declarar-se nula e de nenhum efeito a indicada “manifesta falta de fundamento legal”, anulando a condenação da requerente nas custas do processo bem como na sanção processual prevista no nº6 do artigo 223º do CPP, só assim se fazendo Justiça.” A.2. O Parecer do Ministério Público Notificado da atrás transcrita “reclamação”, veio o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça apresentar mui douto, fundamentado e esclarecido parecer, no qual, em síntese, refere o seguinte (transcrição parcial): “Resulta claro que o inconformismo da requerente com a declarada “manifesta falta de fundamento legal”, o que visa não é senão a anulação da sua condenação … nas custas do processo bem como na sanção processual prevista no nº 6 do artigo 223.º do CPP, o que, e antecipando, se afigura legalmente inadmissível, por se mostrar esgotado o poder jurisdicional do Tribunal, conforme decorre do artigo 613.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (C.P.C.), ex vi do artigo 4.º do C.P.P., sem prejuízo naturalmente do disposto no n.º 2 daquele normativo, cuja aplicação aqui não está em causa. Assim, 3 – Da admissibilidade da reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Percorrido o requerimento apresentado pela reclamante, nele não se descortina norma, uma que seja, que fundamente de direito a pretensão de reapreciação da decisão tomada nos autos, por via de reclamação. E, na verdade, inexiste disposição legal que o permita. Assim como não há recurso, salvaguardado o de inconstitucionalidade, da decisão proferida em sede da providência de habeas corpus1, também não se encontra prevista legalmente a possibilidade de reclamação, com o alcance que se pretende, seja para o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, com competência definida no artigo 11.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), do C.P.P.2, seja para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em cujas atribuições não se compreende tal competência (artigo 11.º, n.º 2, do C.P.P.). Considere-se, a propósito da possibilidade de reclamação em situação como a que se apresenta nos autos, o acórdão de 12.11.2020 do Supremo Tribunal de Justiça (S.T.J.), proferido no processo n.º 49/13.3IDFUN-C.S1, da 5ª Secção, in www.dgsi.pt/jstj, em que, negando-a, se refere: (…) A reclamação é inviável por duas ordens de razões a se decisivas. A 1.ª, porque e como é princípio elementar do direito adjectivo, com expressão no n.º 1 do art.º 613.º do CPC (aplicável ex vi art.º 4.º do CPP), uma vez proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ou seja, proferida a decisão, não pode o tribunal debruçar-se de novo sobre a fundamentação jurídica operada em ordem à modificação do julgado. Como melhor se vai referir, em processo penal só pode haver lugar à correcção da sentença nos apertados limites do art.º 380.º do CPP. A 2.ª tem a ver com a inaplicabilidade, em processo penal, da norma invocada da alín. a) do n.º 2 do art.º 616.º do CPC. Seguindo o que de há muito constitui jurisprudência pacífica desde STJ, em processo penal não há lugar à figura da reforma da sentença, face à disposição própria do art.º 380.º quanto à correcção da sentença, que só pode fazer-se nos apertados termos aí insertos, ou seja, a correcção só é admissível quando não importe modificação essencial, modificação que é absolutamente vedada quer quanto à decisão, quer quanto à fundamentação. Face a este regime próprio e autónomo não existe no CPP lacuna que careça de ser preenchida com recurso à norma invocada do CPC[1]. No mesmo sentido se expressa, aliás, Paulo Pinto de Albuquerque[2] quando refere que “[o] art.º 669.º, n.º 2, alín. a) do CPC (a que ora corresponde o art.º 616.º, n.º 2, alín. a)) prevê a reforma da sentença quando, por manifesto lapso tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável, ou na qualificação jurídica dos factos na sentença. Esta disposição não é aplicável ao processo penal, em face da previsão específica do art.º 380.º, n.º 1, alín. b)”. (…) No mesmo sentido, atente-se ainda no despacho de 31.01.2022 proferido no processo n.