Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | TERESA ALMEIDA | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA VIOLAÇÃO PENA PARCELAR PENA ÚNICA MEDIDA DA PENA | ||
Data do Acordão: | 06/22/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
Sumário : | I - O grau de ilicitude dos factos, a persistência, ao longo dos anos de vida em comum, da violência, verbal, física e sexual e a gravidade das suas consequências, tal como resultam dos factos provados, militam severamente contra o arguido. II - O arguido agiu com dolo direto, com reiteração, revelando profundo desprezo pela dignidade, integridade física e liberdade sexual da assistente. III - A adição alcoólica do arguido foi ponderada e desconsiderada, dado não constituir justificação dos atos ilícitos graves praticados e persistir, não obstante a realização de terapia adequada. IV - São, pois, muito elevados o grau de culpa e as exigências de prevenção geral e especial, a ter em consideração nos termos do art. 71.º do CP, sem ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 2, do CP). | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
1. O arguido, AA, não se conformando com o Acórdão proferido pelo tribunal coletivo da Comarca de Almada, em 3 de março de 2022, veio interpor recurso. O arguido foi condenado nos seguintes termos: - pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artº 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do Código Penal), na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; - pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação agravada p. e p. pelos arts. 164º nº 1 al. a) (na redação anterior à introduzida pela Lei nº 101/2019 de 06/09) e 177º nº 1 al. b) do C.P., na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão; - em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, na pena única de 6 (seis) anos de prisão; - na pena acessória de proibição de contactar por qualquer meio com a ofendida BB pelo período de 3 (três) anos, bem como de residir com esta no mesmo período, em caso de licenças precárias ou saída antecipada em liberdade condicional, nos termos do disposto no artº 152º nºs 4 e 5 do C.P.; - na pena acessória de proibição de uso e porte de armas pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do disposto no artº 152º nº 4 do C.P. 2. Formulou as seguintes conclusões (transcrição): “1 - Os motivos de discordância do arguido em relação à decisão recorrida, prendem-se por um lado com o quantum da pena, por outro, com o facto de ser efetiva. 2 - O tribunal a quo condenou o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º. nº.1al) a e nº. 2 al) a do C.P., na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão e ainda pela prática de um crime de violação agravada, previsto e punido pelos artigos 164º. nº.1 al) a (na redação anterior á introduzida pela lei nº. 101/2019, de 06/09) e artigo 177º. nº.1 al) b) do C.P., na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão. 3 - Em cúmulo jurídico condenar o arguido na pena Única de 6 (seis) anos de prisão. 4 - Realizada a audiência de julgamento, resultou provado o seguinte: 5 - Que o arguido e a Ofendida iniciaram uma relação de namoro no ano de 2010, tendo em agosto desse mesmo ano, começado a viver juntos, partilhando casa, mesa e leito, como se de marido e mulher se tratassem. 6 - Em 19-6-2012 casaram-se um com o outro. 7 - Em 21-07-2012 dessa união nasceu o filho CC. 8 - Desde o início da relação que o arguido consome bebidas alcoólicas em excesso, ficando visivelmente embriagado. 9 - Após o nascimento do filho CC, o arguido começou a acusar a Ofendida de dar mais atenção ao filho de ambos, do que ao arguido, o que gerou muitos conflitos e discussões entre o casal, nas quais o arguido apelidava a Ofendida sua esposa de «puta», «vaca», «não prestas para nada», «és um caixote de lixo». 10 - O arguido sempre manifestou ciúmes da sua mulher, não querendo que a mesma usasse saias e se maquilhasse. 11 - Telefonava-lhe várias vezes ao dia, para saber onde esta estava, vigiando os seus passos, querendo saber com quem falava e trocava mensagens no telemóvel, acedendo ao telemóvel sem o consentimento da Ofendida. 12 - Não queria que a Ofendida falasse ao telefone com a família nem que saísse com as amigas, ameaçando bater-lhe caso o fizesse. 13 - Em data não concretamente apurada, mas no ano de 2014, o arguido no decurso de uma discussão, desferiu uma bofetada na cara da Ofendida, atingindo-a abaixo do olho direito, provocando-lhe sangramento, hematoma e dor na região do corpo afetada, apelido-a ade «vaca», «puta», «não prestas para nada” 14 - No outono de 2015, quando o arguido e a ofendida sua mulher se encontravam na sala da residência, o arguido apertou o pescoço da Ofendida, fazendo uso das duas mãos e de força, causando-lhe dor e levando-a a perder o ar, só cessando a sua conduta quando o filho de ambos começou a chorar e a pedir ao arguido para que parasse. 15 - Em dia não concretamente apurado, mas após o Outono de 2015, durante a noite e por temer que o arguido, que havia ido para o café, regressasse alcoolizado, a Ofendida trancou a porta de casa. 16 - Quando o arguido regressou encontrava-se visivelmente embriagado e deparando-se com a porta trancada, desferiu uma pancada partindo o vidro da porta e logrando assim aceder ao seu interior e de seguida desferiu diversas pancadas nas costas da Ofendida, que com o seu corpo protegia o corpo do filho de ambos, o que lhe causou dor na região afetada, dirigiu-lhe as expressões «puta», «Vaca», «não prestas para nada», «és um caixote do lixo». 17 - Uma outra vez, já após o nascimento do filho de ambos, numa discussão no interior da residência o arguido desferiu com violência um pontapé no corpo da Ofendida, atingindo-a no braço esquerdo, causando-lhe dor. 18 - A partir de abril de 2019 a relação entre o casal, degradou-se ainda mais, sendo as discussões diárias, apelidando a Ofendida de «puta», «vaca», «não prestas para nada», «és um caixote de lixo», proibindo-a de falar com determinadas pessoas, não podendo sair á rua sem que o arguido soubesse onde ela estava. 19 - Os factos descritos ocorreram no interior da residência do casal e ás vezes na presença do menor, filho de ambos. 20 - Nos meses de Abril e Maio de 2019, o arguido forçou a Ofendida fazendo uso da sua força e superioridade física, a manter com ele relações de coito anal, contra sua vontade. 21 - Encontrando- se na cama, no quarto do casal, com a Ofendida de barriga para baixo, o arguido posicionando o seu corpo sobre o seu, agarrando-a, impedindo que esta se movimentasse, introduziu o pénis ereto no ânus da Ofendida, fazendo movimentos de vaivém até ejacular. 22 - A Ofendida por diversas vezes disse ao arguido que não queria manter relações sexuais com ele, que a estava a magoar, implorando que parasse, porém, o arguido concretizou os seus intentos, desrespeitando a vontade da Ofendida, causando-lhe dor e sofrimento. 23 - Nesse mesmo período temporal o arguido forçou a Ofendida a manter relações sexuais de cópula completa, pese embora esta lhe tenha dito que não queria. 24 - Sempre que a Ofendida se recusava a manter relações sexuais com o arguido este dizia-lhe que se não queria era porque tinha outro homem. 25 - Enquanto durou o casamento o arguido sempre manifestou ciúmes, querendo controlar o dia a dia da Ofendida, telefonando-lhe por diversas vezes ao dia e caso esta não atendesse era porque tinha amantes. 26 - Mais se provou que o arguido está divorciado da Ofendida desde 18-03-2021. 27 - Que as Regulações das Responsabilidades parentais se encontram reguladas por decisão de 12-12-2019. 28 - Do CRC do arguido consta uma condenação pela prática de um crime de condução de veículos sem habilitação legal. 29 - Que cedo abandonou a escola, tendo concluído o primeiro ciclo do ensino básico. 30 - Trabalha desde os 16 anos de idade, e desde então nunca abandonou o mercado de trabalho, exercendo diversas atividades laborais. 