Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2327/22.1PBPDL.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: CONCURSO DE INFRAÇÕES
ROUBO
FURTO DE USO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
EVASÃO
PENA DE MULTA
PENA DE PRISÃO
ESCOLHA DA PENA
TOXICODEPENDÊNCIA
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 09/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I – Estando em causa um concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do CP), pode o STJ conhecer, em recurso, de todas as questões de direito relativas à pena única e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores a 5 anos, se impugnadas (AFJ n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), como sucede no caso presente.

II – Não havendo norma que restrinja a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo (artigo 48.º do CPP) fazendo-a depender de apresentação de queixa (artigo 49.º), como sucede no caso do artigo 153.º do CP relativamente ao crime de ameaça simples, é irrelevante a declaração de desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravada da previsão do artigo 155.º do CP, de natureza pública.

III – A alteração do tipo de crime de evasão (artigo 352.º do CP), em 1995, visou expressamente abranger todas as situações que o legislador considerou de «privação da liberdade». Anteriormente, o agente só praticava o crime de evasão se estivesse detido ou cumprisse pena de prisão, dependendo a pena das circunstâncias da evasão do estabelecimento em que se encontrasse, da classificação deste e do regime de cumprimento da pena; o conceito de evasão relacionava-se com as situações de detenção e internamento ou prisão, ou seja, com o estatuto de recluso em estabelecimento prisional.

IV – Conferindo a relevância devida ao elemento histórico e sistemático, deve o artigo 352.º do CP ser interpretado no sentido de que a evasão do arguido do local de habitação no qual ficou obrigado a permanecer por aplicação da medida de coação prevista no artigo 201.º do CPP sem vigilância eletrónica preenche o tipo objetivo do crime de evasão da previsão do n.º 1 deste preceito, não havendo que, para este efeito, distinguir a obrigação de permanência com ou sem vigilância eletrónica ou as situações de instalação ou não instalação ou não funcionamento do sistema de vigilância quando a pessoa vigiada se ausenta do local em que se encontra confinada, isto é, privada da liberdade, por decisão judicial.

V – Se é certo que a apreciação das circunstâncias descritas na matéria de facto provada relativas aos factos, aos agentes e às suas condições pessoais e familiares se mostra concisa, da matéria de facto extraem-se elementos suficientes que permitem fundar a decisão de aplicação da pena nos termos do artigo 71.º do CP, satisfazendo as exigências de fundamentação a que se refere o artigo 71.º, n.º 3, do CP e 375.º, n.º 1, do CPP, permitindo, assim, aferir da sua adequação e proporcionalidade, que constituem o critério de decisão do recurso nesta matéria. Na presença desta base factual se afastam as alegadas nulidades da decisão, que, a considerarem-se existentes, sempre deverão ser supridas pelo tribunal de recurso (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).

VI – Invocam os arguidos, a seu favor, a circunstância de serem toxicodependentes e de esta circunstância revelar menor culpa, o que, em tese, poderia compreender-se na assunção de uma conceção tradicional de culpa, não refletida no Código Penal, manifestada na capacidade de «poder agir de outra maneira», mas já não numa perspetiva normativa da censurabilidade do facto revelador da personalidade do agente.

VII – A situação de toxicodependência não afetou a capacidade de os arguidos agirem «de forma livre, voluntária e consciente» nas circunstâncias descritas, a capacidade de entenderem a ilicitude do facto e de agir segundo esse entendimento, com elevado grau de intenção criminosa traduzida em dolo direto (artigo 14.º, n.º 1, do CP), projetando nesses factos caraterísticas de personalidade censurável, reveladas pelas suas condições pessoais, tudo relevando negativamente para a fundamentação do juízo de culpa como pressuposto e limite da punição (artigo 40.º, n.º 2, do CP) e para a determinação da medida da pena por via da culpa (artigo 71.º, n.º 2, do CP).

VIII – Não resulta provado que a dependência do consumo de estupefacientes tenha levado a alterações graves de personalidade ou a que os arguidos tenham praticado os crimes agindo em estado de abstinência ou de grave perturbação que os tenham impulsionado, de forma não censurável, a conseguir drogas por meio dos crimes cometidos, casos em que haveria que, no limite, ponderar da necessidade de realização da perícia médico-legal a que se refere o artigo 52.º do DL 15/93, com as finalidades aí previstas (reflexos do consumo na capacidade de avaliação da ilicitude dos atos praticados ou de determinação de acordo com essa avaliação) ou que valorar positivamente tais circunstâncias ao nível da atenuação da culpa.

IX – Acresce que a alegada toxicodependência e as demais circunstâncias pessoais e familiares descritas nos factos provados, que conjuntamente com as circunstâncias destes se impõem na determinação da pena (artigo 40.º, n.º 1, e 71.º do CP), não permitem definir um quadro favorável à reintegração, antes revelando uma acentuação das necessidades de prevenção especial inscrita nas finalidades das penas.

X – Devendo o tribunal, na opção pela pena de multa (artigo 70.º do CP), guiar-se apenas pelas necessidades de prevenção geral e especial que o caso impõe e tendo em conta que ao recorrente deverá aplicar-se uma pena única, por o crime de ameaça se encontrar numa relação de concurso efetivo com o crime de roubo, a que corresponde uma pena de prisão, a aplicação de uma pena mista de prisão e de multa, afastada das opções do Código Penal, não se revelaria adequada à satisfação das exigências de prevenção que a aplicação da pena única visa realizar.

XI – Tendo em conta as molduras das penas aplicáveis, os critérios de determinação das penas por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do CP) e os limites impostos pela culpa (artigo 40.º do CP), bem como o critério especial da pena única que obriga à consideração, em conjunto, da gravidade dos factos e da personalidade dos arguidos (artigos 71 e 77.º, n.º 1, do CP), não se surpreende motivo de justificação da alteração das penas fixadas, as quais se diferenciam e adequam à participação de cada um dos arguidos e não se mostram determinadas em violação do critério de proporcionalidade que lhes deve presidir, em vista da realização das suas finalidades de proteção dos bens jurídicos e de integração (artigo 40.º, n.º 1, do CP).

XII – Termos em que é negado provimento aos recursos.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, BB e CC, arguidos, com a identificação dos autos, foram julgados e condenados por acórdão de 16.1.2024, proferido pelo Juízo Central Cível e Criminal de ... - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, nos seguintes termos:

1.1. O arguido AA:

• Pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;

• Pela prática de um crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 208.º, n.º 1, do Código Penal, numa pena de 8 meses de prisão;

• Pela prática de um crime de evasão, previsto e punido pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal numa pena de 6 meses de prisão;

• Em cúmulo jurídico das penas parcelares atrás referidas, na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

1.2. O arguido BB:

• Pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal, numa pena de 6 anos de prisão;

• Pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal, numa pena de 6 anos e 4 meses de prisão;

• Pela prática de um crime de evasão, previsto e punido pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal numa pena de 6 meses de prisão;

• Em cúmulo jurídico das penas parcelares atrás referidas, na pena única de 8 (oito) anos de prisão.

1.3 O arguido CC:

• Pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) do Código Penal, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;

• Pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, nº1 e 155º, nº1, alínea a) Código Penal, numa pena de 6 meses de prisão;

• Em cúmulo jurídico das penas parcelares atrás referidas, na pena única de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão.

2. Discordando do decidido quanto às penas parcelares e quanto às penas únicas, apresentam recurso com motivações de que extraem as seguintes conclusões (transcrição):

2.1. O recorrente AA:

«1) Vem o presente recurso intentado do Douto Acórdão que condenou o arguido/recorrente AA numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de roubo; numa pena de 8 meses de prisão pela prática de um crime de furto de uso de veículo e mais numa pena de 6 meses de prisão pela prática de um crime de evasão,

2) sendo que, e em cúmulo jurídico, veio o dito Acórdão recorrido a condenar o arguido/recorrente AA na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

3) No presente recurso, o recorrente pretende não tanto questionar a sua condenação pelo tribunal a quo nos crimes pelos quais vinha acusado, atente-se que o arguido/recorrente acabou por confessar a grande maioria dos factos descritos nas diferentes acusações,

4) mas o que não pode aceitar é a dosimetria concreta da pena de prisão efetiva que lhe foi aplicada, nomeadamente (e em particular) na pena de cinco anos e seis meses de prisão pela prática do crime de roubo de que vinha acusado e, ressalvado o respeito devido, assim não o deveria ter sido, porque

5) na determinação da medida da pena a aplicar em caso de condenação, o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, manda que o Tribunal atente a todas as circunstâncias que depuserem a favor do agente

6) consideração essa que se julga ter sido olvidada no Acórdão recorrido. Senão

7) Ao mencionado crime de roubo (e na condenação do arguido/recorrente apenas o crime roubo simples do artigo 210.º n.º 1 do Código Penal, e não o roubo agravado de que vinha acusado) corresponde uma moldura penal abstraía de um a oito anos de prisão.

8) Ora, e atenta a circunstância de o arguido/recorrente não apresentar quaisquer condenações anteriores por crimes de igual natureza; ter confessado (mesmo que em alguns factos parcialmente); ter sempre, e durante todo o processo, colaborado proactivamente com as autoridades; ter demonstrando forte e sincero arrependimento e consciência da ilicitude da sua atuação,

9) ter 40 anos de idade (apenas a idade de 38 anos à data da prática dos factos), e ainda o facto de se encontrar social e laboralmente integrado, tudo conforme resulta do próprio Acórdão ora recorrido, bem se vê que

10) todas as circunstâncias atenuantes que o arguido clara e efetivamente evidencia, bem como as diminutas necessidades de prevenção especial (já anteriormente observadas) deveriam ter sido consideradas para atenuar a pena da arguida por conta da aplicação do artigo 72.º do Código Penal, nomeadamente: a existência de circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ,.., que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (ver n.º 1 do mencionado artigo 72.º).

11) É pois verdade e evidente serem os todos fatores /critérios preponderantes e a considerar para uma pena inferior à que foi aplicada ao arguido com base na aplicação da atenuação especial do artigo 72.º do Código Penal),

12) e que mais parece ser o contrário do que efetivamente parece ter sucedido no Acórdão recorrido.

13) De reter não só que o arguido não apresenta condenações anteriores por crimes da mesma natureza (tão pouco contra o património) e que o arguido confessou os factos (mesmo que se considere tê-lo feito parcialmente, como o foi no Douto Acórdão), confissão essa que terá forçosamente de ser interpretada como demonstração de arrependimento por parte do arguido/recorrente e como tal relevar para a fixação da medida concreta da pena,

14) pelo que se entende que, e no caso concreto poderia/deveria a pena a aplicar ao arguido ser especialmente atenuada por força da aplicação do artigo 72.º do Código Penal.

15) Verdade é que, e tendo em consideração a atuação de cada um dos arguidos e as respetivas circunstâncias, e dentro da moldura penal final aplicável a cada um dos arguidos, e as penas concretamente aplicadas a cada um dos arguidos pelo mesmo ilícito (o crime de roubo),

16) o arguido/recorrente (reconhecidamente com conduta menos grave, menos prevenção) acabou por ter uma pena maior/mais penalizante (ao outro arguido foi fixada praticamente a mesma moldura).

17) De facto, o ora recorrente, ao ser condenado na pena de cinco anos e seis meses de prisão (numa moldura entre um e oito anos) pela prática do crime de roubo (simples), enquanto o outro agente/arguido neste mesmo processo, e pela prática do mesmo crime, mas com atuação bem mais gravosa e sem os critérios da atenuação, foi condenado praticamente na mesma (em seis anos de prisão),

18) por isso se afirma que a pena do recorrente acabou por ser uma pena mais penalizante, isto porque, e mesmo que inferior, comparativamente (e apurando-se da concreta importância e efetiva atuação do arguido em todo o processo) no cômputo geral, é mais penalizante,

19) pois que, e como consta do próprio Acórdão, o Tribunal decidiu «...ponderando os factos na sua globalidade e sopesando todas as referidas circunstâncias, atenta a gravidade do seu comportamento...»

20) o que a ter sido devidamente considerado/ponderado na determinação da maior, ou menor, censura da atuação do arguido, como deveria, teria obrigatoriamente de ter influído na medida de pena concreta a aplicar ao arguido em comparação com o outro agente/interveniente no processo e também arguido nos Autos,

21) daí que não se concorde, que a pena aplicada ao arguido/recorrente seja justa, adequada e proporcional

22) pelo que, e também por estas razões, não se aceita a medida concreta da pena aplicada ao arguido/recorrente, que deveria ser por isso inferior aos 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão efetivamente aplicados, atendendo à pena abstratamente aplicável, aos critérios de escolha e medida da pena e às suas finalidades,

23) até porque se entende que uma qualquer pena inferior à aplicada pelo Tribunal igualmente realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, a proteção dos bens jurídicos e a reintegração da agente na sociedade, tal como se encontram apontados no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal.

24) Aqui chegados, e no pressuposto de que o pedido do arguido/recorrente de redução da pena efetiva de prisão que lhe foi aplicada por conta da condenação na prática do crime de roubo irá merecer o desejado acolhimento e, consequentemente, essa pena irá ser reduzida no seu cômputo (como até aqui deduzido e requerido),

25) na medida em que possa permitir a aplicação de uma pena única inferior aos 5 (cinco) anos,

26) coloca a questão de se poder, como efetivamente o deverá, de ser aplicado ao arguido/recorrido o instituto da suspensão da pena de prisão, porquanto,

27) é pacífico que, e da conjugação dos artigos 70.º, n.º 1 e 50.º, n.º 1 do Código Penal, a pena de prisão fixada em medida não superior a cinco anos deve ser suspensa na execução,

28) desde que, claro está, se verifiquem os restantes condicionalismos dessa suspensão,

29) ou seja, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste (todas favoráveis ao arguido), se conclua que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição,

30) o que no caso concreto se verifica,

31) Relembre-se que a desejada suspensão da execução da pena não deverá depender tanto das necessidades de prevenção geral (como as que são evidenciadas/fundamentadas no Acórdão recorrido), mas sim, e antes, fundamentalmente das necessidades (ou falta delas) de prevenção especial do recorrente em concreto, ou seja,

32) o que verdadeiramente deve relevar, é se, e para aquele agente/condenado em concreto, e dada a verificação de restantes condições que lhe sejam favoráveis, /'. é, valoradas conjuntamente todas as circunstâncias/elementos que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido ("personalidade do agente"; "às condições da sua vida"; "à sua conduta anterior e posterior ao crime"; "e às circunstâncias do crime"),

33) e tendo em conta que a finalidade maior do instituto da suspensão da pena é o afastamento da prática pelo condenado de futuros novos crimes,

34) é ou não possível fazer um juízo de prognose favorável, no sentido em que a simples censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para o afastar do perigo de continuidade de atividade criminosa do condenado e, dessa forma, realizarem adequada e suficientemente as finalidades da punição,

35) o que, e no caso em concreto do arguido/recorrente, se nos afigura possível, ou seja, esse juízo de prognose favorável é possível de ser feito e considerado,

36) tendo em consideração a personalidade do arguido e as circunstâncias do facto, e que o arguido não ter antecedentes criminais pela prática de crime da mesma natureza, não havendo notícia de que o arguido esteja envolvido na prática de mais nenhum ilícito criminal (até pelo facto de se encontrar sujeito à MC de prisão preventiva), tendo o arguido perspetiva quase certa de ocupação laboral, tendo agora o apoio de seus pais e encontrando-se perfeita e socialmente integrado,

37) e entendido/decidido que a ameaça da pena, será suficiente para que se possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao futuro comportamento do recorrente, se conclua que o arguido sentirá a condenação como uma advertência e não irá cometer, no futuro, novos crimes,

38) não se encontra nenhum fundamento/ justificação para a não opção pela suspensão da respetiva execução, porquanto as reduzidas (quase inexistentes) exigências de prevenção especial permitem, sem que se assuma um risco demasiado elevado, efetuar um juízo de prognose favorável à socialização do recorrente em liberdade.

39) Nestes termos, não se afigura haver fundamentos/critérios nem finalidades da punição (art. 50.º, n.º 1 e 40.º, n.º 1 do Código Penal) que se oponham à sua aplicação, pois que não se colocará em causa as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico impostas pelas necessidades de prevenção geral,

40) daí que, e no caso em concreto, não havendo razões de prevenção especial que impeçam a substituição da pena de prisão imposta pela suspensão da respetiva execução, terá de se concluir que a mesma (a suspensão da execução da pena) será capaz de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, e que impeça uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, a esperança de que ele sentirá a condenação como uma advertência e que não voltará no futuro a delinquir.

41) Mais, e levando-se aqui em linha de conta que a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da execução da pena reside no "afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novo crimes", o Tribunal a quo poderia/deveria ter corrido o risco (que se julga prudente-esperança não é seguramente certeza) já que não restam dúvidas (e ainda menos sérias dúvidas) sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida.

42) Estarão, assim, reunidos os pressupostos (condições mínimas de salvaguarda dos identificados riscos) para permitir que se possa suspender a sua execução, nos termos do n.º 1 artigo 50.º do Código Penal, e concluir que a sua socialização em liberdade é viável.

43) Assim, o presente recurso incide, apenas, sobre matéria de direito cuja aplicação pelo Tribunal a quo se discorda, nomeadamente,

44) com a apreciação feita na decisão recorrida com vista à determinação da medida da pena concreta a aplicar ao arguido/recorrente,

45) seja com a falta de consideração das circunstâncias atenuantes que o mesmo clara e efetivamente evidencia,

46) seja por a "penalização" do recorrente, em comparação com o outro arguido/condenado, se entender injustificada e injusta.

47) Após o que, e reduzida que seja a pena única a aplicar ao recorrente (para período inferior a 5 anos) verificar-se-ão/estarão preenchidos os pressupostos para a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena.

48) Será pois de se concluir que, as enumeradas circunstâncias, poderiam/deveriam ter levado, em favor do arguido, à aplicação da atenuação especial da pena, conforme prevista no artigo 72.º do Código Penal,

49) e, por conseguinte, nunca ao Recorrente deveria ter sido aplicada pena única nunca superior a cinco anos de prisão.

50) Face ao exposto pensamos que a decisão recorrida viola o preceituado no artigo 40.º; no artigo 50.º; artigo 70.º; no artigo 71.º e no artigo 72.º todos do Código Penal,

51) bem como os artigos 374.º, n.º 2; o artigo 379.º, n.º 1 alínea c), estes do Código do Processo Penal,

Termos em que, e nos melhores de direito o presente recurso deverá proceder a pretensão da recorrente e consequentemente deverá ser arbitrada ao arguido/recorrente AA nova medida da pena de prisão pela prática do crime de roubo, inferior à fixada no Acórdão recorrido; devendo a mesma ser reduzida até que se permita a aplicação ao dito arguido/recorrente de uma pena única inferior a cinco anos de prisão, ser essa pena de prisão (inferior a 5 anos de prisão), porque devidamente preenchidos/verificados os necessários pressupostos, ser suspensa na sua execução.»

2.2. O recorrente BB:

«I) O arguido, ora recorrente, vem condenado pela prática de dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo art. 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, nas penas de 6 (seis) anos e 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão, e de um crime de evasão, previsto e punido pelo art. 352.º, n.º 1 do Código Penal, numa pena de 6 (seis) meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) anos de prisão.

II) Não se conforma no entanto com a medida concreta das penas parcelares que lhe foram aplicadas, e concomitantemente, com a medida da pena única de 8 (oito) anos de prisão em que foi condenado, que reputa de excessivas e desproporcionadas, e considera que o Tribunal a quo violou os art.s 40.º, 71.º e 77.º todos do Código Penal.

III) Pese embora o Tribunal a quo tenha considerado no ponto 58. dos factos dados por provados, e constando documentado nos autos, através do Relatório Social para Determinação da Sanção que o arguido: "(…) À data dos factos (…) Mantinha um quotidiano centrado no consumo de estupefacientes (nomeadamente heroína e drogas sintéticas) (…)", não foi devidamente valorado o enquadramento em que os factos teriam ocorrido, tudo se passando num período curto de tempo (os dois crimes de roubo foram praticados em menos de um mês) e num contexto de intenso consumo de estupefacientes, nomeadamente de “drogas sintéticas” - que, como é sabido, do universo das “drogas duras” são aquelas que efeitos mais nocivos acarretam para a saúde, sobretudo mental, dos consumidores - em que o arguido “vivia” para satisfazer o vício, com as inerentes e reconhecidas limitações à capacidade de autodeterminação e de domínio da vontade.

IV) O Tribunal a quo desvalorizou o circunstancialismo de vida do arguido que, à data dos factos, era toxicodependente, tendo iniciado o consumo de estupefacientes ainda na adolescência, sendo que não obstante já ter realizado tratamento de desintoxicação, teve “recaídas ao nível aditivo, no período que antecedeu a atual prisão preventiva”, consumindo "drogas sintéticas", cfr. resultou provado através do Relatório Social junto aos autos e admitido pelo próprio arguido em sede de audiência de discussão e julgamento, atuando sempre em função da pressão do vício, limitado na sua atuação por não ter verdadeira liberdade na determinação da sua vontade, constituindo a dependência de substâncias estupefacientes o mote principal das suas condutas contra o Direito.

V) O excessivo rigor das penas parcelares aplicadas nos presentes autos, e da pena única, que em cúmulo, foi cominada ao arguido, resulta evidente quando se atenta ao circunstancialismo e enquadramento em que ocorreram os factos relacionados com os crimes de roubo, ao modo de atuação semelhante em ambos os casos, à concentração dos crimes num período curto de tempo, ponderada ainda a gravidade e as consequências desses factos, bem como a ilicitude das condutas, o grau de culpa do agente e o período de tempo já decorrido desde a prática dos factos - circunstâncias cuja apreciação conjunta na determinação da(s) pena(s) se impunha e que não foram devidamente valoradas pelo Tribunal a quo.

VI) Sendo público e notório que o consumo de produtos estupefacientes origina perturbações no regular funcionamento da mente, mormente ao nível da consciência e da vontade, e considerando o contexto de intenso consumo de estupefacientes (“drogas sintéticas”) em que os factos teriam ocorrido, não se poderia entender que “(…) Quem atua como os arguidos atuaram, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, não pode deixar de querer atuar como descrito, de ter consciência da proibição da conduta e de conformar-se com as consequências legais das mesmas (…)” como fez o Tribunal a quo.

VII) A ponderação de tais circunstâncias, que afetavam o domínio da vontade do arguido à data da prática dos factos, diminuindo-lhe a capacidade de autodeterminação e de domínio da vontade, e atenuando a consciência do caráter proibido das suas condutas devem, em nosso modesto entendimento, ser relevadas no sentido de atenuar a sua culpa, diminuindo, nessa medida, a necessidade da pena a aplicar ao arguido, ora recorrente.

