Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | AMÉLIA ALVES RIBEIRO | ||
Descritores: | CASA DE MORADA DE FAMÍLIA PEDIDO UNIÃO DE FACTO DIREITO AO ARRENDAMENTO ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PROPRIETÁRIO | ||
Data do Acordão: | 11/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVISTA IMPROCEDENTE | ||
Sumário : | Não havendo pedido de constituição judicial de arrendamento, não se pode dar por preenchida a exigência que permite lançar mão do artigo 1793.º do CC e atribuir gratuitamente a casa de morada de família ao requerido não proprietário. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo tribunal de Justiça Recorrente: AA Recorrido: BB Processo: 4184/21.6T8AVR.P1 6ª secção I.1. Relatório Pretensão: atribuição à recorrente da casa de morada de família, sita na rua ..., em ..., inscrita na matriz sob o artigo ...50 da União de freguesia da ... e ... e descrito sob a ficha ...83/19860402-D, da Conservatória do Registo Predial de ..., com a consequente condenação do recorrido a entregar-lhe o mesmo imóvel completamente livre de pessoas e bens. Alega, em síntese, que viveu em união de facto com o requerido até dezembro de 2020. Fruto dessa união nasceu uma filha e na regulação do exercício das responsabilidades parentais a filha fixou a residência consigo. A requerente saiu de casa com a filha em dezembro de 2020, sendo esta casa sua e teve que arrendar uma casa, não tendo nenhuma outra casa da sua propriedade enquanto o requerido tem vários apartamentos em .... O requerido deduziu oposição referindo em síntese que foi a requerente que saiu da casa de morada de família e a fração autónoma nº 93, 1º esq., em ..., não pertence a requerente pois foi o requerido que com o seu dinheiro pagou a compra dessa casa. A requerente reside na casa dos pais, a qual é ampla e tem boas condições para acolher a requerente e a filha. A sentença concluiu assim: “Face ao exposto, decide-se julgar procedente o pedido formulado pela requerente e: a. declarar a dissolução da união de facto entre a requerente AA e o requerido BB, em Dezembro de 2020; b. atribuir a requerente a casa de morada de família, sita na rua ..., em ..., inscrita na matriz sob o artigo ...50 da União de freguesia da ... e ... e descrito sob a ficha ...83/19860402-D, da Conservatória do Registo Predial de...; c. o requerido deve entregar a casa de morada de família a requerente livre de pessoas e bens (…)”. O recorrido apelou, sendo que as conclusões da apelação se circunscreveram à questão da atribuição da casa de morada de família, tendo concluído pela revogação da sentença proferida pelo tribunal a quo, julgando-se improcedente o pedido de atribuição da casa de morada de família à requerente. A ora recorrente contra-alegou. Foi proferido acórdão que revogou a sentença recorrida e absolveu o requerido do pedido [leia-se no que toca à casa de morada de família1]. Desta decisão a requerente interpôs recurso de revista, formulando as seguintes conclusões: A) O presente recurso recai sobre a Acórdão do Tribunal da Relação do Porto notificado no dia 30/10/2023, que julgou procedente as alegações de recurso do aqui Recorrido, revogando a Sentença proferida em primeira instância, absolvendo assim o Requerido do pedido, em suma, por não estarem preenchidos os requisitos de atribuição da casa morada de família à Requerente, aqui Recorrente. B) Ao decidir nos termos em que decidiu, e da forma como decidiu, andou manifestamente mal o Tribunal a quo e com tal decisão não se conforma a Recorrente, por entender existir uma errada aplicação da lei, designadamente quanto ao preenchimento dos requisitos para a atribuição da casa morada de família ao aqui Recorrido em detrimento da atribuição da casa morada de família (de que é proprietária) à aqui Recorrente e filha de ambos, pelo que vem submetê-la à reapreciação do Supremo Tribunal de Justiça. C) Entendeu o Tribunal a quo que a Requerente, ora Recorrente, não reúne os requisitos para a atribuição da casa morada de família porquanto: “(…) a requerente tem boa capacidade económica decorrente da sua actividade profissional e do montante da sua conta bancaria. É desconhecida a capacidade