31 - Desde 2016, trabalha como ... no Centro Hospitalar .... 32 - Onde é descrito pela entidade patronal como um funcionário responsável e autónomo, com um adequado relacionamento comos seus pares, superiores hierárquicos e utentes do hospital. 33 - Tem uma filha atualmente com ... anos de idade, fruto de uma outra relação, que reside na mesma rua, prestado apoio e suporte familiar ao arguido. 34 - A Ofendida deixou a residência do ex-casal em Outubro de 2019, e desde então nunca mais o arguido a incomodou ou contactou. 35 - O arguido já em 2008 submeteu-se a um tratamento no CAT ..., para combater a adição ao álcool. 36 - Desde o início da relação que este consome álcool em excesso, ficando visivelmente embriagado. 37 - Consumo que aumentou significativamente após o nascimento do filho de ambos, chegando a beber uma box de cinco litros por dia de vinho. 38 - O arguido embora tenha adotado um discurso de desresponsabilização e de negação dos factos, admitiu o consumo de álcool. 39 - Adição que não pode servir para legitimar e desresponsabilizar a conduta do arguido, mas também não podemos deixar de apontar tal dependência, como fator propiciador da conduta ilícita do arguido. 40 - Com reflexos no grau de ilicitude e da culpa do arguido, a qual deve ser mitigada. 41 - O arguido e a Ofendida, para além de não manterem contactos desde Outubro de 2019, residem em localidades diferentes e distantes. 42 - O arguido beneficia do apoio familiar da filha e de uma irmã, o que lhe confere estabilidade sócio familiar. 43 - Trabalha como ... desde 2016, no Centro Hospitalar ... 44 - Do CRC consta uma condenação pela prática do crime de condução de veículos sem habilitação legal. 45 - Os factos ilícitos, aconteceram sempre e quando o arguido se encontrava sob o efeito do álcool, pelo que o tribunal a quo deveria ter tido alguma contemplação, quanto á imputabilidade, o que foi completamente omitido pela decisão recorrida. 46 - Ressalvando o respeito devido ao douto tribunal a quo, que aliás é muito, não nos podemos conformar com a medida da pena a que foi o arguido condenado – em cúmulo jurídico na pena única de 6 (seis) anos de prisão. 47 - Perante os elementos trazidos aos autos e os parâmetros para definir a medida concreta da pena, artigos 40º., 71º. e 72º. do Código Penal o tribunal a quo não sopesou devidamente a adição alcoólica do arguido, causa relevante e propiciadora da prática dos ilícitos criminais de que foi condenado. 48 - O arguido é a primeira vez que é condenado por crimes desta natureza. 49 - Beneficia de apoio familiar, está inserido social e profissionalmente 50 - Tem trabalho estável. 51 - É bem visto pela entidade patronal 52 - Pelo que e sem querer branquear a gravidade da conduta do arguido, entendemos que a pena aplicada é excessiva, excede as necessidades de prevenção geral e especial, prejudicando seriamente a futura ressocialização do mesmo. 53 - Ponderando todo o exposto as penas parcelares mostram-se excessivas, pelo que a pena de prisão quanto ao crime de violência doméstica, deve fixar-se nos 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e a pena de prisão pelo crime de violação, fixar-se em 4 (quatro) anos e 4(quatro) meses. 54 - Procurando assegurar as necessidades de reintegração e ressocialização, a pena única não deve ser superior a 5 (cinco) anos de prisão. 55 - Sem com isso colocar em causa a função tutelar da pena, a socialização do arguido e as necessidades de segurança. 56 - Assim considerando os factos na sua globalidade as circunstâncias em que o arguido se encontrava, sob o efeito do álcool, visivelmente embriagado, os antecedentes criminais que possui de pouca gravidade, tudo ponderado em conjunto como impõe o artigo 77º. nº. do Código Penal, justifica-se uma redução da pena única conjunta aplicada, e assim adequada e proporcional á gravidade dos factos e ás necessidades de prevenção e de socialização, que a sua aplicação visa realizar – artigo 40º. do Código Penal. 57 - Após o provimento do ora pretendido, afigura-se-nos justificar-se a Suspensão da execução da pena, por igual período 5 (cinco) anos, com regime de prova, frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, cfr. artigo 152º. nº.4 do Código Penal, submissão a um tratamento médico de combate á dependência alcoólica. 58 - Nada nos diz que o arguido não esteja apto a aproveitar a oportunidade da suspensão da execução da pena, ainda mais que nunca antes beneficiou da mesma. 59 - A pena suspensa na execução, o constitui um verdadeiro elemento dissuasor da prática de novos crimes, pois todo e qualquer arguido sujeito a uma pena suspensa na sua execução, sabe que se prevaricar a suspensão é revogada. 60 - O arguido reúne os pressupostos básicos da aplicação da medida de suspensão da execução da pena de prisão. 61 - Tendo em conta a personalidade do arguido, a sua adição alcoólica, defendemos a necessidade superior de medidas com conteúdo reeducativo e pedagógico, mantendo as condições de sociabilização, evitando os riscos de fratura familiar, social e laboral, fortes fatores de exclusão social, bem como o estigma do ex-recluso, que atendendo á idade do arguido, o afastará de forma grave e irreversível da inserção social, familiar e laboral. 62 - Uma correta interpretação do artigo 50º. do Código Penal, deverá conduzir-nos á prevalência de considerações de prevenção especial de socialização. 63 - Tudo ponderado, entendemos que deve ser decretada a suspensão da execução da pena de 5 (cinco) anos de prisão, para cujo abaixamento que ora pugnamos - artigo 50º. do Código Penal. 64 - O tribunal a quo violou assim o disposto nos artigos 40º., 70º., 71º., 72º. e 77º. todos do Código Penal. 3. A Assistente, BB, respondeu: (transcrição) 1º Em alegações de recurso, o arguido não se insurge contra a sua condenação; 2º Limitando-se a manifestar o seu descontentamento com a medida concreta da pena e com a natureza efetiva da mesma; 3º Alegando, em suma, que: - A dependência de álcool do arguido foi propiciadora da sua conduta ilícita; - O consumo excessivo de álcool pelo arguido mitigou o grau de ilicitude e culpa deste; - O arguido beneficia de apoio familiar e estabilidade sócio familiar; 4º Na opinião do recorrente, o tribunal a quo “(…) não sopesou devidamente à adição alcoólica do arguido (…)”; 5º Defendendo ser essa adição “(…) causa significativa e preponderante na pática dos ilícitos criminais de que foi acusado e condenado”; 6º Todavia, como se pode ler na sentença recorrida (IV- Escolha e determinação da medida concreta da pena): «(…) a conduta do arguido está directamente relacionada com o consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do mesmo - o qual este não reconhece -, facto que não desculpabiliza, nem diminui a ilicitude e gravidade da sua conduta (…).»; 7º Não se pode concordar mais com o prolatado na sentença; 8º O arguido sabe diferenciar o certo e o errado e optou por agir contra o Direito; 9º Ainda na opinião do recorrente, a medida da pena aplicada “(…) excedeu as necessidades de prevenção geral e especial, prejudicando seriamente a sua ressocialização”; 10º Ao longo das suas alegações o recorrente dá primazia às exigências de prevenção especial, enfatizando a função de ressocialização da pena e educação para o direito; 11º Sem desprimor para essas funções da pena e para a sua importância, é essencial notar que o crime de violência doméstica tem grande prevalência na sociedade portuguesa, o que torna as exigências de prevenção geral mais acentuadas; 12º Mais concretamente, as necessidades de prevenção geral positiva, de tutela das expetativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada; 13º Nesse sentido, o Ac. TRC de 17-12-2014: «A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de /vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade, apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos.)»; 14º Sendo que «I. No momento da decisão em que o julgador escolhe a pena, isto é, pondera se a