Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1530/20.3T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
SEGMENTO DECISÓRIO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO-PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
PROMITENTE-COMPRADOR
RESOLUÇÃO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
SINAL
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
PRAZO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 10/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - A delimitação da dupla conformidade de decisões, enquanto obstáculo admissibilidade da revista, exige o confronto com a autonomia e cindibilidade do objecto do processo, mesmo no caso de objecto único, e na viabilidade da apreciação de segmentos da decisão entre si independentes, autonomia que é aferida em função da respectiva fundamentação;

II - A cláusula, inserta num contrato promessa bivinculante, em execução da qual a coisa imóvel objecto mediato do contrato de compra e venda prometido é traditada para os promitentes compradores, mediante o pagamento de uma compensação, devida até à conclusão do contrato definitivo, não é qualificável com contrato de arrendamento urbano, mas como simples convenção acessória, subalterna e instrumental, através da qual se antecipa um dos efeitos jurídicos deste último contrato;

III - Do contrato promessa emergem, além das prestações principais de facto jurídico positivo - a obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido - deveres acessórios de conduta que arrancam, materialmente, do princípio regulativo estruturante da boa-fé;

IV - A resolução do contrato promessa exige o incumprimento definitivo das obrigações que dele emergem, o incumprimento definitivo que surge não apenas quando for força da não realização ou do atraso na prestação o credor perca o interesse objectivo nela ou quando, havendo mora, o devedor não cumpra no prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor - mas igualmente nos casos em que o devedor declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito ou adopta uma qualquer outra conduta manifestamente incompatível com o cumprimento;

V - A resolução infundada do contrato promessa determina o seu incumprimento, dado que revela o propósito, claro, sério e unívoco, a intenção categórica ou o propósito indubitável e irrevogável de não cumprimento - e de não cumprimento definitivo - daquele mesmo contrato;

VI - Apesar da autonomia do contrato promessa relativamente ao contrato definitivo e de dele apenas resultarem prestações de facto jurídico positivo, no cumprimento destas obrigações são relevantes as eventuais perturbações das prestações que resultam do contrato definitivo ou principal;

VII - A alegação do abuso de direito, quando tenha por efeito a inibição do exercício de poderes jurídicos, v.g., de um direito subjectivo, resolve-se numa excepção peremptória, cabendo, por isso, o ónus da prova dos factos correspondentes ao excipiente, pelo que, no caso de non liquet, há que decidir contra essa parte a questão correspondente.

Decisão Texto Integral:
Proc. 1530/20.3T8CBR.C1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório.

AA e BB propuseram, no Juízo Local Cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., contra CC e DD, acção declarativa, com processo comum, pedindo se reconheça judicialmente a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento relativo à fracção autónoma, designada pela letra “B” do prédio urbano localizado na Quinta da ..., ..., e se condenem as últimas a despejar imediatamente o locado e entregá-lo livre e devoluto de pessoa e bens e a pagar-lhes a quantia de € 8 683,00, a título de rendas em atraso, a que acresce a indemnização pela mora na restituição do locado, prevista no art.º 1045.º, n.ºs 1 e 2, desde a comunicação de resolução do contrato até efectiva desocupação e entrega do imóvel, e que à data da entrada em juízo da presente acção perfaz a quantia de € 4 000,00, e juros á taxa legal que se vencerem sobre as rendas em atraso, desde a data do vencimento até efectivo pagamento.

Fundamentaram estas pretensões no facto de, no dia 19 de Junho de 2018, terem celebrado com as rés um contrato promessa de compra e venda, através do qual prometeram vender e comprar, pelo preço de € 260 000,00, aquele prédio urbano, devendo a escritura definitiva ser celebrada até ao dia 30 de Junho de 2019, no qual acordaram na autorização das demandadas a habitar o imóvel, mediante o pagamento a título de compensação pelos encargos e pela privação do uso, a quantia mensal de € 500,00, obrigação que cessaria com a celebração do documento que transferisse a posse e a propriedade do imóvel, e de as demandadas, que o ocuparam, no dia 19 de Junho de 2018, não terem pago qualquer quantia a título de renda, ou outro, pelo que lhes comunicaram, no dia 20 de Novembro de 2019, por notificação judicial avulsa, a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento, não tendo, porém, as demandadas procedido ao pagamento das rendas em dívida nem à entrega do locado.

As rés defenderam-se alegando, designadamente, que as partes não pretenderam celebrar um contrato de arrendamento, não estando em causa uma renda mas antes um valor que pretendia compensar os autores pela utilização do imóvel até à celebração do negócio definitivo, tendo pago, no dia 4 de Julho de 2018, € 500,00, e no dia 16 de Agosto de 2018, € 500,00, que agendaram a celebração do negócio definitivo para 5 e, depois, para 9 de Julho de 2019, que, porém, tendo constatado que a descrição e a caderneta prediais não contemplavam a totalidade das edificações que tinham anunciadas para venda, por não estarem licenciadas, sendo clandestinas, comunicaram aos autores a necessidade de reagendar a celebração do negócio definitivo em função do tempo necessário para que aqueles regularizassem os vícios apontados, mas que os autores lhes facultaram o prazo de 20 dias para a marcação da escritura, considerando o contrato automaticamente resolvido se não fosse cumprido o teor da deliberação, ao que responderam facultando o prazo de 30 dias para apresentação da documentação necessária para comprovar a regularidade do edifício no tocante à actualização da descrição do prédio e ao licenciamento e à obtenção da licença de utilização, documentos que os autores não apresentaram, o que lhes dá o direito de exigir o dobro do sinal de € 70 000,00 que prestaram e de reter o imóvel até ao pagamento desse crédito. Em reconvenção pediram:

a) A declaração de que os Autores incorreram em incumprimento definitivo do contrato promessa, designadamente considerando que não tinham fundamento para proceder à resolução ou que não corresponderam à interpelação das Rés que procedem, por esta via da citação e por sua vez, à resolução;

b) A condenação dos Autores a pagar, a título de indemnização, a quantia de € 140.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data de notificação do pedido reconvencional;

c) A declaração de que o crédito das Rés referido em b) goza de direito de retenção tendo por objecto fracção autónoma designada pela letra “B”, a que corresponde o andar esquerdo lado sul, destinado a habitação, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta da ..., freguesia de ... e ..., concelho e distrito de ..., descrito na ....ª Conservatória do Registo Predial de ...com o n.º ...14 e inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia com o artigo ...81, ao abrigo do disposto no art.º 755.º, n.º 1, al. f) do CCiv;

d) A condenação dos Autores a pagar às Rés, a título de compensação por benfeitorias ou com base no instituto do enriquecimento sem causa, a quantia de € 17.173,14, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação do pedido reconvencional;

e) A declaração de que o crédito das Rés referido em d) goza de direito de retenção tendo por objecto fracção autónoma designada pela letra “B”, a que corresponde o andar esquerdo lado sul, destinado a habitação, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta da ..., freguesia de ... e ..., concelho e distrito de ..., descrito na ....ª Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º ...14 e inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia com o artigo ...81, ao abrigo do disposto no art.º 754.º do CCiv.

Oferecido o articulado de réplica – no qual os autores afirmaram, designadamente, que foram as rés que incorreram em incumprimento do contrato promessa, uma vez que, apesar da interpelação admonitória que lhes foi efectuada, não procederam à marcação da escritura dentro do prazo que lhes havia sido fixado nem lhes comunicaram a impossibilidade da sua celebração - ordenada a remessa do processo para o Juízo Central Cível de ... e realizada a instrução, discussão e julgamento da causa, o Sr. Juiz de Direito, por sentença proferida no dia 30 de Setembro de 2023, depois de observar que a cláusula contratual relativa à tradição do imóvel não constitui um arrendamento, mas uma estipulação acessória no contrato de compra e venda, destinada a regular os termos da tradição do imóvel e a correspondente compensação dos autores, julgou a ação e a reconvenção parcialmente procedentes, declarou resolvido o contrato promessa celebrado entre os autores e as rés por culpas concorrentes de ambos no não cumprimento do contrato promessa, condenou rés a entregar imediatamente o imóvel aos autores livre e devoluto de pessoas e bens e a pagar aos autores a quantia de € 30.200,00 a título de compensações vencidas até 30 de setembro de 2023 e nas compensações vincendas, à razão de 500€ mensais até efetiva entrega do imóvel e juros sobre as mesmas, vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, até efetivo pagamento, condenou os autores a pagar às rés a quantia de € 70.000,00 acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação do pedido reconvencional até integral pagamento e absolveu as rés e os reconvindos do resto dos pedidos.

Ambas as partes interpuseram desta sentença recurso ordinário de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão proferido no dia 21 de Maio de 2024 – com fundamento em que se impõe concluir que o incumprimento do contrato só poderá ser imputado aos Autores, na medida em que, ao invés de satisfazerem as legitimas reivindicações que haviam sido feitas pelas Rés, comunicaram-lhes – em 19/07/2019 – a automática resolução do contrato caso a escritura não fosse marcada no prazo de 20 dias (recusando, portanto, a celebração do contrato após o decurso desse prazo) sem que tivessem apresentado qualquer documentação que atestasse a regularização da situação do imóvel ou que atestasse o início aos procedimentos necessários a tal regularização, que tal incumprimento só poderá ser imputado aos Autores, dado que as Rés nunca recusaram em definitivo a celebração do contrato e sempre manifestaram interesse na sua celebração, exigindo apenas – legitimamente conforme referimos supra – que os Autores providenciassem previamente pela regularização da situação do imóvel (interesse que, aliás, continuaram a manifestar mesmo após a resolução do contrato operada pelos Autores conforme resulta da sua comunicação de 13/08/2019), que foram os Autores que, ao invés de se disponibilizaram para satisfazer essas exigências (legítimas), acabaram por recusar a celebração do contrato quando, sem fundamento válido, declararam a respectiva resolução caso a escritura não fosse marcada dentro do prazo que estipularam e que as partes outorgantes não tiveram a intenção de celebrar um contrato de arrendamento submetido ao regime jurídico próprio do arrendamento, tendo pretendido apenas estabelecer uma compensação pela tradição do imóvel e, consequentemente, pelo respectivo uso – deliberou:

- Declarar resolvido o contrato promessa celebrado entre as partes por incumprimento definitivo imputável aos Autores, condenando-se os mesmos a restituir às Rés o valor de 140.000,00€ (sinal em dobro) acrescido de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação do pedido reconvencional até pagamento, revogando-se ou alterando-se nessa medida os pontos A) e D) da decisão recorrida;

- Reconhecer e declarar que, para garantia do crédito referido, as Rés gozam de direito de retenção sobre o imóvel prometido vender (acima identificado), revogando-se, nessa medida, a decisão – contante do ponto B) da decisão recorrida – que condenou as Rés a entregar o imóvel aos Autores livre e devoluto de pessoas e bens;

- Confirmar a decisão – constante do ponto C) – que condenou as Rés a pagar aos Autores a quantia de 30.200,00€ a título de compensações vencidas até 30 de Setembro de 2023 e nas compensações vincendas, à razão de 500€ mensais até efectiva desocupação (e não entrega como se referiu na decisão recorrida) do imóvel e juros sobre as mesmas, vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, até efectivo pagamento;

- Confirmar a decisão que absolveu Autores e Rés dos restantes pedidos.

É este acórdão que os autores impugnam no recurso ordinário de revista, tendo rematado a sua alegação com as conclusões seguintes:

1. O presente recurso vem interposto do Acórdão tirado em 21.05.2024 pela 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, nos segmentos decisórios através dos quais se decidiu (a) declarar “resolvido o contrato promessa celebrado entre as partes por incumprimento definitivo imputável aos Autores, condenando-se os mesmos a restituir às Rés o valor de 140.000,00€ (sinal em dobro) acrescido de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação do pedido reconvencional até pagamento, revogando-se ou alterando-se nessa medida os pontos A) e D) da decisão recorrida”; e (b) reconhecer “e declarar que, para garantia do crédito referido, as Rés gozam de direito de retenção sobre o imóvel prometido vender (acima identificado), revogando-se, nessa medida, a decisão – constante do ponto B) da decisão recorrida – que condenou as Rés a entregar o imóvel aos Autores livre e devoluto de pessoas e bens”.

2. O Tribunal da Relação de Coimbra centrou a sua análise mais na matéria do incumprimento contratual do que na interpretação da vontade negocial plasmada no contrato promessa para, só então, estar em condições de verificar o que foi ou não e por quem incumprido.

3. O Tribunal da Relação de Coimbra absteve-se de aferir do sentido e do alcance que objetivamente se pode retirar das declarações contratuais, pressupondo que resultava do contrato-promessa o direito de as promitentes compradoras exigirem a regularização da situação jurídica do prédio (a existir tal necessidade). Daí que se entenda que o Tribunal a quo cometeu erro lógico, de natureza omissiva, na sua apreciação de direito: não atendeu àquilo a que as partes efetivamente se vincularam.

4. O contrato é um meio de autocomposição de interesses das partes, sendo estas quem determina o sentido dessa autocomposição. Cabe às partes, em sede negocial e dentro dos limites da lei, fixar a seu critério o conteúdo da prestação (cfr. artigos 398.º, n.º 1, e 405.º do Código Civil). Tendo a formação da vontade de cada uma das partes operado de forma livre e sem vícios que a comprometam, o resultado da autocomposição de interesses a que as partes chegaram num determinado momento e dadas certas circunstâncias, a não ser que contrarie a lei, será aquele a que se vincularam (cfr. Parecer da Prof.ª Doutora Sandra Passinhas).

5. O dever de fazer corresponder a realidade material do prédio com a sua realidade matricial ou registral não é uma causa de inalienabilidade do bem, nem sequer uma condição para a sua transmissão, de acordo aliás como princípio de que os contratos não curam o interesse público (idem).

6. Os interesses legítimos pressupõem uma norma jurídica protetora, primacialmente ou em primeira linha, de interesses coletivos mas que inclui, entre os seus vários fins, a satisfação de interesses particulares agregados ou subjacentes não atribuindo ao titular destes interesses o exercício, e muito menos qualquer disponibilidade, de acionar os seus principais mecanismos coercitivos, porque mais ligados à satisfação dos interesses coletivos. Consequentemente, não servem de fundamento legal para se entender que as Demandadas pudessem ter invocado a resolução do contrato por incumprimento contratual dos Demandantes (idem).

7. Não se pode aportar ao caso sub judice, nem como padrão interpretativo, o regime da venda de bens onerados. Em primeiro lugar, falha o requisito de as irregularidades jurídicas no bem vendido impedirem o gozo ou a disposição deste pelo comprador. A falta de correspondência entre a situação material do prédio e a sua descrição matricial e registral não é suscetível de impedir o seu gozo pelas promitentes compradoras (como acontece na situação típica da locação do bem vendido), nem impede a disposição do bem, porquanto as compradoras sempre o poderiam alienar no termos em que adquiriram (idem).

8. A alegação de que as obras em causa careciam de licenciamento era das ora Recorridas, sobre elas recaindo o respetivo ónus da prova, designadamente, mas não exclusivamente, através de declarações certificadas da Câmara Municipal de ... ou de pareceres técnicos de especialistas em urbanismo. Não foi produzido, porém, qualquer elemento de prova nesse sentido.

9. Da matéria de facto dada como assente apenas resulta que no processo de licenciamento junto da Câmara Municipal não é feita qualquer referência às edificações implantadas no logradouro (cfr. ponto 36.º, não se podendo retirar do ponto 38.º que se impugnou que o licenciamento destas era necessário), dela não se permitindo a conclusão de direito de que as obras careciam de controlo prévio municipal ou não.

10. Os ora Recorrentes haviam alegado nos artigos 64.º a 69.º da réplica que as obras em causa eram de escassa relevância urbanística, estando isentas de controlo prévio ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE - DL n.º 555/99, de 16 de dezembro) o que não foi infirmado por qualquer elemento probatório.

11. Quanto à matéria relativa à necessidade de licenciamento das obras no logradouro, verifica-se insuficiência e exiguidade da matéria de facto provada para a decisão de direito tomada: a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respetivas premissas [decisão de facto], ficando por se perceber em que medida foram ou não preenchidas as hipóteses normativas dos artigos 6.º, n.º 1, b) e c), ou 62.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE - DL n.º 555/99, de 16 de dezembro).