VIII) Donde que, mal andou o Tribunal a quo ao considerar que: “Deverá ainda ter-se presente o grau de ilicitude dos factos, elevado quanto a todos os arguidos, atenta a forma de atuação dos arguidos (…), a sua duração e a natureza e o valor dos bens subtraídos. Também elevada é a culpa de todos os arguidos, atento o dolo direto.”, atendendo a que a atuação com dolo direto corresponde à forma normal do agir humano, não agravando tal circunstância a ilicitude, pois dificilmente seria concebível a prática dos crimes de roubo e de evasão, em discussão nos autos, com outra modalidade de dolo. (destaque e negrito nossos)

IX) Por outro lado, também não foi justamente ponderada pelo Tribunal a quo que o arguido conta com apoio da sua ex-companheira, que no depoimento que prestou em sede de audiência de discussão e julgamento, e conforme resulta da motivação do douto acórdão recorrido, “explicou a relação especial que aquele mantém com a filha” comum de ambos, com apenas 10 anos de idade, “visitando-o, assim como a filha do casal, no Estabelecimento Prisional”, cfr. documentado nos autos através do Relatório Social, tendo assim o apoio necessário para promover a sua reabilitação. (destaque e negrito nossos)

X) E tão-pouco foram devidamente ponderados pelo Tribunal a quo, o valor diminuto das retiradas aos ofendidos e das quais o arguido (juntamente com os co-arguidos nos autos) se terá apropriado, em consequência dos factos (140,00€ e 300,00€) e o concreto grau de violência das suas condutas, tendo apenas resultado provado a exibição de uma faca pelo arguido no episódio que teve lugar em 29/12/2022 (cfr. ponto 3. dos factos provados), e já não na outra situação (cfr. resulta dos pontos 19. a 25. dos factos dados provados).

XI) Não tendo o caso dos autos sido o primeiro contacto do recorrente com o sistema judicial, conforme resulta das condições socioeconómicas dadas por provadas no douto acórdão recorrido e do Relatório Social junto aos autos, a verdade é que o arguido (com 41 anos) atualmente não tem antecedentes criminais registados (cfr. ponto 73. dos factos provados) circunstância que milita a seu favor e que não deve ser desconsiderada.

XII) O douto acórdão, de que ora se recorre, atribuiu demasiada relevância aos anteriores antecedentes criminais do arguido, valorando negativamente o seu passado criminal, quer no doseamento da medida das penas parcelares, quer na fixação da pena única, pese embora as penas anteriormente aplicadas ao ora recorrente já se mostrarem extintas em momento anterior ao da prática dos factos pelos quais vem condenado nos presentes autos, concedendo-lhe um tratamento diferenciado em relação aos demais que não possuem antecedentes criminais, e assim violando os princípios basilares por que se pauta o nosso ordenamento jurídico.

XIII) Como conduta posterior aos factos, relevando para o conhecimento da personalidade do arguido, e para a valoração do seu comportamento global consubstanciado no concurso de crimes cometidos, será de realçar que, em sede de audiência de discussão e julgamento, o arguido prestou declarações e colaborou na descoberta da verdade material, ao invés de se ter remetido ao silêncio, relatando, de modo franco e espontâneo, a sua participação nos factos (sem que daí tivesse resultado uma confissão integral e sem reservas, quanto aos crimes de roubo, pois não podia o arguido admitir factos que não praticou).

XIV) O Tribunal a quo desconsiderou ainda o arrependimento sincero demonstrado pelo arguido, que reconheceu o desvalor das suas condutas, circunstância também relevante que depõe a seu favor e que deve ser devidamente valorada na decisão sobre a medida concreta das penas parcelares aplicadas e da pena única em que foi condenado.

XV) Sendo a medida da pena determinada, por imperativo legal, em função da necessidade de proteção dos bens jurídicos (prevenção geral) e de reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), e tendo esta por limite inultrapassável a medida da culpa expressa - ex vi do disposto nos art. 40.º n.º 2, e 71.º n.º 1, do Cód. Penal - devendo atender-se ainda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (ex vi do art. 71.º n.º 2 do Cód. Penal), e sendo o concurso de crimes punido com uma pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (cfr. art. 77.º do Cód. Penal), in casu, impunha-se ao Tribunal a quo fixar as penas parcelares nos seus limites mínimos legais, reduzindo-se em conformidade a pena única fixada, com o que se realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

XVI) O Tribunal a quo não atendeu a todas as circunstâncias que devem concorrer para a determinação da medida concreta da pena, revelando-se, por isso, e salvo melhor opinião, demasiado severas, injustas, desadequadas e desproporcionais à «culpa» do arguido, ora recorrente, as penas parcelares aplicadas nos presentes autos, e, por essa via, também se mostra desproporcional ao valor global dos factos e dos crimes praticados, a pena única aplicada.

XVII) Assim, considera o ora recorrente que é desproporcionada a medida concreta das penas parcelares que lhe foram aplicadas, que se reputam de excessivas, desadequadas e desproporcionais à sua «culpa», e, concomitantemente, a pena única fixada, e por isso violadoras do disposto nos art.s 40.º, n.º 2, 71.º e 77.º, todos do Cód. Penal, devendo, por via do presente recurso, ser reduzidas as penas parcelares aplicadas, as quais deverão ser fixadas nos seus limites mínimos, reduzindo-se, em consequência, a pena única de 8 (oito) anos de prisão que, em cúmulo jurídico, lhe foi cominada, penas que se afiguram mais harmoniosas, proporcionais e justas às circunstâncias, e que realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Termos em que se requer (…) seja dado provimento ao presente recurso, e nessa conformidade, deverá ser alterado o quantum das penas parcelares aplicadas ao arguido, ora recorrente, reduzindo-se as mesmas para os seus limites mínimos legais e, concomitantemente, a pena única de 8 (oito) anos de prisão, que, em cúmulo jurídico, lhe foi cominada.»

2.3. O recorrente CC

«1. Nos presentes autos é imputado ao recorrente, para além do mais, a prática de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos Art.ºs 153.º, n.º 1 e 155º, n.º 1, a), ambos do C.P..

2. A condenação do aqui recorrente, em tal ilícito, baseia-se na premissa de que o crime de ameaça agravada tem natureza pública.

3. O Tribunal a quo, não homologou a desistência da queixa, conforme vontade manifestada pelo ofendido em audiência de julgamento, quanto ao crime de ameaça agravada, por considerar a sua natureza pública atenta a sua autonomia do relativamente ao tipo fundamental.”

4. Os crimes de ameaça simples e de ameaça agravada, ambos previstos no mesmo preceito legal, - Art.º 153.º do C.P.-, mesmo antes da reforma do Código Penal, efetuada em 2007 por via da Lei nº 59/2007, de 04 de setembro, já assumiam natureza semi-pública.

5. Não obstante, a alteração legislativa, preconizada pela Lei nº 59/2007 à sistemática do Código Penal, certo é que, não se operou qualquer alteração substancial, do tipo do crime de ameaça.

6. Na, verdade, limitou-se, apenas a transportar o anterior n.º 2 do Art.º 153.º - agravação da ameaça consubstanciada na prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, para o, então, criado Art.º 155.º n.º 1, onde, por razões, apenas, de utilitarismo sistemático, se agruparam e alargaram as circunstâncias agravantes da ameaça e da coação.

7. Ou seja, nada mais se fez do que alargar o âmbito da agravação, determinando a aplicação ao crime de ameaça, de todas as circunstâncias agravantes previstas para o crime de coação, uma vez a) se aplicava ao crime de ameaça.

8. Da leitura dos Art.ºs 153.º e al. a) do 155.º, constata-se que este último preceito não contém, ao nível do tipo fundamental do ilícito, qualquer elemento diverso ou mais grave do que se encontra tipificado no primeiro, isto é, no Art.º 153.º, onde já se alude a crimes contra a vida.

9. Até porque, não nos parece possível, conceber a ameaça da prática de crime contra vida sem que estejamos perante a ameaça com a prática de crime punível com pena de a prisão superior a 3 anos – Art.º 155 º, n.º 1, al. a) do C.P..

10. Seria uma contradição punir como crime de ameaça o anúncio a alguém da prática de um crime contra a vida, nos termos do disposto no Art.º 153.º e dizer que, neste caso, o procedimento criminal depende de queixa – cfr. o seu n.º 2 –, e ao mesmo tempo, por força da al. a) do Art.º 155.º, afirmar que nos encontramos perante um crime cujo procedimento criminal não depende de queixa, na medida em que, o mal ameaçado, a concretizar-se, será, em princípio, punido com pena de prisão superior a 3 e anos.

11. A ausência da menção expressa, no referido Art.º 155.º C.P., que a ameaça, ainda que na forma agravada continua a revestir natureza semi-pública, não poderá, por si só torná-la num crime público, apenas, por não existir norma expressa a dispor o contrário.

12. Há que ter em conta, por um lado, evolução histórica da Lei- desde a redação originária do Código Penal de 1982, tal ameaça revestiu, sempre, natureza semipública -, e por outro, a verdadeira intenção do legislador em 2007, para incontestavelmente, se apurar que o crime de ameaça agravada, revestiu, desde sempre, uma natureza semi-pública, ainda que, verificada a circunstância agravante que nos presentes autos é imputada ao ora recorrente!

13. Pretendeu-se, assim, com tal alteração legislativa, que o crime de ameaça passasse, apenas, a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coação grave.

14. Por outro lado, não pode, igualmente, a natureza pública do crime de ameaça agravada, decorrer da circunstância do crime de coação, também, ele incluído na previsão do Art.º 155.º do C.P., revestir natureza pública.

15. E não pode, precisamente, porque o crime de coação, que sempre revestiu natureza de crime público, também ele, -tal como se não verificou com a ameaça-, não sofreu qualquer alteração, quanto à sua natureza, com a criação do Art.º 155.º.

16. Assim e face ao exposto, dever-se-á, salvo melhor opinião, continuar a entender existir um só tipo legal, o consagrado no Art.º 153.º (tipo fundamental) e que a agravação operar-se-á, apenas, na sua moldura penal quando verificada a al. a) do Art.º 155.º, sem atribuir natureza diversa à já pré-existente, isto é, semi-pública.

17. Pelo que, ao não ter perdido o crime de ameaça, mesmo sob a forma agravada, a sua natureza semi-pública, a desistência in casu do procedimento criminal por parte do ofendido, DD, não pode levar a outra consequência que não a sua extinção.

18. Ao não o fazer, entendemos que o Acórdão recorrido violou o disposto nos Art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal e Artº. s 48.º, 49.º e 51. º, todos do Código de Processo Penal.

Da Pena e da Medida da Pena Crime de Ameaça Agravado,

Por outro lado, a manter-se a condenação (…) Sempre se dirá que:

19. O crime de ameaça agravada é punido com uma pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa de até 240 dias [artigo 155º, nº 1, alínea a) conjugado com os artigos 41º, nº 1 e 47º, nº 1, todos do Código Penal.

20. A lei substantiva penal, quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, impõe a aplicação preferencial da pena não privativa da liberdade sempre que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – Art.º 70.º do C.P..

21.O tribunal deverá optar por pena não privativa da liberdade, sempre que se mostre possível alcançar os fins da punição, nomeadamente, afastar o delinquente da prática de novos crimes e fazê-lo interiorizar o desvalor da sua conduta,

22. No caso do recorrente, entendemos que atenta às circunstâncias de se ter mostrado arrependido e pedido desculpa ao ofendido, em sede de audiência de julgamento, que nos leva concluir pela consciência do desvalor da sua conduta;

23. O não ter ficado demonstrado que “… do lado de fora da janela da farmácia, retirou da cintura uma faca, que empunhou na direção do ofendido, dizendo-lhe, enquanto a exibia, “foste fazer queixa na polícia que eu te roubei! Vou-te matar com esta faca” e “foge, foge, se não te matar hoje, mato-te qualquer dia!”,

24. E a desistência da queixa apresentada pelo ofendido, - ainda que se venha dar como irrelevante em termos penais-, reveladora que se esbateu qualquer clima de tensão entre o recorrente e ofendido, o que traduz, uma manifestação clara da vontade, da não condenação do recorrente,

25. Serão circunstâncias que o tribunal a quo poderia e deveria ter tido em conta para, em alternativa à pena de prisão aplicada ao recorrente, optar por pena não privativa da liberdade, condenando-o, assim, em pena de multa ou a ser de prisão, suspensa na sua execução.

26. Ao não o fazer, violou entre outros os Art.ºs 70.º, 40.º, 71.º e 50.º do C.P.

Da Pena e da Medida da Pena Crime de Roubo,

27. O recorrente confessou, ainda que parcialmente, os factos que praticou e colaborou deste modo para a descoberta da verdade material dos mesmos.

28. Mostrou-se arrependido, e reconheceu que agiu em desconformidade com o direito, verbalizando-o em plena audiência de julgamento, aliás, conforme explanado no Acórdão recorrido “…de ter consciência da proibição da conduta e de conformar-se com as consequências legais das mesmas, conforme, aliás, decorreu das próprias declarações daqueles, os quais, no final do julgamento, suplicaram todos por uma oportunidade e se afirmaram como arrependidos (ora, apenas nos podemos arrepender quando temos consciência do que foi feito).” (Sublinhado nosso)

29. O douto Acórdão ora recorrido, em qualquer caso não fez, salvo melhor opinião, a mais acertada integração do direito penal substantivo, na situação sub judice, fazendo uma incorreta aplicação do preceituado no Art.º 71.º n.º 1, do Código Penal,

30. Ao aplicar ao recorrente uma pena privativa de liberdade pelo período de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses viola o douto Acórdão o disposto nos Art.º s 70.º, 75.º a contrario e 50.º do Código Penal.

31. No caso do recorrente, constata-se que os factos foram praticados num contexto de forte necessidade de obtenção de bens para prover à sua dependência de substâncias de estupefacientes.

Sendo certo que,

32. Tal dependência já não se verifica, - embora tenha obtido resultado positivo num teste de despiste de estupefacientes, esteve ocupado laboralmente como faxina entre abril e agosto de 2023, tendo retomado essa ocupação em outubro de 2023 -, conseguido sozinho manter-se abstémico de drogas, e isto porque, finalmente, tomou consciência dos comportamentos desviantes que tem tido para satisfazer tal vício.

33. A privação da sua liberdade fê-lo repensar, para além do desvalor da sua conduta criminal e está, verdadeiramente, decidido a arrepiar caminho no seu percurso criminal.

34. Além do mais, o demérito do crime de roubo, levados a cabo pelo recorrente, também, aqui se mostra esbatido pela circunstância de não ter infligido qualquer agressão ao ofendido, aliás, como demonstrado no douto Acórdão recorrido.

35. Bem como a desistência de queixa apresentada, reveladora que se desvaneceu qualquer clima de tensão entre o recorrente e ofendido, o que traduz, uma manifestação clara da vontade, da não condenação do recorrente,

Assim,

36. E nesta medida a pena deverá ser-lhe substancialmente reduzida, para além de suspensa na sua execução, como veremos.

37. Impõe a lei substantiva penal que, quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, dever-se-á dar preferência à aplicação da pena não privativa da liberdade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – Art.º 70.º Código Penal.

38. E manda suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição -Art.º 50.º, n.º 1 do CP.

39. São, pois, considerações de natureza exclusivamente preventiva, de prevenção geral e de prevenção especial, que justificam e impõem a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efetiva aplicação.

40. O ponto de partida e o enquadramento geral da tarefa de determinação da pena concreta é o Art.º 40.º do CP, nos termos do qual, toda a pena tem como finalidade «a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade».

41. Culpa e prevenção constituem o binómio que o julgador tem de utilizar na determinação da medida da pena – Art.º 71º, n.º 1, do CP.

42. Por sua vez, o Art.º 71.º, n.º 1, do CP, vem-nos dizer que «A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção», acrescentando o n.º 2 que o tribunal deve atender «a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele», enumerando a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime .

43. Quanto à função e ao papel a desempenhar por aquelas exigências preventivas, há que atribuir prevalência às considerações de prevenção especial, por serem sobretudo elas que justificam, em perspetiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.

44. Ora no caso do recorrente, o seu comportamento tem consequências nefastas para sociedade em geral, pelo que se criou, nesta mesma sociedade, a expectativa da punição de tais condutas, em termos que o Tribunal não pode evidentemente ignorar.

45. E como todos sabemos o caminho para melhorar a situação passa também pela repressão que a lei prevê. Contudo, não podemos deixar de ter presente aquilo a que Sousa e Brito (estudo citado, 587) chama “a inconstitucional instrumentalização do indivíduo criminoso como meio de atemorizar os outros”.

46. No entanto, quanto à prevenção especial, não obstante o recorrente ter voltado a praticar atos que consubstanciam um crime, a sua necessidade parece-nos não se fazer sentir, pelo menos, nos termos em impeçam, ainda assim, formular um juízo de prognose favorável de ressocialização do mesmo, em liberdade.

Assim e face a todo exposto

47. No caso vertente, salvo melhor opinião, é por demais evidente a falta de necessidade de o recorrente cumprir uma pena tão elevada, e

48. Estamos, pois, certos que uma pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão efetiva, não cumprirá os seus propósitos nem as finalidades de prevenção e punição, porque injusta, desproporcional e desadequada.

49. Ao invés, entendemos que servirá para criar no Recorrente um sentimento de revolta por ver mais de seis anos da sua vida inutilizados.

50. Devendo, assim, a medida da pena ser claramente reduzida.

51. Por via do Art.º 50.º do Código Penal – Suspensão da Pena-, impende, sobre o tribunal, um poder – dever na aplicação desta espécie de pena, preenchidos os respetivos pressupostos.

52. Constitui pressuposto material de suspensão da execução da pena de prisão a existência de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido.

53. E, são finalidades de prevenção especial de socialização, que estão na base de suspensão da execução da pena na prisão, isto é,

54. A finalidade político-criminal que a lei visa alcançar com o instituto da suspensão consiste no “… afastamento do delinquente, no futuro da prática de novos crimes e não qualquer correção” “; … decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência”, tal como refere o Professor Figueiredos Dias (in Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime pág. 343 e segs).

55. E a existência de uma condenação anterior, ressalvando que tal condenação não se traduziu em prisão efetiva, não é impeditiva da concessão da suspensão, embora, nesta situação, o prognóstico favorável relativamente ao comportamento do recorrente se torne mais exigente.

56. De todo o modo, o que aqui está em causa não é uma qualquer certeza, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda,

57. Deve o Tribunal, encontra-se disposto a correr um certo risco – fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade. (Figueiredo Dias in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime” Notícias Editorial. 1993. Pág. 344).

58. Ora, nos presentes autos pretende-se obter o afastamento do recorrente, no futuro, da prática de novos crimes e a consciencialização por partes dos mesmos, da necessidade de inverter o rumo para que se dirige a sua vida.

59. Aliás, a situação de reclusão a que se encontra já o fez interiorizar o seu comportamento delituoso, e repensar numa nova vida longe de drogas e de tais delitos.

60. Pelo que se nos afigura, salvo o devido respeito, que ainda não está afastada a possibilidade de a simples censura do facto e a ameaça de prisão afastar o recorrente definitivamente deste género de criminalidade:

61. Entende-se assim, como mais adequada, justa e proporcional a aplicação de uma pena, próxima dos limites mínimos e suspensa na sua execução, por a simples censura do facto e a ameaça de prisão, realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.

62. Tal suspensão deverá, contudo, ser sujeita a um rigoroso regime de prova que ateste a desvinculação ao consumo de estupefacientes, fator que esteve na base do crime cometido pelo recorrente.

63. Desta feita a finalidade última de recuperação do recorrente, será atingida, afastando-o, assim, da criminalidade sem, contudo, descurar as finalidades da punição.

64. Nunca esquecendo, que o que está em causa é a esperança fundada de que a socialização em liberdade, do recorrente, possa ser alcançada.

65. Pelo que se entende, e salvo o devido respeito, que deverá ser reapreciada a pena e a medida da pena em função do atrás exposto.

66. A não consideração das circunstâncias supra explanadas e existentes nos autos, as quais beneficiariam a medida da pena aplicável em concreto, viola o disposto no n.º 2 do Art.70º e 71.º, do Código Penal.

67. Não o tendo feito o douto Acórdão violou, entre outros, o disposto nos Art.º s 40.º, 70.º, 71.º e 50.º do Código Penal;

68. E, nessa medida, a decisão ora recorrida é nula e impõe-se a sua alteração.

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, requer-se (…) se dignem revogar o douto Acórdão recorrido, substituindo-o por outro que:

A) Homologue a desistência de queixa apresentada pelo ofendido, com a consequente extinção do procedimento criminal respeitando o preceituado nos Art.º s 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal e Art.ºs 48.º, 49.º e 51.º, todos do Código de Processo Penal;

B) Caso assim se não entenda, que pena de prisão, aplicada ao recorrente pelo crime de ameaça agravada, seja substituída por outra, não privativa da liberdade,

C) Que fixe uma pena próxima dos limites mínimos legais e não aplique pena privativa da liberdade, respeitando, igualmente, o preceituado nos Art.º 70.º, 40.º, 71.º e 50.º do Código Penal, por ser de direito e de Justiça.»

3. O Ministério Público, pelo Senhor Procurador da República no tribunal recorrido, apresentou resposta no sentido da improcedência dos recursos, em convocação das disposições dos artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal, dizendo, em conclusões:

3.1. Quanto ao recurso do arguido AA

«(…)

1. Quanto à medida da pena o Ministério Público entende que a pena de 6 anos de prisão se mostra justa e adequada, em nada excessiva atentos os circunstancialismos apontados no douto acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial. Isto é,

2. Nenhuma censura merece a determinação da medida da pena, sendo a pena aplicada ao arguido ora recorrente adequadas à sua culpa, à sua conduta anterior e posterior aos factos, às exigências de prevenção geral e especial e não peca por excesso, bem como é acertada face às condições pessoais e potencial de inserção social do arguido.

3. Em concreto, a medida da pena, tal como vem sendo unanimemente afirmado pela jurisprudência e doutrina, é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, a que acresce, como decorre do n.º 1, do artigo 77.º, do Código Penal, um critério específico– “a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente”.

4. Por outro lado, a factualidade sob colação revela-se particularmente censurável, visto que a conduta do arguido denotou total, absoluto e reiterado desrespeito pelas normas penais vigentes, bem como os crimes em causa se revestem de incisiva gravidade e é profundamente atentatório dos bens jurídicos fundamentais de índole patrimonial.

5. Ou seja, esse juízo de prognose que no caso concreto do recorrente é extremamente desfavorável, havendo vários elementos que nos fazem duvidar seriamente do não cometimento de crimes pelo arguido no futuro.

6. Ou seja, atendendo à personalidade do arguido, às suas condutas anteriores aos crimes e às circunstâncias destes, não é possível formular o tal juízo de prognose favorável à suspensão.

7. A suspensão da execução da pena é claramente insuficiente para a culpa e as exigências de prevenção geral e também especial. Pois da matéria de facto provada resulta que as condições pessoais económicas e sociais do arguido evidenciam elevadas necessidades de socialização, que, apesar da sua juventude, o arguido cometeu estes crimes em pleno período de liberdade condicional, o que mostra manifesta falta de sensibilidade à pena e de suscetibilidade de por ela ser influenciado, revelando-se evidente falta de preparação para manter uma conduta lícita.

8. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pela recorrente, pelo que o recurso não merece provimento.»

3.2. Quanto ao recurso do arguido BB

«1. O Ministério Público entende que as penas determinadas se mostram justas e adequadas, em nada excessivas atentos os circunstancialismos apontados no douto Acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial.

2. Sem condescender que os factos em causa se revelam particularmente graves e são profundamente censuráveis, são também elevadas se mostram as necessidades de prevenção especial, atendendo a que o grau de ilicitude é elevado, quer pela forma como praticou os factos, quer pelo plano engendrado com os outros dois coarguidos. Também elevado se deve considerar o dolo, porquanto sempre soube o que estava a fazer..