º 3253/19.7T8BRR-E.S1, da 3ª Secção, deste S.T.J., cujos considerandos e conclusão se afigura terem plena aplicação na situação vertente. 4 – Pelo exposto, entende-se dever ser indeferida, por inadmissibilidade legal, a reclamação oposta ao acórdão de 8 de Maio de 2024.” B - APRECIAÇÃO B.1. Enquadramento Através de acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça a 08 de maio de 2024 foi indeferido, por manifesta falta de fundamento legal, o pedido de habeas corpus apresentado pela reclamante, tendo ainda a mesma sido, designadamente condenada,” na sanção processual prevista no artigo 223º, nº 6 do Código de Processo Penal, fixando-se o seu quantitativo em 10 (dez) unidades de conta.” Inconformada com essa decisão, vem agora a arguida apresentar “reclamação”, dirigida ao Colendo Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, na qual solicita “a reparação do decidido”, manifestando o entendimento de que aquele indeferimento foi incorreto e sublinhando que não lhe devia ter sido aplicada a aludida sanção processual. B.2. A impossibilidade de alterar a decisão de indeferimento. Na fundamentação dessa “reclamação” começa por referir o seguinte: “porquanto já se encontra interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra da aplicação da prisão preventiva à arguida AA, não se justificando por isso a interposição de um novo recurso, que seria repetitivo, enquanto se aguarda a prolação do acórdão do recurso já interposto. A verdade é que esse recurso não pede apreciação da mal decidida manifesta falta de fundamento legal pretendida justificada nos termos do disposto no artigo 223º nº4 do CPP, nem da condenação em custas e na sanção processual prevista no nº6 do artigo 223º do CPP que também não tem qualquer fundamento legal como neste requerimento se faz notar.” Fez bem, já que esse eventual novo recurso seria muito provavelmente sumariamente rejeitado – nos termos do disposto nos artigos 417º, nº 6 al. b), 420º nº 1, al. b) e 414º, nº 2 – e a Recorrente novamente condenada no pagamento de outra sanção processual, a fixar entre 3 e 10 unidades de conta. Com efeito e conforme refere Maia Costa, em anotação ao artigo 223º do Código de Processo Penal3: “Não há recurso da decisão do STJ, a não ser o recurso de constitucionalidade, a interpor para o Tribunal Constitucional, verificando-se os respetivos requisitos legais.” Na verdade, feito o julgamento do requerimento de habeas corpus por esta 5º secção do Supremo Tribunal de Justiça – ao abrigo do disposto na al. c) do nº 4 do artigo 11º do Código de Processo Penal – e proferido o respetivo acórdão, ficou esgotado, como se bem se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12 de novembro de 2020 - desta mesma 5ª secção4 - e constitui princípio elementar de direito adjetivo, o seu poder jurisdicional, não lhe sendo possível debruçar-se, de novo, sobre a fundamentação jurídica operada em ordem à modificação do julgado. (cfr. nº 1 do artigo 613º do Código de Processo Civil aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal). Por outro lado, e como igualmente é referenciado nesse acórdão, também a reforma do decidido se mostrava inviável, não só pela razão atrás consignada, mas também porque o disposto no artigo 616.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil não é aplicável no processo penal, uma vez que este dispõe de norma própria sobre a matéria nele regulada. Com efeito, o Código de Processo Penal dispõe do artigo 380º que tem por epígrafe e dispõe sobre “Correção da sentença”5, sendo que a pretensão da Requerente não é subsumível a essa norma legal. A este propósito, tem interesse voltar a citar-se o acórdão de 12 de novembro de 2020 – desta 5ª secção -, que temos seguido de perto e no qual se consignou o seguinte: “Seguindo o que de há muito constitui jurisprudência pacífica desde STJ, em processo penal não há lugar à figura da reforma da sentença, face à disposição própria do art.º 380.