pena de prisão aplicada (…) deve ou não ser substituída por outra pena prevista na lei (no caso colocou-se a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão nos termos do art. 50º do CP, sujeita ou não a deveres, regras de conduta e/ou acompanhada de regime de prova, tal como previsto respectivamente nos arts. 51º, 52º e 53º do CP), apenas pode atender a critérios de prevenção. II. Na operação de escolha da pena, a aplicação da pena de substituição impõe-se quando se verificam os seus pressupostos materiais, o que exige que se ponderem as razões de prevenção especial (carência de socialização do arguido) e que simultaneamente fique salvaguardado o «limiar mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica (…)», - Cfr. Ac. TRP de 25-09-2013; 15º Nesse sentido, também, a sentença recorrida (IV- Escolha e determinarão da medida concreta da pena): «No que concerne às razões de prevenção geral, relativamente ao crime de violência doméstica, estas são elevadas, tendo em conta a frequência com que ocorre a prática deste crime, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das pessoas violentadas, o que fez com que o legislador transformasse este tipo de ilícito em crime de natureza pública. No que respeita ao crime de violação, estas são também elevadas pela necessidade comunitariamente sentida de preservar os valores da liberdade na autodeterminação sexual, quer quando o agente actua contra a vontade do ofendido, quer quando actua sabendo que o ofendido não dispõe de capacidade e vontade de autodeterminação relevante por virtude da idade ou de doença que lhe fragiliza ou retira a capacidade para se determinar livremente.»; 16º Como admitido pelo próprio arguido em alegações de recurso, este adotou um discurso de desresponsabilização e negação da prática dos factos; 17º Como se pode ler na sentença recorrida (IV- Escolha e determinação da medida concreta da pena): «(…) o arguido não admitiu a prática dos factos, não demonstrando nenhum arrependimento, nem autocensura pela sua conduta, sendo que, de acordo com o relatório da DGRSP este apresenta “como principais fatores de risco, a impulsividade, a baixa tolerância à frustração, a atitude pró-criminal, o confronto com as regras e a presença de crenças disfuncionais e distorções cognitivas legitimadoras do crime de violação.”»; 18º Salvo melhor opinião, essa postura do arguido demonstra que a pretendida redução da medida da pena para uma pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução retirará qualquer eficácia à pena aplicada, no que respeita às exigências de prevenção especial ou individual; 19º Na medida em que, nesse caso, a pena não terá uma atuação preventiva sobre a pessoa do arguido, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, reincidindo; 20º Pois, apesar da gravidade dos factos, o arguido continuará a viver a sua vida como sempre fez, quase como se nunca tivesse sido condenado por crimes da gravidade dos que estão em apreço nestes autos; 21º Com a suspensão da execução da pena o arguido não irá sentir a condenação como uma solene advertência; 22º Não ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão; 23º A sua socialização em liberdade não é, pois, viável; 24º Relembra-se que o relatório social para determinação da sanção junto aos autos reporta que, no período da adolescência o arguido revelou problemas comportamentais e de socialização, com baixa tolerância à frustração e tendência para as respostas de agressividade na resolução de problemas; 25º Tendo, também, identificado como principais fatores de risco, a impulsividade, a baixa tolerância à frustração, a atitude pró-criminal, o confronto com as regras e a presença de crenças disfuncionais e distorções cognitivas legitimadoras do crime de violação; 26º A aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução não realizará de forma adequada e suficiente as finalidades da punição; 27º A pena de prisão é a única pena que assegurará as finalidades de prevenção geral e especial requeridas no caso concreto; 28º Mais, a concreta medida da pena aplicada é plenamente suportada pela culpa do arguido; 29º Como resulta da sentença recorrida (IV- Escolha e determinarão da medida concreta da pena): «No que concerne à culpa, a mesma molda-se pelo dolo directo, pois o arguido tem perfeito conhecimento das suas condutas, agindo livre, deliberada e conscientemente (artigo 14º, n.º 1, do Código Penal).»; 30º Não houve, pois, violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso; 31º O Tribunal a quo aplicou bem o Direito quando, tudo ponderado (a ilicitude global do facto, a culpa do recorrente e as exigências de prevenção requerida), atentas as razões de prevenção geral e especial, decidiu aplicar ao arguido pena de prisão a graduar concretamente em: - 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão no que respeita ao crime de violência doméstica; e, - 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão no que respeita ao crime de violação agravada; E, em cúmulo jurídico condenar o arguido na pena única de 6 (seis) anos de prisão efetiva; Sem Conceder, Por mero dever de patrocínio, 32º Caso V.Ex.ª assim não o entenda, o que só por mero dever de patrocínio se admite, na decisão da suspensão da pena de prisão aplicada o Tribunal terá de realizar um juízo de prognose que partirá da análise conjugada das circunstâncias do crime, das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente e da sua revelada personalidade (Cfr. Ac. TRC de 17-12-2014); 33º Análise da qual resultará como provável, ou não, que o agente irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova) - (Cfr. Ac. TRC de 17-12-2014); 34º Ora, salvo melhor entendimento, atendendo aos elementos constantes dos autos, a personalidade mal formada do arguido e os seus antecedentes criminais afastam esta forma de cumprimento da pena; 35ºA falta de interiorização da gravidade dos factos perpetrados ditam a necessidade de cumprimento da pena de prisão efetiva em função das exigências de prevenção especial; 36º Nesse sentido, o Ac. TRP de 10-09-2014: «Não pode ser suspensa a execução da pena de prisão se o arguido manifesta uma personalidade com características de desestruturação pessoal com reflexos no desrespeito por diversos valores jurídico-penais, (…).»; 37º As circunstâncias dos crimes em que foi condenado nos autos também afastam a suspensão da execução da pena; 38º Mais, não se mostram provadas circunstâncias de ordem familiar e social que a sustentem; 39º Pelo que, não se mostram reunidos os pressupostos legais que permitem a aplicação do instituto da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido; Reitera-se o acima alegado, 40º A aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução não realizará de forma adequada e suficiente as finalidades da punição; 41º E, a pena de prisão é a única pena que assegurará as finalidades de prevenção geral e especial requeridas no caso concreto; Por último, 42º O recorrente alega que esta é a primeira vez que é condenado pela prática de crimes desta natureza; 43º Quanto a isso, sempre se dirá que tal não resultou como provado; 44º Tendo-se dado apenas como provado que consta no CRC do arguido uma condenação de 30/09/2019 por um crime de condução sem habilitação legal; 45º Tal somente significa que nos últimos 5 anos o arguido não foi condenado por crimes da mesma natureza dos que estão em apreço nestes autos; 46º O que não afasta a sua condenação por crimes desta natureza há mais de 5 anos, que, dado o decurso do tempo, agora não constam do CRC; 47º Aliás, segundo a assistente, o recorrente foi anteriormente condenado pela prática do crime de violência doméstica; Atento o supra exposto, 48º O recurso interposto carece de fundamento, não lhe devendo ser dado provimento. Nestes termos e nos mais de Direito, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo Arguido, AA, mantendo-se a Sentença condenatória recorrida, nos precisos termos em que foi prolatada.”