12. Não resulta sequer da matéria de facto– nem foi alegado pelas ora Recorridas – a data da realização das edificações descritas nos pontos 24 a 28 da matéria de facto provada, se foram todas realizadas de uma só vez ou em momentos separados. Tal implica desconhecer-se qual o Regulamento Municipal de Urbanização e de Edificação em vigor à data da construção: seria o publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 140, de 21 de julho de 2017; o publicado na Diário da República, n.º 132, de 10 de julho de 2012, ou o constante do Edital n.º 57/91, de 12 de abril, aprovado pela Assembleia Municipal em 2 de abril de 1991? Não foi feita prova conducente à determinação da regulamentação e da legalidade vigente.

13. Atenta o ónus de alegação e a repartição do ónus da prova definida no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, era às RR/Recorridas que cabia demonstrar que cada uma das novas edificações careciam de licença/autorização, o que, atenta a exiguidade da matéria assente, não lograram objetivamente alcançar.

14. O uso dos anexos (churrasqueira e forno, instalação sanitária e garagem) não é habitacional, nem comercial, de serviços ou industrial, não cabendo assim no âmbito da licença de utilização para habitação existente.

15. As construções no logradouro correspondem a equipamento lúdico ou de lazer associado a edificação principal com área inferior à desta última (cfr. artigo 6.º, n.º 1, e) do RJUE), não tendo aquela utilização a obrigatoriedade legal de estar integrada numa licença/autorização de utilização.

16. Só quando tais construções, ainda que isentas de controlo prévio (licenças e comunicação prévia), tenham utilização diferente ou autónoma da habitacional original é que carecerão de autorização de utilização, como sucede com anexos a um edifício para habitação que não careçam de licença de construção, mas que serão utilizados, por exemplo, para comércio.

17. A não ser assim, no caso concreto (em que a licença de utilização é do prédio em propriedade horizontal), só poderia ser alterada a autorização de utilização da fração prometida vender, caso se alterasse o título da propriedade horizontal, por escritura pública, e se obtivesse nova autorização de utilização para todo o empreendimento.

18. Não foi, seguramente, essa a finalidade do Decreto-Lei n.º 281/99, mas, no caso de prédio para habitação, apenas a de assegurar que aqueles são adequados a tal finalidade. O edifício principal dos autos está titulado por alvará de licença de utilização, não tendo de o estar seus complementos de escassa relevância urbanística com finalidades diferentes da habitação mas àquele associados,

19. Decorre do alegado na motivação (a) não haver elementos de facto nos autos que permitam concluir pela regulamentação urbanística aplicável ao caso concreto, precludindo a análise interpretativa conducente à conclusão de as obras em causa no processo estarem sujeitas a licenciamento ou a autorização urbanística; (b) tal delimitação constituía ónus de invocação e de prova pelas Recorridas na fase de execução do contrato-promessa e também judicialmente, não se podendo concluir que as obras careciam de licença; (c) que as obras de escassa relevância urbanística realizadas posteriormente à autorização de utilização inicial devem ser analisadas separadamente e não como um bloco, não tendo necessariamente de ser averbadas à autorização inicial.

20. Concluindo como no Parecer da Prof.ª Fernanda Paula Oliveira, “quando [as obras de escassa relevância urbanística] são realizadas em simultâneo com o edifício principal (isto é, integradas no mesmo projeto), a licença de utilização deste abrange ou identifica aquelas (por exemplo, moradia com anexo, garagem e churrasqueira); quando são realizadas posteriormente as mesmas, por não estarem sujeitas a licença de construção, também não são objeto de licença de utilização”.

21. Nenhuma norma legal do Código do Notariado, do Código do Registo Predial ou de outro ato normativo outro impede a celebração da escritura de compra e venda quando exista uma desconformidade entre a realidade material do prédio, por um lado, e as descrições registrais e matriciais, por outro.

22. A única exigência legal relativa àquela factualidade respeita à obrigatoriedade de harmonização entre as descrições registrais e as inscrições matriciais (cfr. artigo 28.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e artigo 58.º do Código do Notariado).

23. A finalidade do registo predial é a de permitir a qualquer interessado aferir da existência e titularidade dos direitos reais incidentes sobre prédios (cfr. artigo 2.º do Código do Registo Predial), razão pela qual presunção de titularidade constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abarca os elementos da descrição predial, nomeadamente no que respeita à área ou à composição do imóvel.

24. A presunção não abrange os limites ou confrontações, a área dos prédios, as inscrições matriciais - com finalidade essencialmente fiscal - numa palavra, a identificação física, económica e fiscal dos imóveis (cfr. Ac. do STJ de 03.12.2013, proc. 194/09.0TBPBL.C1).

25. Não resulta das normas do RJUE que a alteração das edificações (in casu, construção de edificações associadas ao edifício principal) para além do que havia sido objeto da autorização de utilização tenha influência nesta: a autorização de utilização produz efeitos até ser revogada ou caducar e não resulta do artigo 71.º do RJUE, que constitua causa de caducidade da autorização a sua desconformidade superveniente com a realidade material derivada da realização de construções associadas destinadas a fins lúdicos.

26. Para verificar da possibilidade legal da celebração da escritura/do título de compra e venda, importa colocarmo-nos na posição do notário/conservador e no controlo da legalidade que iria realizar: in casu, perante a licença de utilização, a caderneta predial e a certidão do registo predial do bem imóvel objeto do contrato-promessa, o notário/conservador estava habilitado a realizar o ato.

27. As normas legais do CIMI configuram regras de direito público sem reflexos no direito privado na medida em que disciplinam apenas relação jurídica tributária a que terceiros são alheios.

28. A única sanção que o próprio CIMI prevê para a não atualização da inscrição do prédio na matriz no prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º é a possibilidade de atualização oficiosa por parte do diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira e eventual atualização do respetivo valor matricial (cfr. artigo 13.º, n.º 3, do CIMI), não estando prevista a impossibilidade de celebração de negócios translativos da propriedade de bens imóveis quando não alterada a inscrição – aliás, a fiscalização seria impossível em termos práticos.

29. Atos administrativos em matéria urbanística como licenças e autorizações são caracterizados pela sua submissão exclusiva a regras de direito do urbanismo, não constituindo, modificando ou extinguindo relações jurídicas privadas (vd. Fernanda Pula Oliveira, Direito do Urbanismo. Do planeamento à gestão. AEDRL/NEDAL, 2.ªEd., p. 280 e ss).

30. A expressão “livre de ónus e encargos” tabelarmente utilizada em tantos contratos com promessa de transmissão da propriedade sobre bens assenta na aplicabilidade prevista no artigo 939.º do Código Civil das regras da compra e venda a outros negócios onerosos – como o contrato promessa de compra e venda -, designadamente da norma contida no artigo 905.º do Código Civil.

31. Como se reconhece no Ac. STJ de 03.02.2011, tirado no processo n.º 263/07.0TBCHV.P1.S1: “Devem considerar-se bens onerados aqueles que estão sujeitos a alguns ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, neles não se incluindo os que advêm de regras de direito público” (sublinhado nosso).

32. As regras de direito público são irrelevantes enquanto elementos consubstanciadores de ónus previstos no artigo 905.º do Código Civil, ou seja, para efeitos meramente civis.

33. Decorre dos autos que:

f) Os ora recorrentes instruíram o procedimento tendente à celebração do contrato prometido com os elementos efetivamente necessários à sua celebração: identificação pessoal, certidões matricial e registral, licença de utilização, certificado energético;

g) era legalmente possível celebrar o contrato prometido, porquanto existia licença de utilização válida e eficaz e harmonização entre inscrição matricial e descrição predial;

h) as promitentes compradoras, representadas pela mãe, jurista, conheceram, pelo menos quando celebraram o contrato promessa, se não antes, a inscrição matricial e a descrição predial do bem imóvel que já conheciam, designadamente no que toca às construções do logradouro;

i) no artigo 52.º da contestação, as Recorridas confessaram judicialmente que a existência dos anexos foi essencial para a formação da vontade de comprar;

j) ainda assim, nada declararam, antes ou no próprio contrato-promessa que era condição necessária deste a atualização da inscrição matricial e da descrição predial;

k) apenas em 13.08.2019, já decorrido o prazo para celebração do contrato prometido e findo o prazo da interpelação admonitória, as promitentes compradoras remeteram comunicação – recebida posteriormente, o que deverá ser considerado por estar em causa declaração receptícia - e apenas para o domicílio da promitente vendedora (já não para o do promitente vendedor, em Angola) onde invocam a falta de atualização daquelas descrições como fundamento para não realização do contrato, o que nunca haviam anteriormente.

34. O quadro exposto revela que a atualização da inscrição matricial e da descrição predial não foi integrada no objeto do contrato-promessa e que o contrato prometido não foi celebrado única e exclusivamente porque as ora recorridas e sua mãe não o pretenderam, mesmo depois de receberem a interpelação admonitória junta sob o documento 14 com a contestação, e que, atentas as efetivas declarações negociais (descrição no contrato-promessa do bem imóvel em desacordo com a realidade material conhecida pelos contratantes e inexistência de previsão contratual de legalização/atualização), as ora Recorridas não tinham o direito de exigir aos Recorrentes qualquer regularização e de recusar a celebração do contrato prometido na situação material e jurídica existente.

35. A resolução do contrato promessa apenas pode ser imputada a conduta omissiva das promitentes compradoras, o que se invoca com as legais consequências.

36. Ainda que assim não fosse, atento a formação jurídica da representante das Recorridas e os pontos da 2 a 6, 11 a 14, 18 e 40 a 44 matéria de facto (com especial incidência no facto de, residindo no imóvel desde a celebração do contrato-promessa até à data, pagando somente duas prestações mensais de 500 Euros cada) o exercício do direito pelas Recorrentes na não celebração do contrato prometido pelos motivos que indicaram excedeu no caso concreto e de modo manifesto os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

37. Em sede de abuso do direito, não pode deixar de se ter em consideração a contrariedade à ética jurídica que é admitir-se que alguém possa evitar um erro para o qual contribuiu e enriquecer com ele.

38. O abuso de direito é de conhecimento oficioso e constitui matéria de direito, entrando nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

39. Atento o disposto nos artigos 1022.º e 1023.º do Código Civil, locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, denominando-se arrendamento quando versa sobre bem imóvel.

40. O contrato define-se, assim, pelas obrigações que cada uma das partes assume: uma das partes obriga-se a proporcionar à outra o gozo temporário de bem imóvel ou sua fração autónoma; a outra obriga-se a pagar retribuição correspondente: foram precisamente as obrigações que cada uma das partes assumiu no presente caso.

41. No caso concreto, as cláusulas prevendo que o valor das “rendas” não seria descontado no preço da venda e fixando prazo de um ano para o gozo temporário do imóvel, tornam esta relação autónoma e não meramente acessória do contrato-promessa., devendo, assim, ser qualificado o contrato como de arrendamento (e declarar-se o mesmo resolvido por falta de pagamento das rendas, como pedido na p.i., com as legais consequências).

42. A entrega do bem às Recorridas ocorreu, assim, por força do autónomo contrato de arrendamento e não diretamente por força do contrato-promessa

43. Sucede que a tradição de que fala o artigo 755, n.º 1, f), do Código Civil, não se confunde com a posse/mera detenção e pode existir sem esta.

44. A tradição da coisa é constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e por um elemento positivo (ato que exprima a tomada de poder sobre a coisa). Estes atos ocorreram por força da relação locatícia e não em resultado direto do contrato-promessa, não se verificando o pressuposto da hipótese normativa do artigo 755, n.º 1, f), do Código Civil. Atenta a segmentação contratual indicada, as ora Recorridas não eram, enquanto detentoras do bem imóvel, beneficiárias da promessa de transmissão mas arrendatárias.

45. O Acórdão, ao reconhecer direito de retenção às arrendatárias, violou o disposto no artigo 755, n.º 1, f), do Código Civil, o que se invoca sem prejuízo de a procedência dos restantes segmentos do recurso prejudicar a apreciação desta questão.

46. A sentença violou as normas contidas nos artigos 236.º, 334.º, 433.º e 434.º, 762.º, n.º 2, 879.º, al. b), 882.º, n.ºs 1 e 2, 905.º, 939.º, 1022.ºe 1023.º, 1094.º, n.º 3,e1405.º do Código Civil, 2.º, 7.º, 28.º, n.º 1, 80º n.º 1 e 2, do Código do Registo Predial, 58.º do Código do Notariado, 6.º, n.º 1, e), 62.º, n.ºs 1 e 2, 71.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE - DL n.º 555/99, de 16 de dezembro).

Nestes termos e com o douto suprimento, deve o acórdão, nos segmentos decisórios supra indicados, ser revogado, proferindo-se decisão que:

a) Declare que o contrato promessa foi culposamente incumprido por motivos imputáveis exclusivamente às recorridas, com as legais consequências, designadamente no que toca à não obrigação de os recorrentes devolverem o sinal;

b) Subsidiariamente, ser declarado, com as legais consequências, que as promitentes compradoras agiram em abuso de direito ao recusarem a celebração do contrato prometido;

c) Ser qualificado o contrato contido na cláusula terceira, n.º 3, do contrato-promessa como de arrendamento e declarar-se o mesmo resolvido por falta de pagamento das rendas, como pedido na p.i., com as legais consequências;

d) Ser declarado que as recorridas não gozam do direito de retenção sobre o imóvel, atenta a qualificação realizada em c).

Juntaram, com a alegação, dois pareceres subscritos por duas Ilustríssimas Professoras Doutoras da Faculdade de Direito da Universidade de ....

Na resposta, as recorridas concluíram, naturalmente, pela improcedência da revista.

2. Delimitação do âmbito objectivo do recurso e individualização das questões concretas controversas objecto da impugnação.

A conflitualidade dos recorrentes e das recorridos gravita em torno do não cumprimento – que ambas as partes reciprocamente se imputam - das obrigações que emergem, em especial, de um contrato preliminar e de um contrato preliminar de um contrato com função de troca: o contrato promessa – melhor se diria, promessa de contrato – de compra e venda, e da convenção, estipulada no mesmo instrumento que documenta as declarações de vontade integrantes daquele contrato preliminar, através da qual os promitentes vendedoras autorizaram os promitentes vendedores a habitar a fracção autónoma de edifício, objecto mediato do contrato definitivo prometido, mediante o pagamento de uma compensação mensal, devida até à conclusão do contrato definitivo.

A controvérsia das partes gravita, pois, em torno do cumprimento ou não cumprimento das prestações de facto jurídico que tipicamente emergem do contrato promessa – e foi essa controvérsia que foi resolvida pelo acórdão impugnado - e não em torno da sua validade, por erro, ou por qualquer outra causa, questão que, por esse motivo, não constitui objecto da revista.

A sentença da 1.ª instância concluiu, por um lado, pela resolução do contrato promessa por culpas concorrentes, iguais, de ambos os promitente e por outro, que aquela convenção não se resolve num contrato de arrendamento – mas numa estipulação acessória do contrato promessa, ordenada pela regular os termos da tradição do imóvel objecto do contrato definitivo e a compensar os promitentes vendedores - e, em coerência, condenou os promitentes compradores a entregar aquele imóvel aos promitentes vendedores e pagar-lhes as compensações vencidas e vincendas até essa entrega, e os últimos a devolver aos primeiros a quantia traditada a título de sinal. Simetricamente, o acórdão da Relação impugnado assentou em que a apontada convenção acessória não é qualificável como um contrato de arrendamento, proprio sensu – tendo por única finalidade estabelecer a compensação devida pela traditio do imóvel, mas, diferentemente, imputou aos recorrentes, promitentes vendedores, o incumprimento – definitivo – das obrigações emergentes da promessa de contrato e, consequentemente, condenou-os no pagamento do sinal em dobro e reconheceu às recorridas, para garantia deste crédito, o direito de reter o imóvel prometido vender.

Mas existe um outro ponto em que as decisões das instâncias são acordes: na desconformidade entre a realidade material do prédio e as descrições registais e matriciais, representada pelas construções edificadas no logradouro do imóvel prometido vender. E foi com base nessa desconformidade e na circunstância de não ser exigível às recorridas que aceitassem celebrar o contrato de compra e venda definitivo de um imóvel cuja composição real, por força daquelas construções, que não constam da descrição registal e da inscrição matricial, e cuja legalidade urbanística não estava comprovada, que a Relação terminou por imputar aos recorrentes o não cumprimento definitivo das obrigações de facto jurídico positivo que para eles emergiam do contrato promessa.