º quanto à correcção da sentença, que só pode fazer-se nos apertados termos aí insertos, ou seja, a correcção só é admissível quando não importe modificação essencial, modificação que é absolutamente vedada quer quanto à decisão, quer quanto à fundamentação” No mesmo sentido escreve Paulo Pinto de Albuquerque6 o seguinte: “O artigo 616º, nº 2, al. a) do CPC prevê a reforma da sentença quando, por manifesto lapso, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos na sentença. Esta disposição não é aplicável ao processo penal em face da previsão específica do artigo 380º, nº 1 al. b)” Ainda no comentário a esta norma pode ler-se, na mesma obra7, o seguinte: o erro pode ser corrigido quando se tratar da correção de um “erro de escrita” ou de um “erro material” e não de um erro cuja eliminação importe apreciação do mérito da causa”. Portanto, o acórdão que indeferiu o pedido de habeas corpus não pode ser alterado, tendo de manter-se e nos termos em que foi proferido. B.3. A condenação em sanção processual O atrás consignado já seria suficiente para fundamentar o indeferimento da “reclamação” apresentada. Porém e dado que a reclamante se reporta, com particular interesse e insistência, à condenação na sanção processual, importa tecer breves considerações a esse propósito. É um facto que, na lei processual civil, a reforma da sentença, no que concerne a custas e multas, está prevista no nº1 (e não no nº 2) do artigo 616º do Código de Processo Civil. Contudo e como se pode constatar no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12 de março de 20158, tem sido entendimento dos Tribunais Superiores que, também relativamente àquelas matérias, a aludida norma do Código de Processo Civil não tem aplicação no processo penal. Com efeito, pode ler-se nesse aresto o seguinte: “Nos termos do n.º 1 do artigo 616.º «A parte pode requerer, no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a custas e multa, sem prejuízo do n.º 3», norma esta que prescreve que «Cabendo recurso da decisão que condene em custa ou multa, o requerimento previsto no n.º 1 é feito na alegação». A reforma quanto a custas ou multa consubstancia-se numa alteração da decisão sobre custas ou multa proferida na sentença. Pode dar-se o caso de a decisão sobre custas não ter respeitado alguma das normas sobre custas constante do processo civil ou de legislação avulsa. Pode, por isso, qualquer das partes pedir a sua modificação, de modo a observarem-se as normas aplicáveis na matéria[5]. A falta de previsão no processo penal da reforma da sentença quanto a custas e multa não constitui uma lacuna que deva ser integrada por apelo ao artigo 4.º do CPP. A lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou falha contrária ao plano do direito vigente[6]. Ora, a norma do artigo 380.º, n.º 1, alínea a), do CPP não carece de qualquer integração nem entra em contradição com qualquer outra norma processual penal. Define o regime especial das irregularidades da sentença penal e o seu modo de sanação de forma completa e não entra em colisão com qualquer outra norma do ordenamento processual penal. Por outro lado, nos termos da lei – artigo 380.º, n.º 2, alínea b), in fine –, só é possível proceder à eliminação de erros que não impliquem modificação essencial da sentença, daí que seja inadmissível considerar a existência de uma lacuna teleológica. A ausência de uma disposição a admitir, em processo penal, a reforma da sentença, quanto a custas e multa e a correcção de erros de julgamento, tal como se encontra prevista para o processo civil, não contraria o escopo visado pelo legislador, subjacente à regulamentação legal da matéria da correcção da sentença penal. No sentido de inexistência de lacuna, escreveu-se, no acórdão deste Tribunal, de 12/12/2013, proferido no processo n.