económica do apelante. A casa de morada de família está registada em nome da requerente conferindo presunção de propriedade, mas é contestada a sua propriedade, sendo certo que a apelada não intentou ação de reivindicação, pedindo a sua restituição ao requerido/apelante. Invoca a requerente que o apelante tem um apartamento, mas este apartamento está arrendado, não sendo opção por não estar disponível. Decorre dos autos que se encontra pendente ação tendente a pedir a guarda partilhada da menor, e podemos dizer ainda que o pai tem de receber a menor nas férias, fins de semana, etc, pelo que igualmente é do interesse do pai ter instalações a acolher, sendo igualmente do interesse da menor a casa de morada de família com o pai. A apelada reside em casa dos pais, com muito espaço, não tendo ficado demonstrado nos autos qualquer incompatibilidade na família ou qualquer desconforto provocado na menor. Segundo as regras da experiência os menores gostam do convívio com os avós.” (negritos e sublinhados nossos). D) Na aferição/ponderação dos critérios materiais de decisão de atribuição da casa de morada de família inexiste, propriamente, uma hierarquia dos fatores ponderáveis, nos termos do n.º. 1, do artigo 1793º, do Cód. Civil, devendo a casa ser atribuída ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela. E) Analisemos, pois, cada um dos requisitos normativos à luz da interpretação e aplicação que o Tribunal a quo fez do artigo 1793.ºdo CC, ao caso concreto dos autos: I - Em primeiro lugar, quanto ao requisito da capacidade económica, segundo o Acórdão do STJ de 17/12/2019, proferido no processo n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1 (disponível em www.dgsi.pt): a diferença da premência da necessidade da casa de morada de família não se afere, somente, pela diferença, qualquer que seja o valor, dos rendimentos das partes. (negritos e sublinhados nossos). Assim como, decorre dos factos provados (facto n.º 22) que o Requerido, aqui Recorrido, transferiu da sua conta para a conta da Requerente, ora Recorrente, a quantia de € 130.000,00, pelo que significa que o Recorrido tinha em saldo disponível na sua conta bancária, pelo menos, esse montante. Constando igualmente da matéria de facto provada (facto n.º 11) que o Recorrido “vive dos proveitos obtidos com as rendas dos imóveis de que é proprietário”, logo, não podia o Tribunal a quo concluir como concluiu que a capacidade económica do apelante é desconhecida (pois que dos autos constam elementos de prova e factos provados que permitem aferir que a capacidade económica do Recorrido não é assim tão desconhecida). A Decisão do Tribunal a quo está ferida de um erro de interpretação e aplicação dos requisitos normativos do artigo 1793.º do CC, porquanto, no limite, salvo devido respeito, temos de concluir que a Requerente, ora Recorrente, e o Requerido, ora Recorrido, têm uma situação ou capacidade económica semelhante, sendo assim necessário chamar à colação outros requisitos para a atribuição da casa morada de família à aqui Recorrente, designadamente aos interesses da filha menor de ambos que se encontra à guarda da Recorrente, à propriedade do imóvel em causa ser exclusiva da Recorrente (e esta ter sido obrigada a abandonar da sua própria casa porque o Recorrido se recusou, e continua a recusar sair), e ainda pelo facto de a Recorrente não ter outro sítio para viver com a filha menor de ambos, a não ser em casa dos pais dela, por mera tolerância destes. II - A Requerente, ora Recorrente, até ao presente momento, é legitima proprietária da casa morada de família na qual o aqui Recorrido tem vindo a residir, sem que tenha chegado ao conhecimento do presente processo de qualquer ação de anulação da escritura de compra e venda, aliás, não há prova, nem consta dos factos provados nos presentes autos qualquer “contestação da propriedade” sobre o imóvel da aqui Recorrente. Também não consta dos presentes autos (da matéria de facto provada) que o apartamento de que o aqui Recorrido é proprietário (facto provado n.