Os recorrentes, evidentemente, discordam. Discordância para a qual dão estas razões: a resolução do contrato promessa apenas pode ser imputada a conduta omissiva das promitentes compradoras; o exercício pelas recorridas do direito de não celebração do contrato prometido constitui um abuso do direito; a entrega do bem, objecto mediato daquele contrato, às promitentes adquirentes ocorreu por força de um autónomo contrato de arrendamento.

Maneira que, considerando os parâmetros da competência funcional ou decisória deste Tribunal, tal como são definidos pelo objecto da acção, pelos casos julgados entretanto formados nas instâncias e pela impugnação dos recorrentes, as questões concretas controversas colocadas à sua atenção são as de saber (art.º 635.º, n.ºs 2 a 5, do CPC):

- A qual dos contraentes dever ser assacado o não cumprimento definitivo das obrigações de facto jurídico positivo que emergem do contrato promessa e, caso se deva concluir pela imputação desse não cumprimento aos recorrentes, se a recusa da conclusão do contrato prometido pelas recorridas constitui um abuso do direito;

- Se as recorridas gozam, para garantia do crédito que para elas emerge do não cumprimento, pelos recorrentes, das prestações de facto jurídico positivo decorrentes do contrato promessa e da sua consequente supressão, por resolução, do direito de retenção;

- Se a convenção relativa à cedência renumerada do uso da coisa imóvel, objecto do contrato definitivo prometido, até á celebração deste último contrato, é juridicamente qualificável como contrato de arrendamento.

A resolução destes problemas vincula, naturalmente, á ponderação, leve, mas minimamente estruturada dos pressupostos da resolução do contrato promessa, do direito de retenção e do abuso do direito e, por último, à qualificação da disposição contratual, em execução da qual a coisa imóvel, objecto mediato do contrato prometido, foi entregue, onerosamente, às recorridas, até à conclusão deste último contrato.

Todavia, um dos objectos do recurso, que constitui o objecto da acção – a questão da qualificação da cláusula contratual reguladora da tradição da coisa prometida vender – coloca um problema prévio: o da admissibilidade, quanto a tal questão, da revista. A exposição dos fundamentos de direito deve, por esse motivo, começar pelo tratamento deste problema.

3. Fundamentos.

3.1. Fundamentos de facto:

As instâncias estabilizaram a matéria de facto nos termos seguintes:

3.1.1. Factos provados.

1.º - Os Autores são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma designada pela letra “B”, do prédio urbano, sito na Quinta da ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... e ... sob o artigo ...81, descrito na ....ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...14. [art.º 1.º pi]

2.º - Em 19/06/2018, os Autores celebraram com as Rés contrato promessa de compra e venda, que tem por objecto o prédio urbano identificado no artigo anterior, e com a licença de utilização ...10 – CM..., de 12.10.1999 [art.º 2.º pi].

3.º - Por força do dito contrato, os Autores prometeram vender e as Rés prometeram comprar o prédio identificado no artigo 1.º, pelo preço de 260.000 Eur, devendo a escritura definitiva ter sido celebrada até ao dia 30.06.2019 (cfr. cláusulas segunda e quarta do referido contrato) [art.º 3.º pi].

3.º-A - O prédio em causa foi identificado no contrato promessa nos seguintes termos: fração autónoma, designada pela letra "B", a que corresponde o andar esquerdo lado sul, destinado a habitação, composto de cave, rés-do-chão e primeiro andar e 3 logradouros privativos, um do lado sul/poente, com 930m2, outro no extremo poente, com 950m2, e outro a nascente/sul, com 10m2, no prédio urbano, constituído sob o regime de propriedade horizontal, sito na Quinta da ..., Freguesia de ... e ..., Concelho e Distrito de ..., descrito, na ....ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número ...14, da Freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana da respetiva Freguesia sob o artigo ...81, com a Licença de Utilização número ...10 concedida, pela Câmara Municipal de ..., em 12 de Outubro de 1999.

4.º - A título de sinal e princípio de pagamento, no dia 16 de Agosto de 2018, as Rés procederam ao pagamento da quantia de €70.000,00 [art.º 11.º contestação].

5.º - A parte restante do preço seria paga com a outorga do título de transmissão relativo à compra e venda [art.º 12.º contestação].

6.º - O negócio definitivo deveria ser celebrado até ao dia 30 de Junho de 2019 e a marcação do dia, hora e local ficou a cargo das Rés [art.º 13.º contestação].

7.º - Os Autores obrigaram-se a providenciar pela obtenção e entrega da documentação relativa ao imóvel no local destinado à celebração do negócio definitivo [art.º 14.º contestação].

8.º - As partes estipularam ainda que, em caso de incumprimento definitivo do contrato promessa imputável aos Autores, teriam as Rés o direito de exigir a restituição em dobro das quantias entregues a título de sinal; já se o incumprimento definitivo fosse imputável às Rés, poderiam os Autores fazer suas as quantias recebidas a título de sinal [art.º 15.º contestação].

9.º - O negócio de compra e venda foi intermediado pela sociedade de mediação imobiliária V..., Lda., com sede na Av. ..., sociedade que se apresenta comercialmente com a denominação E... [art.º 16.º contestação].

10.º - O contrato não foi objecto de reconhecimento presencial de assinaturas, nem foi efectuada certificação da existência de licença de utilização ou de construção [art.º 17.º contestação].

11.º - Nos termos do número 3 da cláusula quarta do referido contrato-promessa, acordaram as partes [art.º 4.º pi]:

“Entre a data da celebração do presente Contrato-Promessa e a data da celebração da Escritura Pública de Compra e Venda, os Primeiros Outorgantes autorizam as Segundas Outorgantes a ocupar e habitar no imóvel;

a) Obrigando-se as Segundas Outorgantes a pagar, aos Primeiros Outorgantes, a quantia mensal de €500.00 (quinhentos euros); a título de compensação pelos encargos e privação de uso, desde a presente data.

b) Valor mensal a ser creditado na conta IBAN: PT...28;

c) A obrigação aqui referida cessa com a celebração do documento que transfira a posse e a propriedade do imóvel”.

12.º - Com a assinatura do contrato promessa, os Autores entregaram às Rés todas as chaves de acesso ao imóvel, autorizando-as a utilizarem e fruírem o mesmo a partir desse momento [art.º 22.º contestação].

13.º - E as Rés passaram a residir no imóvel, situação que actualmente se mantém [6.º pi e 33.ºcontestação].

14.º - Por causa dessa utilização, as Rés obrigaram-se a pagar a quantia € 500,00 por cada mês “a título de compensação pelos encargos e privação de uso” [art.º 34.º contestação].

15.º - Os Autores comunicaram às Rés que “declaram resolvido o contrato de arrendamento celebrado…com fundamento na falta de pagamento da renda…” e que “não tendo o contrato definitivo sido celebrado no prazo indicado, converteu-se a mora em incumprimento definitivo, do contrato promessa, notificando-se expressamente as requeridas da respetiva resolução, com as legais consequências”, mediante notificação judicial avulsa cujo teor se dá aqui por reproduzido [art.º 12.º pi].

16.º - E no dia 20 de Novembro de 2019, foram as Rés notificadas [art.º 13.º pi].

17º - A referida notificação foi concretizada pelo Senhor Agente de Execução EE, no processo nº 6069/19.7... – Tribunal Judicial da Comarca de ... – JL Cível – Juiz ... [art.º 14.º pi]

18.º - As Rés procederam ao pagamento de € 1.000,00 a título de compensação, sendo € 500,00 no dia 4 de Julho de 2018 por transferência bancária (doc. 2) e €500,00 no dia 16 de Agosto de 2018 juntamente com o pagamento do sinal previsto no contrato promessa.

19.º - De acordo com o que estava previsto no contrato promessa, a celebração do negócio definitivo foi efectivamente agendada junto da ....ª Conservatória do Registo Predial de ..., na modalidade de documento particular autenticado/casa pronta [art.º 38.º contestação]

20.º - Primeiro para o dia 5 de Julho de 2019, depois para o dia 9 de Julho de 2019 [art.º 39.º contestação].

21.º - A propósito desse agendamento, os Autores remeteram aos serviços da Conservatória e às Rés a documentação relativa ao imóvel, designadamente certidão de registo predial e caderneta predial do imóvel [art.º 40.º contestação].

22.º - Nunca os Autores ou a mediadora imobiliária alertaram as Rés para qualquer espécie de irregularidade ou insuficiência quanto à documentação do imóvel ou licenciamentos, não o tendo feito em momento anterior à celebração do contrato promessa ou em momento posterior a essa celebração [art.º 43.º contestação].

23.º - As Rés decidiram adquirir o imóvel em função de anúncios divulgados pela mediadora E... e, principalmente, em função da visita ao local [art.º 45.º contestação].

24.º - No logradouro do imóvel encontra-se edificada uma construção de anexo composto por cozinha complementar equipada com forno rústico e churrasqueira, uma instalação sanitária e garagem [art.º 46.º contestação].

25.º - A edificação em causa tem cerca de 100 m2 e está dotada de rede de água, saneamento, luz e gás [art.º 47.º contestação]

26.º - E a cozinha está equipada com placa e esquentador a gás, forno a lenha e churrasqueira [art.º 48.º contestação].

27.º - Ainda no logradouro e à distância de 30 metros, confinante com o limite do terreno do imóvel com que gemina, encontra-se outra edificação com cerca de 80m2 que também dispõe de rede eléctrica, dividida em 4 espaços, [art.º 49.º contestação]

28.º - Sendo um espaço aquele em que se encontra implantado o furo de captação de águas (e respectivo equipamento eléctrico de extração), bem como zona de trabalhos de bricolage e alfaias, outro espaço destinado a recolha de lenhas e os restantes dois destinadas a albergar animais de criação [art.º 50.º contestação].

29.º - As edificações de cozinha, instalação sanitária e garagem, bem como instalações para animais e furo são perfeitamente visíveis a quem visita o imóvel, [art.º 54.º contestação]

30.º - E foram especificamente veiculadas no anúncio de venda, quer porque surgiam na fotografia do imóvel, quer ainda por constavam do respectivo texto descritivo com os seguintes dizeres [art.º 55.º contestação]:

31.º - “Na Cave tem um enorme Salão que ocupa toda a área de implantação do imóvel e dá acesso ao Logradouro com 3.500 m2, o qual integra 1 ANEXO composto por cozinha complementar equipada com Forno Rústico e Churrasqueira, 1 WC de serviço e Garagem.” [art.º 56.º contestação]

32.º - “O restante terreno apresenta árvores de fruto, vinha e instalações para animais!” (doc 3) [art.º 57.º contestação].

33.º - O imóvel a que corresponde a ficha 3514 encontra-se descrito na Conservatória como “Edifício para habitação, composto de cave, rés-do-chão e 1.º andar; logradouro comum, 309 m2; logradouro privativo, 3.197 m2” [art.º 58.º contestação],

34.º - A descrição da fracção contempla “andar esquerdo lado sul, destinado a habitação, composto por cave, rés-do-chão e primeiro andar e 3 logradouros privativo, um do lado sul / poente, com 930 m2, outro no extremo poente com 950 m2 e outro a nascente / sul, com 10m2” [art.º 59.º contestação]

35.º - E a descrição constante da caderneta predial contempla apenas um prédio que se destina a habitação e se compõe de cave, R/C e 1.º andar, sendo a fracção destinada a habitação do tipo T3, com três pisos [art.º 60.º contestação].

36.º - Nos documentos que instruíram o processo de licenciamento junto da Câmara Municipal dado que neles não é feita qualquer referência às edificações implantadas no logradouro [art.º 61.º contestação],

37.º - Designadamente no “Termo de responsabilidade do autor de projeto de arquitectura”, na “Justificação da adequabilidade da proposta de acordo com a política de ordenamento definida no PDM”, no “Pedido de aprovação do projeto”, no “Alvará de licença de utilização”, na memória descritiva de “acabamentos interiores” e na “Memória descritiva e justificativa” [art.º 62.º contestação].

38º - As edificações implantadas no logradouro não dispõem de licença de construção ou projecto para as mesmas [art.º 63.º contestação].

38.º-A - O contrato promessa celebrado entre as partes não contém qualquer cláusula que imponha aos promitentes vendedores a legalização de quaisquer edificações existentes no logradouro do prédio.

39.º - Em 9 de Julho de 2019 às 4h18 foi remetida do endereço de correio electrónico s... para o endereço de correio electrónico c... mensagem de correio electrónico com o seguinte teor [art.º 66.º contestação]:

40.º - Com data de 19 de Julho de 2019 os Autores remeteram às Rés a comunicação escrita que se junta como doc. 14 [art.º 67.º contestação].

41.º - Nos termos da referida comunicação, os Autores facultaram às Rés o prazo de 20 dias para marcação da escritura, considerando o contrato automaticamente resolvido se não fosse cumprido o teor da deliberação [art.º 68.º contestação].

42.º - Responderam as Rés mediante comunicação escrita, datada de 13 de Agosto de 2019 – cujo teor se dá por integralmente reproduzido (doc. 15) – remetida sob registo e com aviso de recepção para a morada da qual havia sido remetida a carta referida em 40.º e 41.º (Travessa ...) [art.º 69.º contestação],

43.º - Recusando a existência de fundamento para a interpelação admonitória dos Autores ou para a resolução do contrato [art.º 70.º contestação]

44.º - E facultando também prazo de 30 dias para apresentação da documentação necessária para comprovar a regularidade do edifício no que se refere à actualização da descrição do prédio junto dos serviços da Conservatória e administração tributária e ao licenciamento e a obtenção da autorização de utilização [art.º 71.º contestação].

45º - Interpelação à qual os Autores não corresponderam [art.º 99.º contestação].

46.º - Os contactos mantidos em torno da celebração e cumprimento do contrato promessa foram essencialmente estabelecidos entre a E... e a mãe das Rés, FF, esta última em representação das Rés, circunstância que nunca suscitou qualquer dificuldade e foi sempre aceite por todos os intervenientes sem qualquer discussão [art.º 75.º contestação].

47.º - Foi a E... que confirmou a disponibilidade dos promitentes vendedores para a celebração do negócio definitivo nas datas que estiveram agendadas e foi também a mediadora imobiliária que apresentou a documentação para o negócio junto da ....ª Conservatória do Registo Predial [art.º 76.º contestação].

48.º - Foi a mãe das Rés que, em representação destas, procedeu à marcação da compra e venda e apresentou os documentos que eram necessários por parte das compradoras [art.º 77.º contestação].

49º - Para o prédio foi emitida a licença de utilização do imóvel, com o n.º ...10/99, pela Câmara Municipal de... a 12 de Outubro de 1999 [art.º 28.º réplica].

3.1.2. Factos não provados.

Da petição

6.º - A partir da data da outorga do contrato, no dia 19/06/2018…

7.º - As Rés não pagaram aos Autores qualquer montante a título de rendas ou a qualquer outro título.

Da contestação

23.º - só no mês de Novembro de 2018 é que as Rés passaram efectivamente a residir no imóvel objecto do contrato.

41.º - As Rés não tinham tido acesso a esses documentos antes do mês de Julho de 2019 e confiaram sempre que toda a documentação estaria regular e apta a garantir a viabilidade jurídica da celebração do negócio de compra e venda.

63º… e não existindo ainda hoje autorização de utilização.

75º … a primeira em representação dos Autores…

104.º - o promitente vendedor marido renunciou ao recebimento do valor em causa, transmitindo às Rés, na pessoa da sua mãe, que o que lhe interessava era o sinal e o pagamento do preço final e não o pagamento da compensação devida pela ocupação.