3. O recorrente, não demonstrou qualquer contrição ou arrependimento pelos factos praticados. A seu favor, nada releva.

4. Assim, nas circunstâncias que antecederam, contemporâneas ou posteriores ao cometimento do delito e que influenciam a determinação da pena, de modo a concretizar-se o tipo e a gravidade da mesma, têm de ser ponderadas as circunstâncias, desfavoráveis e as favoráveis:

5. As primeiras:

– o dolo com que atuou;

– as elevadas as exigências de prevenção geral, derivadas do facto de a incriminação em causa ser frequente por todo o país;

– demonstrou durante a audiência de julgamento uma total ausência de arrependimento e de consciência crítica por parte do arguido em relação ao seu comportamento;

6. Ora, a factualidade sob colação revela-se particularmente censurável, visto que a conduta do arguido denotou total, absoluto e reiterado desrespeito pelas normas penais vigentes, bem como os crimes em causa se revestem de incisiva gravidade e é profundamente atentatório dos bens jurídicos fundamentais de índole eminentemente patrimoniais, devassando esses bens, revelando desprezo pelo bem alheio.

7. No decurso da audiência não se viu ao arguido qualquer reflexo que nos indicasse alguma comiseração pelas vítimas ou qualquer réstia de arrependimento do que fez.

8. Não restam dúvidas da prática destes factos pelo arguido, ora recorrente.

Assim conclui-se serem por demais prementes, mesmo gritantes, as necessidades de prevenção especial que urge acautelar de forma eficaz e adequada, mas justa.

9. Deve, pois, improceder o recurso. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pelo recorrente.»

3.3. Quanto ao recurso do arguido CC

«1. O Ministério Público entende que as penas determinadas se mostram justas e adequadas, em nada excessivas atentos os circunstancialismos apontados no douto Acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial.

2. Sem condescender que os factos em causa se revelam particularmente graves e são profundamente censuráveis, são também elevadas se mostram as necessidades de prevenção especial, atendendo a que o grau de ilicitude é elevado, quer pela forma como praticou os factos, quer pelo plano engendrado com os outros dois coarguidos. Também elevado se deve considerar o dolo, porquanto sempre soube o que estava a fazer.

3. O recorrente, não demonstrou qualquer contrição ou arrependimento pelos factos praticados. A seu favor, nada releva.

4. Assim, nas circunstâncias que antecederam, contemporâneas ou posteriores ao cometimento do delito e que influenciam a determinação da pena, de modo a concretizar-se o tipo e a gravidade da mesma, têm de ser ponderadas as circunstâncias, desfavoráveis e as favoráveis:

5. As primeiras:

– o dolo com que atuou;

– as elevadas as exigências de prevenção geral, derivadas do facto de a incriminação em causa ser frequente por todo o país;

– demonstrou durante a audiência de julgamento uma total ausência de arrependimento e de consciência crítica por parte do arguido em relação ao seu comportamento;

6. Ora, a factualidade sob colação revela-se particularmente censurável, visto que a conduta do arguido denotou total, absoluto e reiterado desrespeito pelas normas penais vigentes, bem como os crimes em causa se revestem de incisiva gravidade e é profundamente atentatório dos bens jurídicos fundamentais de índole eminentemente patrimoniais, devassando esses bens, revelando desprezo pelo bem alheio.

7. No decurso da audiência não se viu ao arguido qualquer reflexo que nos indicasse alguma comiseração pelas vítimas ou qualquer réstia de arrependimento do que fez.

8. Não restam dúvidas da prática destes factos pelo arguido, ora recorrente. Assim conclui-se serem por demais prementes, mesmo gritantes, as necessidades de prevenção especial que urge acautelar de forma eficaz e adequada, mas justa.

9. Por outro lado, a factualidade sob colação revela-se particularmente censurável, visto que a conduta do arguido denotou total, absoluto e reiterado desrespeito pelas normas penais vigentes, bem como os crimes em causa se revestem de incisiva gravidade e é profundamente atentatório dos bens jurídicos fundamentais de índole patrimonial, devassando esses bens pessoais dos ofendidos.

10. Ou seja, esse juízo de prognose que no caso concreto do recorrente é extremamente desfavorável, havendo vários elementos que nos fazem duvidar seriamente do não cometimento de crimes pelo arguido no futuro.

11. Ou seja, atendendo à personalidade do arguido, às suas condutas anteriores aos crimes e às circunstâncias destes, não é possível formular o tal juízo de prognose favorável à suspensão, caso a pena de prisão fosse igual ou inferior a 5 anos de prisão.

12. A suspensão da execução da pena é claramente insuficiente para a culpa e as exigências de prevenção geral e também especial. Pois da matéria de facto provada resulta que as condições pessoais económicas e sociais do arguido evidenciam elevadas necessidades de socialização, que, apesar da sua juventude, o arguido cometeu estes crimes em pleno período de liberdade condicional, o que mostra manifesta falta de sensibilidade à pena e de suscetibilidade de por ela ser influenciado, revelando-se evidente falta de preparação para manter uma conduta lícita.

13. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pela recorrente., pelo que o recurso não merece provimento.

14. Deve, pois, improceder o recurso. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pelo recorrente.»

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, em concordância com o Ministério Público no tribunal recorrido, emitido parecer (artigo 416.º do CPP), no sentido da improcedência dos recursos, em termos que se especificarão a propósito das várias questões suscitadas nos recursos.

Em apreciação geral, defende que:

Nada há a censurar às penas aplicadas aos três arguidos, quer quanto às parcelares, quer quanto às resultantes do cúmulo jurídico, não sendo legalmente admissível a suspensão da sua execução que, de qualquer forma, nunca se justificaria;

As penas foram criteriosamente escolhidas, tendo em conta todos os elementos referidos na decisão recorrida, não se justificando atividade corretiva por parte deste Supremo Tribunal de Justiça.

Tendo-se justificado a escolha de penas de prisão, por as de multa – nos crimes em que seriam admissíveis – não se revelarem suficientes e adequadas no caso dos arguidos que sempre têm penas de prisão a cumprir.

Não se justificando qualquer redução por via da toxicodependência dos arguidos à data da prática dos factos, pois que – mesmo a atender-se a que essa situação poderá operar como atenuante ao nível da culpa – tal reforça as necessidades de prevenção;

Nesse parecer defende ainda o Senhor Procurador-Geral Adjunto que o arguido AA não pode ser condenado pelo crime de evasão por, em sua opinião, os factos provados não preencherem este tipo de crime (infra, 19 a 29). Pelo que, conclui, «por via da absolvição do arguido AA no que se refere ao crime de evasão, há necessidade de se proceder a novo cúmulo jurídico das restantes penas que lhe foram aplicadas; entendemos que, assim, deverá ser a pena única reduzida para a de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão

5. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, os arguidos nada disseram.

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi apresentado à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

Factos provados

7. O tribunal coletivo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

«1. No dia .../.../2022, em momento não concretamente apurado, mas certamente ocorrido entre as 07 horas e as 10 horas e 30 minutos, AA seguia ao volante do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, da marca Nissan, com a matrícula ..-..-CI, na Rua D. ..., em ...

2. Tendo avistado, nessa rua, BB, que seguia a pé com EE.

3. Já no interior da carrinha, BB empunhou uma faca e, de seguida, BB retirou a EE a carteira que este tinha no seu bolso,

4. Logo se apoderando e fazendo coisa sua a quantia em numerário que lá dentro se encontrava, no montante de 140€ (cento e quarenta euros).

5. Após, e mantendo ambos facas empunhadas, dirigidas ao ofendido, exigiram “mais dinheiro” ao ofendido, tendo AA dito se, não o fizesse, lhe iria “cortar as bolas”.

6. Continuando a recear pela sua vida e integridade física, o ofendido concordou em acompanhar AA e BB a ATM, para levantar mais dinheiro,

7. Pelo que se dirigiram os três ao multibanco do supermercado ..., na ..., pelas 11 horas.

8. Aí chegados, o ofendido aproveitou o momento em que BB introduziu o cartão na máquina multibanco para fugir, o que conseguiu, refugiando-se no interior daquele supermercado, onde logo pediu ajuda.

9. Abandonando AA e BB o local, para parte incerta, no identificado veículo automóvel.

10. AA e BB agiram de forma livre, voluntária e consciente, de comum acordo e em conjugação de esforços, com o propósito concretizado de se apoderarem dos valores em numerário supra identificados, por meio da exibição de facas e sob a cominação de molestar a saúde e integridade física do ofendido, assim logrando retirar e fazer seus os bens deste, que bem sabiam não lhes pertencerem, contra a vontade e sem o consentimento daquele.

11. AA e BB quiseram sempre agir como agiram, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

Inquérito apenso n.º 2330/22.1...

12. No dia .../.../2022, pelas 16 horas, FF estacionou o veículo na Rua ..., ..., deixando a chave na ignição.

13. De seguida, e sem autorização para tal, AA acedeu ao interior do veículo, que estava destrancado por problema ... da janela direita, e iniciou marcha para parte incerta,

14. Mantendo-se ao volante da mesma e utilizando-a na prática dos factos supra descritos, referentes ao inquérito n.º 2327/22.1..., onde atuou em comunhão de esforços e com base em plano pré-determinado com BB.

15. Tendo depois, no dia .../.../2022, pelas 18 horas, AA sido intercetado pela Polícia de Segurança de Pública perto da viatura, na Rua ..., em ....

16. AA quis agir sempre como agiu, assenhoreando-se de coisa alheia, o que concretizou, bem sabendo que esta não lhe pertencia e que agia contra a vontade do proprietário,

17. Agindo de forma livre, deliberada, voluntária e consciente,

18. Sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punível.

Inquérito apenso n.º 4/23.5...

19. No dia .../.../2023, pelas 10 horas, CC e BB seguiam a pé pela Avenida ..., ..., em ..., quando avistaram DD.

20. Dirigindo-se ambos àquele, CC logo lhe pediu 20€ (vinte euros), o que DD recusou, continuando a sua marcha, com o apoio das canadianas que usa para se deslocar.

21. No entanto, de seguida, descontentes com tal recusa, BB agarrou DD pelas costas,

22. E, enquanto BB lhe imobilizava os braços atrás das costas, CC, munido de um x-ato, começou a cortar a alça da bolsa de cintura que ofendido usava, e onde levava a quantia de 300€ (trezentos euros).

23. DD debateu-se e tentou fugir, momento em que BB empurrou o ofendido para o solo, onde este caiu estendido.

24. BB retirou-lhe a descrita bolsa.

25. Após, CC e BB abandonaram o local para parte incerta.

26. Já no dia .../.../2023, pelas 12 horas, CC avistou o ofendido no Largo ..., em ... e, dirigindo-se a este, logo lhe desferiu um murro na face, com o punho fechado.

27. Mais disse “foste fazer queixa na polícia que eu te roubei! Vou-te matar”.

28. Conseguindo de seguida o ofendido fugir para o interior da farmácia existente naquela rua.

29. CC e BB agiram de forma livre, voluntária e consciente, de comum acordo e em conjugação de esforços, com o propósito concretizado de se apoderarem dos valores em numerário supra identificados, por meio da exibição de facas e sob a cominação de molestar a saúde e integridade física do ofendido, assim logrando retirar e fazer seus os bens deste, que bem sabiam não lhes pertencerem, e sempre contra a vontade e sem o consentimento daquele,

30. CC e BB quiseram sempre agir como agiram, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

31. CC agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado atemorizar o ofendido e lhe causar receio e terror pela sua vida, o que conseguiu.

32. CC quis sempre agir como agiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

Inquéritos apensos n.º 1655/23.3... e 778/23.3...

33. Por decisão datada de 03/03/2023, proferida no âmbito do processo n.º 2327/22.1..., em sede de primeiro interrogatório judicial, foi aplicada ao arguido BB a medida de coação de prisão preventiva, decisão que foi notificada ao arguido, que ficou devidamente ciente da obrigação decorrente de tal medida, e que de tal interrogatório foi imediatamente transportado para o estabelecimento prisional de ... sito na ....

34. Não obstante, no dia .../.../2023, pelas 16 horas e 55 minutos, BB, aproveitando a hora de início das refeições e de termo do recreio exterior, escalou um muro perto da zona da cozinha do estabelecimento prisional, fugindo depois a pé do mesmo, após saltar para o exterior do estabelecimento, apesar de diversas ordens de retorno dos guardas presentes, que se aperceberam da sua manobra de fuga.

35. Acresce que após saltar tal muro, e já no exterior daquele EP, BB saltou diretamente para o telhado da residência de GG, e dali para o interior do seu quintal, habitação sita na ..., em ...,

36. Local ainda onde, na ânsia de continuar a sua fuga, partiu, por forma não concretamente apurada, várias telhas que serviam de cobertura a parte do telheiro daquele quintal, causando também diversos estragos na viatura automóvel no local estacionada, também pertencente a GG, estragos estes (do telhado e do veículo automóvel), de valor não concretamente apurado, mas de valor certamente não inferior ao de uma unidade de conta,

37. Vindo de seguida BB a ser localizado naquele local por três guardas prisionais do identificado EP, sendo ali detido e de imediato retornado ao local do cumprimento da medida de coação aplicada.

38. BB agiu do modo descrito, como quis, com o propósito concretizado de se colocar em fuga, com o intuito de não permanecer no estabelecimento prisional onde cumpria a medida de prisão preventiva, o que chegou a conseguir, bem sabendo que se encontrava privado da liberdade por decisão judicial e que não se podia ausentar daquele espaço, em quaisquer circunstâncias, sem prévia autorização do tribunal.

39. Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se inibindo, mesmo assim, de as concretizar.

Inquérito apenso n.º 43/23.6...

40. Por decisão datada de 27/02/2023, proferida no âmbito do processo n.º 2327/22.1..., em sede de primeiro interrogatório judicial, foi aplicada ao arguido AA a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, concretamente na Rua dos ..., nos ..., sujeita a meios técnicos de controlo à distância, no pressuposto da sua viabilidade técnica e da obtenção dos necessários consentimentos, sendo que os correspondentes mandados de condução à residência foram emitidos na mesma data.

41. Posteriormente, por despacho de 16/03/2023, face à impossibilidade de implementação dos meios de controlo à distância, passou AA a estar sujeito à medida de medida de coação de obrigação de permanência na habitação sem vigilância eletrónica, decisão que foi notificada ao arguido, que ficou devidamente ciente da obrigação decorrente de tal medida.

42. Não obstante, no dia 09/05/2023, às 09 horas, AA não se encontrava na habitação onde devia cumprir a referida medida de coação, vindo a ser intercetado pelas 09 horas e 50 minutos pela PSP de ... na Rua ..., perto da habitação sua ex-companheira, onde já teria passado a noite, ali se encontrando desde as 19 horas do dia anterior.

43. AA agiu do modo descrito nestes autos, como quis, com o propósito concretizado de se colocar em fuga, com o intuito de não permanecer na residência onde cumpria a obrigação de permanência na habitação, o que conseguiu, bem sabendo que se encontrava privado da liberdade por decisão judicial e que não se podia ausentar daquela residência, em quaisquer circunstâncias, sem prévia autorização do Tribunal.

44. Em tudo agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se inibindo, mesmo assim, de a concretizar.

Das condições socioeconómicas do arguido AA:

45. AA é natural dos ..., concelho de ... e oriundo de agregado familiar de condição socioeconómica humilde. Pertencente a uma fratria de quatro elementos, filhos de um casal legalmente constituído há cerca de quarenta e cinco anos.

46. AA cresceu num contexto familiar estável e coeso, com transmissão de valores e regras socialmente aceites.

47. Iniciou o percurso escolar na idade própria, sendo que abandonou os estudos por volta dos 17 anos de idade e apenas concluído o 6º ano de escolaridade. Nunca teve grande motivação e interesse pelos conteúdos académicos, iniciando atividade laboral ainda antes de atingir a maioridade.

48. Sempre trabalhou na área da ... auto e em empresas ligadas à venda e reparação de viaturas e motas, tendo chegado a ficar efetivo numa empresa do setor. Entretanto, AA também chegou a trabalhar por conta do progenitor, o qual trabalhou também vários anos por conta própria, como ... de automóveis e também por conta d’outrem.

49. Mais recentemente e por condicionalismos relacionados com a sua toxicodependência, AA acabou por se despedir do último trabalho e ficou desempregado, contexto que enfrentava à data da atual reclusão.

50. Durante cerca de vinte e um anos viveu conjuntamente com HH, com quem contraiu matrimónio, tendo ambos uma filha em comum, atualmente com 17 anos de idade e acolhida em instituição no continente português. A avó paterna detém a guarda da jovem e o atual acolhimento deveu-se ao início recente do consumo de substâncias sintéticas por parte daquela.

51. O então casal sempre residiu em casa do pai de HH, na freguesia da ..., contudo, atendendo ao facto de ambos enfrentarem problemática de toxicodependência, o relacionamento enfrentou dificuldades e fases de grande instabilidade e conflito, culminando na separação desde há sensivelmente dois anos, não obstante fases inconsistentes de reaproximação e alguma convivência.

52. Assim, AA passou a viver em casa dos respetivos progenitores, tendo o pai 63 anos, 6º ano, ..., atualmente de baixa médica e a mãe, 60 anos, 5º ano, empregada doméstica. O pai efetua biscates por conta própria, trabalhando numa garagem que possui na sua residência, adaptada a oficina de reparação de viaturas. O arguido, antes da reclusão e como ocupação do tempo, ajudava o pai na respetiva atividade.

53. AA é dependente de estupefacientes desde os 19 anos de idade, sobretudo de heroína, enfrentando períodos de consumos, intercalados com períodos de abstinência, sendo que e segundo o próprio, à data dos alegados factos encontrava-se em fase ativa de consumos, nomeadamente de substâncias sintéticas.

54. Há quatro anos deixou a toma de metadona, quase a terminar o respetivo programa de tratamento sob acompanhamento da Associação ...), não tendo recorrido novamente à instituição.

55. AA evidencia algumas dificuldades de descentração e de resolução dos problemas, constituindo a respetiva toxicodependência (do próprio e da mulher, da qual se encontra separado), durante vários anos, fator fortemente desestruturante do seu quotidiano e organização pessoal.

56. Em meio prisional, não integra qualquer programa terapêutico, nem foi submetido a testes internos de despiste dos consumos de estupefacientes, mantém ocupação e frequenta o 3º ciclo do ensino básico com vista à obtenção do 9º ano de escolaridade. Regista uma sanção disciplinar e recebe visitas sobretudo dos pais.

57. Já foi julgado e condenado:

a) por sentença de 20/04/2023, pela prática de dois crimes de evasão a 19/04/2023, na pena de 4 meses e 15 dias de prisão;

b) por acórdão de 01/06/2023, pela prática de dois crimes de abuso de cartão de pagamento, praticado a 04/12/2022, na pena única de 180 dias de multa.

Das condições socioeconómicas do arguido BB:

58. À data dos factos, o arguido dependia do apoio pontual de amigos e conhecidos. Mantinha um quotidiano centrado no consumo de estupefacientes (nomeadamente heroína e drogas sintéticas), não estando agregado a nenhum programa de tratamento da toxicodependência.

59. Pontualmente realizava tarefas na área da pesca e da construção civil, contudo a irregularidade laboral determinava uma situação de precariedade económica, não reunindo condições para beneficiar de suporte da segurança social, face ao incumprimento de regras adstritas à atribuição do rendimento social de inserção.

60. A ex-companheira, II, de quem se encontra separado há cerca de 3 anos, prestava-lhe igualmente algum apoio, nomeadamente económico, considerando o isolamento social e a falta de apoio familiar de BB. O casal permaneceu junto cerca de 8 anos, tendo uma filha de 10 anos de idade. A ex-companheira mantém o apoio ao arguido, visitando-o, assim como a filha do casal, no Estabelecimento Prisional.

61. Relativamente ao seu processo de desenvolvimento, BB, natural da freguesia de S. Roque, é o segundo de uma fratria de três elementos. Em virtude da separação dos pais, quando contava seis anos de idade, o arguido e os irmãos ficaram entregues aos cuidados dos avós paternos, que desde cedo assumiram a educação dos netos.

62. O progenitor, que cumpriu várias penas de prisão, mantinha um relacionamento conflituoso e agressivo para com a mulher e filhos. A mãe do arguido foi, entretanto, viver para o Continente Português e posteriormente para ..., tendo deixado de contactar com os familiares. Entretanto, o pai, atualmente já falecido, refez a sua vida afetiva e distanciou-se dos filhos, circunstâncias que o arguido vivencia com alguma mágoa.

63. BB ingressou no sistema de ensino em idade própria, mas cedo começou a manifestar desinteresse pelos estudos. Por volta dos treze anos concluiu o 4º ano de escolaridade, abandonando, de seguida, o espaço escolar, situação que se deveu, em parte, à fraca supervisão dos avós, figuras idosas e sem capacidade para proporcionar um adequado acompanhamento educativo à fratria.

64. Já durante anterior cumprimento de pena de prisão, o arguido veio a frequentar a escola, ficando habilitado com o 9º ano de escolaridade.

65. Ainda na adolescência, BB iniciou o percurso laboral como ajudante de ..., mas a ausência de hábitos de trabalho e o início do consumo de estupefacientes determinaram um estilo de vida pautado por longos períodos de inatividade, ocupando esse tempo no convívio com jovens conotados com práticas marginais. O arguido chegou a trabalhar noutras Ilhas, mas de forma pontual e em condições laborais precárias, mantendo a dependência a vários níveis dos avós.

66. Em outubro de 2006, o arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional de ..., vindo a ser condenado numa pena única de 6 anos e 6 meses de prisão. Veio a ser libertado aos 5/6 da pena, a 02/07/2012, com termo a 27/08/2013.

67. No período de reclusão, a avó faleceu e, após o sucedido, o pai e o seu agregado constituído passaram a viver naquela habitação, propriedade do avô do arguido, inibindo, desde logo, o regresso do arguido àquela casa. Face ao exposto, aquando da sua libertação, o arguido foi acolhido numa Instituição local, permanecendo aí durante alguns meses.

68. Em liberdade, os tempos livres eram passados em zonas problemáticas desta cidade, acentuando-se o convívio com indivíduos associados à problemática dos estupefacientes, o que contribuiu para a recaída ao nível da toxicodependência e para a degradação da sua situação pessoal.

69. A nível aditivo, quando em meio livre, BB iniciou tratamento de desintoxicação com opiáceos de substituição – metadona, com acompanhamento da Associação ..., tratamento a que deu continuidade e concluiu já em meio prisional, durante o cumprimento da 2ª reclusão.

70. Em abril de 2014, o arguido voltou a cumprir pena de prisão, contexto em que beneficiou de liberdade condicional, em julho de 2016, com termo em setembro de 2017, e cujas obrigações o arguido cumpriu no essencial, revelando adesão ao acompanhamento da DGRSP.

71. Pese embora a ocorrência de recaídas ao nível aditivo, no período que antecedeu a atual prisão preventiva, BB não referencia tratamentos à dependência aditiva, considerando-os atualmente desnecessários.

72. Em contexto prisional, tem no essencial adotado um comportamento conforme às regras internas, registando uma infração disciplinar.

73. Atualmente, não tem antecedentes criminais registados.

Das condições socioeconómicas do arguido CC:

74. CC, de 40 anos de idade, encontrava-se em situação de sem abrigo à data da aplicação da atual medida de coação (prisão preventiva). Mantinha-se em condição de exclusão social grave desde 2022, não estando referenciado em nenhuma instituição de cariz social.

75. Natural da freguesia da ..., CC esteve alguns anos a residir na ..., juntamente com JJ, com quem contraiu matrimónio no ano de 2016, tendo o casamento se dissolvido a .../.../2020. O ex-casal tem três filhos em comum que se encontram a residir na ilha de ... à guarda e cuidados da mãe.