4. Respondeu a Ex.ma Procuradora da República, na 1.ª Instância, concluindo: (transcrição) “1ª– Contra o Recorrente depõem fortemente o elevado grau de ilicitude dos factos consubstanciadores dos crimes de violência doméstica e violação agravada, a assinalável gravidade das suas consequências para a ofendida, a actuação com dolo directo de intensidade acentuada, os sentimentos manifestados no cometimento dos ilícitos e os fins ou motivos que os determinaram, a postura assumida sobre as condutas delituosas, as fortíssimas exigências de prevenção geral e as prementes necessidades de prevenção especial; 2ª – O consumo excessivo de bebidas alcoólicas (que no caso do Recorrente, significativamente, nenhuma repercussão tem no – elogiado – desempenho profissional) não constitui factor que mitigue o grau da ilicitude dos factos que praticou ou da culpa com que agiu; 3ª – São benévolas as penas parcelares e única de prisão concretamente aplicadas, pelo que o Recorrente não pode invocar em seu benefício a violação dos critérios estabelecidos nos arts. 71º nºs 1 e 2 e 77º nºs 1 e 2 do C.P. nem o desrespeito pelas finalidades das penas consagradas no artº 40º nº 1 do mesmo código; 4ª – Por conseguinte, tais penas não deverão sofrer qualquer redução; 5ª – Para a hipótese (que não se admite e apenas por dever de ofício se equaciona) de as penas parcelares virem a ser reduzidas e, consequentemente, ser também reduzida a pena única para medida não superior a cinco anos de prisão, não deverá haver lugar à suspensão da execução desta última; 6ª – Com efeito, as circunstâncias dos crimes em causa nos autos, a postura manifestada pelo Recorrente sobre eles, a sua personalidade, assim revelada, as elevadíssimas exigências de prevenção geral e as acentuadas necessidades de prevenção especial não autorizam a conclusão de que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição: protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade; 7ª – Suspender a execução de pena única de prisão não superior a cinco anos abalaria até, crê-se, o sentimento de confiança da comunidade em normas que tutelam bens jurídicos muito valiosos, veiculando um perigoso sinal de complacência ético-jurídica para com ilícitos criminais cometidos no seio conjugal, em flagrante oposição às fortíssimas necessidades de prevenção geral deste tipo de ilícitos.”
5. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu parecer: (transcrição) “1. Por douto acórdão proferido, nos autos à margem referenciados, pelo Juízo Central Criminal de Almada, foi decidido condenar o arguido AA na pena única de 6 anos de prisão. 2. Inconformado, o arguido interpôs recurso circunscrito à matéria de direito, de acordo com o disposto no art.º 432º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal. Questiona, essencialmente, a excessiva dureza da pena única, que entende dever ser reduzida para quantum não superior a 5 anos de prisão, de modo a permitir a suspensão da respectiva execução. A tal recurso respondeu, detalhada e fundadamente, a Exma. Magistrada do Ministério Públi-co junto da 1ª Instância, pugnando pela respectiva improcedência. 3. Crendo-se que nada obstará ao conhecimento do recurso por parte do Supremo Tribunal de Justiça, deverá o mesmo ser apreciado em sede de conferência, de acordo com o disposto no art.º 419º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Penal. Dir-se-á, então, que a precisão e exaustividade dos argumentos aduzidos na resposta da Exma. Colega – que se acompanha na íntegra – nos dispensam de maiores considerandos. 4. Atentemos no seguinte segmento da apreciação feita pelo Tribunal a quo: “A título de prevenção especial temos que o arguido tem 50 (cinquenta) anos de idade e tem antecedentes criminais registados, tendo sofrido uma condenação pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, em que foi condenado em pena de multa. Mostra-se social, familiar e profissionalmente integrado, estando separado da ofendida desde 04/10/2019, data em que esta saiu de casa com o filho do casal, estando divorciados desde 18/03/2021, não pretendendo o casal retomar a vida em comum e não contactando o arguido com a ofendida desde então, excepto sobre questões do filho do casal. Por outro lado, a conduta do arguido está directamente relacionada com o consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do mesmo - o qual este não reconhe-ce -, facto que não desculpabiliza, nem diminui a ilicitude e gravidade da sua conduta, sendo certo que o arguido já se submeteu a um tratamento em 2008, tendo, contudo, recaído no consumo excessivo de álcool. O arguido agrediu a sua mulher física, psíquica e sexualmente, contro-lando, injuriando, humilhando e menosprezando a sua mulher, querendo submetê-la à sua vontade, conduta que decorreu de 2014 a 04/10/2019. Por outro lado, o arguido não admitiu a prática dos factos, não demonstrando nenhum arrependimento, nem autocensura pela sua conduta, sendo que, de acordo com o relatório da DGRSP este apresenta “como principais fatores de risco, a impulsividade, a baixa tolerância à frustração, a atitude pró-criminal, o confronto com as regras e a presença de crenças disfuncionais e distorções cognitivas legitimadoras do crime de vio-lação.” Como bem frisa a nossa Exma. Colega, a postura do arguido em audiência e os traços de personalidade referidos pelo relatório social são bem demonstrativos da necessidade de uma resposta judicial que o leve a interiorizar o desvalor das condutas – gravíssimas, diga-se – que assumiu ao longo de tão considerável período de tempo; e que a dependência do álcool não pode justificar como factor que mitigue as suas responsabilidades, tanto mais que as vítimas nenhumas culpas têm da sua adição. Em tais circunstâncias, não parece possível fazer, a respeito do arguido, um juízo de prognose favorável que garanta de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, de acordo com os critérios previstos pelo art.º 50º do Código Penal. Note-se, de resto, que o Tribunal fixou a pena única acrescentando, ao limite mínimo, menos de um quinto da diferença entre a pena parcelar mais alta – 5 anos e 4 meses – e a soma aritmética de todas elas – 8 anos e 10 meses. Em suma e como diz a Exma. Procuradora da República, teria sido difícil ser mais brando. Parece-nos, pois, que o aresto fez uma adequada interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos art.ºs 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1 e 2, als. a) a c), e) e f) do Código Penal. Atendeu-se, cremos, à vantagem da reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade; sem se esquecer, porém, que a pena deve visar também, de forma equilibrada, a protecção dos bens jurídicos e a prevenção especial e geral, neste caso particularmente relevantes. Com efeito, as fortíssimas exigências de prevenção e a gravidade do comportamento do arguido tinham, em conformidade e de acordo com os critérios acima referidos, de ser traduzidos em pena correspondente à medida da sua culpa; o que o tribunal recorrido conseguiu com uma pena única relativamente leve, mas que, em todo o caso, respeita as finalidades visadas pela punição. 5. Assim, concluindo, dir-se-á que o douto acórdão recorrido não merece censura, pelo que o recurso deverá improceder.”