º 6138/12.4TDPRT-A.P1.S1: «O CPP prevê e regula os casos em que a sentença pode ser modificada pelo tribunal que a proferiu, suprindo nulidades nos moldes previstos no artº 379º, nº 2, e fazendo as correcções que caibam na previsão do artº 380º. E a previsão desses casos deve ter-se como completa, pois não se coadunaria com o modelo de legislador presumido pela regra do nº 3 do artº 9º do Código Civil que, prevendo-se uns, não se previsse outros que se quisesse admitir. Não se pode, pois, dizer que existe lacuna a integrar com recurso às normas do processo civil. O que há é uma regulação diversa em ambos os ramos do direito processual.» Entretanto e quase a terminar, importa recordar que a correção da decisão jamais se pode reportar a “erro cuja eliminação importe apreciação do mérito da causa”. De recordar, também, que, face ao disposto no nº 4 do artigo 221º do Código de Processo Penal, a sanção aplicada à reclamante é uma decorrência automática de se ter considerado que o pedido de habeas corpus era “manifestamente infundado”. Ou seja, para suprimir a parte do acórdão que aplicou essa sanção, teríamos de entrar na apreciação do mérito do pedido, pois só assim poderíamos concluir, ou não, da existência de um pedido “manifestamente infundado” Aliás, a propósito de caso bastante similar, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em aresto proferido a 19 de janeiro de 20239, o seguinte “II - O art. 380.º do CPP não permite a modificação essencial do decidido, quer quanto aos motivos que levaram o STJ a negar a revisão, quer quanto aos motivos que o levaram a condenar o mesmo, não a título de custas, mas da quantia sancionatória prevista no art. 456.º do CPP, pelo que não pode deixar de ser indeferida a reclamação.” Concluindo, a “reclamação” deve improceder. Notas finais Finalmente, de referir que, como refere o Digníssimo Magistrado do Ministério Público, o requerente não apoia a sua “reclamação” em qualquer norma legal. Nem podia, pois a mesma não existe. Com efeito, desde logo não se vê qual seria a entidade competente para a sua apreciação. É que, embora o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça seja um primus inter pares, não detém o mesmo competência para alterar o acórdão de que se reclamou, não a tendo, também, o Pleno das Seções Criminais (cfr. nºs 2 e 3 do artigo 11 do Código de Processo Penal). Concluindo e tal como se decidiu a 31 de janeiro de 2022 - no processo de habeas corpus n.º 3253/19.7T8BRR-E.S1, da 3ª Secção, deste Supremo Tribunal de Justiça, (no qual foi também apresentada reclamação nos termos da ora em apreciação) -, o indeferimento de pedido de habeas corpus e a aplicação da aludida sanção processual face à manifesta falta de fundamento legal do mesmo, não são suscetíveis de impugnação, seja através pela via de recurso (a não ser o recurso de constitucionalidade, a interpor para o Tribunal Constitucional, verificando-se os respetivos requisitos legais), seja através de reclamação. C – DECISÃO Face a todo o acima exposto, indefere-se a reclamação apresentada por AA. Custas pela reclamante, com a taxa de justiça fixada em 2 U.C. (artigos 524º do Código de processo Penal e 1º, nºs 1 e 2, 2º, 3º e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Judiciais e da sua Tabela III anexa). Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada (Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal) Os Juízes Conselheiros, Celso Manata (Relator) Albertina Pereira (1ª Adjunta) Agostinho Torres (2º Ajunto) Helena Moniz (Presidente da Secção) _______________________________________________
1. Não há recurso da decisão proferida, a não ser o recurso de constitucionalidade, a interpor para o Tribunal Constitucional, se verificados os respectivos pressupostos legais, Conselheiro Maia Costa, em anotação ao artigo 223.º do C.P.P. in Código de Processo Penal Comentado – António Henriques Gaspar e Outros, 3ª Edição revista 2021, pág. 859.↩︎ 2. Cfr. acórdão de 22.04.2015 do S.T.J. (processo n.º 29/14.1ZRLSB-A, 3ª Secção).↩︎ 3. Código de Processo Penal comentado”, de António Henriques Gaspar e outros, pág. 912.↩︎ 4. Proferido no Proc.49/13.3IDFUN-C.S1, desta 5ª Secção e disponível em www.dgsi.pt/jstj↩︎ 5. Mas que, logo no seu nº 3, esclarece ser “correspondentemente aplicável a todos os atos decisórios previstos no artigo 97º”↩︎ 6. “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5ª edição, vol. II, pág. 497.↩︎ 7. Ob. e pág. referida.↩︎ 8. Proc. n.º 593/11.7PBBGC.G1.S1 disponível em www.dgsi.pt↩︎ 9. Proc. n.º29/20.2PTVRL-A.G1.S1, da 5ª secção, disponível em www.dgsi.pt↩︎ |