202.º - As Rés retiraram plafonds e candeeiros de tecto e apliques, varões de cortinados e cortinados e reposteiros, e procederam à limpeza desses equipamentos e à sua acomodação, o que avaliam em €300,00;

203.º - Retiraram sacos de lixo deixados espalhados, bem como papéis e grandes farrapos de tecido, e procederam à limpeza de toda a casa, o que avaliam em €80,00;

204.º - Procederam à limpeza do anexo da cozinha de forno e garagem e do anexo de apoio ao motor do furo e instalações para animais e retiraram todo o lixo deixado, designadamente restos de loiças descartáveis, garrafas, embalagens plásticas, partes de equipamentos informáticos, de utilização agrícola, de mobiliário, pilhas de papeis, grandes farrapos de tecido, o que avaliam em €200,00;

205.º - Contrataram operação de desinfestação da colónia de ratos aí existente, o que avaliam em €150,00;

206.º - Procederam ao isolamento com membrana para interiores anti humidade e à pintura com tinta plástica interior branca anti humidade acetinada branca no salão da cave, o que avaliam em €800,00;

207.º - Providenciaram pela reparação das pedras da lareira do salão da cave, o que avaliam em €100,00;

208.º - Procederam à limpeza do interior de chaminés das duas lareiras, o que avaliam em €120,00;

209.º - Procederam à verificação, limpeza e rectificação da caldeira e respectivos radiadores e instalação de botões de regulação em falta (3) e vedantes, o que avaliam em €130,00;

210.º - Procederam à verificação e rectificação da instalação eléctrica que sistematicamente provocava o acionamento do diferencial, apesar da casa não ter qualquer equipamento ligado e se encontrar ainda vazia, com colocação de novo diferencial pela EDP, e substituíram quatro comutadores de escada e de sala e três interruptores (cozinha, instalação sanitária e quarto) e três tomadas, o que avaliam em € 260,00;

211.º - Substituíram e rectificaram a rede eléctrica do anexo da cozinha de forno e garagem, com instalação de um quadro de disjuntores e diferencial autónomos para toda a zona exterior ao edifício principal, o que avaliam em € 420,00;

212.º - Procederam à verificação e rectificação da instalação de gás natural com intervenção da Galp, o que avaliam em € 65,00;

213.º - Procederam à substituição da misturadora e do Kit de escoamento do lava loiças por deterioração dos existentes, causando inundação no respectivo armário, o que avaliam em €90,00;

214.º - Procederam à reparação da máquina de lavar loiça avariada, o que avaliam em €65,00;

215.º - Substituíram uma mola partida da porta do forno da cozinha, o que avaliam em €80,00;

216.º - Procederam à pintura interior (mesmo porque os tectos tinham a antiga pintura sob os plafonds – em tom rosa-beije), com aplicação de tinta Barbot Profissional e Tinta Barbot plástica interior branca anti-humidade acetinada branca para tectos das instalações sanitárias, o que avaliam em €3.800,00€;

217.º - Instalaram um aparelho extractor de banho na instalação sanitária principal, o que avaliam em €65,00;

218.º - Procederam à retirada e substituição do pavimento dos três quartos dados os “enfolamentos e soalho solto” existentes em consequência das infiltrações (razão da humidade evidente nas paredes do salão da cave e necessidade da sua impermeabilização) provocadas pelos veios de água existentes no subsolo do lado norte (frente de prédio), o que avaliam em € 1.350,00;

219.º - Providenciaram pela reparação do sistema de videoporteiro inoperante e instalação de campainha de porta, o que avaliam em € 110,00;

220.º - Procederam à reparação das redes mosquiteiras das portadas, o que avaliam em € 125,00;

221.º - Substituíram os fechos das portas da janela e janelas de alumínio, o que avaliam em € 25,00;

222.º - Procederam à reparação do telhado, danificado na sequência da tempestade Leslie, o que avaliam em € 130,00;

223.º - Procederam à instalação de janela Velux no vão aberto para tanto no sótão e só coberto com telha (que potenciou maiores estragos no telhado e entradas de ramos e humidades, aquando da tempestade Leslie), o que avaliam em € 370,00;

224.º - Procederam à substituição de todos os tampos de sanita (5, 2 dos quais danificados), o que avaliam em € 190,00;

225.º - Substituíram resguardos de banheira e polibans, o que avaliam em € 740,00;

226.º - Instalaram dois suportes de estendal com tratamento anti-ferrugem com 6 roldanas, 33m de cabo de aço, 3 esticadores e 6 cerra-cabos, o que avaliam em €100,00;

227.º - Procederam à instalação de isolamento sob o telhado no anexo da cozinha de forno e garagem para evitar novas pragas de roedores, o que avaliam em €220,00;

228.º - Procederam à compra e instalação de placa vitrocerâmica eléctrica e termoacumulador (em substituição dos equipamentos a gás existentes) e à desactivação da rede de gás existente (por precaução numa zona de equipamentos a lenha), o que avaliam em € 250,00;

229.º - Instalaram um fogão a lenha no anexo da cozinha de forno, o que avaliam em € 350,00;

230.º - Substituíram a grelha de escoamento de águas pluviais frente ao anexo da cozinha de forno por estado deteriorado do existente, o que avaliam em € 60,00;

231.º - Adquiram alfaias agrícolas e outros equipamentos para tratamento dos terrenos, o que avaliam em € 639,14.

232.º - Procederam à limpeza e manutenção de terrenos e valas – mormente por efeito da tempestade Leslie e cheias de 2019, o que avaliam em € 2.200,00;

233.º - Aplicaram materiais para impermeabilização da parede - confinante com o terraço - do anexo da cozinha de forno, cujas infiltrações alagam o pavimento do mesmo, o que avaliam em € 350,00;

234.º - Aplicaram materiais (chapa sandwich, areia, cimento, tinta, portas e janelas em alumínio e material eléctrico) para recuperação do anexo do motor do furo de água e apoio a alfaias – mais deteriorado por efeito da tempestade Leslie, o que avaliam em € 1.500,00;

235.º - Adquiriram e instalaram um equipamento de ar condicionado para o sótão, o que avaliam em € 379,00. Finalmente,

236.º - As Rés providenciaram pelo cuidado do cão dos Autores que se encontrava no imóvel, o ....

237.º - Durante o período em que residiram no imóvel e até hoje, foram as Rés que alimentarem o ... e providenciaram pelo seu cuidado (de higiene e de saúde), pagando alimentações e cuidados de saúde (consultas de veterinário e medicamentos),

238.º - Com que despenderam € 1.360,00.

240.º - Parte das operações realizadas pelas Rés … o que ocorre com 202.º a 216.º, 218.º a 223.º, 227.º, 228.º, 230.º e 232.º a 234.º, e não são susceptíveis de ser removidas sem prejuízo para o prédio.

241.º - Outra parte é susceptível de valorizar o imóvel pelo montante correspondente ao que foi gasto pelas Rés… o que ocorre com 217.º, 224.º a 226.º, 229.º e 235.º.

3.2. Fundamentos de direito.

3.2.1. Inadmissibilidade da revista no tocante à questão da qualificação da da convenção contida no n.º 3 da cláusula 4.º do texto da promessa de contrato como contrato de arrendamento.

As instâncias são acordes na recusa da qualificação da convenção inserta n.º 3 da cláusula 4.ª do texto contratual como contrato de arrendamento urbano. Os recorrentes insistem, na revista, nessa qualificação, o que, de resto, corresponde à estratégia processual que adoptaram na petição inicial e com qual, já se vê, visavam subtrair-se ao risco – que se concretizou com o acórdão impugnado – de verem paralisada a entrega do imóvel prometido vender em consequência do reconhecimento, às recorridas, do direito de retenção sobre ele, para garantia dos créditos que emergem da supressão, por resolução, da promessa de contrato.

Uma causa de exclusão da recorribilidade dos acórdãos da Relação, de largo espectro, é a chamada dupla conforme, de harmonia com a qual não é admitida revista daqueles acórdãos, sempre que confirmem, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (art.º 671.º, n.º 3, do CPC).

Como a conformidade das decisões das instâncias exclui o recurso de revista que, doutro modo, seria admissível, o que importa determinar é se essas decisões são conformes – duae conformes sententiae - não se são desconformes, pelo que se aquelas decisões não forem inteiramente coincidentes, o que interessa determinar é se essa não coincidência equivale a uma não-conformidade. As decisões das instâncias podem ser conformes, mesmo que entre elas se registe alguma desconformidade, o que é confirmado pela regra de que as decisões das instâncias são conformes se as respectivas fundamentações, apesar de distintas, não forem essencialmente diferentes (art.º 671.º, n.º 3, do CPC). Para verificar se o acórdão da Relação é conforme ou desconforme perante a decisão da 1.ª instância há que considerar os elementos das duas decisões. E entre os elementos das duas decisões, interessantes para a avaliação ou aferição daquela conformidade releva, desde logo, a fundamentação: se a fundamentação das decisões das instâncias for homótropa ou não for essencialmente diferente, a revista é inadmissível; se, porém, a motivação do acórdão da Relação for essencialmente distinta, aquele recurso ordinário é admissível.

Apesar de alguma flutuação de formulações, por fundamentação essencialmente diversa este Tribunal tem entendido, não aquela que seja divergente no tocante a aspectos marginais, subalternos ou secundários - mas a que assente numa ratio decidendi inteiramente distinta, como sucede quando radica em institutos ou normas jurídicas completamente diferenciadas ou quando, movendo-se embora no âmbito do mesmo instituto ou norma jurídica, os interpreta de modo inteiramente divergente, aplicando ao objecto do processo um enquadramento jurídico marcadamente diferenciado que se repercuta, decisivamente, na solução jurídica da controvérsia1.

Em face deste enunciado, é clara a conformidade de decisões, da 1.ª instância e da Relação no tocante à questão da qualificação considerada a unanimidade do acórdão impugnado e a homogeneidade da fundamentação de um e de outro acto decisório, dado que ambos convergiram na conclusão de que a apontada convenção não constitui um contrato de arrendamento urbano – mas uma simples estipulação conformadora da traditio da coisa imóvel objecto do contrato definitivo prometido.

Como decorre, por exemplo, do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2022, de 18 de Outubro – DR n.º 201/2022, Série I, de 2022.10.18 – a delimitação da dupla conformidade de decisões reclama o confronto com a autonomia e cindibilidade do objecto do processo, mesmo no caso de objecto único, e na viabilidade da apreciação de segmentos da decisão entre si independentes, autonomia que é aferida um função da respectiva fundamentação. Ora os fundamentos da revista representados pela resolução do contrato promessa bivinculante de compra e venda e pela resolução do contrato de arrendamento são – materialmente – autónomos entre si e juridicamente cindíveis, dado que cada um deles é, de per se, suficiente para justificar a procedência do recurso, pelo que a confirmação, pela Relação, sem voto de vencido e sem uma fundamentação essencialmente, da decisão da 1.ª instância de não verificação de qualquer desses fundamentos, dá lugar, quanto aos fundamentos sucessivamente apreciados de modo uniforme, a uma decisão conforme que obstacula à admissibilidade da revista comum ou normal. Do que decorre, quanto à questão da qualificação da apontada cláusula contratual, a inadmissibilidade da revista por força da duae conformes sententiae.

Obiter dicta, não deixará de se notar que, ainda que esta questão constituísse objecto admissível da revista, a decisão correcta seria sempre, quanto a tal questão, a da sua improcedência.

A qualificação de um contrato ou de uma qualquer convenção que inclua, como pertencente a este ou aquele tipo contratual é, indubitavelmente, questão de direito que, portanto, se inscreve na competência funcional ou decisório do Supremo (art.ºs 674.º, n.º 1, a), e 682.º, n.º 1, do CPC).

O contrato promessa, como qualquer outro contrato, pode naturalmente, conter – e contém muitas vezes – elementos acidentais, i.e., cláusulas ou estipulações acessórias: as cláusulas ou estipulações negociais que, não sendo indispensáveis para caracterizar o tipo abstracto de negócio ou para individualizar a sua entidade concreta, todavia, não se limitam a reproduzir disposições legais supletivas, antes se tornam necessárias para que tenham lugar os efeitos jurídicos a que tendem2.

O contrato promessa não é, evidentemente, causal da transmissão de nenhum direito real, como também não é causal da entrega da coisa: tal entrega, quando ocorra, tem de ser imputada a um segundo, acordo, expresso ou meramente tácito, de natureza atípica e obrigacional, genericamente admitido pela autonomia privada (art.º 405.º, do Código Civil). Não há, portanto, qualquer obstáculo à inclusão, designadamente num contrato promessa, de uma cláusula tendente à traditio da coisa que será transmitida com o contrato de compra e venda definitivo. Se, como contrapartida da entrega do uso da coisa se convenciona uma remuneração, surge, decerto, um gozo renumerado – mas não, como corolário que não possa ser recusado, um contrato de arrendamento.

Conclusão cuja exactidão é, irrecusavelmente, confirmada se submetermos a convenção às regras de interpretação da declaração negocial e, mais especificamente, do contrato.

A natureza de um contrato ou de uma qualquer convenção que compreenda não é necessariamente a correspondente à designação que as partes lhe atribuíram e, portanto, à qualificação que dele fizeram. O nome atribuído pelas partes, sendo um indício relevante, nem sempre decide da índole jurídica do contrato, porque, por vezes, a designação serve justamente para ocultar a sua verdadeira natureza. A qualificação que releva é que o intérprete venha a fazer, sobre que o tribunal se pode pronunciar livremente, sem estar vinculado à denominação que os contraentes tenham adoptado. Nada garante, portanto, que a interpretação a que se chegue seja conforme com o nomen usado pelas partes: muitas vezes sucede o contrário. A qualificação de um contrato ou de uma disposição contratual específica dele como pertencendo a esta ou àquela espécie, a este ou aquele tipo, necessária para se determinar, pelo menos nos seus traços essenciais, o regime jurídico aplicável, é uma operação lógica subsequente à interpretação das declarações das partes e dela dependente. Interpretação – mais ou menos difícil, conforme os casos - que tem forçosamente de preceder a qualificação, que não se pode fazer sem saber o que as partes efectivamente quiseram, qual o significado das suas palavras ou expressões3.

A interpretação do contrato visa, naturalmente, apurar ou determinar o seu sentido juridicamente relevante. Ainda quando o seu sentido pareça estar bem à vista, deve essa primeira impressão, colhida uti oculi, ser contrastada com uma séria reflexão e só depois disso se poderá ter como realmente claro e da plana inteligência o seu verdadeiro sentido. Mesmo quando permita só concluir pela mera existência ou inexistência de certo acto – como sucede nas declarações que se reduzam a actos jurídicos em sentido estrito – a interpretação, entendida no sentido apontado, é sempre necessária.

A nossa lei civil fundamental disponibiliza um conjunto de regras de interpretação da declaração negocial, a primeira das quais surge formulada sob o signo da chamada impressão do declaratário: a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário possa deduzir do comportamento do declarante (art.º 236.º, n.º 1, do Código Civil). Esta regra inculca indelevelmente, que a interpretação, sem prejuízo da atendibilidade das particularidades relevantes do caso concreto, deve ser objectiva ou normativa4.

A declaração vale, em princípio, em princípio, com o sentido que as partes lhe quiseram conferir - vontade real das partes (art.º 236.º, nºs 1 e 2, do Código Civil). Mas se não for conhecida essa vontade ou declarante e declaratário entenderam a declaração em sentidos diversos, vale o sentido que o declaratário normal podia julgar conforme às reais intenções do declarante, excepto se este não tinha o dever de considerá-lo acessível à compreensão da outra parte5.

O declaratário normal é configurado em função das características do declaratário real, designadamente competência linguística, profissão, natureza e localização da actividade, conhecimentos gerais, técnicos e de mercado relacionados com o negócio jurídico e objectivos, empresariais ou de consumo. O sentido relevante é aquele que se considere corresponder à compreensão do comportamento do declarante, segundo um padrão de normal diligência, intenção e racionalidade, tendo embora em conta a projecção tipológica da personalidade do declarante e as circunstâncias concretas que envolveram a declaração negocial. É controverso, tendo em conta o elemento essencial do critério legal – a concretização proveniente do horizonte de compreensão segundo a posição do real declaratário - se o declaratário normal equivale ou não a um declaratário médio ou razoável, ao bonus pater familias ou a uma pessoa razoável, i.e., medianamente instruída, diligente e sagaz6, seguro é, porém, a existência de um limite à imputabilidade ao declarante da compreensão normal, dado que a declaração não vale com sentido normal se o declarante não puder razoavelmente contar com esse sentido (art.º 236.º. 1.ª parte, do Código Civil). Para o efeito de se apurar a vontade normal, o declarante é, também, um declarante normal, colocado na posição do real declarante: a normalidade do declaratário tem como contraponto a razoabilidade do declarante.