76. Na sequência dos desajustes comportamentais do arguido, assumidos na relação de intimidade com JJ, foi aquele constituído arguido, à ordem do Processo 113/20.2..., pela prática do crime de violência doméstica, com condenação em 2 anos e 3 meses de prisão, suspensos na sua execução por igual período, com regime de prova. Foi, ainda, condenado, na pena acessória de proibição de contactos com a vítima, pelo mesmo período da pena principal. O acompanhamento da execução da medida probatória decorre neste serviço desde 22/11/2021, no entanto, o plano de reinserção social apenas foi elaborado a 05/06/2023, após reclusão, e após audição do condenado pelo Juízo de Competência Genérica ..., pelo facto de até então não se saber qual o seu paradeiro, nem responder às convocatórias. Assim, enquanto se encontrava em meio livre, a adesão do probando ao regime de prova foi inexistente.

77. Da relação com a ex-mulher, CC reconhece alguma rigidez de funcionamento, nomeadamente, ao nível da imposição de regras e normas no contexto familiar, que reconheceu advirem da sua socialização primária e dos comportamentos adotados na família nuclear. A violência, à época, intensificava-se perante o consumo de bebidas alcoólicas, no entanto, atualmente reconhece que o consumo de novas substâncias psicoativas (vulgarmente conhecidas como sintéticas) aquando da separação e regresso à ilha de ..., acabaram por ser os responsáveis pela sua situação atual, com envolvências criminógenas e ligação a pares com iguais práticas.

78. Atualmente, CC não tem qualquer suporte familiar, tendo sido auscultado alguns elementos do núcleo de origem, através da Equipa de Vigilância Eletrónica .../ ..., no âmbito do atual processo, com vista à eventual aplicação de medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, não tendo sido recolhidos consentimentos para tal aplicação, sendo que a família não pretende qualquer aproximação ao arguido.

79. Em contexto prisional, não se encontra integrado em nenhum programa terapêutico, muito embora tenha obtido resultado positivo num teste de despiste de estupefacientes, esteve ocupado laboralmente como ... entre abril e agosto de 2023, tendo retomado essa ocupação em outubro, e nunca beneficiou de visitas.

80. O arguido é o quarto elemento de uma fratria de sete, de núcleo familiar com parcos recursos socioeconómicos (pai ... - atualmente incapacitado, mãe doméstica, ambos com poucas habilitações).

81. Habilitado com o 6º ano de escolaridade, integrou precocemente o mercado de trabalho, por volta dos catorze anos de idade, motivado pela necessidade de colaborar na economia doméstica, em função da precariedade existente no núcleo. Em 2010, a mudança de residência para a ilha de S. Jorge tinha como objetivo integrar empresa de construção civil, tendo o seu percurso profissional se definido por diversas tarefas indiferenciadas ligadas à construção, e posteriormente, na fábrica de queijo –U.........

82. Aparenta ser um individuo com algumas dificuldades de controle dos impulsos propendendo à resolução conflituosa de problemas, tendendo a ter dificuldades em tomar decisões ponderadas com reduzido pensamento consequencial, desculpabilizando os factos dos presentes autos com as suas caraterísticas pessoais, aliadas ao consumo de substâncias.

83. Já foi julgado e condenado, por sentença de 22/10/2021, pela prática de um crime de violência doméstica entre novembro de 2019 e julho de 2020, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova.

B. Factos Não Provados

Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:

a) De imediato, dirigindo-se àqueles, AA disse-lhes para entrarem na carrinha, afirmando que ia “conseguir arranjar sintética”.

b) Tendo por base plano previamente acordado entre ambos, AA e BB empunharam, cada um, uma faca.

c) Com receio pela sua vida e integridade física, EE acedeu a deslocar-se com AA e BB ao ATM mais próximo do local, junto ao Quartel dos Bombeiros Voluntários de ..., onde levantou 200€, que logo entregou àqueles, sendo depois forçado, sob ameaça de faca, a voltar a entrar na carrinha.

d) AA exigiu a entrega do cartão multibanco e do respetivo PIN.

e) CC agarrou DD pelas costas.

f) CC estava munido de uma faca.

g) CC empurrou o ofendido para o solo.

h) CC empunhou a faca junto ao pescoço de DD, afirmando ainda “não chames a polícia, senão mato-te”.

i) CC desferiu vários murros no corpo e face de DD.

j) CC, do lado de fora da janela da farmácia, retirou da cintura uma faca, que empunhou na direção do ofendido, dizendo-lhe, enquanto a exibia, “foste fazer queixa na polícia que eu te roubei! Vou-te matar com esta faca” e “foge, foge, se não te matar hoje, mato-te qualquer dia!”.»

Âmbito e objeto do recurso

8. Os recursos têm, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou penas de prisão superiores a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP] e limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocado qualquer dos vícios ou nulidades referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro.

O âmbito dos recursos, que circunscrevem os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, se for caso disso, dos poderes de conhecimento oficioso, em vista da boa decisão de direito, dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), como sucede no caso presente.

9. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar as seguintes questões:

a) Da adequação e proporcionalidade das penas aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) e da pena única, que os recorrentes impugnam [recurso do arguido AA: conclusões 4–51; recurso do arguido BB: conclusões II-XVII; recurso do arguido CC: conclusões 19-68], aqui se incluindo:

a.1) A questão da atenuação especial da pena – artigo 72.º do Código Penal («CP») [recurso do arguido AA: conclusões 10-14];

a.2) A questão da suspensão de execução da pena de prisão [recurso do arguido AA: conclusões 26-42 e 47-50; recurso do arguido CC: conclusões 51-62 e 67];

a.3) A questão da nulidade do acórdão por falta de fundamentação – artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal («CPP») [recurso do arguido AA: conclusão 51; recurso do arguido CC: conclusão 68];

a.4) A não opção pela pena de multa quanto ao crime de ameaça [recurso do arguido CC, conclusão 25];

b) Da natureza pública ou semipública do crime de ameaça agravado (artigo 155.º do CP) e da relevância da desistência da queixa [recurso do arguido CC: conclusões 2-18];

c) Da condenação do arguido AA pela prática do crime de evasão [questão suscitada pelo Ministério Público – supra, 4].

10. Como se tem reiteradamente afirmado (por todos, o acórdão de 19.6.2024, Proc. 628/20.2PAOLH.E1.S1, em https://juris.stj.pt), os recursos não servem para conhecer de novo da causa, isto é, no caso, para se proceder a nova determinação das penas. Os recursos constituem meios processuais, «remédios jurídicos», destinados a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objeto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente (assim, acórdãos de 15.02.2023, Proc. n.º 1964/21.6JAPRT.P1.S1, e de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, e jurisprudência e doutrina neles citada, em www.dgsi.pt).

Estando em causa a determinação da pena, o recurso visa a verificação da adequação e proporcionalidade da medida da pena, na ponderação dos fatores relevantes, legalmente impostos, e a intervenção corretiva do decidido, se for caso disso (infra).

Por razões de ordem metodológica, há que, antes de mais, apreciar da verificação, posta em questão, dos pressupostos de que depende a aplicação das penas: questões b) – da relevância da desistência da queixa quanto ao crime de ameaça agravado, por que vem condenado o arguido CC – e c) – condenação do arguido AA pela prática do crime de evasão [supra, 9].

Quanto à natureza pública ou semipública do crime de ameaça agravado (artigo 155.º do CP) e da relevância da desistência da queixa (supra, 9.b)

11. Alega o arguido CC que a sua condenação se baseou na «premissa», errada, «de que o crime de ameaça agravada tem natureza pública», o que impediu o tribunal de homologar a desistência queixa», com base na argumentação que sintetiza nos pontos 4 a 16 das conclusões do recurso (supra, 2.3), em que conclui: «Assim e face ao exposto, dever-se-á, salvo melhor opinião, continuar a entender existir um só tipo legal, o consagrado no Art.º 153.º (tipo fundamental) e que a agravação operar-se-á, apenas, na sua moldura penal quando verificada a al. a) do Art.º 155.º, sem atribuir natureza diversa à já pré-existente, isto é, semi-pública

12. Recordando os fundamentos da decisão, extrai-se do acórdão recorrido:

«Do crime de ameaça agravada

Nos termos do artigo 153º, nº 1 do Código Penal, é responsável criminalmente quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

O bem jurídico protegido com este tipo legal é a liberdade de decisão e de ação, sendo que as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afetam, logicamente, a paz individual e a liberdade de determinação.

Relativamente ao tipo objetivo do ilícito, são três as suas características essenciais: mal, futuro e cuja ocorrência dependa da vontade do agente (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, 1999, tomo I, p. 343). O mal, que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem, então, de ser futuro, o que significa que não pode ser iminente, sob pena de, neste caso, se poder estar, já, diante de uma tentativa de sua execução. Ameaçar corresponde, portanto, ao ato de prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar a intenção de causar, no futuro, um facto maléfico injusto, seja para bens pessoais, como a vida, a integridade física e a liberdade, seja para bens patrimoniais.

Acresce ainda ser indispensável que o mal se apresente como dependente da vontade do agente e que se configure, em si mesmo, como um ilícito criminal. Este crime objeto da ameaça será necessariamente um dos que se encontram contemplados no tipo (contra a vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor).

Do ponto de vista objetivo não se exige que a ameaça provoque efetivamente medo ou inquietação, mas a mesma terá, sim, de ser adequada a provocar tal medo ou inquietação ou a afetar a liberdade de determinação da vítima. Ameaça adequada é, pois, a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser levada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado (Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 348).

Quanto ao tipo subjetivo, o crime de ameaça é doloso (artigo 14º do Código Penal). Este dolo basta-se com a representação e conformação da ameaça e da sua suscetibilidade de provocar medo ou inquietação no destinatário. Não se exige que o agente tenha intenção de concretizar a ameaça, embora se pressuponha que o agente tenha vontade de fazer chegar a ameaça ao conhecimento da vítima.

Acrescente-se que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2013, de uniformização de jurisprudência, ao estabelecer que a ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155.º do mesmo diploma legal» reconheceu a autonomia do crime de ameaça agravada relativamente ao tipo fundamental.

Assim, e atenta a expressão dirigida a DD, temos por verificada a prática deste crime, sendo o mesmo na forma agravada, porquanto o arguido ameaçou com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a três anos [artigo 155º, nº1, alínea a) do Código Penal], pelo que, não se tendo apurado causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, será o arguido CC condenado pela prática de tal crime, tanto mais que a desistência do ofendido não é relevante, por se tratar de crime público.»

13. Discorda o Senhor Procurador-Geral Adjunto, defendendo em seu parecer (supra, 4) a manutenção do decidido, nos seguintes termos:

«Quanto à natureza pública ou semi-pública do crime de ameaça agravado (arguido CC):

Aquando da inquirição da testemunha DD (ata de 09.01.2024 – Referência ......49), a mesma declarou desistir do procedimento criminal relativamente aos factos integradores da prática, pelo arguido CC, dos crimes de ofensa à integridade física e de ameaça.

Se relativamente ao primeiro, preenchido que foi o requisito da não oposição por parte do arguido, logo foi homologada a desistência da queixa, quanto ao segundo (crime de ameaça agravada) o coletivo, após o MºPº ter manifestado o seu entendimento quanto à impossibilidade de existir desistência relevante, relegou para a decisão final a posição a tomar.

Acabou o coletivo por, no acórdão, concluir pelo preenchimento dos elementos típicos do crime, concluindo com a seguinte frase: «[…] atenta a expressão dirigida a DD, temos por verificada a prática deste crime, sendo o mesmo na forma agravada, porquanto o arguido ameaçou com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a três anos [artigo 155º, nº1, alínea a) do Código Penal], pelo que, não se tendo apurado causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, será o arguido CC condenado pela prática de tal crime, tanto mais que a desistência do ofendido não é relevante, por se tratar de crime público.»

Na sua motivação de recurso, o arguido pugna pela natureza semi-pública do crime e, consequentemente, pela verificação dos requisitos para que seja a desistência da queixa homologada (artº 51.º, nºs. 1 e 2, do CPP).

Quanto a esta matéria existem, como se sabe, opostos entendimentos da jurisprudência, o que levou já a que este STJ tenha reconhecido, no âmbito do processo 41/19.4GBVNF.G1-A.S1 (3.ª secção), a existência de oposição de julgados (acórdão de 31.01.2024), estando assim pendente recurso para fixação de jurisprudência, nos termos do art.º 437.º e seguintes do CPP.

Já tendo o Ministério Público apresentado alegações nos termos do art.º 442.º, n.ºs 1 e 2, também do CPP, limitamo-nos, quanto a esta questão, por – acompanhando o entendimento ali expresso quanto à natureza pública do crime de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal – reproduzir parte de tais alegações:

«[…] a esmagadora maioria da jurisprudência dos Tribunais superiores partilha do entendimento de que o crime de ameaça agravada tem natureza pública […].

E não vemos razões fortes para nos desviarmos desta corrente dominante.

Vejamos.

No domínio do Código Penal de 1982, o crime de «ameaças» estava previsto no art. 155.º:

1. Quem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com prisão até 1 ano ou multa até 100 dias.

2. No caso de se tratar de ameaça com a prática de crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos e a multa até 180 dias.

3. O procedimento criminal depende de queixa.

Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, o tipo, redenominado de «ameaça», passou a estar previsto no art. 153.º do Código Penal:

1- Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

3 - O procedimento criminal depende de queixa.

Quer na forma simples, quer na forma agravada, consubstanciada na ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o crime tinha, pois, natureza semipública.

Entretanto, com a Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, a ameaça agravada, anteriormente prevista no art. 153.º, n.º 2, do Código Penal, foi destacada para o art. 155.º, n.º 1, al. a), seguinte.

Até aí, este art. 155.º apenas estabelecia as circunstâncias agravantes do crime de coação, o qual, mesmo na sua forma simples, com exceção da coação praticada entre cônjuges, ascendentes e descendentes ou adotantes e adotados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges, sempre teve natureza pública (v. o art. 154.º do Código Penal, na redação do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, e na introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro).

O art. 155.º passou, então, a dispor que:

1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados:

a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou

b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;

c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;

d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;

o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.º

2 - As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.

Reuniram-se, assim, no mesmo preceito as circunstâncias agravantes comuns aos crimes de ameaça e de coação.

De acordo com a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que deu origem à Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, «[o] crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo, funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção».

Esta explicação avançada pela Proposta de Lei – «o crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coação grave» – não deixa grande espaço para dúvidas quanto ao propósito de equiparar o regime da ameaça agravada ao regime da coação agravada, inclusive no que toca à natureza pública.

O legislador entendeu que o facto de a vítima ser ameaçada (ou coagida) com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, ou o facto de a ameaça (ou da coação) ser praticada contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, ou contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do art. 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou de ser praticada por funcionário com grave abuso de autoridade (art. 155.º, n.º 1)1, ou de a ameaça (ou a coação) causar um resultado especialmente gravoso, como o suicídio ou tentativa de suicídio da vítima (art. 155.º, n.º 2), justificava uma punição mais grave em virtude de tais circunstâncias revelarem maiores «desvalor de acção»2 e de resultado, implicativos de «mais enérgica censura» 3.

Sendo o princípio vigente na lei processual penal portuguesa o da oficialidade (cf. o art. 48.º do Código de Processo Penal), segundo o qual a promoção e a prossecução penal são realizadas «oficiosamente e, portanto, em completa independência da vontade e da actuação de quaisquer particulares»4, apenas se permitindo que fique na disponibilidade do ofendido em relação a crimes de pequena gravidade5, mal se compreenderia que diante dessa maior censurabilidade da ameaça agravada, que até pode resultar no suicídio da vítima, não fosse intenção do legislador de 2007 atribuir-lhe natureza pública.

Daí que não se possa aceitar, como entende o acórdão fundamento, que são razões de puro «utilitarismo sistemático», para evitar «a repetição de normas contendo circunstâncias agravantes idênticas», que explicam a aglutinação das circunstâncias agravantes da ameaça e da coação no art. 155.º do Código Penal.

De resto, a «natureza semipública de qualquer crime, não se presume. Tem que resultar expressamente da lei»6

Na palavra autorizada de Germano Marques da Silva, «[e]m termos práticos, há que ver se a norma penal estabelece algo sobre a exigência de queixa ou acusação particular. Se nada estabelece, o crime é público e, consequentemente, o MP tem quanto a ele legitimidade para promover livremente o processo; se a norma penal exigir queixa ou acusação particular, o MP não pode promover o processo sem que a queixa e a acusação dos particulares ocorra – é o que resulta dos arts. 49.º a 53.º do CPP»7.

Dito por outras palavras, «[a] determinação da natureza pública, semipública ou particular do crime é simples:

a) Quando a Lei nada diz quanto ao procedimento criminal, o crime é público;

b) Quando a Lei diz que o procedimento criminal depende de queixa (ou de participação), tanto na própria norma incriminadora (cfr. arts. 143.º, n.º 2, 148.º, n.º 4, 153.º, n.º 2, 154.º, n.º 4, 154.º-A, n.º 5, 156.º, n.º 4, 203.º, n.º 3, 205.º, n.º 3, 208.º, n.º 3, 209.º, n.º 3, 212.º, n.º 3, 319.º, n.º 2, e 383.º, n.º 3, do CP) como numa norma “separada” (v.g., arts. 178.º, 188.º, n.º 1, als. a) e b), 198.º e 324.º do CP), o crime é semipúblico;

c) Quando a Lei diz que o procedimento criminal depende de acusação particular, tanto na própria norma incriminadora como numa norma “separada” (v.g., arts. 188.º, n.ºs 1 e 2, e 207.º do CP), o crime é particular»8.

Ora, o art. 155.º do Código Penal é omisso quanto à necessidade de queixa.

A situação não diverge muito da verificada noutros crimes.

Por exemplo, nos «Crimes Contra a Reserva da Vida Privada» previstos nos arts. 190.º a 196.º do Código Penal (Capítulo VII, do Título I, da Parte Especial do Código Penal).

Estes normativos contêm a descrição típica da violação de domicílio ou perturbação da vi-da privada (art. 190.º), da introdução em lugar vedado ao público (art. 191.º), da devassa da vida privada (art. 192.º), da devassa através de meio de comunicação social, da internet ou de outros meios de difusão pública generalizada (art. 193.º), da violação de correspondência ou de telecomunicações (art. 194º), da violação de segredo (art. 195.º) e do aproveitamento indevido de segredo (art. 196.º).

Sob a epígrafe «Agravação», o art. 197.º prevê diversas circunstâncias agravantes comuns em relação a alguns deles.

E o art. 198.º estabelece que, salvo no caso do art. 193.º, o procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de queixa ou de participação, não deixando, assim, margem para incertezas quanto à natureza semipública de todos os crimes que o precedem («crimes previstos no presente capítulo»), incluindo os agravados (art. 197.º do Código Penal), com a assinalada exceção do crime de devassa através de meio de comunicação social, da internet ou de outros meios de difusão pública generalizada.

Passando aos «Crimes contra a autodeterminação sexual» previstos nos arts. 171.º a 176.º-B do Código Penal (Secção II, do Capítulo V, do Título I, da Parte Especial do Código Penal).

No art. 177.º estão inventariadas as circunstâncias agravantes comuns a vários destes crimes e o art. 178.º define expressamente quais os que dependem de queixa mas aqui sem incluir os agravados do art. 177.º do Código Penal por forma a não deixar quaisquer dúvidas acerca da respetiva natureza pública.

Ora, o mesmo registo observa-se nos crimes de ameaça e de coação dos arts. 153.º e 154.º do Código Penal, respetivamente: as circunstâncias agravantes típicas de ambos estão previstas no art. 155.º do Código Penal mas a necessidade de queixa apenas está consagrada para o crime de ameaça simples (art. 153.º, n.º 2, do Código Penal) e para o de coação entre cônjuges, ascendentes e descendentes ou adotantes e adotados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges (art. 154.º, n.º 4, do Código Penal).

A técnica legislativa, sempre igual, é simples.

Quando o legislador quis que o procedimento criminal em relação a determinado crime ou conjunto de crimes apenas fosse desencadeado com a queixa, disse-o expressamente.

Quando nada disse, quis que o Estado/Ministério Público exercesse a ação penal oficiosamente.

3.1. Por tudo quanto vem de ser exposto formula-se, então, a seguinte conclusão em conformidade com o disposto no art. 442.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:

O crime de ameaça agravada p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º do Código Penal tem natureza pública.»

Face ao acabado de transcrever, constante nas alegações do MºPº no âmbito do processo para fixação de jurisprudência que se encontra pendente neste STJ (com o nº 41/19.4GBVNF.G1-A.S1), nada temos a acrescentar, sendo que – no referente ao caso concreto dos presentes autos – se tem de concluir pela correção da decisão proferida pelo tribunal a quo ao não homologar a desistência da queixa, por entender ter o crime natureza pública.

E, assim, deverá ser julgado improcedente o recurso do arguido CC, quanto a esta parte (mas sem prejuízo de poder a desistência da queixa apresentada pelo ofendido ter relevância em termos de escolha da pena a aplicar, matéria a que voltaremos mais abaixo).

14. A questão suscitada diz respeito, pois, às relações entre o tipo fundamental de crime de ameaça da previsão do artigo 153.º e o tipo de crime agravado da previsão do artigo 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Dispõem estes preceitos, na redação da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto (alteração ao artigo 155.º), nas partes que agora relevam:

«Artigo 153.º (Ameaça)

1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - O procedimento criminal depende de queixa.»

«Artigo 155.º (Agravação)

1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados:

a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos (…), o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos dos n.º 1 do artigo 154.º e do artigo 154.º-A, e com pena de prisão de 1 a 8 anos, no caso do artigo 154.º-B.»

Dispunha o artigo 155.º, na redação anterior a 2007:

«Artigo 155.º (Coacção grave)

1 - Quando a coacção for realizada:

a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos (…)

o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.»

Como vem referido, a alteração ao artigo 155.º visou agravar o crime de ameaça (artigo 153.º) em termos idênticos aos anteriormente previstos para o crime de coação (artigo 154.º), como foi anunciado na Proposta de Lei n.º 98/X, que originou esta alteração (DAR II Série-A, n.º 10, 18.10.2006, p. 4): «O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo, funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção» (assim também Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, Coimbra, 18.ª ed., 2007, anotação ao artigo 155.º, p. 602).

15. É conhecida a controvérsia que esta alteração motivou, o que levou Taipa de Carvalho a afirmar que «o disposto na al. a) [do n.º 1 do artigo 155.º] não tem aplicação», devendo, assim, a seu ver, «considerar-se que só fundamentam a qualificação/agravação dos crimes de ameaça e de coação as circunstâncias referidas nas alíneas b), c) e d), circunstâncias que configuram um acrescido desvalor de ação».

A questão surgia assim formulada: «Uma vez que o n.º 1 do art.º 153.º considera como crime de ameaça (simples e não qualificada/agravada) a ameaça de morte ou de danificação de bens patrimoniais de considerável valor, levanta-se a questão teórica e sobretudo prático-punitiva de saber se a utilização destes meios (ameaça de crime contra a vida ou de crime contra bens patrimoniais de considerável valor) para ameaçar ou coagir deverão levar (na medida em que o crime de homicídio e o crime de dano qualificado são puníveis com pena de prisão superior a 3 anos) ou não (uma vez que o legislador considera expressamente, no n.º 1 do art.º 153.º, estas ameaças como crime de ameaça simples) à qualificação ou agravação do crime de ameaça e do crime de coação» (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, maio de 2012, pp. 588-589). Daí concluindo que a ameaça agravada – mas só pelas alíneas b) a d) do n.º 1 do artigo 155.º, por não aplicação da al. a) – é um crime público (loc. cit. p. 593).