Foi cumprido o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), visando, no caso, o reexame de matéria de direito. Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir a questão de saber se as penas parcelares e a pena única de 6 anos de prisão se mostram excessivas e se, sendo o caso, devem aquelas ser reduzidas e esta última fixada em 5 anos de prisão, como pretende o recorrente, com suspensão de execução por igual período.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
1. os factos:
O Acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos: (transcrição) “1 - O arguido e BB mantiveram uma relação de namoro desde o ano de 2010, passando em Agosto do mesmo ano a viver juntos, partilhando casa, mesa e leito, como se marido e mulher se tratassem. 2 - O arguido e BB casaram um com o outro em …/06/2012. 3 - De tal união nasceu em .../.../2012, CC. 4 - Em 04/10/2019 BB abandonou a casa onde residia com o arguido, levando consigo o filho do casal. 5 - Nos primeiros dois anos de coabitação BB e o arguido residiram na casa sita na Avenida ..., no ..., e depois passaram a morar na Rua ..., em ..., no .... 6 - Desde o início da relação que o arguido consome bebidas alcoólicas em excesso, ficando visivelmente embriagado. 7 – Após o nascimento do filho do casal, o arguido começou a acusar a sua mulher de dar mais atenção à criança do que ao arguido, facto que gerou conflitos entre o casal, sendo que nas discussões o arguido apelidava a sua mulher de “puta”, “vaca”, “não prestas para nada” e “és um caixote do lixo”. 8 – O arguido sempre manifestou ciúmes da sua mulher, não querendo que esta usasse saias, nem maquilhagem. 9 - Telefonava-lhe diariamente várias vezes para saber onde esta estava, vigiando os seus movimentos, manifestando conhecimento de todos os seus passos, querendo saber com quem esta falava ao telemóvel, com quem trocava mensagens, acedendo ao seu telemóvel para fazer tal controle. 10 – O arguido não queria que a sua mulher falasse ao telefone com a própria família, nem que esta saísse com as amigas, chegando a ameaçar bater-lhe caso o fizesse. 11 - Em data não concretamente apurada, no ano de 2014, nos meses de primavera ou verão, quando o filho do casal tinha cerca de 2 (dois) anos, o arguido, no decurso de uma discussão, desferiu uma bofetada na cara de BB, atingindo-a abaixo do olho direito, provocando-lhe sangramento, hematoma e dor na região do corpo atingida, bem como a apelidou de “puta”, “vaca”, “não prestas para nada” e “és um caixote do lixo”. 12 - Em data não concretamente apurada, no Outono de 2015, quando o filho do casal tinha quase 4 (quatro) anos de idade, quando se na sala da residência, o arguido apertou o pescoço de BB fazendo uso das duas mãos encontravam e de força, causando-lhe dor na região do corpo atingida e levando-a a perder o ar, apenas cessando a sua conduta porque o filho menor de ambos começou a chorar e a pedir ao arguido que parasse. 13 - Em data não concretamente apurada, após o Outono de 2015, durante a noite e por temer que o arguido, que havia ido para o café, regressasse a casa alcoolizado, BB trancou a porta de casa. 14 - No momento em que o arguido tentou aceder à residência, encontrando-se visivelmente embriagado e deparando-se com a porta trancada, desferiu uma pancada, partindo um vidro da porta e logrando aceder ao interior da residência e, em acto continuo, desferiu com violência diversas pancadas nas costas de BB que com o seu corpo protegia o corpo do menor CC, causando-lhe dor na região do corpo atingida, e dirigiu-lhe as expressões “puta”, “vaca”, “não prestas para nada” e “és um caixote do lixo”. 15 - Em data não concretamente apurada, após o nascimento do filho, no decurso de uma discussão no interior da residência, o arguido desferiu com violência um pontapé no corpo da BB, atingindo-a no braço esquerdo, causando-lhe dor. 16 – A partir de Abril de 2019 a relação entre o casal piorou, sendo as discussões diárias, apelidando o arguido a sua mulher BB com as expressões “puta”, “vaca”, “não prestas para nada” e “és um caixote do lixo”, proibindo-a de falar com determinadas pessoas, não podendo esta sair à rua sem que o arguido soubesse onde ela estava. 17 - Os factos descritos em 7) a 16) ocorriam na residência do casal e por vezes na presença do filho menor do casal. 18 – Nos meses de Abril e Maio de 2019, pelo menos em três ocasiões, o arguido forçou a sua mulher, fazendo uso da força e superioridade física, a manter com ele relações de coito anal, contra a vontade desta. 19 - Para o efeito e quando se encontravam na cama, no quarto do casal e com BB deitada de barriga para baixo, o arguido posicionou o seu corpo sobre o corpo da vítima, agarrou-a, impedindo-a de se movimentar, passando um braço em baixo da sua barriga e agarrando-a pela cintura, e introduziu o pénis erecto no ânus da vítima, fazendo movimentos de vaivém até ejacular. 20 – BB disse diversas vezes ao arguido que não queria manter relações sexuais com ele, que este a estava a magoar, implorou-lhe que parasse, e o arguido servindo-se da sua superioridade física e posição, concretizou os seus intentos, desrespeitando a vontade desta, impedindo-a de se defender, provocando-lhe dores e sangramento do ânus, tendo como consequência esta ficado com dificuldades de locomoção e fissuras anais, uma às 12 horas e outra às 6 horas. 21 – Igualmente, no período temporal de Abril e Maio de 2019, pelo menos por uma vez, o arguido obrigou a sua mulher, através da força física, a manter relações sexuais de cópula completa, mantendo o seu corpo sobre o corpo da vítima deitada de barriga para baixo, e impedindo-a de se defender, pese embora esta lhe dito que não queria. 22 - Em todas as descritas situações BB disse ao arguido em tom de voz sério que não queria manter relações sexuais com ele. 23 – Durante a vida em comum com o arguido, quando BB recusava manter relações sexuais com o arguido, este dizia-lhe em tom de voz sério que se recusava era porque tinha outro homem. 24 - Sempre que BB arranjava emprego e começava a trabalhar, concretamente entre os meses de Abril e Maio de 2019, o arguido manifestava ciúmes, querendo controlar o seu dia-a-dia, telefonando-lhe durante o horário de trabalho e quando esta não atendia argumentava que esta não o fazia porque tinha amantes. 25 - Como consequência necessária e directa da conduta do arguido descrita em 18), 19) e 20), BB sentiu dores fortes no ânus, nos quais teve sangramento, bem como humilhação e vergonha. 