Em termos deliberadamente simplificadores, pode, pois, dizer-se, sem erro, que a doutrina disposta na lei quanto à interpretação do negócio jurídico é, portanto, de carácter marcadamente objectivista, baseada na impressão do destinatário, limitada, negativamente, pela possibilidade de imputar a declaração a interpretar a quem a tenha produzido e pela regra falsa demonstratio non nocet.

O direito português não dispõe de regras específicas para a interpretação do contrato. A jurisprudência e doutrina dominantes apelam, por isso, à aplicação directa à interpretação do contrato das regras hermenêuticas dispostas para a interpretação da declaração negocial, no pressuposto – que não é inteiramente exacto – de que a pluralidade de declarações e a cumulação, na mesma pessoa, das qualidades de declarante e de declaratário não reclamam quaisquer adaptações.

Nos contratos formados por declarações contratuais conjuntas – i.e., de declarações de conteúdo idêntico que exprimem o acordo contratual num só documento, subscrito por cada uma das partes - a aplicação rigorosa das regras de interpretação dispostas na lei, impõe que cada uma das declarações seja interpretada em separado: apesar da unidade do texto, e da tendencial homotropia das circunstâncias que antecederam e acompanharam a sua redacção, a diferente autoria exige que, em relação a cada uma das declarações se considere o ponto de vista das partes, enquanto declaratários e enquanto declarantes (art.º 236.º do Código Civil).

A nossa lei também não contém uma enumeração das circunstâncias atendíveis ou relevantes na interpretação dos negócios jurídicos e dos contratos. É, todavia, incontroverso – seja qual for o entendimento adoptado quanto a outros pontos - que à redacção da lei subjaz a atendibilidade de todas as circunstâncias que possam contribuir para determinar o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante, assim como para determinar o âmbito dos significados com que este possa contar, a sua vontade real e o seu conhecimento pelo declaratário (art.º 236.º do Código Civil). Circunstâncias que, a este propósito, são geralmente mencionadas, são – sem preocupação de exaustão – por exemplo: as circunstâncias da conclusão do contrato; a conduta, anterior e posterior a essa conclusão, das partes e a sua qualidade; a natureza e o objectivo do contrato, e a negociação honesta e leal.

Embora o tempo relevante para a interpretação do contrato seja naturalmente, o da sua celebração, as condutas anteriores e posteriores– quer procedam de um contraente, quer de ambos - podem ser reveladoras do sentido que deve ser atribuído aos enunciados contratuais sob interpretação: tanto a intenção significativa como a sua compreensão podem ser reveladas quer por via prospectiva, durante a formação do contrato, quer por via diacrónica. A invocação das negociações preliminares, constantes v.g., comunicações físicas ou eletrónicas trocadas entre as partes, é decerto um elemento atendível da interpretação, o que bem se compreende dado que, mesmo que contrato tenha forma escrita ele é o resultado de um processo negocial prévio, um produto acabado de trocas anteriores de actos comunicacionais.

Em cada contrato coexistem e sobrepõem-se vários fins ou objectivos, que podem ou não ser comuns a ambos os contraentes – embora no caso de não serem comuns, a sua relevância dependa, geralmente da sua cognoscibilidade pelo outro contraente – que devem ter-se por atendíveis na interpretação do contrato: pressupondo a racionalidade económico-social e a coerência dos outorgantes, aqueles objectivos, quaisquer que eles sejam – empresariais, ou outros – contribuem para explicar a sua génese e para o compreender com um todo, que é, por sua vez, um factor indiscutido da sua interpretação: cada um das cláusulas do contrato deve ser interpretada com o sentido de todo o contrato em que estão inseridas. Apesar da inexistência no nosso direito de uma disposição expressa, o contrato deve ser interpretado como um todo, i.e., cada uma das cláusulas do contrato deve ser interpretada com o sentido que resulta de todo o contrato em que está inserida; considerar o contrato como um todo pressupõe, de harmonia com este cânone interpretativo complementar, que se considere o contrato na sua globalidade, dado que a sua interpretação tem como objecto todos os enunciados de que é composto, estabelecendo, eventualmente, uma hierarquia entre as cláusulas, em função da sua essencialidade ou instrumentalidade relativamente os interesses titulados pelos contraentes das finalidades que visam prosseguir.

No nosso direito, a boa fé7 não é mencionada como critério de interpretação do contrato, mas não parece que essa menção seja necessária, dado que a regra de interpretação disposta na lei garante o equilíbrio na atenção aos interesses do declarante e do declaratário e protege a confiança de um e de outro através dos princípios da compreensão pelo declaratário e da limitação de imputabilidade ao declarante (art.º 236.º do Código Civil). Num domínio em que são extraordinariamente relevantes o conhecimento e a compreensão, está, decerto, excluída a boa fé em sentido subjectivo, dado que só existe em estado de ignorância; quanto à boa fé em sentido objectivo ou ético, i.e., enquanto regra de conduta socialmente correcta, não se vê que possa ser um comportamento do declarante ou do declaratário, dado que a interpretação negocial visa apurar o sentido de condutas tais como o foram, não como deveriam ter sido na fase pré-contratual ou no cumprimento.

Resolvendo a questão da conciliação dos critérios de interpretação com os requisitos de forma, a lei determina, como regra especial de interpretação, que nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, mas que esse sentido pode valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (art.º 238.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

A regra especial segundo a qual a declaração não pode valer com um sentido que não tenha uma correspondência textual, conhece, pois, um excepção relevante, verificados que sejam dois requisitos cumulativos: que se apure uma intenção significativa comum; que as razões determinantes da forma do contrato não se oponham à relevância do sentido assim apurado (art.º 238.º, n.º 2, do Código Civil). É, assim, aplicável aos contratos formais a regra subjacente ao brocardo falsa demonstratio non nocet, dado que se pressupõe as situações de conhecimento mútuo, o que só tem, evidentemente, alcance prático se esse sentido for desconforme com qualquer um dos sentidos admissíveis pelo texto do documento. A excepção implica o retorno às regras gerais de interpretação do contrato, embora só tenha aplicação efectiva se o critério interpretativo básico for o previsto no n.º 2 do art.º 236.º do Código Civil.

Contrato formal é, para este efeito, qualquer contrato com forma solene ou escrita ad substantiam, independente de a forma ser exigida por lei ou de ter sido livremente adoptada pelas partes. A particularidade do processo interpretativo dos contratos formais restringe-se a esta regra que, porém, tem um alcance mais largo do que aparenta: para a delimitação dos significados admissíveis estão excluídas, numa primeira fase, a invocação das negociações e práticas anteriores ao contrato e de condutas das partes posteriores à sua conclusão; a segunda tarefa lógica consiste em suprimir as ambiguidades subsistentes, decidindo qual de entre os significados possíveis o sentido relevante - segunda fase em não se justificam os constrangimentos à consideração das circunstâncias atendíveis, incluindo as condutas anteriores e posteriores das partes, provadas por qualquer meio (art.º 393.º, n.º 3, do Código Civil). A regra interpretativa geral só intervém no âmbito da interpretação dos negócios formais se o sentido da intenção significativa for compatível com algum dos significados admissíveis pelo texto do documento (art.ºs 236.º, n.º 2, e 238.º, n.º 1, do Código Civil).

Temos por certo que aplicando à cláusula contratual disposta no contrato promessa concluído entre as partes, em torno da qual gravita a controvérsia da sua qualificação, os cânones hermenêuticos apontados, não se lhe pode atribuir a natureza de contrato de arrendamento urbano.

Tratando-se de um contrato formal vale, desde logo, a regra especial de interpretação de harmonia com a qual não pode ser considerada pelo intérprete um significado que não tenha na letra do texto um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, regra da qual se retiram estas duas ilações: a de que o texto do documento constitui um limite para todos elementos de interpretação; a de que não pode ser qualificada como interpretação a conclusão do intérprete que não for compatível com a letra do contrato.

O texto da convenção é inequívoco e terminante em referir-se a compensação pelos encargos e pela privação do uso estando inteiramente ausentes da sua letra a expressões renda, arrendamento ou locação, ou equivalente. Considerando, assim, o elemento literal de interpretação – tanto na sua dimensão sintáctica – a estrutura gramatical do texto do contrato - como gramatical – as palavras que nele são utilizadas – a cláusula é, indiscutivelmente, uma cláusula de cedência do gozo remunerado de uma coisa – mas não um contrato de arrendamento. E desde que não se apurou uma intenção comum – que nem sequer foi alegada – não é aplicável a excepção à regra segundo a qual a declaração não pode valer com um sentido que não tenha uma correspondência textual.

Recorde-se que aqui a primeira tarefa da actividade interpretativa consiste em extrair do documento um significado compatível, no caso, com um contrato de arrendamento, dado que a vontade real do declarante, no caso dos negócios formais, só releva se o sentido da declaração for compatível com alguns dos significados admissíveis pelo texto do documento, o que, na espécie do recurso, comprovadamente não ocorre. E - como se sublinhou já - para aquele primeiro momento da interpretação, estão excluídas a invocação de negociações – e por maioria de razão de convenções – e práticas anteriores ao contrato e, bem assim, convenções e condutas das partes posteriores à sua conclusão.

O único significado inequívoco que se extrai da apontada cláusula é o de que a vontade das partes foi a antecipar um dos efeitos jurídicos do contrato de compra e venda prometido – a entrega da coisa vendida – de legitimar a sua detenção até à conclusão desse mesmo contrato e de prevenir um benefício injustificado para um dos contraentes e o simétrico prejuízo para o outro.

Realmente, o texto da convenção deve, necessariamente, ser lido e valorado no contexto mais vasto do complexo negocial em que se integra, relativamente ao qual é meramente acessória, subalterna e instrumental, dado que, com ela, os contraentes não visam directamente atribuir e assegurar, ao beneficiário da tradição, o gozo temporário da coisa traditada nem a entrega da coisa surge como acto executivo ou de cumprimento de uma obrigação anterior constituída por um prévio contrato de arrendamento – mas simples e limitadamente como adiantamento ou antecipação do cumprimento de uma das obrigações típicas do contrato de compra e venda definitivo prometido – a obrigação de entrega da coisa – e a renumeração acordada não surge, conspicuamente, como correspectivo da cedência do gozo, mas dessa antecipação. A convenção decorre da promessa e liga-se, inextricavelmente, com as obrigações que tipicamente dela emergem promessa – produzindo, lateralmente, o efeito de solidificar as obrigações que tipicamente emergem da promessa e de estimular os promitentes ao seu cumprimento pontual - e é delas inteiramente dependente: a extinção por qualquer causa daquelas obrigações – como, por exemplo, o cumprimento – ou da respectiva fonte, implica, inelutavelmente, a extinção daquelas que emergem dessa mesma convenção. Ponto que, aliás, foi expressamente convencionado, embora apenas na perspectiva do cumprimento pontual da promessa.

A cláusula deve, pois, ser qualificada como convenção atípica, acessória, dependente e instrumental relativamente à obrigação recíproca – fundamental - de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato de compra e venda prometido e não jamais como um autónomo e próprio contrato de arrendamento que possa destacar-se ou distrair-se da tessitura contratual mais vasta em que se insere.

As instâncias, ao recusarem a qualificação da apontada convenção como contrato de arrendamento, não incorreram, pois, no erro – de direito – que as recorrentes lhe assacam, pelo que as decisões correspondentes se têm por correctas.

Por este lado, a revista não dispõe, pois, de bom fundamento.

3.2.2. Pressupostos da extinção, por resolução, do contrato promessa, do direito de retenção e do abuso do direito.

Qualquer cessação do contrato, e salvo determinadas excepções legais, acarreta a extinção das obrigações dele emergentes, o mais das vezes complexas. A figura que deve ser isolada, dado o problema que o acórdão deve resolver, é a da resolução.

A resolução é uma forma condicionada, vinculada e retroactiva de extinção dos contratos: condicionada por só ser possível quando fundada em lei ou convenção; vinculada por requerer que se alegue e demonstre determinado fundamento e retroactiva por operar desde o início do contrato (art.º 433.º do Código Civil). Fala-se também por vezes em rescisão: esta equivale à resolução, sendo utilizada, preferencialmente, para designar a resolução fundada na lei. Este esquema é meramente tendencial: a própria lei introduz algumas variantes, sendo certo que as partes, dentro de certos limites, podem também incluir adaptações. Assim, por exemplo, a resolução pode ser não retroactiva (art.º 434.º, n.º 2, do Código Civil). É o que sucede nos contratos de execução continuada e com trato sucessivo – v.g., os contratos de locação, de fornecimento e de seguro – em que a resolução não afecta as prestações já efectuadas, a não ser que a sua interligação com a causa resolutiva legitime uma resolução plena.

A resolução pode operar em casos previstos pelo contrato ou pela lei (art.º 432.º, n.º 1, do Código Civil). O caso mais nítido de resolução com base legal é o que ocorre perante o incumprimento definitivo do contrato: quando uma das partes não cumpra um contrato bivinculante - ou na expressão da lei, bilateral – tem a outra direito à resolução. O Código Civil fala na resolução por incumprimento a propósito da impossibilidade culposa imputável ao devedor (art.º 801.º, n.º 1, do Código Civil). A ideia é a de que perante o incumprimento definitivo, o interesse do credor desvanece-se e o contrato é, juridicamente, impossível. Em qualquer caso, dúvida não resta que a lei visa, com aquela disposição, permitir a um contraente livrar-se de um contrato que o outro incumpriu.

A resolução por incumprimento implica o chamado incumprimento definitivo (art.º 801.º, n.º 1, do Código Civil). O não cumprimento simples apenas levaria à mora; só quando fosse ultrapassado o prazo razoavelmente fixado pelo credor ou, quando objectivamente, desaparecesse o interesse deste na prestação, se poderiam transcender as consequências da mora. O credor poderia, então, resolver o contrato, entre outras medidas, com relevo para a indemnização.

Há mora do devedor quando, por acto ilícito e culposo deste, se verifique um cumprimento retardado (art.º 804.º, n.º 2 do Código Civil). A mora é, portanto, o atraso ilícito e culposo no cumprimento da obrigação: existe mora do devedor, quando, continuando a prestação a ser possível, este não a realiza no tempo devido. Para se concluir que há mora do devedor, não basta, portanto, dizer que, no momento do cumprimento, aquele não efectuou a prestação devida; é ainda necessário que sobre ele recaia um juízo de censura ou de reprovação. Exige-se, portanto, a ilicitude e a culpa do devedor, embora, tratando-se de responsabilidade obrigacional, qualquer retardamento na efectivação da prestação seja, por presunção, atribuído a ilícito cometido com culpa pelo devedor (art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil). Da mora do devedor emerge, como primeira consequência, uma imputação dos danos, constituindo-se aquele no dever na obrigação de reparar todos os prejuízos que, com o atraso, tenha causado ao credor (art.º 804.º, n.º 1, do Código Civil).

A regra estabelecida na lei é, portanto, a de que a mora do devedor não faculta imediatamente ao credor a resolução do contrato do qual emerge a obrigação que não foi pontualmente cumprida. Tendo a obrigação não cumprida por fonte um contrato bivinculante para que o credor possa resolvê-lo, libertando-se do seu dever de prestar, é necessário, em princípio, que a prestação da contraparte se tenha tornado impossível por causa imputável ao devedor (art.º 801.º, n.º 1, do Código Civil). Só assim não será, acrescenta o mesmo Código, se, em consequência da mora, o credor perder o interesse que tinha na prestação, ou o devedor não a realizar dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor. Em qualquer destes casos, considera-se, também, para todos os efeitos, a obrigação não cumprida (art.º 808.º, n.º 1, do Código Civil). Quando isso ocorre, a mora é equiparada, para todos os efeitos, ao não cumprimento definitivo culposo, e, consequentemente, abre ao credor a porta da resolução do contrato (art.ºs 802.º, n.º 2, e 801.º do Código Civil).