Desta perspetiva, a ameaça pelos meios previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 155.º constituiria sempre um crime de ameaça simples da previsão do artigo 153.º, cujo procedimento criminal depende de queixa.

16. A questão da incriminação foi, posteriormente, resolvida jurisprudencialmente no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2013 (DR Série I de 20.3.2013) que fixou jurisprudência nos seguintes termos: «A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal».

Nele se considerou, para além do mais, que «a relação que se estabelece entre o tipo do art.º 153.º e o previsto no art.º 155º n.º 1 do Cód. Penal é, sem dúvida, uma relação de especialidade, estando o tipo-base previsto na primeira norma, à qual foram acrescentados elementos modificativos (quanto ao limite máximo da pena do crime ameaçado) que deram origem a um crime agravado na segunda norma, a qual contém necessariamente todos os elementos constitutivos da primeira. Sendo assim, resulta da estrutura da relação de especialidade que a norma especial prevalece sobre a norma geral e afasta inteiramente a aplicação desta (lex specialis derogat legi generali). Daí que, sendo o crime objeto da ameaça punido com pena de prisão superior a três anos, o agente deva ser punido pelo crime agravado previsto no artº 155º nº 1 al. a) do Cód. Penal, excluindo-se definitivamente a aplicação do crime simples previsto no artº 153º nº 1».

Assim, não vindo questionada a incriminação dos factos, a questão suscitada resume-se a saber se o crime da previsão do artigo 155.º tem natureza pública (porque o procedimento não depende de queixa) ou semipública (porque depende de queixa).

17. A resposta convoca diretamente os artigos 48.º, 49.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, do CPP, que dão expressão ao princípio da oficiosidade do processo penal, dimanado do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual compete ao Ministério Público exercer a ação penal, o que lhe confere legitimidade para a promoção do processo, na consideração das limitações derivadas da existência de crimes semipúblicos e de crimes particulares (sobre este ponto, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2004, pp. 115ss, e Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Direito Processual Penal, Os Sujeitos Processuais, GestLegal, Coimbra, 2022, p. 156), bem como às normas penais de natureza substantiva que identificam os casos em que o procedimento criminal depende de queixa.

Se o procedimento criminal depender de queixa, a intervenção do Ministério Público no processo cessa com a homologação da desistência da queixa ou da acusação particular (artigo 51.º, n.º 1, do CPP), o que determina a extinção do procedimento por retirada do pressuposto de legitimidade para prosseguir com o processo (cfr. Jorge dos Reis Bravo/Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Vol. I, 5.ª ed., UCP Editora, maio de 2023, p. 174).

Trata-se de matérias de competência e de legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo, que exigem lei expressa, como defende o Senhor Procurador-Geral Adjunto, em argumentação solidamente fundada.

18. Estabelece o artigo 48.º do CPP (sob a epígrafe «Legitimidade») que «[o] Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º».

De acordo com o n.º 1 do artigo 49.º – a única destas disposições que agora interessa, sob a epígrafe «Legitimidade em procedimento dependente de queixa» – «[q]uando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo».

Compete em especial ao Ministério Público (artigo 53.º, n.º 1, do CPP): «a) Receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes; b) Dirigir o inquérito; (…)», sendo que, «ressalvadas as excepções previstas neste Código» – em que se incluem as restrições referidas no artigo 48.º –, «a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito» (n.º 2 do artigo 262.º do CPP).

Nos termos do artigo 51.º, n.º 1, do CPP, no caso previsto no artigo 49.º, isto é, quando o procedimento criminal depender de queixa, «a intervenção do Ministério Público no processo cessa com a homologação da desistência da queixa».

Não havendo norma que restrinja a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo (artigo 48.º do CPP) fazendo-a depender de apresentação de queixa (artigo 49.º), como sucede no caso do artigo 153.º do CP relativamente ao crime de ameaça simples, impõe-se concluir que é irrelevante a declaração de desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravada da previsão do artigo 155.º do CP.

Pelo que, sem necessidade de mais desenvolvidas considerações, é o recurso julgado improcedente quanto a esta questão.

Quanto condenação do arguido AA pelo crime de evasão (supra, 9.c)

19. O Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça suscita, em seu parecer, a questão da condenação do arguido AA pela prática de um crime de evasão, defendendo que os factos provados não preenchem o tipo de crime, pelo que, conclui, «a decisão recorrida contém erro de direito a que cumpre colocar cobro, absolvendo o arguido AA da prática o crime de evasão p. e p. pelo art.º 342º» (devendo ler-se art.º 352.º, em verificação de evidente lapso de escrita).

Funda esta conclusão na circunstância de o arguido estar «sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação sem vigilância eletrónica», pois que, embora privado da liberdade, não violou «qualquer espécie de custódia no momento em que se [foi] embora», pois que não se encontrava instalado o sistema de vigilância eletrónica ou outro meio de controlo da medida de coação de obrigação de permanência na habitação.

20. Recordando a matéria de facto relevante, que consta dos pontos 40 a 44 dos factos provados:

«40. Por decisão datada de 27/02/2023, (…) em sede de primeiro interrogatório judicial, foi aplicada ao arguido AA a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, concretamente na Rua dos ..., nos..., sujeita a meios técnicos de controlo à distância, no pressuposto da sua viabilidade técnica e da obtenção dos necessários consentimentos, sendo que os correspondentes mandados de condução à residência foram emitidos na mesma data.

41. Posteriormente, por despacho de 16/03/2023, face à impossibilidade de implementação dos meios de controlo à distância, passou AA a estar sujeito à medida de medida de coação de obrigação de permanência na habitação sem vigilância eletrónica, decisão que foi notificada ao arguido, que ficou devidamente ciente da obrigação decorrente de tal medida.

42. Não obstante, no dia 09/05/2023, às 09 horas, AA não se encontrava na habitação onde devia cumprir a referida medida de coação, vindo a ser intercetado pelas 09 horas e 50 minutos pela PSP de ... na Rua ..., perto da habitação sua ex-companheira, onde já teria passado a noite, ali se encontrando desde as 19 horas do dia anterior.

43. AA agiu do modo descrito nestes autos, como quis, com o propósito concretizado de se colocar em fuga, com o intuito de não permanecer na residência onde cumpria a obrigação de permanência na habitação, o que conseguiu, bem sabendo que se encontrava privado da liberdade por decisão judicial e que não se podia ausentar daquela residência, em quaisquer circunstâncias, sem prévia autorização do Tribunal.

44. Em tudo agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se inibindo, mesmo assim, de a concretizar.»

21. Com base nestes factos, concluiu o acórdão recorrido que o arguido praticou um crime de evasão, p. e p. pelo art.º 352.º, n.º 1, do Código Penal, fundamentando a decisão nos seguintes termos:

«O bem jurídico protegido nesta norma é a segurança da custódia oficial e a efetiva prossecução da medida de privação imposta.

Este crime, sem minuciosa descrição normativa, não se apresenta como sendo de execução vinculada, nele cabendo qualquer conduta que permita a evasão.

É um crime de mão própria, que apenas comete quem se encontre legalmente privado da liberdade. Vale por dizer, que pode cometer este crime um recluso – condenado, ou preventivo – o detido e o internado, mas ainda e também, quem estiver sujeito a obrigação de permanência na habitação, tenha sido ela aplicada a título de medida processual de coação ou até para efeitos de cumprimento de pena.

São, portanto, elementos objetivos do tipo que o agente seja uma pessoa legalmente privada da liberdade e que se tenha evadido. Não basta para preenchimento do tipo a libertação momentânea quando o agente ainda está ao alcance da guarda não lesando, assim, a segurança da custódia.

Como refere Cristina Líbano Monteiro (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora), quanto à redação do artigo após a reforma de 1995, não há agora lugar para modalidades de evasão. Tanto importa o grau de segurança ou de regime (fechado ou aberto) do estabelecimento. Não faz o legislador qualquer referência aos meios empregues pelo agente para se evadir. Consagra, isso sim, uma situação de atenuação especial da pena e afasta a punibilidade da evasão meramente tentada.

Em termos de tipo subjetivo exige-se o dolo em qualquer das modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal.

[…]

Atentos os factos provados, dúvidas inexistem que ambos os arguidos praticaram este crime, pelo que, na ausência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa, serão condenados em conformidade.»

22. A questão suscitada pelo Ministério Público neste Supremo Tribunal, em divergência com o decidido pela Relação, constitui uma questão de direito, que, como tal, pode ser apreciada, mesmo que não suscitada no recurso, relevante para a determinação da pena, pela fixação da moldura abstrata a partir da qual aquela determinação se processa (“dentro dos limites definidos na lei” – art.º 71.º, n.º 1, do CP).

22.1. Em desenvolvido parecer, começando por convocar o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2017 (proc. 1210/12.3POLSB.L1.S3, ECLI:PT:STJ:2017:1210.12.3POLSB.L1.S3.81), que decidiu no sentido do acórdão recorrido, diz o Senhor Procurador-Geral Adjunto:

«Como (…) é expressamente referido no acórdão, o arguido encontrava-se sujeito a obrigação de permanência na habitação, tendo incumprido tal medida de coação, ausentando-se de casa sem autorização, tendo estado ausente pelo período de cerca de 1 dia.

A questão que se coloca é a de saber-se se o crime de evasão compreende estas situações, ou apenas aquelas em que se verifica uma detenção/prisão do arguido (como, aliás, foi o caso do coarguido CC que foi condenado pela prática do mesmo crime, mas com reporte a fuga estabelecimento prisional em que se encontrava em prisão preventiva – pontos 33. a 39. da matéria de facto provada).

O acórdão segue (…) o entendimento de que pratica o crime «um recluso – condenado, ou preventivo – o detido e o internado, mas ainda e também, quem estiver sujeito a obrigação de permanência na habitação, tenha sido ela aplicada a título de medida processual de coação ou até para efeitos de cumprimento de pena». É, diga-se, e ao que vimos, a posição maioritária da jurisprudência, incluindo de um acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 23.11.2017, no processo 1210/12.3POLSB.L1.S3 (Relatora – Isabel São Marcos) , do qual transcrevemos a seguinte parte, com direto interesse para a questão:

“(…) Partilhando da posição que, sufragada no acórdão recorrido, conta igualmente com o apoio de M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio[5], e de Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos, julga-se que, para efeitos da previsão normativa do artigo 352.º do Código Penal, na expressão “quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade”, cabe por inteiro a situação de quem estiver sujeito à obrigação de permanência na habitação (OPH), sobretudo quando, como no caso vertente, executada com fiscalização por meio técnico de controlo à distância, previsto na Lei n.º 33/2010, de 02.09.

Efectivamente, na linha do entendimento que, partilhado maioritariamente pela doutrina e bem assim pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, recolhe o assentimento do Professor Jorge de Figueiredo Dias que assim se pronunciou de modo inequívoco nas Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal9, por claro tem-se que na prática do crime de evasão incorre não tão-só quem se encontrar privado da liberdade em virtude de detenção ou de prisão mas ainda e também quem estiver sujeito à obrigação de permanência na habitação (OPH), tenha ela sido aplicada a título de medida processual de coacção (artigo 201.º do Código de Processo Penal) ou para efeitos de cumprimento de pena (artigos 44.º, número 2, e 62.º, do Código Penal).

Entendimento que, com a nova redacção dada, pela Lei n.º 94/2017, de 23.08 ao artigo 43.º do Código Penal, saiu aliás reforçado.

É que, como bem decorre do número 1 da citada norma do artigo 43.º do Código Penal na redacção introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23.08, passou ora a ser possível executar, em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, a pena de prisão efectiva não superior a dois anos [alínea a)], a pena de prisão não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal [alínea b)], e a pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação da pena privativa da liberdade ou de não pagamento de multa previsto no número 2 do artigo 45.º [alínea c)].

Alargamento das possibilidades de execução da pena através de obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância que dá clara indicação sobre a verdadeira e própria natureza de tal forma de privação do direito à liberdade que, no essencial, semelhante à prisão, tem como imediata e específica consequência para a pessoa que a ela se encontrar sujeita a privação do seu “jus ambulandi”, só com a diferença de, como anota o saudoso Juiz Conselheiro Manuel Maia Gonçalves10, em vez de estar intra muros num estabelecimento prisional, estar confinada à sua habitação.

E tudo isto sem perder de vista a objecção que por alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido feita a propósito de situação paralela e atinente à admissibilidade da providência de habeas corpus em virtude de prisão ilegal requerida por ou em benefício de pessoa sujeita a obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

Objecção que, em suma prendendo-se com a recusa da possibilidade de se fazer uma interpretação extensiva da norma do artigo 222.º do Código de Processo Penal de modo a tornar aplicável a providência de habeas corpus à obrigação de permanência na habitação (…), tem como assente que a privação da liberdade há-de advir da custódia oficial a que se encontra sujeita a pessoa que, para tanto, deverá estar confinada a um controlo estrito, cerrado, só possível com a sua reclusão em estabelecimento do Estado previsto para o efeito, e já não confinada ao seu domicílio, ainda que com fiscalização por meio técnico de controlo à distância11.

Porém, contra essa objecção é costume argumentar-se12 que foi o legislador quem, ciente da similitude existente entre a prisão (preventiva ou não) e a obrigação de permanência na habitação, encontrou razões para, com respeito a esta medida, equiparar (artigo 218.º, número 3, do Código de Processo Penal) os prazos máximos de duração e de suspensão do seu decurso, de reexame dos respectivos pressupostos e de libertação que estabeleceu para a prisão preventiva nos artigos 215.º, 216.º, 217.º, e 213.º do Código de Processo Penal e bem assim à mesma estender a aplicação da norma do artigo 225.º, número 1, alínea a), do Código de Processo Penal.

Do mesmo passo que, estabelecendo a obrigatoriedade de desconto no cumprimento da pena de prisão (artigo 80.º, número 1, do Código Penal) do tempo sofrido pela pessoa em regime, não tão-só de detenção e de prisão preventiva mas também de obrigação de permanência na habitação (OPH), o legislador alargou, na Lei n.º 94/2017, de 23.08 (artigo 43.º), as possibilidades já previstas no artigo 44.º introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, de cumprimento da pena privativa de liberdade em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

Para além de que, como tem entendido a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH)13, para se determinar se a medida a que se encontra sujeita uma determinada pessoa é privativa da sua liberdade na acepção do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) ou se é meramente restritiva da sua liberdade e enquanto tal regulada no artigo 2.º do Protocolo n.º 4 Adicional à Convenção, sempre terá de atender-se à concreta situação dessa mesma pessoa, considerando, designadamente, o tipo, o modo de implementação, a duração da medida, sem descurar os efeitos que da execução desta decorrem para a sua liberdade, de sorte que o que releva para a distinção entre privação e restrição da liberdade é, não a natureza carcerária mas, o grau e a intensidade da medida.

Em face de tudo isto e sem perder de vista o tipo, o modo de implementação, a forma de execução da obrigação de permanência na habitação, particularmente quando fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, a sua duração, e os efeitos da mesma decorrentes para a liberdade da pessoa a ela sujeita, forçoso será concluir que a medida a que o arguido e ora recorrente se encontrava sujeito aquando dos factos ilícitos dos autos trata-se de uma verdadeira e própria medida privativa da liberdade, logo em tudo semelhante à prisão (preventiva ou não).

E sendo assim conclui-se que, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 352.º do Código Penal, o arguido, sujeito à medida de obrigação de permanência na habitação fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância, estava legalmente privado da sua liberdade quando, sem autorização judicial, se ausentou do local onde a mesma medida vinha sendo executada. (…)

Depois, no que concerne à invocada dupla penalização do agente que seja condenado pelo crime de evasão por ilegitimamente se ter ausentado do local onde se encontrava sujeito à obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, carece também de razão o recorrente (…)

E desde logo porque em causa encontram-se realidades distintas.

Na verdade, uma coisa é o regime de permanência na habitação e os fins que, visados pelo mesmo, ficam comprometidos com a actuação do agente que se ausenta ilegitimamente do espaço a que, por decisão judicial, se acha confinado e a reacção que o sistema de justiça prevê para quando tal aconteça (artigo 203.º, número 2, do Código de Processo Penal e artigo 44.º, números 2, e 3, do Código Penal).

E outra coisa é a consequência tipificada na lei penal para a conduta do agente que, desrespeitando a autoridade pública encarregada do sistema estadual de justiça, se ausenta ilegitimamente do local a que, nos termos da competente decisão judicial, deveria estar confinado para cumprimento da medida privativa de liberdade [de prisão (preventiva ou não) ou de obrigação de permanência na habitação] que lhe foi imposta e que por via disso é passível de incorrer na prática do crime objecto de previsão no citado artigo 352.º, do Código Penal.

Ademais, não se opondo qualquer objecção à penalização da conduta do agente nos termos da aludida disposição legal quando o mesmo se encontra em regime de prisão (preventiva ou não) que deverá manter-se, mal se compreende a objecção que porventura se faça quando, tratando-se de obrigação com permanência na habitação, esta é, por via de verificado insucesso, revogada e substituída pela prisão.»

22.2. Desta interpretação em jurisprudência maioritária, refletida, nomeadamente, nos acórdãos de 11.11.2020, Proc. 760/17.0T9SJM.P1, do Tribunal da Relação do Porto, de 20.06.2022, Proc. 30/20.6T9VVR.G1, do Tribunal da Relação de Coimbra, e de 13.11.2012, Proc. 450/10.4TASTB.E1, do Tribunal da Relação de Évora, que também convoca, discorda, todavia, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, com apoio no acórdão de 19.12.2013, 1241/12.3TASTB.E1, do Tribunal da Relação de Évora (todos os acórdãos acessíveis em www.dgsi.pt), que decidiu em sentido divergente do decidido naquele acórdão do STJ, salientando:

«Sempre, obviamente, com o maior respeito pela opinião acabada de transcrever (e que se viu ser seguida noutros acórdãos (…)), permitimo-nos discordar da conclusão alcançada.

Na verdade – e aqui apoiando-nos no entendido pelo Tribunal da Relação de Évora no processo 1241/12.3TASTB.E1 (Relator – Marinho Cardoso, sendo Adjunta a atual Juiz Conselheira Ana Barata de Brito) -, parece-nos que será algo forçada a inclusão da situação de facto aqui em questão (que acaba por consistir apenas no incumprimento das obrigações decorrentes de medida de coação imposta ao arguido) na prática do crime de evasão.

Como referido em tal acórdão:

«No tocante à 2.ª das questões postas, a de que a fuga a uma medida de coacção de obrigação de permanência na habitação (OPH), quando inexiste vigilância electrónica, por ainda não ter sido instalada, não integra o elemento objectivo da prática do crime de evasão p. e p. pelo art.º 352.º, n.º 1, do Código Penal:

O cerne da questão é saber se pratica o crime de evasão quem viola uma medida de coacção de OPH ou se tal crime só pode ser praticado por quem se encontra em cumprimento de pena de prisão.

No caso dos autos, há ainda a considerar a variante da inexistência de vigilância electrónica (VE) quando se deu a fuga.

Vamos por partes.

Sobre o cerne da questão, duas posições antagónicas se alinharam já:

Uma, diz que sim, que pratica o crime de evasão quem viola uma medida de coacção de OPH.

Outra, diz que não, que tal crime só pode ser praticado por quem se encontra em cumprimento de pena de prisão.

Representativo desta última corrente é o acórdão da Relação do Porto de 16-03-2011, processo 492/09.2PJPRT.P1, relator Moreira Ramos, acessível em www.dgsi.pt, aonde se considerou14, respigando:

(…) cremos que o ponto de partida desta discussão há-de radicar na letra da lei, pois que, como é sabido, (…) não poderá sustentar-se interpretação que não tenha um mínimo de assento na lei (…)

Assim, convém desde logo reter que o artigo 352º, nº 1, do Código Penal, estipula que “Quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até dois anos”. (…)

(…) atendo-nos à sobredita interpretação literal, cremos difícil compaginar o escapar ou fugir às ocultas com a “guarda de si próprio” que a OPH encerra, mormente quando não acompanhada de vigilância electrónica, tal como sucedia “in casu”. (…)

Analisando tais vectores interpretativos, convém reter que as fontes da disposição aqui em apreço remetem-nos para os artigos 191º e 196º, ambos do Código Penal de 1886, sendo que o primeiro aludia à evasão de detidos e o segundo à evasão de preso condenado.

Posteriormente, o Código Penal de 1982 veio regular tal matéria no capítulo “Dos crimes contra a autoridade pública” e, dentro destes, na secção “Da tirada, evasão de presos e não cumprimento de obrigações impostas por sentença criminal” (artigos 389º a 395º), inserção que se mantém na sua versão actual (artigos 349º a 354º).

Daqui decorre, desde logo, que aqui se pretende genericamente salvaguardar a autoridade pública e as decisões judiciais.

(…) tal como resulta expressamente do próprio artigo 201º, do Código de Processo Penal, a OPH é uma mera obrigação, ainda que possa ser controlada à distância através de adequados meios técnicos, cujo incumprimento pode determinar a aplicação da prisão preventiva, estipula o artigo 203º, nº 2, do Código de Processo Penal (a anterior redacção deste preceito, vigente até à recente entrada em vigor da Lei nº 26/2010, de 30/08, era até exclusiva da OPH), sendo esta a única consequência visionável decorrente do seu incumprimento. Se assim não fosse, então o legislador teria que o ter esclarecido no texto respectivo, anotando que um tal agravamento seria ponderado, sem prejuízo da correspondente responsabilidade criminal. E, relembre-se, sem um mínimo de expressão escrita, não há correspondência possível.

(…) o legislador decidiu estendê-la, recentemente, à própria execução de algumas penas curtas (cfr. artigo 44º, do Código Penal). E também aqui, anote-se, previu que a revogação de tal medida, na qual se incluiu também a faceta decorrente do incumprimento, implica apenas o cumprimento da fixada pena de prisão. E uma vez mais também teve necessidade de a equiparar para efeitos de desconto no respectivo cômputo (vide, nº 4 do assinalado dispositivo). Ambos argumentos em prol da nossa argumentação, anotando-se que aqui são mais decisivos, pois que estamos já a falar de cumprimento de pena, pelo que, se o legislador assim o quisesse, teria previsto também a eventual responsabilização criminal no caso de abandono do local de cumprimento.

De resto, a ausência de específica previsão legal colidiria sempre com a previsão do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, por este prisma, a sobredita sustentação do crime de evasão seria de duvidosa legalidade/constitucionalidade. (…)

Por último, cremos que a nossa Lei Fundamental também não permite considerar a OPH como uma efectiva privação da liberdade, pois que, ao contrário da prisão preventiva, não a incluiu no seu artigo 27º, aqui se aceitando apenas como tal a privação resultante de condenação transitada que implique aplicação de pena de prisão ou de medida de segurança ou outras situações pontuais ali expressamente previstas. O que significa que se considerássemos a OPH no conceito “legalmente privado da liberdade” previsto no artigo 352º, nº 1, do Código Penal, estaríamos, no mínimo, a proceder a uma interpretação violadora da Constituição da República Portuguesa e, por isso, ilegal/inconstitucional. O que não nos parece ser de sustentar.

Neste mesmo sentido, afirma Germano Marques da Silva que “No direito português não é possível considerar a obrigação de permanência na habitação como uma espécie de privação da liberdade, de prisão domiciliária, pois a Constituição não o consente (art. 27º da CRP) e consequentemente a violação da obrigação de permanência não constitui o crime de evasão, p.p. pelo art. 352º do Código Penal, nem é a admissível a guarda permanente da habitação por autoridade policial para impedir o incumprimento da medida, o que a acontecer representaria efectiva privação da liberdade fora dos casos em que a Constituição a admite”, sustentando ainda que a fiscalização do cumprimento da medida através de controlo à distância não é o mesmo que constrição ao seu cumprimento.