º 7) se encontra impossibilitado de ser por ele ocupado. O que significa, a contrário, da matéria de facto dada como assente que o Recorrido tem à sua disposição um imóvel no mesmo prédio e com as mesmas características e condições que o imóvel que ocupa e que é propriedade da Recorrente. O Tribunal a quo incorre em erro de interpretação e aplicação dos requisitos normativos do artigo 1793.º do CC, no sentido da atribuição da casa morada de família se mantenha para o aqui Recorrido, pois que, sendo a aqui Recorrente proprietária do imóvel em causa tem o direito a que lhe seja atribuída a casa morada de família “com base nos poderes de proprietário”. - cfr. anotação ao Código Civil (Volume II), ANA PRATA (Coord.), 2.ª Ed., Almedina, 2019, pág. 712.. Mais a mais, entendemos que o Tribunal a quo incorre, também, em erro de aplicação dos requisitos da norma da atribuição da casa morada de família - ao não atribuir à aqui Recorrente – porque em causa estão dois direitos de proteção constitucional que se complementam e que a Decisão do Tribunal a quo violou: o direito à propriedade privada da Recorrente sobre o imóvel em causa (e cujo uso a Recorrente se vê ilegitimamente expropriada), previsto no artigo 62.º da CRP e o direito à proteção do interesse da família, igualmente objeto de proteção constitucional no artigo 67.º da CRP. Nas palavras de LEITE DE CAMPOS, D.: Lições de Direito da Família e das Sucessões, cit., p. 307: “Trata-se de um caso de expropriação forçada, do uso da casa, que se deve considerar inconstitucional.” III - A filha menor de ambos ficou à guarda da Requerente, aqui Recorrente, e apesar do Requerido, ora Recorrido ter apresentado em juízo uma ação para alteração da regulação das responsabilidades parentais, propondo a residência alternada, em tal processo ainda não foi proferida Sentença. O regime das responsabilidades parentais fixado e atualmente em vigor determina que a filha menor de ambos se encontra à guarda da Requerente, ora Recorrente, e o Requerido, ora Recorrido tem direito de visitas. E a necessidade de habitação deverá ser atual e concreta (e não eventual e futura) a apurar segundo regime de regulação das responsabilidades parentais em vigor – a filha menor residir com a mãe, aqui Recorrente. Por fim, ainda que venha a ter procedência a ação de alteração da regulação das responsabilidades parentais, a menor passará ter dois progenitores guardiões havendo, também, “necessidade de ter instalações para a acolher” a filha menor de ambos, designadamente na casa de que a Requerente, aqui Recorrente, é proprietária e está impedida de a usar porque o Requerido, ora Recorrido, se recusa a sair da casa morada (onde a família viveu) apesar do mesmo ter outra habitação para residir que é da sua propriedade. Motivo pelo qual, o Tribunal a quo incorre em erro de interpretação e aplicação dos requisitos normativos do artigo 1793.º do CC, no sentido da atribuição da casa morada de família se mantenha para o aqui Recorrido, devendo manter-se a decisão da primeira instância. IV - A Requerente, ora Recorrente, foi obrigada a pedir guarida (para si e para a filha menor) aos seus pais, pois, não dispõe de outra habitação ou disponibilidade financeira para arrendar outro imóvel para ir viver com a filha menor de ambos. A Decisão do Tribunal a quo não só viola o direito da Requerente, aqui Recorrente, de dispor do bem que é da sua propriedade nas condições que entender, mas também obriga a proprietária, in casu, a aqui Recorrente, ter de aceitar que esse imóvel da sua propriedade seja ocupado por uma pessoa com quem já não tem uma relação familiar, porque a que tinha se dissolveu. A isto acresce que a Recorrente, não tem de continuar a viver da “tolerância” dos seus pais, porquanto, a atribuição da casa de morada de família a ex-cônjuge, quando os filhos não fiquem a residir na casa, é, em nossa opinião, uma restrição ao direito de propriedade que não nos parece constitucionalmente justificada por outros “direitos ou interesses legalmente protegidos”, conforme supra alegado. Não é possível, por inexistentes, estruturar operadores de concretização que nos conduzam a uma densificação do artigo 67.º da CRP como abrangendo o ex-cônjuge no conceito normativo de família, logo, por verificação dos requisitos de atribuição da casa morada de família previstos no artigo 1793.