26 - O arguido agiu com o propósito concretizado de manter relações sexuais com a ofendida, sua mulher, contra a vontade expressa daquela, usando para tal da força física, sabendo que a sua conduta era apta a ofender corporalmente a ofendida, humilhá-la, amedrontá-la, envergonhá-la, o que quis e logrou alcançar. 27 - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção concretizada de humilhar, intimidar, ofender o corpo e a saúde, a sexualidade e fazer a vítima temer pela sua integridade física, sabendo que todas as suas descritas condutas são adequadas a atingir tais propósitos. 28 - O arguido actuou sempre com a intenção concretizada de molestar corporalmente e amedrontar a sua mulher e mãe do seu filho, de a atingir na respectiva saúde física e psíquica, lesar a sua integridade moral e dignidade pessoal, injuriando-a, vexando-a, não se coibindo de perpetrar tais factos, ciente de que as suas condutas eram perpetradas na residência do casal e na presença do filho menor do mesmo. 29 - O arguido agiu sempre com a intenção de criar na vítima, o que logrou, um estado permanente de medo, inquietação e insegurança. 30 - Sabia que o menor seu filho tinha tenra idade, que lhe devia respeito, protecção e cuidados. 31 - O arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que todos os seus comportamentos são proibidos e punidos por lei penal. - Do pedido cível: 32 – Em consequência da conduta do arguido, BB sente-se triste, humilhada, desgostosa e receosa, tendo medo de sair à rua sozinha, estando a ter acompanhamento psicológico. - Mais se provou: 33 - O arguido está divorciado de BB desde .../03/2021. 34 – As responsabilidades parentais do menor CC mostram-se reguladas por decisão de 12/12/2019, tendo o menor ficado a residir com a mãe, exercendo ambos os progenitores as responsabilidades parentais nas questões de particular importância. 35 - O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 04/11/2019, proferido no âmbito do Processo Abreviado nº 84/19…, que corre termos no Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., pela prática em 24/04/2019, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros). 36 – O arguido é o segundo, por ordem de nascimento, de uma fratria composta por três irmãos germanos. O pai trabalhava como ..., na ..., enquanto a mãe não mantida qualquer actividade laboral estruturada, dedicando-se à recolha de cartão para posterior venda, actividade que não era bem aceite pela família, sendo a situação socioeconómica do agregado familiar de origem caracterizada com severas dificuldades financeiras e escassos recursos. 37 - Ingressou na escola em idade considerada adequada, integrando a Cooperativa ..., onde revelou algumas dificuldades de aprendizagem e atraso no desenvolvimento cognitivo, apresentando um percurso escolar pouco investido e motivado para a aprendizagem. Veio a abandonar a escola aos 10 anos de idade, tendo concluído o primeiro ciclo do ensino básico. 38 - No plano da socialização, o arguido descreveu dificuldades em estabelecer e manter relacionamentos de amizade, quer na infância, como durante o período da adolescência, em função dos seus comportamentos agressivos, quando contrariado nas suas intenções. 39 - Após ter abandonado o percurso escolar, terá passado a acompanhar a sua mãe, na recolha de cartão, tendo começado a trabalhar numa loja de móveis, assumindo tarefas de limpeza e arrumações, por volta dos 16 anos de idade. O arguido manteve-se com este trabalho durante cerca de três anos. 40 - No início da idade adulta, o arguido estabeleceu a sua primeira relação amorosa, vindo a casar com esta namorada. Há data trabalhou durante quatro anos numa fábrica de produtos farmacêuticos, após o que se passou a dedicar à realização de biscates na área da construção civil. 41 – Desta união nasceu a filha mais velha, actualmente com ... anos de idade. Este primeiro casamento terá durado cerca de 12 anos, altura em que o cônjuge terá cometido suicídio. 42 - Após a morte do cônjuge, o arguido vivenciou um período de significativa angústia e desorganização pessoal, culminando com desemprego, consumo excessivo de álcool. 43 - Os pais do arguido terão falecido também por esta altura, tendo sido referido, por parte do arguido, um processo de partilhas, entre os irmãos, que decorreu de forma conflituosa. Este contexto terá favorecido a quebra de relação e o actual distanciamento entre o arguido e o seu irmão mais novo. 44 - A filha do casal foi entregue aos cuidados de familiares, sem que estes tenham conseguido assegurar a supressão das suas necessidades básicas. A menor acabou por ser sinalizada à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, tendo sido sujeita a medida de acolhimento institucional até aos 20 anos de idade. 45 – O arguido terá procurado ajuda, em 2008, quando contava cerca de 37 anos de idade, relativamente à problemática com os consumos excessivos de álcool, aderindo às reuniões da associação “...”. Pela mesma altura, o arguido passou a trabalhar, num registo mais estruturado, durante um ano na ... e, após termo de contrato, cinco anos numa empresa de ..., como ..., cujo o termo desta relação laboral terá ocorrido por falência do empregador. 46 - O arguido conheceu a ofendida enquanto ambos frequentavam ações de formação na instituição ..., tendo estabelecido com a mesma uma relação de namoro, que veio a culminar numa união de facto e posterior casamento. Desta união nasceu o filho do casal, actualmente com 9 anos de idade. 47 – O arguido começou a trabalhar como ..., no Centro Hospitalar ..., em 2016, mantendo esta actividade até à presente data, auferindo um vencimento mensal de €639,00 (seiscentos e trinta e nove euros). O arguido é descrito pela entidade patronal como um funcionário responsável e autónomo, com um adequado relacionamento com pares, superiores hierárquicos e utentes do hospital. 48 – O arguido não vê o filho desde a separação do casal, continuando a viver na casa onde o casal residiu enquanto manteve a relação, pagando de renda de casa a quantia mensal de €150,00 (cento e cinquenta euros). 49 - A filha do arguido reside na mesma rua, mantendo uma relação de proximidade e de suporte para com o mesmo. 50 – Beneficia do apoio e suporte familiar por parte da filha. Tem uma irmã com a qual não mantem qualquer relação, mas que lhe manifesta total apoio. 51 – No relatório da DGRSP é concluído que “Da análise da informação recolhida, nas diversas fontes, bem como através da aplicação dos instrumentos de avaliação do risco, foram identificados, como principais fatores de risco, a impulsividade, a baixa tolerância à frustração, a atitude pró-criminal, o confronto com as regras e a presença de crenças disfuncionais e distorções cognitivas legitimadoras do crime de violação.”