E termina com a invocação favorável do entendimento de Cristina Líbano Monteiro, "Comentário Conimbricense do Código Penal", 2001, tomo III, pág. 394.

Representativo da corrente contrária, isto é, que pratica o crime de evasão quem viola uma medida de coacção de OPH, está o acórdão da Relação de Évora, datado de 13-11-2012, proferido no processo 450/10.4TASTB.E1, relatado por Isabel Duarte (e incidindo também, curiosamente, sobre uma sentença de outro juízo do tribunal ora recorrido, o de ...) acessível no mesmo sítio da Internet, que a 1.ª Instância seguiu de perto – embora sem o citar – e aonde se considerou, respigando: (…)

São elementos objectivos, deste tipo legal de crime, que o agente seja uma pessoa legalmente privada da liberdade e que se tenha evadido. Não basta para preenchimento do tipo a libertação momentânea quando o agente ainda está ao alcance da guarda não lesando, assim, a segurança da custódia. (…)

O artigo 352.º, n.º 1, do CP de 1995 corresponde ao artigo 329.º do Código anterior. Contudo, ocorreu uma alteração importante na redacção dessa previsão legal, pois substituiu-se a expressão "encontrando-se em situação, imposta nos termos da lei de detenção, internamento ou prisão, em regime fechado, ou aproveitando-se a sua remoção ou transferência", por "quem encontrando-se legalmente privado da liberdade".

Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, Tomo III, pág. 395, relativamente à redacção da referida norma, após a reforma de 1995, refere: “Não há agora lugar para modalidades de evasão. Tanto importa o grau de segurança ou de regime (fechado ou aberto) do estabelecimento. Não faz o legislador qualquer referência aos meios empregues pelo agente para se evadir. Consagra, isso sim, uma situação de atenuação especial da pena e afasta a punibilidade da evasão meramente tentada”.

Esta autora entende que a singela formulação do artigo 352º do Código Penal, da qual decorre que comete o crime quem, por decisão judicial, está privado da sua liberdade, independentemente do meio, modo ou circunstância ou alcance em que está coarctada a sua capacidade de se movimentar, o seu direito a ser livre;

No mesmo sentido:

- Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, edição da Universidade Católica, 2008, pág. 829, adianta que “Por decisões privativas de liberdade deve entender-se todas as decisões que ordenam detenção, prisão ou internamento, quer elas sejam definitivas quer sejam transitórias...” e “Também está incluída a obrigação de permanência na habitação, seja como medida de coacção seja como pena”, o que, resulta, em seu entendimento, da substituição da expressão “pessoa legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado à execução de reacções criminais privativas de liberdade” ocorrida com a reforma do Código Penal de 1995.

- Maia Gonçalves, no seu Código Penal Português, anotado e Comentado, na anotação n.º 2, ao art. 352º, avança que, a alteração visou precisamente o alargamento do âmbito da tipicidade de modo a incluir todas as formas de privação de liberdade, incluindo, portanto, a obrigação de permanência no domicílio.

Acresce que, de acordo com a unidade do sistema jurídico, a obrigação de permanência na habitação, enquanto medida coactiva, foi equiparada à prisão, seja para contagem do tempo de prisão (art. 80°, do CP), seja para verificação dos pressupostos de aplicação ou ainda para efeitos de reexame dos mesmos pressupostos (arts. 193°, n°2 e 213°, respectivamente, ambos do CPP). (…)

A questão está em saber se o novo texto, além da alteração da terminologia, pretendeu alterar o âmbito da previsão, alargando-a a situações que estão para além das tipificadas na anterior redacção, concretamente à obrigação de permanência na habitação prevista no artigo 201º do actual Código de Processo Penal, ou, em maior pormenor, se a expressão “legalmente” tem âmbito diferente da expressão “imposta nos termos da lei”.

A expressão “legalmente privado da liberdade” pode englobar várias interpretações, nomeadamente:

A de quem, por decisão judicial, está privado da sua liberdade, independentemente do meio, modo ou circunstância ou alcance em que está coarctada a sua capacidade de se movimentar, o seu direito a ser livre;

A adiantada, pelo citado Paulo Pinto de Albuquerque, respeitando às decisões privativas de liberdade englobam todas as decisões que ordenam detenção, prisão ou internamento, quer elas sejam definitivas quer sejam transitórias, pelo que ali também estará incluída a obrigação de permanência na habitação - OPH -, principalmente, quando acompanhada de vigilância electrónica, como ocorria no caso em análise.

Acresce que, seguindo o mesmo entendimento, o Prof. Figueiredo Dias, no âmbito da elaboração das actas de revisão do Código Penal, esclareceu que a expressão “pessoa legalmente privada de liberdade” está utilizada no sentido de abranger também as medidas de segurança, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação.

Sabemos que este entendimento não é pacífico, apesar de maioritário, no sentido por nós desenvolvido e seguido. (…)

Todavia, pelos motivos apontados, entendemos que a previsão do citado art. 352.º do CP abrange todas as situações de quem se encontre "legalmente privado da liberdade", incluindo os arguidos sujeitos à obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, dado que esta constitui uma privação da liberdade, nos termos previstos no art.º 201.º do CPP.

Acontece que no caso dos autos não é preciso tomar posição nesta querela, pois que existe no mesmo uma variante que é a da inexistência de VE quando se deu a fuga.

Na verdade, após ter sido ouvido em 1.º interrogatório judicial de arguido detido, foi determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de OPH, tendo sido transportado pela polícia à morada que indicou como sua residência por, segundo consta da fundamentação da decisão da matéria de facto da sentença recorrida, pertencer a um seu irmão … sendo que quando o arguido lá chegou, constatou que o irmão já não residia ali, pelo que teve de se ir embora… Apesar de muito a propósito não esclarecerem os presentes autos, depreende-se que naquela morada não estava ninguém à espera do arguido para lhe montar a VE! Também muito a propósito, não esclarecem os presentes autos quantos dias depois de ter sido despejado pela polícia à porta da casa é que o IRS lá foi para montar a VE ao arguido! O certo é que, quando o IRS lá foi, ele não estava lá.

Recorde-se que o art.º 352.º contempla a situação de quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir.

Quer isto dizer serem dois os elementos do tipo objectivo do ilícito: encontrar-se o agente legalmente privado da liberdade; e evadir-se.

Ora se é insofismável a verificação do primeiro, também o é a inexistência do segundo.

Vejamos:

Evadir significa escapar de, escapar furtivamente, fugir às ocultas – o que, para acontecer, implica que o agente esteja vigiado, guardado, sob custódia. Electrónica, pessoal ou material.

Ora um indivíduo formalmente colocado em vigilância electrónica, mas que não esteja efectivamente sujeito a vigilância electrónica, por ela não ter sido ainda instalada, embora sabendo encontrar-se em determinado local legalmente privado da liberdade, aí deixado sem guarda pelas autoridades à espera que alguém lá vá ter consigo para lha instalarem, não comete o crime de evasão se no entretanto sair desse local e se for embora, pois que não está a lesar a segurança da custódia oficial, que é o bem jurídico protegidos pelo tipo15, por pura e simplesmente não existir qualquer espécie de custódia (electrónica, pessoal ou material – presente, remota ou distraída) no momento em que ele se vai embora.

Na verdade, o arguido não pode ser encarregue de se vigiar a si próprio para se impedir a si próprio de fugir entre o momento em que é levado a casa por ter sido formalmente colocado sob vigilância electrónica e o momento em que, tempos depois, a vigilância electrónica lhe seja efectivamente aplicada16 .

Do exposto se conclui, sem necessidade de outros argumentos, não ter o arguido cometido o crime de evasão».

22.3. Assim, argumenta o Senhor Procurador-Geral Adjunto que, no caso, não se mostra preenchido o tipo de crime de evasão, dizendo:

«Traduzindo para o caso dos presentes autos, em que o arguido AA, estando sujeito à medida de medida de coação de obrigação de permanência na habitação sem vigilância eletrónica, saiu de casa, parece-nos que não se está perante a prática do crime, pelos motivos referidos no acórdão que se transcreveu (inexistência de violação de qualquer custódia a que estivesse sujeito, nomeadamente eletrónica), apenas se verificando o incumprimento das obrigações decorrentes da medida de coação, com as consequências previstas no artº 203º, do CPP (como, aliás, sucedeu no caso, tendo o arguido visto agravada a medida de coação, sendo-lhe imposta a de prisão preventiva).

[Diga-se que, aliás, é esta – agravamento da medida de coação - a única consequência que habitualmente se observa em casos de violação da obrigação de permanência na habitação, sendo muito raros os casos em que se verifica a extração de certidão para efeitos de extração de certidão para instauração de inquérito pela prática de crime de evasão].

E daqui que se entenda que a decisão recorrida contém erro de direito a que cumpre colocar cobro, absolvendo o arguido AA da prática o crime de evasão p. e p. pelo artº 342º, do Código Penal pelo qual foi condenado na pena de 6 meses de prisão, com as consequências daí decorrente (nomeadamente em termos de pena a aplicar em sede de cúmulo jurídico, matéria a que voltaremos mais abaixo).»

23. Dispõe o n.º 1 do artigo 352.º do CP, na redação de 1995, sob a epígrafe «Evasão», que «[q]uem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até 2 anos».

A questão controvertida consiste, num primeiro momento, em saber se a expressão «legalmente privado da liberdade» inclui a medida de coação de «obrigação de permanência na habitação», prevista no n.º 1 do artigo 201.º do CPP, segundo o qual, na parte que agora interessa, «o juiz pode impor ao arguido a obrigação de se não ausentar, ou de se não autorizar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida» (redação originária do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, que, nesta parte, apesar das modificações de 2007 – Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto – se manteve sem alteração).

De notar que a denominada «vigilância eletrónica» para «controlo» (na terminologia da Lei n.º 33/2010, de 2 de setembro) ou, na formulação do CPP, para «fiscalização» da medida, apenas veio a ser prevista em 1998, pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, que aditou o n.º 2 ao artigo 201.º dispondo que «[p]ara fiscalização do cumprimento da obrigação referida no número anterior [obrigação de permanência na habitação], podem ser utilizados meios técnicos de controlo à distância, nos termos da lei» (n.º 2 que, com as alterações da Lei n.º 48/2007, passou a ser o n.º 3 do mesmo preceito).

A utilização de meios técnicos de controlo à distância para fiscalização do cumprimento da obrigação de permanência na habitação prevista no artigo 201.º do Código de Processo Penal (abreviadamente designada por «vigilância eletrónica» – artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 122/99) veio a ser regulada na Lei n.º 122/99, de 20 de agosto, substituída pela Lei n.º 33/2010, de 2 de setembro, que «regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância (vigilância eletrónica)» alargando o âmbito da sua aplicação à execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, prevista no artigo 44.º do Código Penal, à execução da adaptação à liberdade condicional, prevista no artigo 62.º do Código Penal, à modificação da execução da pena de prisão, prevista no artigo 120.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e à aplicação das medidas e penas previstas no artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.

24. Num segundo momento, na perspetiva do Ministério Público, coloca-se a necessidade de distinguir entre «obrigação de permanência na habitação» sem «vigilância eletrónica» e «obrigação de permanência na habitação» com «vigilância eletrónica», pois que, do seu ponto de vista, só nesta segunda modalidade tal medida se poderá incluir na previsão do n.º 1 do artigo 352.º do CP. Ou, dito de outro modo, na presença dos elementos normativos já recenseados, para efeitos do preenchimento da previsão típica deste preceito incriminador, uma pessoa só poderá considerar-se «legalmente privada da liberdade» se a obrigação de permanência na habitação for fiscalizada por meios de vigilância eletrónica, isto é, depois de esta ser instalada, posta a funcionar e estando a funcionar no momento da «evasão».

Desta perspetiva e aceite, como se mostra do anteriormente exposto, que, com a alteração da redação da norma incriminadora do crime de evasão, em 1995, a violação da medida de obrigação de permanência na habitação passou a integrar a descrição típica do crime, haveria que introduzir um elemento de restrição na previsão normativa do tipo de ilícito, com respeito aos meios, modo e intensidade do controlo da medida, pois seria sempre necessário que fosse violada a «custódia» exteriormente imposta.

25. Dúvidas não subsistem de que a alteração do tipo de crime de evasão, em 1995, visou expressamente abranger todas as situações que o legislador considerou de «privação da liberdade».

Anteriormente, o agente praticava o crime de evasão se estivesse detido ou cumprisse pena de prisão, dependendo a pena das circunstâncias da evasão do estabelecimento em que se encontrasse, da classificação deste e do regime de cumprimento da pena. O conceito de evasão relacionava-se com as situações de detenção e internamento ou prisão, ou seja, com o estatuto de recluso em estabelecimento prisional. Era assim na versão originária do artigo Código Penal de 1982, cujo artigo 392.º («Evasão») dispunha:

«1 - Quem, encontrando-se em situação, imposta nos termos da lei, de detenção, internamento, ou prisão, em regime fechado, ou aproveitando a sua remoção ou transferência, se evadir, será punido com prisão até 2 anos.

2 - Se a evasão tiver lugar de um estabelecimento que funcione em regime aberto a pena será de prisão até 4 anos.

3 - Se a evasão tiver lugar de um estabelecimento que funcione em sistema de segurança média, a pena será de prisão até 3 anos.

4 - Se o facto for cometido com violência ou por meio de ameaças contra as pessoas ou mediante arrombamento a pena será de prisão de 2 a 4 anos.

5 - Se a violência ou as ameaças forem exercidas por meio de armas ou contra um grupo de pessoas, a pena será de prisão de 3 a 5 anos.

6 - A pena poderá ser reduzida de metade quando o agente se entregue, antes da condenação, à autoridade competente.

7 - A tentativa é punível.»

Sobre esta matéria regia o Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de agosto, que reestruturou os serviços que tinham a seu cargo as medidas privativas de liberdade. O artigo 14.º referia-se ao internamento em estabelecimentos abertos e fechados. O internamento em regime fechado seria executado em condições de segurança capazes de prevenir o perigo de evasão dos reclusos e o internamento em regime aberto era executado prescindindo-se, total ou parcialmente, de medidas contra o perigo de evasão dos reclusos. Quanto à segurança os estabelecimentos eram classificados de segurança máxima, fechados, abertos e mistos (artigo 159.º).

De notar que, mesmo nesse regime, embora ocorresse a partir do estabelecimento prisional em que o recluso se encontrava privado da liberdade, estando este em regime aberto sem adoção de medidas contra o perigo de evasão, esta, a verificar-se, não implicaria a violação de qualquer medida de «controlo» destinada a prevenir a fuga, o que afastaria ou, pelo menos, esvaziaria severamente a ideia de violação da «custódia» tradicionalmente associada ao «internamento» do recluso.

26. Os trabalhos preparatórios do Código Penal de 1995 anunciaram, pois, uma modificação fundamental do tipo de crime, consagrada na norma incriminadora, ao visarem alargar o âmbito da previsão desta (que corresponde ao n.º 1 do artigo 351.º do Projeto) a todas as situações de privação da liberdade e do local em que esta ocorresse, deixando a formulação do tipo de crime de exigir o «internamento» do «recluso» em estabelecimento prisional.

Como já anteriormente se referiu, esta opção foi claramente expressa pelo Professor Figueiredo Dias, Presidente da Comissão Revisora, autor do Projeto, ao afirmar que «a expressão “pessoa privada da liberdade” está utilizada com o sentido de abranger também as medidas de segurança, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação» (cfr. Código Penal – Actas e Projeto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, p. 409, Acta n.º 35, sessão de 21.6.1990).

É assim que a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça e a dominante dos tribunais de 2.ª instância, bem como a maioria dos autores e comentadores, vêm defendendo este ponto de vista (cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pp. 393ss, Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª ed., Universidade Católica Editora 2015, pp. 1114-1115, e Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª ed. Almedina, Coimbra, 2007, p. 1059, citados, e JL Lopes da Mota, «Crimes contra a Autoridade Pública», Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, Vol. II, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, p. 452).

27. Se, por um lado, a alteração se revelava em harmonia com o regime aberto do cumprimento da pena em estabelecimento prisional, abdicando de medidas de prevenção ou controlo do perigo de evasão, a evolução legislativa vinha, por outro, assumir que o local da privação da liberdade pudesse ser a habitação em que a pessoa se encontra e em cujo espaço a pessoa fica «confinada» pela obrigação imposta de nele permanecer e de dele não se poder ausentar sem autorização judicial.

Neste confinamento se traduz a «privação da liberdade», como tem sublinhado a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça («STJ»), nomeadamente em matéria de habeas corpus – cfr., por todos, o acórdão de 4.5.2024, Proc. n.º 2683/22.1T8LRA-A.S1: «O direito à liberdade consagrado e garantido no artigo 27.º da Constituição é o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar (Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit., p. 478 e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 471/2001, DR II, n.º 163, de 17.07.2002), o direito à liberdade de movimentos, de “ir e vir”, à liberdade ambulatória ou de locomoção (Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit. p. 300» e jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos («TEDH»), em interpretação do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos»; neste sentido, o acórdão do STJ de 23.11.2017, Proc. 1210/12.3POLSB.L1.S3, bem como, o acórdão Tommaso c. Itália, do TEDH, de 23.2.2017, § 80, citado no acórdão deste STJ de 4.5.2024, remetendo para o acórdão de 24.1.2024, Proc. n.º 348/23.6T8OHP-B.S1, com referência aos acórdãos n.º 479/94, DR I-A, n.º 195, de 24.08.1994, 185/96, DR I-A, n.º 75, de 28.03.1996, e 83/01, de 05.03.2001 do Tribunal Constitucional).

De notar, como no acórdão de 23.11.2017, que aqui se impõe distinguir entre privação da liberdade – incluída no âmbito de proteção do artigo 27.º da Constituição e do artigo 5.º da CEDH – e limitação da liberdade de movimentos, da liberdade de deslocação – garantida pelo artigo 44.º da Constituição e pelo artigo 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH.

Na síntese do acórdão Buzadji c. Moldávia [GC] nº. 23755/07, de 5.7.2016 disse o TEDH17: «103. (…) o Tribunal de Justiça insiste na sua jurisprudência numa interpretação autónoma do conceito de privação de liberdade. Uma leitura sistemática da Convenção mostra que meras restrições à liberdade de circulação não são abrangidas pelo artigo 5.º, mas são abrangidas pelo artigo 2.º, n.º 1, do Protocolo n.º 4. No entanto, a distinção entre a restrição de circulação e a privação de liberdade é meramente um de grau ou intensidade, e não de natureza ou substância. Para determinar se alguém foi “privado da sua liberdade” na acepção do artigo 5.º, o ponto de partida deve ser a situação concreta e deve ter-se em conta toda uma série de critérios, como o tipo, a duração, os efeitos e a forma de implementação da medida em questão (ver Guzzardi c. Itália, 6 de novembro de 1980, §§ 92-93, Série A n.º 39). 104. De acordo com a jurisprudência do Tribunal (ver, entre muitos outros, Mancini c. Itália, n.º 44955/98, §17, CEDH 2001-IX; Lavents c. Letónia, n.º 58442/00, §§ 64- 66, 28 de novembro de 2002; Nikolova c. Bulgária (n.º 2), n.º 40896/98, § 60, 30 de setembro de 2004; e Delijorgji c. Albânia, n.º 6858/11, § 75, 28 de abril de 2015), a prisão domiciliária é considerada, tendo em conta o seu grau e intensidade, uma privação de liberdade na aceção do artigo 5.º da Convenção

28. Para além disto, não se encontra no tipo incriminador, que define um ilícito de execução livre, qualquer restrição imposta pelo meio, modo ou outras circunstâncias da evasão ou pela necessidade de superação da intensidade de qualquer controlo para prevenir a fuga, nomeadamente pela sujeição da pessoa a vigilância eletrónica, a qual, como se viu, sendo então desconhecida do nosso sistema jurídico-penal, só veio a ser admitida e utilizada cerca de dez anos mais tarde, com a entrada em vigor da Lei n.º 122/99, de 20 de agosto (entrada em vigor 180 dias após a sua publicação – artigo 12.º), para efeitos de fiscalização da medida.

Como se explicitava na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 241/VII, em DAR II Série-A, n.º 37, de 13.2.1999, pp. 1006ss, que esteve na sua origem, visava-se, então, «introduzir» a vigilância eletrónica no nosso sistema a «título experimental» seguindo experiências estrangeiras (nomeadamente dos Estados Unidos, Reino Unido e Países Baixos), iniciadas nos anos 90, e a Recomendação n.º 1257 (1995) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre as condições de detenção nos Estados-Membros.

29. Assim sendo, conferindo a relevância devida ao elemento histórico e sistemático de interpretação, a que não se opõem outros elementos, se deve concluir, em harmonia com o anteriormente decidido no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2017, que a evasão do arguido do local de habitação no qual ficou obrigado a permanecer por aplicação da medida de coação prevista no artigo 201.º do CPP sem vigilância eletrónica preenche o tipo objetivo do crime de evasão da previsão do n.º 1 do artigo 352.º do CP. Não havendo, por conseguinte, que, para este efeito, distinguir a obrigação de permanência com ou sem vigilância eletrónica ou as situações de instalação ou não instalação ou não funcionamento do sistema de vigilância quando a pessoa vigiada se ausenta do local em que se encontra confinada, isto é, privada da liberdade, por decisão judicial.

Nesta conformidade, se impõe concluir pelo indeferimento da pretensão de absolvição, mantendo-se a decisão de condenação do arguido pela prática do crime de evasão.

Quanto às penas aplicadas aos crimes em concurso (penas parcelares)

30. O acórdão recorrido concluiu que os arguidos praticaram:

A. O arguido AA – 3 crimes:

- Um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal, a que é aplicável pena de 3 a 15 anos de prisão, condenando-o na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;

- Um crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 208.º, n.º 1 do Código Penal, a que é aplicável pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias, condenando-o numa pena de 8 meses de prisão;

- Um crime de evasão, previsto e punido pelo artigo 352.º, n.º 1 do Código Penal, a que é aplicável pena de prisão até 2 anos, condenando-o numa pena de 6 meses de prisão.

B. O arguido BB – 3 crimes:

- Um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal, a que é aplicável pena de 3 a 15 anos de prisão, condenando-o na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, condenando-o na pena de 6 anos de prisão;

- Um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal, a que é aplicável pena de 3 a 15 anos de prisão, condenando-o na pena numa pena de 6 anos e 4 meses de prisão;

- Um crime de evasão, previsto e punido pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal a que é aplicável pena de prisão até 2 anos, condenando-o numa pena de 6 meses de prisão.

C. O arguido CC – 2 crimes:

- Um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) do Código Penal, a que é aplicável pena de 3 a 15 anos de prisão, condenando-o na pena de 5 anos e 6 meses de prisão;

- Um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, a que é aplicável pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, condenando-o na pena de 6 meses de prisão;

Não se suscitam questões relativas à incriminação, a qual, pela subsunção dos factos provados à previsão dos tipos legais dos crimes em questão, definem as molduras abstratas das penas correspondentes a cada um deles, o que constitui o primeiro momento do processo de determinação da medida concreta das penas aplicadas.

31. A determinação da medida das penas encontra-se assim fundamentada:

«Em conformidade com o disposto no artigo 70.º do Código Penal, a escolha da pena deve ser feita dando preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta se mostre suficiente para promover a ressocialização do delinquente e satisfaça a proteção dos bens jurídicos (artigo 40º do Código Penal), sendo alheias, neste momento, considerações relativas à culpa que apenas funciona como limite (e não como fundamento) no momento da determinação da medida concreta da pena já escolhida.