º do CC, dúvidas não restam que ainda que a Requerente, ora Recorrida, necessitasse da casa por igualdade de premência em relação ao aqui Recorrido, haverá que dar relevância ao critério da condição de proprietária da casa morada de família. Nestes termos, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências tão doutamente suprirão, deve o presente recurso de revista ser recebido e julgado procedente, porquanto, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto incorreu em erro de interpretação e aplicação dos requisitos normativos do artigo 1793.º do CC, por se mostram preenchidos os requisitos necessários e suficientes para que a casa de morada de família de que a Requerente, ora Recorrente, é proprietária seja atribuída a esta, revogando-se a decisão do Tribunal da Relação do Porto, substituindo-se por outra que confirme, nos seus exatos termos, a decisão proferida pela 1.ª Instância. I.2. A título prévio Estamos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária. Como é sabido, nestes casos, o artigo 988º CPC veda a este Tribunal o conhecimento da matéria sobre as circunstâncias concretas que levaram ao preenchimento do critério legal: por um lado, acerca da capacidade e, por outro, sobre a premência da necessidade da casa pelos progenitores, enfim, acerca dos interesses da menor (para que remete o artigo 1105º/2 CC). Detalhando, Das especificidades deste tipo de processos, caraterizadas pela ampla margem conferida ao tribunal na investigação livre dos factos, recolha de provas, iniciativa na determinação de inquéritos e obtenção de informações convenientes (artigo 986.º, n.º 2, do CPC), salienta-se que nas resoluções neles proferidas, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita (artigo 987.º, do CPC) e podem ocorrer alterações se a alteração das concretas circunstâncias sofrerem mudança(s) que as justifiquem (artigo 988.º, n.º 1, do CPC). A esta caraterística de flexibilidade e de abertura, no início do processo, correspondem maiores limites do que acontece em geral na fase do recurso para o STJ, maxime quanto aos limites dos poderes cognitivos deste Tribunal, sendo inadmissível recurso de revista das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade (artigo 988.º, n.º 2, do CPC). Neste sentido decidiu o STJ, ao referir que: “sendo as providências de jurisdição voluntária tomadas com a predominância de critérios de conveniência ou oportunidade sobre os critérios de estrita legalidade, delas não caberá também, em princípio, recurso de revista. Com efeito, na esfera da tutela de jurisdição voluntária, em que se protegem interesses de raiz privada mas, além disso, com relevo social e alcance de interesse público, são, por isso, conferidos ao tribunal poderes amplos de investigação de factos e de provas (art.º 986.º, n.º 2, do CPC), bem como maior latitude na determinação da medida adequada ao caso (artigo 987.º do CPC), em derrogação das barreiras limitativas do ónus alegatório e da vinculação temática ao efeito jurídico especificamente formulado, estabelecidas no âmbito dos processos de natureza contenciosa nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º (quanto ao pedido e causa de pedir) e 609.º, n.º 1, do CPC. É, pois, tal predomínio de oficiosidade do juiz sobre a atividade dispositiva das partes, norteado por critérios de conveniência e oportunidade em função das especificidades de cada caso, sobrepondo-se aos critérios de legalidade estrita, que justifica a supressão de recurso para o tribunal de revista, vocacionado como é, essencialmente, para a sindicância da violação da lei substantiva ou processual, nos termos do artigo 674.º e 682.º, n.º 3, do CPC. Foi nesse sentido que, no acórdão do STJ, de 20/01/2010, proferido no processo n.º 701/06.0TBETR.P1.S1[1], se observou o seguinte: «Explica-se desta forma que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal especialmente encarregado de controlar a aplicação da lei, substantiva (…) ou adjectiva (…), não possa, nos recursos interpostos em processos de jurisdição voluntária, apreciar medidas tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, ao abrigo do disposto no artigo 1410.º [atual 987.