A lei, porém, não se contenta, para facultar ao credor o remédio da resolução do contrato, com a simples perda subjectiva do interesse do credor na prestação em mora. A lei é muito mais exigente, reclamando, para que se produza esse efeito, que a perda do interesse na prestação seja apreciada objectivamente. Assim, não basta, que, por exemplo, o contraente alegue ter perdido o interesse que tinha na realização do contrato prometido definitivo; é indispensável que a perda seja justificada à luz de circunstâncias objectivas, quer dizer, segundo um critério de razoabilidade, próprio do comum das pessoas.

Portanto, a perda do interesse na prestação não pode assentar numa simples mudança de vontade do credor, sendo-lhe, por isso, vedado alegar, para fundamentar a resolução, o facto de, por virtude de o devedor se haver constituído em mora, o contrato definitivo não ser já do seu agrado; também não basta para fundamentar a resolução, qualquer circunstância que, segundo o juízo do credor, justifique a supressão da fonte da obrigação não cumprida na altura própria: devendo aquela perda ser valorada objectivamente, não é suficiente o critério subjectivo do credor8. E porque se exige, não simplesmente a diminuição ou redução do interesse do credor na realização da prestação, mas a perda absoluta, completa, desse interesse, esta só ocorrerá no caso de desaparecimento da necessidade do credor a que a prestação visava responder.

Nestas condições, a perda do interesse do credor significa o desaparecimento objectivo da necessidade que a prestação visava satisfazer. Se o credor já não tem interesse na prestação, o caso já não é em rigor de simples retardamento do cumprimento – mas de não cumprimento definitivo. Assim, não há que exigir ao credor que fixe ao devedor um prazo para o cumprimento, pois dada a sua falta de interesse, essa fixação não teria qualquer justificação: o credor pode recusar a prestação e exigir indemnização pelo não cumprimento, como se de qualquer outro não cumprimento definitivo se tratasse.

Por último, o incumprimento definitivo surge não apenas quando for força da não realização ou do atraso na prestação o credor perca o interesse objectivo nela ou quando, havendo mora, o devedor não cumpra no prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor – mas igualmente nos casos em que o devedor declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito9 ou adopta uma qualquer outra conduta manifestamente incompatível com o cumprimento. Quando tal ocorra, não se torna necessário que o credor lhe assine um prazo suplementar para haver incumprimento definitivo: a declaração do devedor é suficiente, por exemplo, no caso em que, sem fundamento, resolve o contrato, ou afirma de forma inequívoca, que não realizará a sua prestação.

Abstraindo dos casos em que a mora faz desaparecer o interesse do credor na prestação, há que considerar toda uma constelação de situações em que não seria razoável forçar o credor a esperar indefinidamente o cumprimento, i.e., a realização da prestação devida. A lei, sensível à injustiça da situação, concede ao credor a faculdade de, relativamente ao devedor constituído em mora, lhe fixar um prazo razoável, peremptório e suplementar, dentro do qual deverá cumprir sob pena de extinção, por resolução, do contrato (art.º 808.º, n.º 1, 2ª parte, do Código Civil). Trata-se da interpelação ou intimação cominatória que pode conduzir à extinção do contrato se a obrigação não for satisfeita dentro do prazo razoável nela fixado (art.º 801.º, nºs 1 e 2, do Código Civil).

Este remédio que a lei disponibiliza ao credor tem directamente em vista os casos em que não tenha sido estipulada uma cláusula resolutiva ou um termo essencial ou em que o credor não possa alegar, de modo objectivamente fundado, a perda, por efeito da mora, do interesse na prestação. A interpelação admonitória, com fixação de um prazo peremptório para o cumprimento, resolve-se, portanto, numa intimação formal, dirigida ao devedor incurso em mora, para que cumpra, dentro do prazo assinado, sob esta pena grave: considerar-se definitivo o seu não cumprimento.

Aquela interpelação desdobra-se, analiticamente, em três elementos: a intimação para o cumprimento; a fixação de um terminus ad quem peremptório para esse cumprimento; a cominação – declaração admonitória – de que a obrigação se considera definitivamente não cumprida se a realização da prestação devida se não verificar dentro do prazo assinado10. Na interpelação de prazo admonitório, para além da consequência de se considerar a prestação devidamente incumprida, por economia de meios, pode incluir-se a declaração condicional de resolução do contrato; caso em que, transformando-se a mora em incumprimento definitivo pelo decurso do prazo suplementar, preenche-se a condição suspensiva e o contrato resolve-se11. A interpelação admonitória do devedor para o cumprimento, interpelação, constitui – para usar uma linguagem viva e impressiva – uma ponte de passagem do atravessadouro (lamacento e escorregadio) da mora para o terreno (seco e limpo) do não cumprimento definitivo da obrigação12. Através da interpelação admonitória, a lei legitima o credor a provocar, unilateralmente, uma modificação da relação contratual, introduzindo um elemento novo: um novo prazo de cumprimento que se caracteriza pela sua peremptoriedade. A interpelação admonitória é nitidamente uma declaração receptícia e, por isso, torna-se definitiva e irrevogável logo que chega ao poder do devedor ou dele é conhecida, e, como regra, a partir desse momento, ao credor já não é lícito exigir o cumprimento (art.º 224.º do Código Civil).

A questão de saber qual é a consequência jurídica de uma resolução indevida, i.e., sem fundamento legal ou convencionado em que, portanto, o resolvente não dispõe do direito potestativo correspondente, é particularmente complexa e está bem longe de obter uma resposta acorde. Segundo uma orientação, a resolução infundada é ineficaz, uma vez que o resolvente não é titular do correspondente direito potestativo e, logo, o juiz declararia a subsistência do contrato13; segundo outra, a declaração, nas condições apontadas, é eficaz14; de harmonia com um terceira, a consequência de uma resolução indevida é o incumprimento do próprio contrato que se visava extinguir15. No que respeita, especificamente à resolução infundada do contrato promessa determina o seu incumprimento16, dado que revela o propósito, claro, sério e unívoco, a intenção categórica ou o propósito indubitável e irrevogável de não cumprimento – e de não cumprimento definitivo – daquele mesmo contrato.

A lei civil substantiva fundamental portuguesa adopta no tocante à resolução do contrato um sistema declarativo: a resolução opera por simples declaração à outra parte, portanto, sem necessidade de intervenção constitutivo-condenatória do tribunal. Por outras palavras, a resolução opera ope voluntatis e não ope judicis (art.º 436.º, n.º 1, do Código Civil). A natureza potestativa da declaração de resolução imprime-lhe as características da unilateralidade recipienda, da irrevogabilidade, da incondicionalidade e da concretização dos respectivos fundamentos (art.ºs 224 nº 1, 1º parte, e 230.º, n.º 1 do Código Civil). Essa declaração não está sujeita a forma especial, ainda que o contrato a cuja resolução se dirige o esteja e, por isso, pode ser meramente tácita (artº 217.º, n.ºs 1 e 2. do Código Civil).

Contrato promessa é o contrato pelo qual as partes, ou uma delas, se obrigado a celebrar novo contrato – o contrato definitivo (art.º 410.º, n.º 1, do Código Civil)17. Distinção relevante é a que separa o contrato promessa monovinculante e o contrato promessa bivinculante: no primeiro apenas uma das partes se encontra adstrita à obrigação de celebrar o contrato definitivo; no segundo essa obrigação vincula ambos os contraentes (art.º 411.º, do Código Civil).

Do contrato promessa emergem prestações de facto jurídico positivo: a obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido. A exigência de um incumprimento definitivo, para que, no contrato promessa, se facultasse ao promitente fiel a resolução dele, era uma conclusão para qual, até às modificações a que foi sujeito pelo Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, nenhuma dúvida, por menos razoável que se apresentasse, podia ser oferecida (art.º 442.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil). Porém, em face da fisionomia que aquele diploma legal lhe imprimiu, bem pode duvidar-se da exactidão daquela solução. Não falta, na verdade, quem admita a possibilidade de o contraente fiel recorrer ao regime do sinal ou da valorização da coisa objecto mediato do contrato definitivo prometido – que, em princípio, determina a resolução do contrato18 – sem se verificarem os pressupostos do incumprimento definitivo; neste caso, porém, a resolução é puramente condicional, dado que se faculta ao outro contraente a invocação da excepção do cumprimento do contrato19. Mas do mesmo passo, também não falta quem obtempere que a exigência do sinal é formalmente compatível com o pressuposto do incumprimento definitivo – a excepção do cumprimento só é excluída, no caso de o promitente fiel ter, em consequência da mora, perdido o interesse na prestação, ou na falta do cumprimento no prazo suplementar assinado pelo credor - e que, caso fosse suficiente a simples mora, não se justificaria a concessão expressa ao promitente remisso da excepção do cumprimento, uma vez que o oferecimento da prestação pelo devedor sempre seria admissível como meio de purgar a mora, e que, conclua, portanto, que só o incumprimento definitivo faculta a resolução do contrato e a exigência ao promitente faltoso do sinal em dobro20. É neste último sentido – único que se julga exacto – que se orienta maioritariamente a jurisprudência21.

Do contrato promessa emergem, tipicamente, prestações de facto jurídico positivo – obrigação de, no futuro, emitir as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido.

Trata-se, caracteristicamente, de direitos de crédito. Podem, por isso, ser violados por quaisquer perturbações provocadas pelo devedor, em especial, através do incumprimento.

Verificado esse incumprimento, a ordem jurídica comina ao infractor, desde logo, uma sanção compensatória – a indemnização do dano decorrente desse incumprimento, embora o objecto dessa indemnização seja, no contexto do contrato promessa, sujeita a uma delimitação específica.

Toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente vendedor a título de antecipação do preço presume-se ter o carácter de sinal (art.º 441.º do Código Civil).

Se quem constituir o sinal deixar de cumprir a obrigação, por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o incumprimento for assacável a quem recebeu o sinal, tem a contraparte a faculdade de exigir o dobro do que lhe prestou (art.º 442.º, n.º 2, do Código Civil). Na ausência de convenção contrária, no caso de perda do sinal ou do seu pagamento em dobro, não há lugar, com fundamento no não cumprimento do contrato promessa, a qualquer outra indemnização (art.º 442.º, n.º 4, do Código Civil).

Nos termos gerais, a existência de mecanismos específicos destinados a actuar em caso de incumprimento de obrigações com prestações recíprocas, - v.g. a resolução do contrato de que emergem - não paralisa as demais sanções cominadas para esse incumprimento. Assim, a parte fiel tem sempre direito às indemnizações devidas pela parte em falta. E essa parte pode actuar esse direito independentemente, por exemplo da resolução do contrato, na qual poderá não ter qualquer interesse, como sucederá, decerto, no caso de a actuação daquele direito à indemnização produzir um efeito homótropo ao que decorre da resolução ou no caso de essa indemnização decorrer justamente da extinção, ainda que indevida, do contrato operada pela contraparte.

É patentemente o que ocorre no caso do contrato promessa em que tenha sido traditado sinal. Verificado o não cumprimento, funciona, do contrato, o segmento vocacionado para intervir, substituindo a prestação principal – o próprio sinal, não havendo lugar, pelo não cumprimento, a qualquer outra indemnização. A única coisa que deve exigir-se, para que o interveniente adquira o direito a essa prestação indemnizatória substitutiva é - de harmonia com a doutrina que se tem por preferível - que se trate de incumprimento definitivo e não de mera mora.

O não cumprimento simples apenas leva à mora; só quando seja ultrapassado o prazo razoavelmente fixado pelo credor ou, quando objectivamente, desapareça o interesse deste na prestação, se podem transcender as consequências da mora. O credor poderá, então, por exemplo, resolver o contrato, entre outras medidas, com relevo para a indemnização.

As garantias especiais de prestações podem operar por uma de duas vias: por via pessoal; por via real. Quando, com vista a assegurar certo crédito se procede à afectação de coisas corpóreas, temos uma garantia real. Inclui-se nesta categoria, sem dúvida, o direito de retenção (art.º 754.º do Código Civil).

O direito de retenção resolve-se no direito conferido ao credor, que encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores22. O direito de retenção, porque dispõe de sequela – de que a inerência, i.e. inseparabilidade do direito real e da coisa é a noção base – é um verdadeiro real. É, por isso, dotado, para usar uma terminologia corrente e expressiva, de oponibilidade erga omnes, sendo, portanto, oponível mesmo ao próprio dono da coisa que não seja o titular do direito à entrega dela23.

Um dos pressupostos do direito de retenção é a existência de um nexo causal entre o crédito e a coisa: é o que decorre da declaração da lei de que o crédito deve resultar de despesas por causa da coisa ou de danos por ela causados (art.º 754.º do Código Civil). Contudo, essa conexão pode também ser estabelecida pelo facto de a detenção resultar de uma relação legal ou contratual à qual a lei reconheça, como garantia, aquele direito. Está nestas condições, precisamente a retenção reconhecida ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real para quem a coisa objecto mediato definitivo prometido tenha sido traditada, no tocante ao crédito resultante do não cumprimento dele pelo outro promitente (art.º 755.º n.º 1, f), do Código Civil). Sem paralelo noutros ordenamentos, o direito de retenção assinalado foi introduzido na nossa ordem jurídica na década de 80 com o fito declarado de proteger o promitente adquirente de prédios urbanos ou de fracções autónomas destes do não cumprimento, por promitentes pouco escrupulosos, da promessa correspondente (art.º 442.º, n.º 3, do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho). Apesar da severa e cerrada crítica de que a inovação foi alvo – assente na infundada distinção conferida ao direito de indemnização do promitente-comprador e na prevalência sobre a hipoteca, ainda que de registo anterior, lesiva da solidez e da segurança do crédito hipotecário24 - o legislador, bem ciente daqueles juízos doutrinários de desvalor, manteve-a, limitando-se a deslocar a norma correspondente para o local sistematicamente mais adequado (art.º 775.º, n.º 1 f), na redacção do Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro).

Havendo incumprimento do contrato promessa, o promitente fiel pode obter a execução específica dele, através da emissão de sentença substitutiva da declaração negocial do promitente faltoso (art.º 830.º, n.º 1 do Código Civil). A emissão da sentença ex artº 830.º tem como pressupostos o incumprimento do contrato promessa; a falta de convenção em contrário; a compatibilidade com a natureza da obrigação assumida. Havendo sinal e se o promitente fiel for o adquirente, e este não opte pela execução específica ou esta não seja já possível, assiste-lhe o direito de exigir o dobro do que prestou, ou caso, tenha havido tradição da coisa objecto do contrato definitivo prometido, o valor desta, objectivamente determinado ao tempo do não cumprimento, com dedução do preço convencionado, e a restituição do sinal e da parte do preço que tenha pago (art.º 442.º, n.ºs 1 e 2, 2ª parte, e 3 do Código Civil).

A lei disponibiliza para estes créditos resultantes do não cumprimento do contrato promessa, sempre que tenha havido traditio da coisa prometida, uma tutela particularmente enérgica: o direito de retenção (artº 755.º, n.º 1, f) do Código Civil).

Deste modo, os pressupostos do direito de retenção do promitente adquirente são estes – e apenas estes: a traditio da coisa ou coisas, objecto mediato do contrato definitivo prometido; o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente alienante; a titularidade pelo promitente adquirente, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito25. E, por não ser de aceitar, também, qualquer interpretação restritiva - de qualquer direito de crédito emergente do incumprimento definitivo da obrigação de facto jurídico positivo resultante do contrato promessa26. Para a sua constituição da retenção não se exige sequer – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível - a declaração de incumprimento: é suficiente a tradição da coisa prometida vender, conjugada com a titularidade, pelo promitente adquirente de um direito de crédito relativamente à contraparte27. Portanto, não é necessária qualquer prévia declaração da titularidade, pelo promitente, da titularidade do direito de retenção.

Resta acrescentar, que a traditio exigida para a constituição da garantia tanto pode ser uma tradição material como uma tradição puramente simbólica, em qualquer das suas modalidades: traditio longa manu, traditio ficta ou traditio brevi manu (art.º 1263.º, b), do Código Civil). Para que o direito de retenção se deva reconhecer ao promitente, é suficiente uma traditio ficta – a entrega de um objecto que representa simbolicamente a coisa e permita a actuação material sobre ela. É o que ocorre, frequentemente, no caso de prédios urbanos ou de fracções de prédio urbano, em que basta para a realização da traditio a entrega das chaves - que não ocorra no local - que permitam aceder aqueles bens.