A aplicação de penas visa, por um lado, reafirmar na comunidade a manutenção da validade das normas violadas, repondo a confiança dos cidadãos na validade e vigência da norma violada sempre que a mesma tenha sido abalada pela prática de um crime (prevenção geral positiva) e, por outro, a reintegração do agente na sociedade através da «prevenção da reincidência» (prevenção especial positiva).

Pese embora um dos crimes praticados pelo arguido AA (furto de uso) e um dos crimes praticados pelo arguido CC (ameaça agravada) admitam penas de multa, o Tribunal irá aplicar penas de prisão, atentas as elevadas necessidades de prevenção geral e especial (repare-se no certificado do registo criminal do arguido AA e na circunstância do arguido CC ter praticado o crime durante o período de suspensão de uma pena de prisão), persistindo assim a necessidade de prevenir o cometimento de mais crimes e de os fazer interiorizar o desvalor das suas condutas.

*

Importa, agora, determinar a medida concreta da pena a aplicar.

Nesses moldes, a prevenção geral positiva ou de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar. Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal). Ora, dentro desses limites, cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente, considerando ainda as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, como preceitua o artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, encontrando-se assim a pena adequada e justa.

Nessa perspetiva, as exigências de prevenção geral são elevadas, na medida em que os crimes contra o património e contra as pessoas continuam a ser os que registam mais ocorrência em território nacional (sendo disso expressão o último Relatório Anual de Segurança Interna), pelo que urge reafirmar a validade das normas violadas. Por outro lado, a comunidade reputa de relevante a frequência com que estes crimes são praticados, sendo certo que os bens protegidos por estes tipos incriminadores revestem importância no dia-a-dia da comunidade.

Deverá ainda ter-se presente o grau de ilicitude dos factos, elevado quanto a todos os arguidos, atenta a forma de atuação dos arguidos (nomeadamente a violência com que os três agiram, embora em situações distintas, sendo que o arguido BB recorreu sempre às armas para mostrar a sua superioridade em relação aos ofendidos), a sua duração e a natureza e o valor dos bens subtraídos. Também elevada é a culpa de todos os arguidos, atento o dolo direto. Não podemos ainda ignorar os antecedentes criminais dos arguidos AA e CC, sendo que a favor dos mesmos nada abona, sendo que nenhum deles demonstrou o mínimo arrependimento quanto aos factos praticados, atribuindo, exclusivamente, a culpa à sua dependência. Quanto à confissão dos arguidos AA e BB, diga-se que aqueles só confessaram os factos cuja prova era evidente (evasão), pelo que a mesma não releva, já que confessou o que não poderia negar. A favor dos arguidos, nada abona, sendo que os arguidos BB e AA contam já com uma sanção disciplinar em meio prisional.

Assim, o Tribunal Coletivo decide aplicar as seguintes penas: (…)»

32. Nos termos do artigo 40.º do CP, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Dispõe o artigo 71.º do CP que a determinação da medida da pena, dentro da moldura abstrata correspondente ao tipo de crime preenchido pelos factos provados, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias, nomeadamente as concretizadas no n.º 2 deste preceito, relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto) – fatores relativos à execução do facto, à personalidade e à conduta do agente, anterior e posterior ao facto –, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a seu favor ou contra ele.

Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Aqui se incluem as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na determinação e consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação, constitucionalmente impostos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição; assim, entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, cit.).

33. Discordam os arguidos do decidido quanto às penas parcelares aplicadas alegando violação dos fatores de determinação das penas estabelecidos no artigo 71.º do CP.

33.1. O recorrente AA centra o recurso na pena aplicada ao crime de roubo. Alega o que a este crime corresponde a pena de 1 a 8 anos de prisão, pois vem condenado por um crime da previsão do artigo 210.º, n.º 1, do CP, («não o roubo agravado de que vinha acusado»), «não apresentar quaisquer condenações anteriores por crimes de igual natureza; ter confessado (mesmo que em alguns factos parcialmente); ter sempre, e durante todo o processo, colaborado proactivamente com as autoridades; ter demonstrando forte e sincero arrependimento e consciência da ilicitude da sua atuação, ter 40 anos de idade (apenas a idade de 38 anos à data da prática dos factos), e ainda o facto de se encontrar social e laboralmente integrado, tudo conforme resulta do próprio Acórdão ora recorrido», pelo que deveria ainda beneficiar de atenuação especial da pena (artigo 72.º do CP). Para além disso, diz que a pena é «maior» e «mais penalizante» que a aplicada ao coarguido, que teve uma «atuação mais gravosa» e que «atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste (todas favoráveis ao arguido)» a pena deveria ser inferior a 5 anos de prisão e suspensa na sua execução.

33.2. O recorrente BB, centrando também o recurso nos crimes de roubo, alega, no essencial, que não foi devidamente ponderada a sua condição de toxicodependente, que deveria ser considerada a seu favor, por diminuir a culpa, que os crimes foram praticados num curto período de tempo sob «pressão do vício», que afetava a sua vontade, que não foram adequadamente ponderadas a gravidade dos factos, as suas consequências, a ilicitude e o grau de culpa, o tempo já decorrido, as suas condições familiares – apoio da ex-companheira e relação com a filha – o «valor diminuto» do objeto dos roubos e o baixo grau de violência utilizada. Alega ainda que foi atribuída «demasiada relevância» aos antecedentes criminais, apesar de as penas anteriores estarem «extintas» em momento anterior aos factos, que não foi considerada a sua colaboração na descoberta da verdade, que foi «desconsiderado» o seu «arrependimento sincero».

33.3. O recorrente CC alega, em síntese, que não foi considerado o facto de «se ter mostrado arrependido e pedido desculpa ao ofendido, em sede de audiência de julgamento, que nos leva concluir pela consciência do desvalor da sua conduta», que não ficou demonstrado que «do lado de fora da janela da farmácia, retirou da cintura uma faca, que empunhou na direção do ofendido, dizendo-lhe, enquanto a exibia, “foste fazer queixa na polícia que eu te roubei! Vou-te matar com esta faca” e “foge, foge, se não te matar hoje, mato-te qualquer dia!», que confessou os factos e que se «mostrou arrependido», que o tribunal não valorizou a sua «dependência de substâncias de estupefacientes», que já não ocorre, e que não agrediu o ofendido, o qual desistiu da queixa, o que justificaria a opção pela pena de multa quanto ao crime de ameaça.

33.4. Os arguidos AA e CC arguem ainda nulidade do acórdão por falta de fundamentação da decisão de determinação das penas (pontos 51 e 68 das conclusões respetivas), matéria de que se conhece em primeiro lugar por dela depender a apreciação das demais questões.

34. As nulidades arguidas resultariam, na alegação dos recorrentes, da não ponderação ou da ponderação insuficiente, indevida ou inadequada de circunstâncias relevantes nos termos do artigo 71.º do CP.

Como se tem afirmado em jurisprudência constante, esta nulidade há de resultar da ausência de fundamentação (artigo 374.º, n.º 2, do CPP), não da sua insuficiência ou erro de apreciação.

Ora, se é certo que a apreciação das circunstâncias descritas na matéria de facto provada relativas aos factos, aos agentes e às suas condições pessoais e familiares se mostra concisa, da matéria de facto extraem-se elementos suficientes que permitem fundar a decisão de aplicação da pena nos termos do artigo 71.º do CP, satisfazendo as exigências de fundamentação a que se refere o artigo 71.º, n.º 3, do CP e 375.º, n.º 1, do CPP, que dispõem sobre a exigência de fundamentação da medida da pena, permitindo, assim, aferir da sua adequação e proporcionalidade, que constituem o critério de decisão do recurso nesta matéria.

Na presença desta base factual se afastam as alegadas nulidades da decisão, que, nota-se, a considerarem-se existentes, sempre deverão ser supridas pelo tribunal de recurso (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).

35. Quanto à qualificação jurídica dos factos relativos ao crime de roubo, importa, desde logo, recordar que o recorrente AA foi condenado pela prática de um crime de roubo agravado – artigo 210.º, n.º 2, al. b), do CP, a que corresponde pena de 3 a 15 anos de prisão – e não, como afirma, por um crime de roubo p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do CP, a que que corresponde a pena de 1 a 8 anos de prisão. De notar que o recorrente não questiona a qualificação jurídica do facto, limitando-se a afirmar que o tribunal o condenou por roubo «simples» e não por roubo «agravado», o que determinaria uma moldura da pena consideravelmente inferior conformando uma substancial redução da pena aplicada.

Lê-se no acórdão recorrido:

«Dos crimes de roubo

O crime de roubo é um crime complexo que ofende, quer bens jurídicos patrimoniais (o direito de propriedade), quer bens jurídicos pessoais (a liberdade individual de decisão e ação e, em certos casos, até a própria liberdade de movimentos) e a integridade física.

Segundo o artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, a conduta típica deste crime consiste em subtrair coisa móvel alheia ou constranger à sua entrega, sendo que os próprios meios para a subtração ou para o constrangimento à sua entrega estão especificados no tipo legal: a violência contra uma pessoa, a ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física ou a colocação da vítima em impossibilidade de resistir.

Acrescente-se que, para que a violência se verifique, não é necessário que exista lesão ou contacto físico com o ofendido, o que importa é que a força física empregue pelo agente, tendo em vista o objetivo expropriativo, se revele de tal forma que se possa dizer que atingiu a liberdade de determinação do ofendido (neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de abril de 1999, in Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e comentado, 14ª edição, 2001, pág. 674).

O sujeito passivo neste tipo de ilícito é a pessoa que tem a guarda do bem, independentemente de ser o seu verdadeiro proprietário ou de apenas ser o seu detentor, podendo, em certos casos, alargar-se tal conceito à pessoa que ofereça resistência à subtração do bem, sendo certo que o objeto da violência ou do constrangimento pode ser terceiro e não o próprio detentor. Basta que tal ameaça atinja o detentor do bem, para que se considerem preenchidos os elementos essenciais do tipo.

Quanto ao elemento subjetivo, terá sempre de haver dolo, pelo menos eventual (artigo 14º, nº 3, do Código Penal).

Ora, no caso em análise, não subsistem dúvidas de que os arguidos AA e BB cometeram um crime de roubo contra a vítima EE e os arguidos CC e BB contra a vítima DD, sendo ambos os crimes agravados por terem sido utilizadas armas [artigos 210º, nº2, alínea b) e 204º, nº2, alínea f) do Código Penal], sendo que a “arma” a que se refere a norma não tem de ter correspondência com a qualificação a que se refere a Lei nº5/2006, de 23 de fevereiro (vide, a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.4.2011, processo nº.208/10.0PAAMD.L1-3: “Na caracterização de um objeto como arma cabe atentar nas suas características, na utilização ou afetação normal, na idoneidade dessa utilização ou afetação normal como meio de agressão”).

Pelo exposto, e não se tendo apurado qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, serão os arguidos condenados em conformidade.»

A pena deve, pois, compreender-se na moldura de 3 a 15 anos, improcedendo a alegação do recorrente (ponto 7 das conclusões).

36. Invocam os arguidos BB e CC, a seu favor, a circunstância de serem toxicodependentes e de esta circunstância revelar menor culpa, o que, em tese, poderia compreender-se na assunção de uma conceção tradicional de culpa, não refletida no Código Penal, manifestada na capacidade de «poder agir de outra maneira», mas já não numa perspetiva normativa da censurabilidade do facto revelador da personalidade do agente.

36.1. O Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, convocando jurisprudência deste tribunal, pronuncia-se sobre esta questão em termos que merecem total concordância, dizendo:

«B) Quanto à relevância da toxicodependência dos arguidos na escolha das penas a aplicar-lhes:

Verifica-se, dos factos provados, que todos os arguidos se mostram ligados ao consumo de estupefacientes. Assim:

-- O arguido AA é dependente de estupefacientes desde os 19 anos de idade, sobretudo de heroína, enfrentando períodos de consumo, intercalados com períodos de abstinência, sendo que e segundo o próprio, à data dos factos encontrava-se em fase ativa de consumos, nomeadamente de substâncias sintéticas. Há quatro anos deixou a toma de metadona, quase a terminar o respetivo programa de tratamento sob acompanhamento da Associação ...), não tendo recorrido novamente à instituição, evidenciando algumas dificuldades de descentração e de resolução dos problemas, constituindo a respetiva toxicodependência (do próprio e da mulher, da qual se encontra separado), durante vários anos, fator fortemente desestruturante do seu quotidiano e organização pessoal.

-- O arguido BB, por seu lado, dependia à data dos factos do apoio pontual de amigos e conhecidos, mantendo um quotidiano centrado no consumo de estupefacientes (nomeadamente heroína e drogas sintéticas), não estando agregado a nenhum programa de tratamento da toxicodependência. Ainda na adolescência, BB iniciou o percurso laboral como ajudante de ..., mas a ausência de hábitos de trabalho e o início do consumo de estupefacientes determinaram um estilo de vida pautado por longos períodos de inatividade, ocupando esse tempo no convívio com jovens conotados com práticas marginais, associados à problemática dos estupefacientes, o que contribuiu para a recaída ao nível da toxicodependência e para a degradação da sua situação pessoal. A nível aditivo, quando em meio livre, BB iniciou tratamento de desintoxicação com opiáceos de substituição – metadona, com acompanhamento da Associação ..., tratamento a que deu continuidade e concluiu já em meio prisional, durante o cumprimento da 2ª reclusão.

- Finalmente, o arguido CC reconhece que o consumo de novas substâncias psicoativas (vulgarmente conhecidas como sintéticas) aquando da separação e regresso à ilha de ..., acabaram por ser os responsáveis pela sua situação atual, com envolvências criminógenas e ligação a pares com iguais práticas, não se encontrando em contexto prisional integrado em nenhum programa terapêutico, muito embora tenha obtido resultado positivo num teste de despiste de estupefacientes.

Perante esta situação – infelizmente frequente – de na base da prática da factualidade dada como provada e consequente condenação pelos tipos de crime preenchidos, cumpre verificar se – como refere o arguido/recorrente BB (com argumentos que se adaptam aos seus coarguidos e que, a serem atendíveis, necessariamente àqueles deveriam ser estendidos) – deveria o Tribunal a quo entendido que «pelo menos enquanto esteve sob o seu efeito, o arguido viu diminuídas as suas capacidades de autodeterminação e de domínio da vontade».

Ora, para além de, para aqui chegar, necessário tivesse sido que essa matéria houvesse sida dada como provada, o que não sucedeu, certo é que o ser consumidor de estupefacientes não leva, sem mais – como parece pretenderem os recorrentes, mormente o referenciado BB - a qualquer redução «automática» da pena a aplicar, mesmo que os crimes tenham na sua base, por exemplo, a necessidade de obter proventos para satisfação do consumo.

É que a toxicodependência, conforme tem sido entendido por este STJ (embora admite-se, de forma não totalmente uniforme), não constitui circunstância atenuante, – vejam-se, por exemplo, os acórdãos de 04.05.1995, no processo 047406 (relator – Nunes Cruz), o de 05.03.1997, no processo 96P505 (relator – Lopes Rocha) [«O ser o agente um toxicodependente não constitui circunstância mitigadora de culpa. Não há nisso nada também que diminua consideravelmente a ilicitude mas, pelo contrário, há uma certa culpa na formação da personalidade, por quanto não se é toxicodependente de um momento para o outro, tendo de obedecer a um "iter", umas vezes mais rápido, outras vezes mais longo, de degradação da personalidade e o próprio consumo já é, de si, um crime.»], de 03.03.2010, no processo 242/08.0GHSTC.S1 [relator – Armindo Monteiro): «A toxicodependência como regra não funciona como atenuante, a menos que, comprovadamente, exclua o juízo de censura a dirigir ou o mitigue de forma comprovada e só em condições especiais operando.

O consumo de estupefacientes é punível e o toxicodependente disso tem consciência, como tem a consciência do seu carácter altamente criminógeno, pelo que a permanência ao longo do tempo no seu consumo não deixa de reputar-se deficiência do consumidor em conformar a sua personalidade ao direito.»].

Mesmo a entender-se como atenuante, tal como referido igualmente por este STJ no acórdão de 31.01.2024, no processo 79/20.9T9ALJ.G1.S1 (relator – Ernesto Vaz Pereira), não justifica a redução da pena, como pretendido pelos arguidos. Na verdade, como referido em tal aresto, «A toxicodependência, se bem que fator mitigante da culpa é também fator de maior perigosidade do arguido, na prática de ilícitos» e, agora como referido no acórdão de 15.12.2022 no processo1351/19.6PAPTM.E1.S1 (relatora – Teresa de Almeida), nestes casos são elevadas as necessidades de prevenção especial que se fazem sentir, sendo ainda que – e aqui como entendido em 20.10.2022 no processo 15/19.5MAPTM.E1.S1 (relatora – Leonor Furtado), «Os hábitos de consumo de estupefacientes são uma fonte de tendência para a prática de ilícitos, dados os custos associados e a adição resultante daquele hábito, pelo que, deve ser ponderado em termos de peso da punição, considerando a prognose sobre se os agentes recuperaram da sua dependência e se não voltam a persistir nesse tipo de consumos e, consequentemente a delinquir para satisfazer os seus hábitos.».

Veja-se, ainda, o acórdão do STJ de 23/03/2022 no anterior citado – o acórdão no processo 2412/16.9JAPRT.1.S1 (relatora – Ana Barata de Brito): “No que respeita ao problema da dependência de drogas, em que o arguido claramente persiste, o Supremo tem-se dividido quanto ao valor a atribuir à influência da toxicodependência na avaliação do comportamento do agente. Reconhece-lhe um efeito agravante, nalgumas decisões, por partir de “formas de vida que têm na sua origem uma opção voluntária e consciente” (assim, acordão STJ de 07.05.08). Atribui-lhe força atenuante, noutras decisões: “as regras da experiência permitem inferir que a toxicodependência pode ter contribuído, de algum modo, para criar no arguido uma predisposição para a prática de crimes” (assim, acórdão STJ de 12.07.2007; esta análise encontra-se desenvolvida por Lourenço Martins, em A Medida da Pena, p. 276-286).”.

Certo é que, no caso concreto destes autos, estamos perante arguidos com passado de toxicodependência, nalguns casos com tentativas de cessação dos consumos, tendo a situação de dependência e necessidade de obtenção de quantias monetárias com vista à aquisição dos produtos tido peso nas condutas criminosas que empreenderam, por isso devendo ser responsabilizados e não, como pretendido, desresponsabilizados, esperando-se que o tempo de reclusão a que foram condenados seja fator facilitador do completo afastamento daqueles consumos.

Razão alguma existindo, assim, para que se atenuem as penas aplicadas.»

36.2. De acordo com os factos provados, a situação de toxicodependência não afetou a capacidade de os arguidos agirem «de forma livre, voluntária e consciente» nas circunstâncias descritas, a capacidade de entenderem a ilicitude do facto e de agir segundo esse entendimento, com elevado grau de intenção criminosa traduzida em dolo direto – representando os factos que constituem os tipos de crime cometidos e atuando com intenção de os realizar (artigo 14.º, n.º 1, do CP) –, projetando nesses factos caraterísticas de personalidade censurável, reveladas pelas suas condições pessoais, tudo relevando negativamente para a fundamentação do juízo de culpa como pressuposto e limite da punição (artigo 40.º, n.º 2, do CP) e para a determinação da medida da pena por via da culpa (artigo 71.º, n.º 2, do CP).

Dos factos não resulta provado que a dependência do consumo de estupefacientes tenha levado a alterações graves de personalidade ou a que os arguidos tenham praticado os crimes agindo em estado de abstinência ou de grave perturbação que os tenham impulsionado, de forma não censurável, a conseguir drogas por meio dos crimes cometidos, casos em que haveria que, no limite, ponderar da necessidade de realização da perícia médico-legal a que se refere o artigo 52.º, com as finalidades aí previstas (reflexos do consumo na capacidade de avaliação da ilicitude dos atos praticados ou de determinação de acordo com essa avaliação) ou que, se fosse caso disso, valorar positivamente tais circunstâncias ao nível da atenuação da culpa.

Acresce que a alegada toxicodependência e as demais circunstâncias pessoais e familiares descritas nos factos provados, que conjuntamente com as circunstâncias destes se impõem na determinação da pena (artigo 40.º, n.º 1, e 71.º do CP), não permitem definir um quadro favorável à reintegração, antes revelando uma acentuação das necessidades de prevenção especial inscrita nas finalidades das penas.

Assim sendo, diferentemente do pretendido pelos arguidos, não merece censura a decisão recorrida ao não considerar favoravelmente esta circunstância na determinação da medida das penas.

37. Alega o arguido BB que as condenações anteriores foram erradamente valorados em seu desfavor, pois que, afirma, o acórdão recorrido lhe «atribuiu demasiada relevância (…), valorando negativamente o seu passado criminal, quer no doseamento da medida das penas parcelares, quer na fixação da pena única, pese embora as penas anteriormente aplicadas ao ora recorrente já se mostrarem extintas em momento anterior ao da prática dos factos pelos quais vem condenado nos presentes autos, concedendo-lhe um tratamento diferenciado em relação aos demais que não possuem antecedentes criminais, e assim violando os princípios basilares por que se pauta o nosso ordenamento jurídico».

Estão em causa os pontos 66 a 73 dos factos provados:

«66. Em outubro de 2006, o arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional de ..., vindo a ser condenado numa pena única de 6 anos e 6 meses de prisão. Veio a ser libertado aos 5/6 da pena, a 02/07/2012, com termo a 27/08/2013.

70. Em abril de 2014, o arguido voltou a cumprir pena de prisão, contexto em que beneficiou de liberdade condicional, em julho de 2016, com termo em setembro de 2017, e cujas obrigações o arguido cumpriu no essencial, revelando adesão ao acompanhamento da DGRSP.

73. Atualmente, não tem antecedentes criminais registados.»

37.1. A este propósito, diz o Senhor Procurador-Geral Adjunto:

«Sucede que isto não corresponde à realidade: Se é certo que aqueles antecedentes são referenciados, não se mostram usados para a escolha das penas parcelares, nem mesmo para a escolha da pena única. Antes se verifica que apenas quanto aos outros arguidos é feita menção de terem antecedentes criminais (a frase é «Não podemos ainda ignorar os antecedentes criminais dos arguidos AA e CC»), excluindo assim o recorrente BB dessa equação, não tendo aqueles antecedentes tido qualquer peso.

Assim, mesmo a entender-se que não deveriam, sequer, tais antecedentes sido mencionados, não há que alterar a decisão, por não terem servido para agravar as penas aplicadas (não se estando, assim, perante caso similar ao tratado pelo Tribunal da Relação de Évora, de 10.05.2016, no processo 216/14.2GBODM.E1 (Relatora – Ana Barata de Brito), ou seja, perante o que ali foi referido como se tratando de indevido aproveitamento judicial de informação), nem sequer se podendo aqui falar de «prova proibida» (veja-se o acórdão deste STJ de 14.07.2022, no processo 490/17.2GAPTL-A.S1 – Relator – António Gama).

(Pensamos, aliás, que poderá dever-se a lapso o que é invocado no recurso quanto a esta matéria, pois que naquele mesmo ponto é referido que os demais arguidos não terão antecedentes o que, como se viu, não corresponde à realidade).

Assim sendo, quanto a esta parte não deverá merecer procedência o recurso.