º] do CPC. Com efeito, a escolha das soluções mais convenientes está intimamente ligada à apreciação da situação de facto em que os interessados se encontram; não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de controlar a decisão sobre tal situação (…), a lei restringe a admissibilidade de recurso até à Relação.»” E, acrescenta-se ainda para aferir da admissibilidade da revista nestes casos que “na linha da jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal, haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata de resolução”2. Daí que o conhecimento desta matéria circunstancial fique subtraído do conhecimento no âmbito da revista. Portanto, toda a matéria respeitante à ponderação concreta da capacidade económica e das necessidades da requerente e do requerido tem de ficar de fora do conhecimento deste tribunal, por a tanto obrigar o regime específico dos recursos nesta categoria de processos. Assim, os poderes cognitivos do STJ circunscrevem-se à matéria que extravasa a densificação dos critérios de oportunidade e conveniência, isto é, limitam-se aos critérios de legalidade estrita (abstratos) aqui mobilizados pela recorrente ao alegar que a interpretação da Relação violou os critérios normativos quando aplicou o artigo 1793.º, n.º 1 do CC. Com relevo neste âmbito recorta-se das conclusões do recurso: “(…) sendo a aqui Recorrente proprietária do imóvel em causa tem o direito a que lhe seja atribuída a casa morada de família “com base nos poderes de proprietário”. - cfr. anotação ao Código Civil (Volume II), ANA PRATA (Coord.), 2.ª Ed., Almedina, 2019, pág. 712.. (…) em causa estão dois direitos de proteção constitucional que se complementam e que a Decisão do Tribunal a quo violou: o direito à propriedade privada da Recorrente sobre o imóvel em causa (e cujo uso a Recorrente se vê ilegitimamente expropriada), previsto no artigo 62.º da CRP e o direito à proteção do interesse da família, igualmente objeto de proteção constitucional no artigo 67.º da CRP.”. “ (…). Não é possível, por inexistentes, estruturar operadores de concretização que nos conduzam a uma densificação do artigo 67.º da CRP como abrangendo o ex-cônjuge no conceito normativo de família, logo, por verificação dos requisitos de atribuição da casa morada de família previstos no artigo 1793.º do CC, dúvidas não restam que ainda que a Requerente, ora Recorrida, necessitasse da casa por igualdade de premência em relação ao aqui Recorrido, haverá que dar relevância ao critério da condição de proprietária da casa morada de família”. Portanto, será dentro desta baliza que o STJ se poderá pronunciar. I.3. Questão a resolver Sabido que é nas conclusões de recurso que hão-de ser pesquisadas as questões a resolver (artigos 635º/1 e 639º/4, CPC), tendo em conta o que se deixou clarificado quanto aos poderes cognitivos deste Supremo Tribunal, cumpre clarificar se, no presente caso, “os poderes de proprietária” da recorrente são passíveis e motivar a revogação do acórdão recorrido, mediante a atribuição à requerente da casa de morada de família. II. Fundamentação II.1. Foram considerados provados os seguintes factos: 1-A requerente e o requerido viveram em condições análogas às dos cônjuges desde Dezembro de 2011 a Dezembro de 2020. 2-Dessa união nasceu em 19 de Outubro de 2015 CC 3-No processo nº 1028/21.2... que correu termos no Juiz ..., do Juízo de Família e Menores de ..., foi homologado por sentença de 20 de Abril de 2021 o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais dos progenitores que determinou que a residência da filha CC era com a mãe. 4-No dia quinze de Junho de dois mil e dezoito, no cartório notarial a cargo da notária DD, por escritura pública, foi celebrado o seguinte contrato de compra e venda: PRIMEIROS OUTORGANTES/VENDEDORES -EE e mulher FF Ruivo (..) SEGUNDA OUTORGANTE/COMPRADORA AA, divorciada (..) TERCEIRO OUTORGANTE/COMPRADOR BB, solteiro (..) Pelos primeiros outorgantes foi dito: - Que são donos e legítimos possuidores das seguintes: UM-fração autónoma designada pela letra D-primeiro andar esquerdo, destinado a habitação e terraço, com o valor patrimonial de IMT de € 103.300,00; DOIS-fração autónoma designada