O acórdão recorrido fundamentou, como se transcreve, a escolha e determinação da medida concreta da pena:
“Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar o tipo de pena a aplicar e a fixação da sua medida concreta. O crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, alínea a), do Código Penal tem a moldura abstracta de pena de prisão de 2 a 5 anos. O crime de violação tem a moldura penal abstracta de pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses (artigos 164º, nº 1, alínea a) e 177º, nº 1, alínea b), do Código Penal). Nos termos do n.º 1, do artigo 71º, do Código Penal a “determinação da medida da pena, dentro dos limites legais definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, n.º 2, do Código Penal). Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo a culpa concreta do agente, o que implica, por um lado que não há pena sem culpa, e por outro, que esta decide da medida daquela, afirmando-se como seu limite máximo, havendo que ter presente as razões de prevenção geral (protecção dos bens jurídicos) quanto aos fins das penas (artigo 40º, n.º 1, do Código Penal), e os fins de prevenção especial. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente, ou contra ele, nomeadamente as referidas nas alíneas do n.º 2, do artigo 71º, do Código Penal. Assim, há que ponderar: As exigências de prevenção geral, que constituirão o limiar abaixo do qual não será possível ir, sob pena de ser posta em risco a função tutelar do direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada; As exigências de culpa do agente, limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito do princípio politico-criminal da necessidade da pena, e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigos 1º e 18º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa); e as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo, e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena. Vertendo os princípios supra descritos ao caso concreto, temos que: No que concerne à culpa, a mesma molda-se pelo dolo directo, pois o arguido tem perfeito conhecimento das suas condutas, agindo livre, deliberada e conscientemente (artigo 14º, n.º 1, do Código Penal). No que concerne às razões de prevenção geral, relativamente ao crime de violência doméstica, estas são elevadas, tendo em conta a frequência com que ocorre a prática deste crime, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das pessoas violentadas, o que fez com que o legislador transformasse este tipo de ilícito em crime de natureza pública. No que respeita ao crime de violação, estas são também elevadas pela necessidade comunitariamente sentida de preservar os valores da liberdade na autodeterminação sexual, quer quando o agente actua contra a vontade do ofendido, quer quando actua sabendo que o ofendido não dispõe de capacidade e vontade de autodeterminação relevante por virtude da idade ou de doença que lhe fragiliza ou retira a capacidade para se determinar livremente. A título de prevenção especial temos que o arguido tem 50 (cinquenta) anos de idade e tem antecedentes criminais registados, tendo sofrido uma condenação pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, em que foi condenado em pena de multa. Mostra-se social, familiar e profissionalmente integrado, estando separado da ofendida desde 04/10/2019, data em que esta saiu de casa com o filho do casal, estando divorciados desde 18/03/2021, não pretendendo o casal retomar a vida em comum e não contactando o arguido com a ofendida desde então, excepto sobre questões do filho do casal. Por outro lado, a conduta do arguido está directamente relacionada com o consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do mesmo - o qual este não reconhece -, facto que não desculpabiliza, nem diminui a ilicitude e gravidade da sua conduta, sendo certo que o arguido já se submeteu a um tratamento em 2008, tendo, contudo, recaído no consumo excessivo de álcool. O arguido agrediu a sua mulher física, psíquica e sexualmente, controlando, injuriando, humilhando e menosprezando a sua mulher, querendo submetê-la à sua vontade, conduta que decorreu de 2014 a 04/10/2019. Por outro lado, o arguido não admitiu a prática dos factos, não demonstrando nenhum arrependimento, nem autocensura pela sua conduta, sendo que, de acordo com o relatório da DGRSP este apresenta “como principais fatores de risco, a impulsividade, a baixa tolerância à frustração, a atitude pró-criminal, o confronto com as regras e a presença de crenças disfuncionais e distorções cognitivas legitimadoras do crime de violação.” Tudo ponderado, atentas as razões de prevenção geral e especial, o tribunal decide aplicar ao arguido pena de prisão a graduar concretamente em: - 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão no que respeita ao crime de violência doméstica; e - 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão no que respeita ao crime de violação agravada; Nos termos do artigo 77º, n.º 1, do Código Penal “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.” A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º, n.º 2, do Código Penal). Assim, tendo em atenção as razões de prevenção geral e especial supra descritas e o espaço temporal em que os factos delituosos foram praticados pelo arguido, o tribunal fixa ao arguido a pena única de 6 (seis) anos de prisão. V – Penas Acessórias: Dispõe o artigo 152º, n.º 4, do Código Penal que “Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.” A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância (artigo 152º, n.º 5, do Código Penal). Assim, face à gravidade dos factos dados como provados e à sua reiteração no tempo, o tribunal entende aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactar por qualquer meio com a ofendida BB, pelo período de 3 (três) anos, bem como de residir com esta no mesmo período, em caso de licenças precárias ou saída antecipada em liberdade condicional, dispensando-se os meios técnicos de controlo à distância atenta a pena de prisão efectiva em que o arguido vai condenado. (…) Igualmente, face à gravidade dos factos dados como provados e à sua reiteração no tempo, o tribunal entende aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de uso e porte de armas pelo período de 5 (cinco) anos. a) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea d) e 2, alínea a), do Código Penal (ofendido CC). b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão (ofendida BB). c) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação agravada, previsto e punido pelos artigos 164º, nº 1, alínea a) (na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 101/2019 de 06/09) e 177º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão. d) Em cúmulo jurídico condenar o arguido AA na pena única de 6 (seis) anos de prisão. e) Condenar o arguido AA, nos termos do artigo 152º, n.º 4 e 5, do Código Penal, na proibição de contactar por qualquer meio com a ofendida BB pelo período de 3 (três) anos, bem como de residir com esta no mesmo período, em caso de licenças precárias ou saída antecipada em liberdade condicional. f) Condenar o arguido AA, nos termos do artigo 152º, n.º 4, do Código Penal, na proibição de uso e porte de armas pelo período de 5 (cinco) anos. g) Condenar o arguido AA em taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC, e nas custas do processo. h) Condenar o demandado AA no pagamento à demandante BB da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), a título de danos morais, acrescida de juros de mora calculados desde a prolação da presente decisão até integral pagamento, a qual, actualmente, é de 4%. i) Custas do pedido cível a cargo da demandante e do demandado na proporção do decaimento (artigo 523º do Código de Processo Penal e artigo 527º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido à demandante a fls. 233 a 235.