37.2. Como se considerou em acórdãos anteriores (acórdãos de 31.1.2024, Proc.º 10/21.4GBFAF.P1.S1A, e de 13.3.2024, Proc. n.º 26/19.0PJSNT.L1.S1, em www.dgsi.pt), a existência de condenações anteriores, que constituem uma circunstância atinente à conduta anterior ao facto [artigo 71.º, n.º 1, al. e), do CP] que pode servir para agravar a medida da pena, só deverá ser considerada se puder «ligar-se ao facto praticado e constituir índice de uma culpa mais grave e (ou) exigências acrescidas de prevenção»; se no registo criminal tiverem sido objeto de cancelamento não poderão ser valoradas, pois que, «apesar da falta de norma expressa nesse sentido, a finalidade socializadora do cancelamento e a lógica dos próprios mecanismos de proibição de acesso às inscrições conduzem a considerar que existe aqui uma autêntica proibição de prova (proibição de valoração de prova) que o juiz não pode infringir» (Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 3.ª reimp., 2011, p. 253).

As decisões que tenham aplicado pena de prisão ou medida de segurança cessam a sua vigência nos termos do artigo 11.º (sob a epígrafe «cancelamento definitivo»), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio (lei da identificação criminal).

Como nota o Senhor Procurador-Geral Adjunto, as condenações mencionadas nos n.ºs 66 e 70 dos factos provados não foram tidas em conta na determinação da pena, tendo o tribunal da condenação concluído que «Atualmente, não tem antecedentes criminais registados.»

Pelo que carece o recurso de fundamento quanto a esta questão.

38. Defende o arguido CC que, pelas razões expostas nos pontos 19 a 26 das conclusões, o tribunal deveria ter optado pela aplicação de uma pena de multa, não pela pena de 6 meses de prisão.

38.1. Dispõe o artigo 70.º («Critério de escolha da pena») do CP que «Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»

Unanimemente se tem sublinhado que na escolha da espécie de pena o tribunal se deve guiar apenas pelas necessidades de prevenção geral e especial que o caso impõe (cfr. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Católica Editora, 3.ª ed., anotação ao artigo 70.º, pp. 397-398, com abundante citação de doutrina), «não assumindo a culpa do agente qualquer papel», pelo que a pena de prisão «só poderá justificar-se por razões de prevenção especial, de socialização, estritamente ligadas à prevenção da reincidência ou na base de que a execução da prisão é imposta por exigências irrenunciáveis de socialização» (Figueiredo Dias, Consequências…, cit. p. 363).

Nota Maria João Antunes, a este propósito (Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, pp. 76ss), que a «afirmação de que são finalidades preventivas as que justificam e impõem a preferência por uma pena não privativa da liberdade não invalida que a finalidade preventiva primordial seja a de proteção dos bens jurídicos. A defesa da ordem jurídica e da paz social – o conteúdo mínimo da prevenção geral positiva – atua como limite às exigências de prevenção especial (…) Ainda que a escolha da pena não privativa da liberdade seja compatível com a reintegração do agente do agente na sociedade, o tribunal não dará preferência a tal pena se esta não realizar de forma adequada e suficiente a finalidade de proteção do bem jurídico violado com a prática do crime» [assim também Anabela M. Rodrigues, «A determinação da Medida Concreta da Pena Privativa da Liberdade e a Escolha da Pena», anotação ao acórdão do STJ de 21.3.1990 (no mesmo sentido), RPCC, 1991, p. 243]. Trata-se de um poder-dever do tribunal, que deve fundamentar a opção orientado por um critério de «conveniência ou da maior ou menor adequação da pena» a essa finalidade.

38.2. A opção pela pena de prisão vem fundamentada em razões preventivas, nos seguintes termos:

«Pese embora um dos crimes praticados pelo arguido AA (furto de uso) e um dos crimes praticados pelo arguido CC (ameaça agravada) admitam penas de multa, o Tribunal irá aplicar penas de prisão, atentas as elevadas necessidades de prevenção geral e especial (repare-se no certificado do registo criminal do arguido AA e na circunstância do arguido CC ter praticado o crime durante o período de suspensão de uma pena de prisão), persistindo assim a necessidade de prevenir o cometimento de mais crimes e de os fazer interiorizar o desvalor das suas condutas.»

38.3. O Senhor Procurador-Geral Adjunto discorda do recorrente, emitindo parecer pela manutenção da condenação em pena de prisão:

«Para além do que quanto a este aspeto foi referido no acórdão recorrido (…) e que sempre justificaria a escolha da pena de prisão, afastando-se a suficiência da de multa, limitamo-nos, quanto a este aspeto, a reproduzir o que foi recentemente (em 29.02.2024) referido no acórdão proferido neste STJ no âmbito do processo 122/20.1PAVPV.L1.S1 (Relator - Jorge dos Reis Bravo):

«Convocando aqui a fundamentação a este propósito aduzida no Acórdão do STJ de 04-02-2016, proferido no âmbito do Processo n.º 26/13.4GGIDN.S1, da 5.ª Secção, (onde estava em apreciação um caso de idênticos contornos), o juízo que importa fazer, sobre a preferência pela aplicação de uma pena de multa, em detrimento da pena privativa da liberdade, é completamente diferente quando, em função da prática de outro ou outros crimes, o arguido esteja inevitavelmente sujeito a uma condenação em pena de prisão. Nesta hipótese, como aqui sucede, a ponderação essencial a fazer prende-se com esta de saber se a punição de um dos crimes com pena de multa não redundará, antes, em pura e simples impunidade. Isto porque, convenhamos, ou a pena é tão leve, face ao património do arguido, que não implica para ele um sacrifício, e então não é pena, ou o condenado, em meio prisional, está impossibilitado de angariar fundos para pagar a multa, com as naturais consequências daí resultantes.

E, como ensinam Jescheck e Weigend, «A finalidade político-criminal da pena de multa, isto é, poupar o autor à aplicação de uma pena de prisão, faz com que, por regra geral, aquela não seja imposta junto com esta» (Tratado de Derecho Penal – Parte General, 5.ª ed. (trad. Miguel Olmedo Cardenete, Granada: Comares, 2003, p. 827).

Na mesma linha, e mais afirmativo ainda, ensina também Figueiredo Dias, «uma tal pena «mista» é, numa palavra, profundamente dessocializadora, além de contraditória com o sistema dos dias de multa: este quer colocar o condenado próximo do mínimo existencial adequado à sua situação económico-financeira e pessoal, retirando-lhe as possibilidades de consumo restantes, quando com a pena «mista» aquele já as perde na prisão! O desaparecimento da pena complementar de multa (e portanto da pena mista de prisão e multa) impõe-se, pois, numa futura revisão do CP, como forma de restituir à pena pecuniária o seu sentido político-criminal mais profundo e de aumentar a sua eficácia penal.» (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra: Coimbra Ed., 2005, p. 154).»

Acompanhando este entendimento, censura alguma entendemos dever ser efetuada quanto à escolha da pena de prisão aplicada aos arguidos AA (quanto ao crime de furto de uso de veículo) e CC (quanto ao crime de ameaça agravada).»

38.4. Considerando o que vem de se expor, que merece inteira concordância, não se encontra motivo que justifique a alteração do decidido. Com efeito, tendo em conta que ao recorrente deverá aplicar-se uma pena única, por o crime de ameaça se encontrar numa relação de concurso efetivo com o crime de roubo, a que corresponde uma pena de prisão, a aplicação de uma pena mista de prisão e de multa não se revelaria adequada à satisfação das exigências de prevenção que a aplicação da pena única visa realizar, na consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente (artigo 77.º do CP).

Pelo que, na improcedência do argumento do recorrente, se mantém o decidido quanto à aplicação da pena de prisão pela prática do crime de ameaça agravado.

39. Para além destes aspetos particulares, os recorrentes invocam a seu favor, quanto aos crimes de roubo, a ausência de condenações anteriores (recorrente AA e BB), a confissão, colaboração na descoberta da verdade e o arrependimento (todos os recorrentes), a inserção social e laboral (recorrente AA), o apoio e as relações familiares e os baixos valores dos objetos roubados (recorrente BB), o grau de violência utlizado, sem agressão física (recorrentes BB e CC), a ocupação na prisão e o abandono do consumo de estupefacientes (recorrente CC).

39.1. Embora a impugnação se dirija de forma mais direta aos crimes de roubo, que são os de maior gravidade, expressam os arguidos discordância geral quanto às penas parcelares aplicadas, que consideram excessivas.

Aos crimes de roubo em questão (artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CP) correspondem penas de prisão de 3 a 15 anos; ao crime de furto de uso de veículo (artigo 208.º, n.º 1, do CP), pena de prisão até 2 anos; ao crime de evasão (artigo 352.º, n.º 1, do CP), pena de prisão até 2 anos; e ao crime de ameaça agravada (artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do CP) pena de prisão até 2 anos, molduras a partir das quais se determinam as penas respetivas.

39.2. O Senhor Procurador-Geral Adjunto, em concordância com o Ministério Público no tribunal recorrido, é de parecer que as penas aplicadas devem ser mantidas, nos seguintes termos:

«Quanto às penas aplicadas aos arguidos e sua possível suspensão de execução:

Como atrás se referiu, é pedido comum a todos os arguidos o de verem reduzidas as penas parcelares e resultantes dos cúmulos jurídicos que lhes foram aplicadas.

Entendemos que, à exceção do caso do arguido AA (por via do que se referiu atrás quanto a dever ser absolvido da prática do crime de evasão pelo qual foi condenado) não deverá este STJ proceder a qualquer correção àquelas penas, desde logo porque a possibilidade desta correção em sede de recurso apenas tem justificação quando se verifica «o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis (…), [se] tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, página 197), o que não ocorreu.

Na verdade – e tal como referido pelo magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, – as penas aplicadas foram adequadas, justas e consentâneas, quer com as finalidades ínsitas à punição, quer com a medida da culpa e da consciência da ilicitude de cada um dos arguidos.»

39.3. Na exiguidade da fundamentação da decisão recorrida justificam-se as penas em termos dominantemente genéricos pelas «elevadas exigências de prevenção geral», pelo «elevado grau de ilicitude dos factos», «atenta a forma de atuação dos arguidos (nomeadamente a violência com que os três agiram, embora em situações distintas, sendo que o arguido BB recorreu sempre às armas para mostrar a sua superioridade em relação aos ofendidos), a sua duração e a natureza e o valor dos bens subtraídos», pela culpa «elevada», «atento o dolo direto», pelos antecedentes criminais dos arguidos AA e CC, referindo-se que «a favor dos arguidos nada abona», «nenhum deles demonstrou o mínimo arrependimento», os arguidos BB e AA «contam já com uma sanção disciplinar em meio prisional» e que não foi concedida relevância à confissão, por esta se referir a factos que já estavam provados.

39.4. Das circunstâncias relativas aos factos extrai-se que o roubo cometido no dia ........2022 (pontos 1 a 11 da matéria de facto) foi preparado de comum acordo pelos arguidos AA e BB, tendo, para o efeito, o arguido AA furtado, no dia anterior, o veículo automóvel utilizado (pontos 2 a 18); que a vítima foi introduzida nesse veículo pelo BB sob ameaça de uma faca apontada; que foi dentro do veículo que os arguidos, agindo conjuntamente, ambos munidos com facas apontadas à vítima, lhe retiraram 140 euros da carteira; que, ambos os arguidos, sempre agindo conjuntamente, exigiram mais dinheiro à vítima, com a ameaça de lhe cortarem «as bolas»; que, sob essa ameaça, se dirigiram para a caixa Multibanco, onde, sob ameaça, a vítima lhes entregou o cartão de acesso à conta para dela retirarem mais dinheiro, sendo que a vítima conseguiu fugir quando o arguido BB introduzia o cartão bancário no terminal.

Quanto ao crime de roubo no dia ........2023 (factos 19 a 32), também cometido pelo arguido BB, agora em coautoria com o arguido CC, extrai-se que estes agiram também sempre em conjunto, na abordagem e imobilização violenta da vítima, o BB agarrando-a pelas costas, o CC cortando-lhe, com um x-ato, uma bolsa de que retiraram a quantia de 300 euros, e empurrando de seguida a vítima para o chão antes de se porem em fuga, sendo que, cinco dias depois, ao avistar o ofendido, o arguido CC lhe desferiu um murro na face.

Não sendo as apropriações de valor «diminuto», pois que excedem, cada uma delas, o valor de uma unidade de conta (102 euros), há, pois, lugar à agravação do roubo (artigos 202.º, al. c), e 204.º, n.º 4, do CP). Aos valores dos roubos, embora não elevados, contrapõe-se, porém, uma atuação dos arguidos calculada, pensada, planeada e executada em períodos de tempo prolongados, durante os quais as vítimas foram violentamente privadas da liberdade e sujeitas a ameaças que lhes provocaram medo e receios pela sua vida e integridade física (em particular no caso do crime cometido com uso de facas), evidenciando uma intensa, persistente e determinada intenção criminosa materializada em condições de superioridade perante as vítimas isoladamente surpreendidas, reveladoras de personalidades particularmente desvaliosas e de manifesta falta de preparação dos arguidos para manterem condutas lícitas.

As condições pessoais, familiares e socioeconómicas de grande precariedade descritas nos factos provados, marcadas pela toxicodependência e por estilos de vida dependentes do tráfico (pontos 45 a 83), mostram-se objetivamente adversas à reintegração, o que eleva as necessidades de prevenção especial inscritas na finalidade das penas.

Os crimes praticados constituem condutas geradoras de elevado grau de alarme e insegurança, elevando as necessidades de prevenção geral, que, como se viu, se limitam pela culpa. Dos factos provados não se extraem elementos relativos ao comportamento posterior aos crimes, traduzidos, nomeadamente, em arrependimento relevante, excetuado o pedido de desculpa do arguido CC quanto ao crime de ameaça.

39.5. Pelo exposto, tendo em conta a gravidade dos crimes praticados revelada pelas circunstâncias militando a favor e contra os arguidos, nos termos do artigo 71.º do CP, em conformidade com o anteriormente exposto, bem como a moldura das penas correspondentes, não se identifica fundamento que justifique intervenção corretiva na decisão de individualização das penas, por violação dos critérios de adequação e proporcionalidade que presidem à sua determinação.

Termos em que, nesta parte, se conclui pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Quanto às penas únicas

40. Realizando o cúmulo jurídico das penas aplicadas aos crimes em concurso, o tribunal a quo aplicou aos arguidos penas únicas de 6 anos, 8 anos e 5 anos e 8 meses de prisão.

Fundamentou sinteticamente a decisão nos seguintes termos:

«Verificando-se um concurso real e efetivo de infrações, a punição deve realizar-se de acordo com o disposto no artigo 77.º do Código Penal.

Nos termos do n.º 2 da norma acima referida, a pena única deverá ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas a todos os crimes.

Dentro desta moldura, há também que atender aos factos e à personalidade dos agentes, apreciados conjuntamente (artigo 77.º, n.º 1, parte final do Código Penal), e realizando uma análise genérica e consequencial de toda a factualidade (nomeadamente a gravidade do ilícito global, atento o modo de execução dos crimes, o período temporal e os valores em causa), de modo a fazer corresponder a punição aos factos e às exigências pessoais e sociais que a sua prática suscitou, com o máximo rigor e acerto, demonstra-se adequada a fixação da pena única do arguido AA em 6 anos de prisão, do arguido BB em 8 anos de prisão e do arguido CC em 5 anos e 8 meses de prisão.»

41. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir de uma moldura definida, no seu mínimo, pela mais elevada das penas aplicadas aos crimes em concurso e, no seu máximo, pela soma das penas aplicadas a esses crimes, sem ultrapassar 25 anos de prisão (n.º 2 do artigo 77.º), para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção (artigos 40.º e 71.º, infra), são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (critério especial do n.º 1 do artigo 77.º, in fine). Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss; por todos, o acórdão de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1).

42. Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal, com a fixação da pena única, nos termos do artigo 77.º do CP, pretende-se sancionar o agente pelos factos considerados no seu conjunto, nas suas concretas circunstâncias, isto é, pelo «grande facto» revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento.

Há que atender ao «fio condutor» presente na «repetição criminosa», às relações entre os factos praticados reveladas pelas circunstâncias destes e pelas circunstâncias pessoais relativas ao agente que permitam identificar caraterísticas da personalidade com projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração, nomeadamente, a natureza destes e a identidade, semelhança e conexão entre os bens jurídicos violados, «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais» (assim, por todos, entre os mais recentes, o acórdão de 17.4.2024, Proc. 251/22.7PCRGR.L1.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada). Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 291).

43. Em síntese, a favor da sua pretensão convocam os arguidos as razões da impugnação das penas parcelares, que também não procedem quanto às penas conjuntas.

44. As molduras das penas únicas aplicáveis são de: 5 anos e 6 meses a 6 anos e 8 meses (arguido AA), de 6 anos e 4 meses a 12 anos e 10 meses (arguido BB) e de 5 anos e 6 meses a 6 anos (arguido CC).

O conjunto dos crimes em concurso é constituído, como se viu, por:

a. quanto ao arguido AA: três crimes, sendo um de roubo (em coautoria com o arguido BB), um de furto de uso e um de evasão, sendo o de furto cometido para praticar o de roubo e o de evasão cometido na sequência da detenção;

b. quanto ao arguido BB: três crimes, sendo dois de roubo, um cometido em coautoria com o arguido AA e outro em coautoria com o arguido CC, e um de evasão, cometido também na sequência da detenção;

c. quanto ao arguido CC: dois crimes, sendo um de roubo, cometido em coautoria com o arguido BB, e outro de ameaça agravado.

Os crimes foram, todos eles, cometidos num curto período de tempo.

Como já se referiu a propósito das penas parcelares, agora por referência aos factos no seu conjunto, e à personalidade dos arguidos revelada na prática desses factos, é elevado o grau de culpa, evidenciado pelo dolo direto e intenso e pelas circunstâncias da ilicitude, tendo em conta, em particular, a forma de execução dos crimes e a conjugação de esforços nos crimes cometidos em coautoria.

Estas circunstâncias, como se referiu, são reveladoras de caraterísticas de personalidade desvaliosas em que, apesar de não se poder concluir que não resultaram de mera ocasionalidade, radica a prática dos crimes, a evidenciarem manifesta falta de preparação para manterem uma conduta lícita.

São elevadas as exigências de prevenção geral, resultantes do receio e da insegurança gerada pela frequência de crimes desta natureza, a considerar nos limites impostos pela medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do CP).

45. Assim, tendo em conta as molduras das penas aplicáveis aos crimes em concurso, na consideração, em conjunto, da gravidade dos factos e da personalidade dos arguidos (artigos 71 e 77.º, n.º 1, do CP), não se surpreende motivo de justificação da alteração das penas fixadas, as quais se diferenciam e adequam à participação de cada um dos arguidos e não se mostram determinadas em violação do critério de proporcionalidade que lhes deve presidir, em vista da realização das suas finalidades de proteção dos bens jurídicos e de integração (artigo 40.º, n.º 1, do CP).

Improcede, pois, também, o recurso nesta parte.

46. Sendo as penas superiores a 5 anos de prisão, não há que apreciar a possibilidade de suspensão de execução da pena – pretendida pelos arguidos AA e CC – por a tal se opor o artigo 50.º do Código Penal, que apenas admite a suspensão quanto a penas não superiores a 5 anos.

47. Pelas razões anteriormente expostas, não se justifica a atenuação extraordinária da pena, nos termos do artigo 72.º do Código Penal, pretendida pelo arguido AA.

Nos termos deste preceito, a atenuação extraordinária da pena depende da existência de «circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena», devendo ser consideradas, entre outras, as seguintes: «ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência», «ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida», «ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados» e «ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta».

Como se extrai dos factos provados, nenhuma delas se verifica.

Quanto a custas

48. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

49. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos AA, BB e CC, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC, a pagar por cada um deles.

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de setembro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (Relator)

Antero Luís (Adjunto)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

_______


1. Com a Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, veio ainda a ser aditada a prática da ameaça ou da coação pela prevista na al. f) do n.º 2 do art. 132.º, ou seja, por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima.

2. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 667, comentário n.º 2.

3. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal anotado e comentado, Quid Juris, 2008, pág. 416, anotação 3.

4. Jorge de Figueiredo Dias, apud João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, 2.ª edição, Almedina, pág. 533.

5. Salvo os casos excecionais dos crimes de coação sexual, de violação, de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, de fraude sexual, de procriação sexual não consentida e de importunação sexual que não sejam praticados contra menor ou dos mesmos não resultar suicídio ou morte da vítima, em relação aos quais, para proteção da intimidade da vítima, se optou pela natureza semipública do crime e mesmo assim sem prejuízo de o Ministério Público, nos crimes de coação sexual e de violação, poder dar início ao processo no prazo de um ano a contar da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe (v. o art. 178.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal).

6. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de novembro de 2014, processo 348/12.1PBVIS.C1, relatado pelo desembargador Belmiro Andrade, anteriormente referenciado.

7. Curso de Processo Penal, I, Editorial Verbo, 1993, pág. 186.

8. Duarte Rodrigues Nunes, Curso de Direito Processual Penal, 1, UCP Editora, 2023, pág. 285.

9. Confira-se Acta n.º 35, página 409, com referência ao artigo 351.º do Código Penal.

10. “Código de Processo Penal Anotado – Legislação Complementar”, 16.ª edição – 2007, Almedina.

11. Entendimento sustentado por Cristina Líbano Monteiro, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, 2001, Tomo III, Coimbra Editora, anotação 13.ª ao artigo 349.º, página 365.

12. Assim Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 2.ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, anotação 6.ª ao artigo 349.º, página 916; M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, obra e local antes citados.

13. De conferir, por todas, as decisões do TEDH de 28.07.2016, Processo C-294/16, 4.ª Secção, e de 23.02.2017, no caso Tommoso c. Itália, Recurso 43395/09.

14. Parecendo ser no mesmo sentido o acórdão da Relação de Guimarães de 16-1-2012, sumariado na CJ, 2012, I-309.

15. Cristina Líbano Monteiro, em "Comentário Conimbricense do Código Penal", 1999, tomo III, pág. 395, em anotação ao art.º 352.º.

16. Que é, afinal, a situação de facto de que parte o acórdão da Relação do Porto de 16-03-2011, referido acima no texto, embora isso não resulte do sumário respectivo.

17. Tradução do relator. No original: «103. the Court insists in its case-law on an autonomous interpretation of the notion of deprivation of liberty. A systematic reading of the Convention shows that mere restrictions on the liberty of movement are not covered by Article 5 but fall under Article 2 § 1 of Protocol No. 4. However, the distinction between the restriction of movement and the deprivation of liberty is merely one of degree or intensity, and not one of nature or substance. In order to determine whether someone has been “deprived of his liberty” within the meaning of Article 5, the starting point must be the concrete situation and account must be taken of a whole range of criteria such as the type, duration, effects and manner of implementation of the measure in question (see Guzzardi v. Italy, 6 November 1980, §§ 92-93, Series A no. 39). 104. According to the Court’s case-law (see, among many others, Mancini v. Italy, no. 44955/98, §17, ECHR 2001‑IX; Lavents v. Latvia, no. 58442/00, §§ 64-66, 28 November 2002; Nikolova v. Bulgaria (no. 2), no. 40896/98, § 60, 30 September 2004; Ninescu v. the Republic of Moldova, no. 47306/07, § 53, 15 July 2014; and Delijorgji v. Albania, no. 6858/11, § 75, 28 April 2015), house arrest is considered, in view of its degree and intensity, to amount to deprivation of liberty within the meaning of Article 5 of the Convention.»