pela letra H-segundo andar esquerdo e dependência no sótão para arrumos (.) Ambas do prédio urbano submetido ao regime da propriedade horizontal sito na Rua ... (..) freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...50, (..) descrito na Conservatória do Registo Predial de... sob o número ... e oitenta e três (..) Que pela presente escritura vendem: À segunda outorgante AA, Livre de ónus ou encargos e pelo preço de cento e quarenta mil euros, que já receberam, a fração indicada em UM; Ao terceiro outorgante BB, livre de ónus e encargos e pelo preço de cento e vinte e oito mil e quinhentos euros, que já receberam, a fração indicada em Dois. (..) Declara a segunda Outorgante Que, aceita a referida venda nos termos exarados, e que a fração ora adquirida se destina à sua habitação própria e permanente. Declara o terceiro outorgante: Que aceita a referida venda, nos termos exarados (sublinhado da signatária). 5-Consta ainda da escritura “Que o preço referente à fração indicada em Dois foi pago da seguinte forma: doze mil oitocentos e cinquenta euros por transferência bancária em 07/05/2018 da conta do Novo Banco, S.A com o IBAN PT 50 ...97 e cento e quinze mil seiscentos e cinquenta euros por meio de cheque número ...03 do Novo Banco, S.A. datado de 14/06/2018.” 6-A requerente e o requerido viveram em condições análogas as dos cônjuges no primeiro andar esquerdo, no número 93, na rua ..., que se encontra registado na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...83/19860402-D, em nome da requerente AA, por compra. 7. A fração H, que corresponde ao segundo esquerdo no número 93, na rua ..., encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...83/19860402-H, em nome do requerido BB, por compra. 8. A requerente e o requerido apenas conversam sobre questões relacionadas com a filha menor em comum. 9. A requerente tem 49 anos de idade e tem exercido a atividade de formadora de serviço que presta as empresas de modo regular, com alguma instabilidade durante a pandemia da doença SARS-COV-2. 10. No ano de 2020 na declaração de IRS da requerente consta que obteve o rendimento global de € 7.620,00. 11. O requerido tem 39 anos de idade e vive dos proveitos obtidos com as rendas dos imóveis que é proprietário. 12. A requerente e o requerido têm por objectivo que a sua filha desenvolva o seu crescimento com estabilidade e tranquilidade. 13. A requerente saiu da casa onde morava com o requerido em Dezembro de 2020, na rua ..., em .... 14. A requerente encontra-se a viver com a filha na casa dos pais que é grande e tem várias divisões. 15-A requerente é sócia gerente de uma sociedade de formação e consultoria de empresa denominada “S..., Lda.”. 16. No ano de 2019 a empresa “S..., Lda.” teve o total de rendimentos de € 34.651,07. 17. No ano de 2020 a empresa “S..., Lda.” teve o total de rendimentos de € 48.863,40. 18. A requerente recebeu em Maio de 2021, o salário de € 1.411,37 e em Fevereiro de 2022 € 1087,50. 19. Na Segurança Social consta declarado o ordenado da requerente no valor de € 1.200,00 em Abril, Maio e Junho, e € 850,00 a partir de Julho de 2021. 20-A requerente em 7 de Fevereiro de 2019 na conta de que era titular no Novo Banco tinha um saldo de € 109,402,39. 21. Na caderneta predial urbana, do serviço de finanças de ..., consta um terreno para construção, com o artigo matricial ...89, sito na Rua ...,..., em nome de AA. 22. No dia 13 de Junho de 2018 o requerido transferiu da sua conta no Novo Banco para a requerente a quantia de € 130.000,00. 23. O requerido não consta na Segurança Social, com registo de contribuições. Factos não provados: 1-Quando a autora saiu da casa de morada de família e perante a recusa do réu em desocupar o imóvel teve de outorgar um contrato de arrendamento de outro imóvel para poder habitar com a sua filha, cujo contrato cessará no final do mês de Dezembro de 2021. 2-Os rendimentos prediais do réu atingem um valor anual entre os € 30.000,00 e os € 35.000,00 ao que acrescerá o montante de € 6.000,00 anuais, rendimento correlacionado com os proveitos de uma herança indivisa da qual o réu será herdeiro interessado. 