As obrigações de prestação de facto jurídico positivo – emitir no futuro as declarações de vontade integrantes do contrato prometido – que tipicamente emergem da promessa de contrato, são obrigações simples. Mas sendo obrigações simples, elas surgem sempre acompanhadas de deveres acessórios.

A relação obrigacional, maxime contratual, não se reduz a prestações primárias ou típicas, dado que ao seu lado surge um feixe de direitos e deveres, ónus e expectativas, que dá lugar a uma relação obrigacional complexa ou a uma complexidade intra-obrigacional. O distinguo entre prestações primárias – ou típicas – e deveres acessórios ou laterais de conduta como elementos jurídicos que coexistem na estrutura obrigacional é, realmente, um dado adquirido28. A relação contratual é uma relação quadro que conjuga deveres de prestação principais – correspondentes às prestações típicas ou principais, determinantes do fim do contrato – deveres de prestação secundários – que correspondem a prestações autónomas, que completam a prestação principal, sem as quais esta não teria utilidade – e deveres acessórios de conduta, decorrentes da boa fé, que visam assegurar o fim secundário ou mediato da prestação29. O fim contratual pretendido e perseguido pelas partes e a execução correcta do programa contratual convencionado dificilmente seriam possíveis sem a consideração de um complexo de deveres que, embora não se dirijam directamente ao fim último visado pelos contraentes que coexistem com a prestação principal, complementando-o, não deixando de ser determinantes ou essenciais ao correcto processamento da relação contratual em que a prestação se integra. Ao lado do interesse principal, correspondente a prestação debitória, o credor tem um fundamental interesse de protecção, de lealdade e de probidade do seu parceiro contratual; a consideração de deveres acessórios de conduta, acarretando considerações éticas para todo o processo de execução contratual, implica que o contrato, enquanto instrumento privilegiado de cooperação intersubjectiva, não é imune a valorações axiológicas, designadamente à ideia de que as partes são parceiros leais e honestos, cujo comportamento se requer sério e deferente, de tal forma que a violação desses deveres pode constituir fundamento de resolução ou permitir a invocação da excepção do não cumprimento ou determinar um dever de indemnizar pelo incumprimento30.

Os deveres acessórios – que correspondem ou arrancam, materialmente, da boa fé – são, portanto, um meio essencial para a prossecução dos objectivos prosseguidos pelas partes, sem o qual o contrato não logra o fim desejado, ou logra-o de forma imperfeita ou inidónea (art. 762.º, n.º 2, do Código Civil). A consideração do princípio da boa fé – ou a transposição para o domínio contratual do princípio neminem laedere – impõe que ambas as partes se conduzam, no trato negocial, orientadas por uma ideia de colaboração leal, sensível aos interesses da contraparte, sendo certo que os deveres acessórios não necessitam de estipulação expressa ou sequer de decorrer directamente do conteúdo contratual, dado que emergem da lei ou da cláusula geral da boa fé e destinam-se a garantir a justiça contratual e a assegurar certos conteúdos éticos de que a ordem jurídica não pode prescindir31. Os deveres acessórios de conduta são, assim, avoluntarístiscos, no sentido de que a boa fé em sentido objectivo actuará independentemente do programa contratual estabelecido pelos contraentes, assumindo uma função integrativa ou ordenadora do seu comportamento: porque decorrem do princípio regulativo estruturante da boa fé, os deveres acessórios de conduta não carecem de se fundar na regulação contratual acordada, podendo transcendê-la, sendo autónomos, face ao conteúdo do contrato, sem prejuízo da sua integração no seu perímetro, dada a relação de especial pertinência no tocante ao seu fim.

O contrato promessa é evidentemente, um contrato a se, dotado de autonomia no tocante ao contrato definitivo prometido, de tal modo que não existe de qualquer razão ponderosa que impeça a conclusão de um contrato promessa cujo objecto seja outro contrato promessa32. Mas essa autonomia sofre as limitações decorrentes do princípio da equiparação – ou da correspondência – entre o contrato promessa e o contrato definitivo, de tal modo que, para que haja contrato promessa é indispensável que o acordo esteja completo em todos os seus elementos considerados necessários por qualquer das partes (art.ºs 232.º e 410.º, n.º 1, do Código Civil): a relativa rigidez do contrato promessa supõe que o objecto contratual do contrato definitivo esteja determinado no contrato promessa ou seja determinável através dele. Apesar do contrato promessa apenas resultarem obrigações de facto jurídico – e de não prestação de coisa, como ocorre com o contrato de compra quando seja esse o contrato prometido – dada a sua natureza de contrato preliminar ou preparatório, i.e., de contrato que é concluído justamente tendo em vista a ulterior celebração de um contrato principal ou definitivo, é natural a interferência, no cumprimento das prestações de facto jurídico que emergem do contrato promessa, de eventuais perturbações das prestações que resultam do contrato definitivo ou principal.

Com o contrato promessa, por exemplo, de compra e venda, os promitentes não se vinculam a celebrar um qualquer contrato de compra e venda, mas antes a concluir um concreto contrato de compra e venda referido a uma coisa em concreto, portanto, um contrato de compra cujas prestações, por exemplo, não sejam defeituosamente cumpridas, já que o vendedor não está só adstrito à obrigação de entregar certa coisa; ele encontra-se ainda vinculado, v.g. a entregar uma coisa isenta de vícios e conforme com o convencionado, quer dizer, sem defeitos (art.º 913.º, Código Civil). Independentemente do problema da aplicabilidade ao contrato promessa, por força do princípio da equiparação, das regras relativas às perturbações das prestações típicas, v.g., do contrato de compra e venda, o cumprimento das obrigações que emergem da promessa não pode deixar de ser sensível às perturbações das prestações que decorrem do contrato definitivo. Cláusulas em que se convencione, por exemplo, que o promitente vendedor se vincula a vender o bem livre de ónus o encargos ou outras responsabilidade ilustram, eloquentemente, a relevância para as partes, do cumprimento perfeito ou exacto do contrato definitivo e, do mesmo passo, o reconhecimento da importância desse cumprimento para execução das vinculações típicas constituídas pelo contrato promessa.

Como quaisquer outros direitos e situações jurídicas subjectivas, os direitos que, para ambos promitentes emergem da promessa de contrato podem ser actuados ou exercidos em abuso.

Apesar de o abuso do direito ser de conhecimento oficioso33 - de que decorre a admissibilidade da sua invocação na instância de recurso apesar de não ter siso alegado na instância de que esse recurso procede - o mais distraído dos operadores ou observadores judiciários não pode deixar de notar que quase não há processo em que as partes, per abundantiam, ou à míngua de outros argumentos, não invoquem o abuso de direito. Por contraste – e por certo também em consequência da erosão que o instituto sofre com a sua indevida convocação - há casos em que tal arguição de todo se justificaria, mas em que, inexplicavelmente, se omite a sua invocação.

O abuso do direito deve ser usado sempre que necessário. O que não deve é ser banalizado, exigindo-se sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita34.

De harmonia com a previsão legal, o exercício de um direito é ilegítimo sempre que o titular exceda os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334.º do Código Civil). De modo amplo, o abuso do direito consiste, pois, no exercício ilegítimo - ilícito - de direitos ou posições jurídicas. O abuso do direito, exprimindo o afinamento ético do direito moderno e um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos á realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente.

Assim, são reconduzidos ao abuso do direito, por exemplo, o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório; a supressio (supressão)35, ou seja, a neutralização de um direito que durante muito tempo se não exerceu, tendo-se criado, pela própria conduta, uma expectativa legítima de que não iria ser exercido, e a surrectio, i.e., o surgimento de um direito por força de um comportamento contraditório qualificado pelo decurso do tempo, o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, v.g., por desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular do direito e o sacrifício imposto por esse exercício a outrem36. É natural, por isso, que a concreta consequência jurídica que se deve assinalar ao abuso, varie em função do específico acto abusivo e do respectivo contexto, que pode consistir na inibição do exercício de poderes jurídicos – como sucede, v.g., com o venire contra factum proprium ou com o desequilíbrio no exercício - ou na constituição do agente no dever de indemnizar37. A alegação do abuso de direito, quando tenha por efeito a inibição do exercício de poderes jurídicos, v.g., de um direito subjectivo, resolve-se numa excepção peremptória, dado que obsta à produção dos efeitos jurídicos decorrentes do objecto definido pelo autor e determina a absolvição, do pedido (art.ºs 576.º, n.º 3, e 571.º, n.º 2, in fine, do CPC). O ónus da prova dos factos correspondentes vincula a excipiente, pelo que, no caso de non liquet, há que decidir contra essa parte a questão correspondente (art.ºs 342.º, n.º 2, do Código Civil e 414.º do CPC).

3.2.2.1. Concretização.

Como, incontroversamente, decorre dos factos materiais adquiridos para o processo, os recorrentes e as recorridas concluíram entre si um contrato promessa bivinculante, através do qual se obrigaram, reciprocamente, a concluir um ulterior contrato de compra e venda, tendo por objecto mediato a fracção autónoma designada pela letra “B”, do prédio urbano, sito na Quinta da ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... e ... sob o artigo ...81, descrito na ....ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...14. Todavia, como decorre linearmente da factualidade apurada pelas instâncias, verifica-se uma clara desconformidade entre a realidade física ou material da coisa imóvel objecto do contrato definitivo prometido e a descrição que dele é feita no registo predial e na matriz, discrepância que respeita às construções ou edificações levadas a cabo no respectivo logradouro: um anexo, com cerca de 100 m2 composto por cozinha complementar equipada com placa e esquentador a gás, forno a lenha e churrasqueira, uma instalação sanitária e garagem, dotada de rede de água, saneamento, luz e gás; uma edificação, à distância de 30 metros, com cerca de 80 m2, confinante com o limite do terreno do imóvel com que gemina, que também dispõe de rede eléctrica, dividida em 4 espaços, sendo um espaço aquele em que se encontra implantado o furo de captação de águas (e respectivo equipamento eléctrico de extração), bem como zona de trabalhos de bricolage e alfaias, outro espaço destinado a recolha de lenhas e os restantes dois destinadas a albergar animais de criação. Qualquer destas construções não constam, comprovadamente, da descrição do imóvel no registo nem na respectiva matriz predial.

A matriz predial constitui um registo do qual deve constar, designadamente, a caracterização do prédio, a sua localização e o seu valor patrimonial tributário (art.º 12.º, n.º 1, 38.º e 40.º do CIMI). A matriz deve ser objecto de actualização, designadamente no caso de conclusão de obras de edificação melhoramento ou outras alterações que possam determinar variação do valor patrimonial do prédio (art.º 13. n.º 1, d), do CIMI). Essa actualização pode ser determinada oficiosamente pela administração fiscal (art.º 13.º, n.º 3, b), do CIMI).

A técnica do registo predial pode ordenar-se segundo um de dois modelos: o de base real; o de base pessoal. A primeira técnica assenta ou parte do prédio: descreve-se o prédio e, de seguida, inscrevem-se factos a eles relativos, dos quais resultam direitos subjectivos sobre eles; o registo de harmonia com a técnica de base pessoal, assenta nas pessoas, físicas ou meramente jurídicas: na base do seu nome, anotam-se os factos relevantes. Comprovadamente, o sistema de registo predial português é de base real.

O ponto de partida do registo é, sempre, a descrição de um prédio, descrição que visa a identificação física, económica e fiscal desse mesmo prédio, deveno publicitar, entre outros elementos, a sua composição sumária e a respectiva área (art.ºs 79.º, n.º 1, e 82.º, n.º 1, do CR Predial). Embora esteja na base do registo, a descrição ocorre na dependência de uma inscrição ou averbamento (art.º 80.º, n.º 1, do CR Predial), dado que, por força do princípio da instância e das regras sobre a legitimidade, não é admissível a descrição de um prédio ad nutum, i.e., sem lhe associar a inscrição de um facto. As descrições podem ser principais ou subordinadas (art.º 81.º, n.º 1, do CR Predial).

O primeiro dos efeitos do registo é presuntivo: o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define (art.º 7.º do CRP). Quem tem a seu favor um registo determinado escusa de provar: que o direito existe; que é titular dele; que ele tem a configuração dada pelo registo. Quem assim não entenda terá que provar a inexactidão do registo: a presunção é simplesmente iuris tantum (art.º 350.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil). O alcance da presunção deve, porém, ser habilmente entendido. A inscrição registral – que visa definir a situação jurídica dos prédios, mediante extracto dos factos a ela referentes - faz-se na dependência de uma descrição, que tem por fim a identificação física e fiscal do prédio (art.ºs 79 nº 1, 82.º, n.º 1 e 91.º, n.º 1, do CRP).

A descrição predial não tem, porém, repercussão na situação jurídica do prédio. Maneira que, a presunção de titularidade diz apenas respeito à inscrição registral. Por força da impossibilidade de assegurar a fidedignidade da descrição, está não é, em princípio, abrangida pela presunção: a presunção de titularidade não compreende, como regra, os elementos da descrição – mas apenas o que resulta do facto inscrito, tal como foi registado38. Todavia, há um núcleo essencial da descrição que não pode deixar de se compreender na presunção, sob pena de não se saber exactamente sobre que coisa incide o facto ou factos inscritos e, em última extremidade, se presumir a titularidade do direito – sobre coisa nenhuma39. Assim, embora se deva reconhecer que não se incluem na presunção certos elementos não essenciais – como, por exemplo, confrontações e limites precisos, áreas exactas, identificação fiscal – deve, porém, entender-se que aquela presunção abrange alguns elementos acessórios indispensáveis à identificação ou individualização do prédio, sob pena de não se saber sobre que coisa incide o facto inscrito.

Os recorrentes observam que a desconformidade, que no caso é patente, entre a realidade material do prédio e a realidade matricial e registral desse mesmo prédio não é causa da sua inalienabilidade sem sequer condição para a sua transmissão e, portanto, não constitui impedimento do cumprimento das obrigações de facto jurídico positivo que emergem do contrato promessa, o mesmo é dizer, de conclusão do contrato de compra e venda prometido. Mas é claro o erro de perspectiva do argumento: o que se questiona não é se a apontada desconformidade impede em abstracto a alienação do prédio – e, portanto, a conclusão do contrato definitivo – mas antes se, no caso concreto, às recorridas, promitentes adquirentes, assistia o direito de exigir dos recorrentes, promitentes vendedores, a correcção da indicada desconformidade matricial e registal de modo a que o contrato definitivo prometido fosse concluído existindo uma correspondência ou coincidência perfeita entre a realidade matricial e a registal e a realidade material subjacente – problema que releva, portanto, no plano, desde logo, do cumprimento das prestações de facto jurídico positivo a que as partes se vincularam e não do erro-vício, que, aliás, nunca foi invocado e de que a Relação não conheceu, e que obteve das instâncias uma resposta afirmativa acorde.

O acórdão impugnado, em linha, de resto, com a sentença da 1.ª instância, concluiu que as obras existentes no logradouro do prédio estavam sujeitas a controlo prévio da administração autárquica – e consequentemente a acto administrativo autorizativo de construção e de utilização – dado que, ao contrário do que sustentam os recorrentes, essas construções não são obras de escassa relevância urbanística. Esta conclusão tem-se por inteiramente correcta.

Constituem obras de escassa relevância urbanística – e como tais, isentas de controlo prévio – designadamente, as pequenas obras de arranjo e melhoramento da área envolvente das edificações que não afectem área do domínio público e a edificação de equipamento lúdico ou de lazer associado a edificação principal com área inferior a esta última (art.ºs 6, n.º 1, c), e 6-A, n.º 1, d) e e), do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – RJUE – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro). Apesar da relativa indeterminação de qualquer destes conceitos – que, portanto, permitem uma margem de decisão ao intérprete e ao aplicador, que deverá ser preenchida através de um juízo valorativo – entende-se, por um lado, que ao tribunal é lícito proceder à concretização desses conceitos, ainda que com exclusivo fito de resolver a situação conflitual objecto do processo, e, por outro, que ao Supremo é lícito controlar a concretização que foi realizada pelas instâncias, verificando se estas respeitaram nessa concretização a margem de valoração que é inerente a qualquer conceito indeterminado, ainda que só relativamente. Concretização que, como se adiantou, deve assentar, designadamente na dimensão, composição e finalidade das obras para a qual, ao contrário de que esse adverso sustentam os recorrentes, a matéria de facto adquirida para o processo é, de todo, inteiramente suficiente.