b. O direito
Nos termos do artigo 40.º, do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito. Por aplicação das normas constitucionais convocáveis (artigo 27.º, n.º 2 e 18.º, n.ºs 2 e 3), a determinação e escolha da pena privativa da liberdade regem-se pelo princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso e pelos respetivos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. acórdão deste Tribunal, 3.ª Secção, de 3.11.21, no proc. n.º 875/19.0PKLSB.L1.S1, e Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º). A aplicação da pena tem como pressuposto que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de atuar de acordo com o direito, sendo o grau da culpa o limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). O artigo 71.º, no n.º 2, do Código Penal, enumera, de modo não taxativo, fatores que conformam a determinação da medida da pena que se referem à execução do facto (“o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, “a intensidade do dolo ou da negligência”, “os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram”), à personalidade do agente (“As condições pessoais do agente e a sua situação económica”, “a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”) e outros relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto (“A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime”)[1]. Sendo a finalidade da pena a proteção de um bem jurídico e, sempre que possível, a reintegração social do agente e não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa, a medida da pena corresponderá à medida necessária de tutela do bem jurídico sem ultrapassar a medida da culpa.[2] Importa, pois, averiguar se a pena aplicada (e as penas parcelares) respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação. Entende o recorrente que na determinação das penas parcelares e da pena única, perante “os elementos trazidos aos autos e os parâmetros para definir a medida concreta da pena, artigos 40º., 71º. e 72º. do Código Penal o tribunal a quo não sopesou devidamente a adição alcoólica do arguido, causa relevante e propiciadora da pratica dos ilícitos criminais de que foi condenado”; que os “factos ilícitos, aconteceram sempre e quando o arguido se encontrava sob o efeito do álcool, pelo que o tribunal a quo deveria ter tido alguma contemplação, quanto à imputabilidade, o que foi completamente omitido pela decisão recorrida.” E ainda que o arguido é a primeira vez que é condenado por crimes desta natureza, beneficia de apoio familiar, está inserido social e profissionalmente e tem trabalho estável. Entende, ainda, que “as penas parcelares mostram-se excessivas, pelo que a pena de prisão quanto ao crime de violência doméstica, deve fixar-se nos 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e a pena de prisão pelo crime de violação, fixar-se em 4 (quatro) anos e 4(quatro) meses. “Procurando assegurar as necessidades de reintegração e ressocialização, a pena única não deve ser superior a 5 (cinco) anos de prisão. Mais julga justificar-se a suspensão da execução da pena, por igual período 5 (cinco) anos, com regime de prova, frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, cfr. artigo 152º. nº.4 do Código Penal, submissão a um tratamento médico de combate á dependência alcoólica.” Na sua fundamentação, o acórdão condenatório tomou em consideração existirem elevadas razões de prevenção geral, no que respeita ao crime de violência doméstica, “tendo em conta a frequência com que ocorre a prática deste crime, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das pessoas violentadas, o que fez com que o legislador transformasse este tipo de ilícito em crime de natureza pública. No que respeita ao crime de violação, estas são também elevadas pela necessidade comunitariamente sentida de preservar os valores da liberdade na autodeterminação sexual, quer quando o agente actua contra a vontade do ofendido, quer quando actua sabendo que o ofendido não dispõe de capacidade e vontade de autodeterminação relevante por virtude da idade ou de doença que lhe fragiliza ou retira a capacidade para se determinar livremente.” O acórdão especificou, também, com exaustão, as circunstâncias que considerou relevantes “no campo da prevenção especial”, a favor e contra o arguido. No campo da prevenção especial, o acórdão levou em conta que o arguido “tem 50 (cinquenta) anos de idade e tem antecedentes criminais registados, tendo sofrido uma condenação pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal, em que foi condenado em pena de multa”. Que o arguido se mostra “social, familiar e profissionalmente integrado, estando separado da ofendida desde 04/10/2019, data em que esta saiu de casa com o filho do casal, estando divorciados desde 18/03/2021, não pretendendo o casal retomar a vida em comum e não contactando o arguido com a ofendida desde então, excepto sobre questões do filho do casal”. Que “a conduta do arguido está directamente relacionada com o consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do mesmo - o qual este não reconhece -, facto que não desculpabiliza, nem diminui a ilicitude e gravidade da sua conduta, sendo certo que o arguido já se submeteu a um tratamento em 2008, tendo, contudo, recaído no consumo excessivo de álcool.” (itálico nosso) Que o “arguido agrediu a sua mulher física, psíquica e sexualmente, controlando, injuriando, humilhando e menosprezando a sua mulher, querendo submetê-la à sua vontade, conduta que decorreu de 2014 a 04/10/2019”. E, por fim, que “o arguido não admitiu a prática dos factos, não demonstrando nenhum arrependimento, nem autocensura pela sua conduta, sendo que, de acordo com o relatório da DGRSP este apresenta “como principais fatores de risco, a impulsividade, a baixa tolerância à frustração, a atitude pró-criminal, o confronto com as regras e a presença de crenças disfuncionais e distorções cognitivas legitimadoras do crime de violação.” No que à culpa respeita, o acórdão condenatório considera que “a mesma molda-se pelo dolo directo, pois o arguido tem perfeito conhecimento das suas condutas, agindo livre, deliberada e conscientemente (artigo 14º, n.º 1, do Código Penal)”. Em aplicação dos critérios anteriormente expostos, a determinação da pena dentro das molduras penais correspondentes aos crimes praticados (crime de violência doméstica, com a moldura penal abstrata de pena de prisão de 2 a 5 anos e crime de violação, agravado, a que corresponde a moldura penal abstrata de pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses), deve, pois, comportar-se nos limites da gravidade dos factos definida pelas circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) descritas na matéria de facto provada, isto é, pelas circunstâncias que exprimem a gravidade do ataque aos bens jurídicos protegidos pelas respetivas normas incriminadoras. A ponderação dessas circunstâncias, levada a efeito no acórdão recorrido não é merecedora de censura. São manifestas e acentuadas as necessidades de prevenção geral justificadas pela frequência de crimes de violência doméstica, bem como relativamente a crimes contra a liberdade sexual, cometidos num contexto de vida em comum, pautada pela violência, a valorar em função das consequências não culposas do facto. O grau de ilicitude dos factos, a persistência, ao longo dos anos de vida em comum, da violência, verbal, física e sexual e a gravidade das suas consequências, tal como resultam dos factos provados, militam severamente contra o arguido. O arguido agiu com dolo direto, com reiteração, revelando profundo desprezo pela dignidade, integridade física e liberdade sexual da assistente. O grau de violação dos deveres que particularmente se lhe impunham, de respeito pela sua companheira e pelo filho de ambos, é extremamente elevado. A adição alcoólica do arguido foi ponderada e desconsiderada, dado não constituir justificação dos atos ilícitos graves praticados e persistir, não obstante a realização de terapia adequada. Com efeito, não se evidenciam circunstâncias que devam merecer particular valoração por deporem a favor do arguido, com impacto na determinação da pena. O arguido tem antecedentes criminais e o facto de ser um trabalhador bem considerado pela entidade patronal revela-se de pouco significado na consideração da globalidade dos factos, ocorridos no “resguardo do lar”. O arguido não reconheceu os factos nem mostrou arrependimento. Recorde-se a apreciação constante do relatório da DGRSP: “Da análise da informação recolhida, nas diversas fontes, bem como através da aplicação dos instrumentos de avaliação do risco, foram identificados, como principais fatores de risco, a impulsividade, a baixa tolerância à frustração, a atitude pró-criminal, o confronto com as regras e a presença de crenças disfuncionais e distorções cognitivas legitimadoras do crime de violação São, pois, como consideram o acórdão condenatório, o Ministério Público e a assistente, muito elevados o grau de culpa e as exigências de prevenção geral e especial, revelados pelas circunstâncias mencionadas, a ter em consideração nos termos do artigo 71.º do Código Penal, sem ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal). No que às penas parcelares respeita, note-se que o arguido foi condenado por apenas 1 crime de violação e numa pena que se aproxima, decisivamente, do limite mínimo; quanto ao crime de violência doméstica, a pena fixou-se no meio da moldura penal abstrata aplicável. Por sua vez, a pena única representa um pequeno acréscimo à pena parcelar determinada para 1 crime de violação agravado. Assim, tendo em conta as molduras das penas abstratamente aplicáveis, não se surpreendem elementos que permitam justificar um juízo de discordância relativamente à pena aplicada. Não se verificando, pelo exposto, motivo que permita identificar violação do disposto nos artigos 40º., 70º., 71º., 72º. e 77º., todos do Código Penal.
Pelo que, se entende não ser de efetuar intervenção corretiva na medida da pena única. Improcede, assim, a petição de redução das penas parcelares e da pena conjunta.
III. DECISÃO: Em conformidade com o exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, decide julgar improcedente o recurso do arguido, confirmando-se, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente – art. 513º n.º 1 do CPP - fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs – art. 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Teresa de Almeida (Relatora) Lopes da Mora (Adjunto) Nuno Gonçalves (Presidente da Secção) _______ [1] Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2.ª Edição, 2022, pag.57. |