3- O sinal para a compra do apartamento (letra D) foi pago através de duas transferências da conta bancária do requerido: 4-Os pais da requerente têm os seguintes bens imóveis disponíveis: - apartamento T3 (sala, cozinha e 3 quartos) correspondente ao rés-do-chão, na rua ..., na cidade de ...; - apartamento T4 (sala, cozinha e 4 quartos) localizado na rua ..., na cidade de .... - apartamento T3 localizado no 3º esquerdo do prédio localizado na Urbanização ..., na cidade de .... 5. A empresa denominada “S..., Lda.” factura larga dezenas de milhares de euros anualmente. 6. A pandemia não afectou a sua área de negócio. 7. A requerente é proprietária de um lote de terreno para construção urbana localizado na rua ..., ..., ..., em ..., com o valor patrimonial de € 68.327,67. II.2. Apreciando Por comodidade de leitura, recorda-se que importa saber se, uma vez dissolvida a união de facto, “os poderes de proprietária” da recorrente podem, neste caso, motivar a revogação do acórdão recorrido, mediante a atribuição da casa de morada de família, à requerida. A matéria que nos ocupa foi encarada pelo acórdão recorrido nos seguintes termos: “Extrai-se da matéria de facto que (… a) casa de morada de família está registada em nome da requerente conferindo presunção de propriedade, mas é contestada a sua propriedade, sendo certo que a apelada não intentou ação de reivindicação, pedindo a sua restituição ao requerido/apelante. Invoca a requerente que o apelante tem um apartamento, mas este apartamento está arrendado, não sendo opção por não estar disponível. Decorre dos autos que se encontra pendente ação tendente a pedir a guarda partilhada da menor, e podemos dizer ainda que o pai tem de receber a menor nas férias, fins de semana, etc, pelo que igualmente é do interesse do pai ter instalações a acolher, sendo igualmente do interesse da menor a casa de morada de família com o pai. A apelada reside em casa dos pais, com muito espaço, não tendo ficado demonstrado nos autos qualquer incompatibilidade na família ou qualquer desconforto provocado na menor. Segundo as regras da experiência os menores gostam do convívio com os avós. Não ficou demonstrado nos autos que a apelada tenha uma situação ou capacidade económica frágil ou inferior à do apelante, nem que a menor tenha interesse particular na habitação da casa de morada de família, designadamente escolares ou outras, pelo que não se encontram preenchidos os requisitos de atribuição da casa de morada de família à requerente/apelada. Importa, antes de mais, ter presente que estamos no contexto de uma rutura de união de facto, declarada na sentença da primeira instância. Por isso, importa ponderar o quadro normativo que resulta da remissão do artigo 4º da Lei 7/2001, de 11/05, na redação da Lei 23/2010, de 30.08. Assim, o artigo 1105.º/2, CC dispõe: “Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes”. Por sua vez, rege também o artigo 1793.º/1, do mesmo código, no qual se estatui: “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”. A Doutrina tem entendido que se trata de um arrendamento constituído por decisão judicial (sujeito ao regime do arrendamento para habitação) que define as condições, ouvidos os cônjuges, nomeadamente no que toca ao prazo e montante da renda (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito da Família, Vol. I, pág. 676). Por sua vez, este Tribunal escreveu no acórdão de 26.04.2012: “São questões diferentes, a relativa à atribuição provisória da casa de morada de família durante o período da pendência do processo de divórcio (art.º 1407.º, nºs 2 e 7 do CPC) e a de constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulada, como processo de jurisdição voluntária, no art.º 1413.º do CC, e prevista, como efeito do divórcio, nos artigos 1793.º e 1105.º do CC.” 3. No caso dos autos, o tribunal da Relação limitou-se a revogar, sem mais, a sentença da primeira instância (leia-se quanto à decisão sobre a atribuição da casa de morada de família) que havia atribuído a casa de morada de família à requerente. A consequência foi que o requerido se manteve a viver na mesma casa, sem a fixação de qualquer contrapartida, até porque não foi pedida por qualquer dos ex unidos de facto. Ora, estando-se num domínio sujeito ao princípio do pedido, forçoso era que, fora do contexto das medidas provisórias de que adiante se dará conta, o requerido não poderia obter decisão a seu favor, a menos que tivesse “pedido” a constituição judicial de arrendamento ou, eventualmente, a requerente o tivesse consentido, através da formulação de pedido subsidiário, o que, em qualquer caso, não aconteceu. De facto, o artigo 1973º permite que “a pedido” de qualquer dos membros do casal ou ex-casal, o tribunal reconheça a um deles o direito de utilizar em exclusivo a casa de morada de família, por dela ter necessidade, mesmo que esta seja propriedade do outro. No presente caso, além de não se detetar qualquer pedido de arrendamento, o Tribunal não estabeleceu qualquer condição, nomeadamente em matéria de prazo e contrapartida. Portanto, salvo o devido respeito, entende-se que foram extravasados os limites consentidos pelo artigo 1793º CC. No limite poder-se-ia prescindir de tal pedido, mas não é o caso. Na realidade, do acórdão da Relação não se retira qualquer elemento que permita concluir que se trata de uma situação provisória que pudesse à luz do entendimento mais corrente, justificar a atribuição da casa de morada de família a título gratuito, a quem não é proprietário, à semelhança do que acontece na pendência do processo de separação judicial ou divórcio (artigo 931.º/9 CPC4). Todavia, a decisão da Relação não assume este caráter “provisório”, antes adere à formulação “definitiva” da pretensão do recorrente que vive na casa em questão e que pediu a revogação da decisão de primeira instância que atribuía a casa à sua proprietária, a requerente e ex unida de facto. É verdade que a propriedade vem questionada pelo requerido, ao sustentar que era dele o dinheiro com que foi satisfeito o preço. Porém, ainda assim, a presunção legal que resulta do artigo 7º do Cód Reg. Predial não se mostra ilidida, nem os autos seriam o meio próprio para tal efeito. Por conseguinte, não se deteta base normativa para que seja reconhecido ao requerido o direito simétrico aqui reclamado pela requerente. Insiste-se, não houve pedido de constituição judicial de arrendamento, não estando, por isso, preenchida a exigência que permite lançar mão do artigo 17935 e atribuir gratuitamente a casa de morada de família ao requerido. Ao invés, a requerente é dona da casa de morada de família, sendo, por isso, lícito, reconhecer-lhe o direito de reaver a casa da sua propriedade (artigo 1305º CC). Apesar de a recorrente convocar os artigos 67º e 62º CRP, torna-se desnecessário o conhecimento desta invocada questão, porquanto aqui se entende que ficou por preencher o critério de legalidade estrita e, desse modo, desnecessário é, face aos efeitos desse entendimento, apreciar se o resultado interpretativo alcançado pela Relação no que toca ao artigo 1793º fere ou não as citadas normas, maxime do indicado artigo 62º. A questão formulada no recurso, mercê dos factos provados e circunstâncias processuais, resolve-se com base nos critérios que resultam da literalidade do indicado preceito. III. Decisão Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, concedendo a revista, revoga-se o acórdão recorrido, mantendo-se, embora por motivos diferentes, a sentença da primeira instância. Custas do recurso e nas instâncias, a cargo do recorrido. _____________________________________________ 1. Por ter sido esse o objeto da apelação e se presumir que a Relação disse mais do que o que pretendia.↩︎ 2. Processo n.º 945/13.8T2AMD-A.L1.S1, relatado pelo Exmº Conselheiro Tomé Gomes e Ac. STJ de 17.12.2019, Processo 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1, relatado pela Exmª Conselheira Maria João Vaz Tomé.↩︎ 3. Ac. STJ de 26.04.2012, no processo n.º 33/08.9TMBRG.G1.S1, relatado pelo Exmº Conselheiro Serra Baptista) e, no mesmo sentido, vd. Ac TRL de 11.03.21, relatado pela Exmª Des. Inês Moura.↩︎ 4. Lei n.º 3/2023, de 16/01.↩︎ 5. Neste sentido vejam-se os acórdãos do TRL de 22 de fevereiro de 2018 no proc. 1224/14.9T8SNT-D.L1-6 (relatado pelo Exmº Des. Manuel Rodrigues) e de 11 de março de 2021, no processo 1074/18.3T8VFX-A.L1-2 (relatado pela Exmª Des. Inês Moura).↩︎ |