Considerando a dimensão de qualquer das construções – que no conjunto atinge 180 m2 – a sua localização, composição, nível de infraestruturas e finalidade, entende-se que as instâncias ao recusar a sua qualificação como obras de escassa relevância urbanística, concretizaram, de forma aceitável, o conceito relativamente indeterminado correspondente, ou seja, dentro das margens de ponderação compatíveis com a sua indeterminação. Ergo, tais obras estavam sujeitas a controlo prévio e, consequentemente, a realização da operação urbanística correspondente carecia de licença de utilização de que, comprovadamente, não dispõe (art.º 62.º, n.º 1, do RGEU, vigente à data da contracção da promessa de contrato, mas entretanto revogado pelo art.º 24, b), do Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de Janeiro do Decreto-Lei n.º 10/24, de 8 de Janeiro, e 62-A daquele diploma, na sua redacção actual).

De harmonia com os factos assentes pelas instâncias o contrato promessa não contém qualquer cláusula que imponha aos promitentes vendedores a legalização de quaisquer edificações existentes no logradouro do prédio, facto que os recorrentes extraem a conclusão de que não adstritos a qualquer dever contratual que os vincule à legalização daquelas edificações, i.e., à obrigação de fazer coincidir a realidade material do prédio com a sua realidade matricial ou registral.

Abstraindo da circunstância de a reintegração da legalidade urbanística constituir um – verdadeiro – dever legal, do apontado facto apenas se extrai que a obrigação de repor aquela legalidade e de assegurar a correspondência entre a fisionomia material do prédio e a respectiva realidade matricial e registral não foi objecto de uma previsão contratual expressa – mas não que os recorrentes não estejam adstritos a uma tal obrigação. Para concluir para essa adstrição, basta convocar para a discussão os deveres acessórios, i.e., como se apontou, aqueles que se distinguem, com clareza, em função do seu fundamento final designadamente, do dever de prestar principal: enquanto este dever – que se funda na autonomia privada - visa a satisfação do direito do credor na prestação - aqueles – que têm a sua raiz na boa fé - promovem o interesse do credor na integralidade da própria prestação e ainda na indemnidade dos seus interesses colaterais: património e integridade, física e psíquica, desse mesmo credor (art.ºs 398.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, do Código Civil)40. É comum o distinguo entre os deveres acessórios de informação, de segurança e de lealdade41: este último obrigaria as partes, designadamente, a uma actuação séria, evitando condutas que atinjam o dever de prestar ou a sua utilidade para o credor, e vincularia, tanto o devedor como o credor - através do princípio da tutela da confiança, derivado da boa fé – a adoptar todas as condutas necessárias para assegurar o cumprimento pontual ou exacto da prestação principal.

O conceito de cumprimento enuncia-se com facilidade: o cumprimento da obrigação é a realização da prestação devida. O cumprimento deve decorrer sob o signo estrito, designadamente dos princípios da boa fé e da integralidade ou completude. O cumprimento consiste, fundamentalmente, numa colaboração intersubjectiva entre credor e devedor e, por isso, a lei vincula-os a ambos, a um dever de actuar de boa fé (artº 762 nº 2 do Código Civil). É à luz da boa fé que o cumprimento devido deve ser delimitado e é partir da boa fé que se determina a medida do esforço que, ao devedor, pode ser exigida na realização da prestação. Nestas condições, recaía sobre os recorrentes o dever acessório, que arranca da boa fé, de providenciar, no tocante às construções existentes no logradouro da fracção prometida vender, pela reintegração da legalidade urbanística – ou na hipótese mais benigna, pela demonstração adequada da legalidade actual da operação urbanística representada pelas edificações levantadas no logradouro da fracção – e, bem assim, de assegurar a coincidência entre a realidade física do prédio e a sua realidade matricial e registral, sendo contrário ao princípio estruturante regulativo da boa fé pretender concluir um contrato definitivo fazendo tábua rasa daquela ilicitude urbanística e destas discrepâncias, transferindo para as recorridas o ónus e as despesas da reposição da legalidade urbanística daquelas construções e de eliminar a divergência entre a realidade material e a realidade fiscal e registral do prédio prometido vender. A conclusão, tirada no acórdão impugnado, de que era obrigação dos Autores providenciar pela referida legalização ou, em alternativa, apresentar documento onde a entidade competente certificasse a regularidade das obras por não estarem sujeitas a qualquer controlo prévio e de que estavam também os Autores obrigados a providenciar – conforme exigido pelas Rés – pela actualização da inscrição matricial e descrição predial de forma a que tivessem correspondência com a realidade física existente no local – é, assim, inteiramente correcta. Com esta exigência, as recorridas não visam proteger ou assegurar interesses públicos colectivos – mas interesses puramente particulares que elas mesmas titulam que seriam negativamente afectados pelas desvantagens decorrentes da aquisição de um bem imóvel em situação urbanística, registral e matricial irregular.

No ver dos recorrentes, perante a licença de utilização, a caderneta predial e a certidão do registo predial do bem imóvel objeto do contrato-promessa, o notário/conservador estava habilitado a realizar o ato. Mas a verdade é que não estava.

Os actos que envolvam a transmissão que envolvam a transmissão de prédios urbanos ou de fracções autónomas não podem ser realizados sem que faça, perante o documentador, prova da existência da correspondente autorização de utilização, de cujo alvará se deve fazer sempre menção no documento, com indicação expressa do respectivo número e data da sua emissão (art.º 1.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de Julho, na redação que lhe foi impressa pelo art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, em vigor ao tempo da conclusão do contrato promessa, entretanto revogado pelo art.º 24, b), do Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de Janeiro). São evidentes a razões e as finalidades materiais que fundamentam este regime: a exigência, imperativa, da apresentação da licença de utilização é, nitidamente, ditada por razões de interesse eminentemente público, destinando-se não só a combater a transmissão de edificações clandestinas, construídas sem as licenças de construção ou de loteamento, mas também garantir a conformidade da obra com o projecto aprovado e suas eventuais alterações, as condições do seu licenciamento e o uso autorizado no alvará de licença de construção, protegendo-se assim, além destes interesses públicos, os interesses privados dos adquirentes dos prédios urbanos ou das suas fracções autónomas, dentro dos limites razoáveis da segurança do comércio jurídico imobiliário.

É doutrinariamente controverso se a conclusão de um contrato de compra e venda de bens imóveis sem licença de utilização determina ou não a sua nulidade42. Este Tribunal Supremo decidiu já porém, que a preterição da proibição de celebração de actos que envolvam a transmissão de prédios urbanos, sem a prova suficiente da existência da correspondente licença de utilização ou construção, consoante o caso, importa a nulidade do negócio celebrado com infracção dessa proibição, nos termos do art.º 294.º do Código Civil, jurisprudência que, pela sua correcção, se reitera43. O carácter injuntivo da existência – e da prova - do acto administrativo autorizativo de utilização tem, necessariamente, como pressuposto que a autorização da utilização corresponda à realidade edificada, no momento em que é concluído o negócio jurídico transmissivo do bem imóvel, o que, no caso, não sucede no tocante às construções levadas a cabo no logradouro da fracção de edifício objecto mediato do contrato de compra e venda prometido. Em face da insuficiência ou da incompletude da licença de utilização de que o imóvel dispõe, ao documentador – notário ou conservador – estava injuntivamente proibida a celebração do contrato definitivo prometido e a sua eventual conclusão em violação daquela proibição imperativa feri-lo-ia, irremissivelmente, com o desvalor da nulidade.

Nesta conjuntura, o acórdão recorrido é correcto quando argumenta que o incumprimento só poderá ser imputado aos Autores, que as Rés nunca recusaram em definitivo a celebração do contrato e sempre manifestaram interesse na sua celebração, exigindo apenas – legitimamente conforme referimos supra – que os Autores providenciassem previamente pela regularização da situação do imóvel (interesse que, aliás, continuaram a manifestar mesmo após a resolução do contrato operada pelos Autores conforme resulta da sua comunicação de 13/08/2019) e que foram os Autores que, ao invés de se disponibilizaram para satisfazer essas exigências (legítimas), acabaram por recusar a celebração do contrato quando, sem fundamento válido, declararam a respectiva resolução caso a escritura não fosse marcada dentro do prazo que estipularam. Argumentação que pode reforçar-se com a consideração de que, dada a licitude da exigência das recorridas – que nunca recusaram, peremptoriamente, o cumprimento da promessa - de regularização urbanística, matricial e registal do bem objecto do contrato definitivo prometido, os recorrentes não dispunham, afinal, do direito potestativo de resolução do contrato, pelo que sendo essa resolução indevida foram eles que – pelas razões já expostas – não cumpriram, definitivamente, as obrigações de facto jurídico positivo resultantes da promessa de contrato, conferindo às recorridas, por força dessa resolução ilícita, desde logo, o direito à percepção da quantia correspondente ao dobro do sinal traditado.

As recorridas detêm o imóvel prometido vender em consequência da execução de uma convenção acessória, perfeitamente lícita, concluída formal e concomitantemente com a celebração da promessa de contrato, e não em resultado do cumprimento de uma obrigação de entrega contrato de arrendamento urbano: o reconhecimento de gozam do direito de o reter para garantir a satisfação do crédito de que os recorrentes são devedores, decorrente da violação da obrigação de emitir as declarações integrantes do contrato definitivo que contraíram com a conclusão da promessa é, assim, um corolário que não pode recusar-se.

A não conclusão do contrato de compra e venda definitivo prometido não é imputável às recorridas, que nunca se recusaram a celebrá-lo – mas aos recorrentes, e é também a estes que são imputáveis, por inteiro, as desconformidades urbanísticas, registais e matriciais do bem imóvel objecto mediato daquele contrato, sendo certo, como se lê eloquentemente, na matéria de facto apurada pelas instâncias, que nunca os Autores ou a mediadora imobiliária alertaram as Rés para qualquer espécie de irregularidade ou insuficiência quanto à documentação do imóvel ou licenciamentos, não o tendo feito em momento anterior à celebração do contrato promessa ou em momento posterior a essa celebração. O erro que os recorrentes invocam para assacar às recorridas o exercício, em abuso, do direito deve-se, assim, a uma omissão dos recorrentes – contrastante com a boa fé - e seriam os últimos que, caso o contrato definitivo fosse concluído apesar das apontadas desconformidades, que dele tirariam proveito ou vantagem.

Como quer que seja, a matéria de facto que as instâncias tornaram disponível não permite acusar as recorridas do exercício inadmissível ou desequilibrado das suas posições jurídicas, ou um comportamento contraditório ou uma conduta que tenha instilado, nos recorrentes, uma convicção ou confiança fundada de que não exigiriam a supressão das desconformidades apontadas, sendo certo repete-se – que as recorridas nunca se recusaram, de modo definitivo, a cumprir as prestações de facto jurídico positivo a que se vincularam pela promessa de contrato e que foram os recorrentes que promoveram, sem fundamento ou indevidamente, a supressão do contrato promessa e que, com essa ilicitude, acabaram por atribuir às recorridas os direitos que a acórdão recorrido lhes reconheceu. Numa palavra: não há motivo fundado para concluir que as recorridas tenham agido em abuso do direito.

Em absoluto remate: o acórdão impugnado, face à falta de bondade da impugnação, tem-se por correcto. Cumpre, por isso, desamparar o recurso.

Do percurso argumentativo percorrido extraem-se, como proposições conclusivas mais salientes, as seguintes:

- A delimitação da dupla conformidade de decisões, enquanto obstáculo admissibilidade da revista, exige o confronto com a autonomia e cindibilidade do objecto do processo, mesmo no caso de objecto único, e na viabilidade da apreciação de segmentos da decisão entre si independentes, autonomia que é aferida um função da respectiva fundamentação;

- A cláusula, inserta num contrato promessa bivinculante, em execução da qual a coisa imóvel objecto mediato do contrato de compra e venda prometido é traditada para os promitentes compradores, mediante o pagamento de uma compensação, devida até à conclusão do contrato definitivo, não é qualificável com contrato de arrendamento urbano, mas como simples convenção acessória, subalterna e instrumental, através da qual se antecipa um dos efeitos jurídicos deste último contrato;

- Do contrato promessa emergem, além das prestações principais de facto jurídico positivo – a obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido – deveres acessórios de conduta que arrancam, materialmente, do princípio regulativo estruturante da boa-fé;

- A resolução do contrato promessa exige o cumprimento definitivo das obrigações que dele emergem, o incumprimento definitivo que surge não apenas quando for força da não realização ou do atraso na prestação o credor perca o interesse objectivo nela ou quando, havendo mora, o devedor não cumpra no prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor – mas igualmente nos casos em que o devedor declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito ou adopta uma qualquer outra conduta manifestamente incompatível com o cumprimento;

- A resolução infundada do contrato promessa determina o seu incumprimento, dado que revela o propósito, claro, sério e unívoco, a intenção categórica ou o propósito indubitável e irrevogável de não cumprimento – e de não cumprimento definitivo – daquele mesmo contrato;

- Apesar da autonomia do contrato promessa relativamente ao contrato definitivo e de dele apenas resultarem prestações de facto jurídico positivo, no cumprimento destas obrigações são relevantes as eventuais perturbações das prestações que resultam do contrato definitivo ou principal;

- A alegação do abuso de direito, quando tenha por efeito a inibição do exercício de poderes jurídicos, v.g., de um direito subjectivo, resolve-se numa excepção peremptória, cabendo, por isso, o ónus da da prova dos factos correspondentes ao excipiente, pelo que, no caso de non liquet, há que decidir contra essa parte a questão correspondente.

Os recorrentes sucumbem na revista. Esta sucumbência torna-os objectivamente responsáveis pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos:

1. Julga-se a revista inadmissível no tocante à questão da qualificação da convenção acessória reguladora da tradição da coisa, objecto mediato do contrato definitivo ou principal, como contrato de arrendamento;

2. Nega-se, no mais, a revista.

Custas pelos recorrentes.

2024.10.14

Henrique Antunes (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Maria João Vaz Tomé

__________________________________________________________________

1. Acs. do STJ de 12.10.2023 (1901/21), 30.11.2023 (1120/20), 29.09.2022 (19864/15), 19.02.2015 (302915/11) e de 30.04.2015(1583/08); Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, 2022, pág. 425.↩︎

2. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Livraria Almedina, Coimbra, 1974, pág. 35↩︎

3. A qualificação de um contrato é um juízo predicativo, dado que o contrato é qualificado através do reconhecimento nele de uma qualidade que é a qualidade que corresponde a este ou àquele tipo, a este ou àquele modelo típico; a qualificação legal traz consigo, assim, sempre um processo de relacionação entre a regulação contratual subjectiva estipulada e o ordenamento legal objectivo,, onde o catálogo dos tipos contratuais legais se contém: Pedro Paes de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, págs. 164 e 165; Ac. do STJ de 16.03.2023 (5216/21).↩︎

4. Acs. do STJ de 13.04.1994, CJ, STJ, II, pág. 32, e da RL de 15.02.1996, CJ, XXI, I, pág. 121.↩︎

5. Para uma resenha sobre as opiniões doutrinárias quanto á consagração no art.º 236.º do Código Civil de um critério objectivista ou subjectivista, cfr. Santos Júnior, Sobre a Teoria da Interpretação dos Negócios Jurídicos, AAFDL, 1988, págs. 144 a 150.↩︎

6. Assim, v.g., Galvão Teles, Manual Dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, Coimbra Editora, 2002, pág. 445; diferentemente, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos IV, Funções, Circunstâncias e Interpretação, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 262.↩︎

7. Alguma doutrina – v.g. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, 2.ª edição, 2000, pág. 551 – e jurisprudência – v.g. o Ac. do STJ de 27.02.2013 – refere, todavia, de modo genérico, a boa fé no âmbito dos negócios jurídicos.↩︎

8. João Batista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, págs. 135 a 137, e Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa, 1968, pág. 20, nota 3.↩︎

9. António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol. AAFDL, 1980, pág. 457, Baptista Machado, RLJ Ano 118, pág. 275, Brandão Proença, Do Incumprimento do Contrato Promessa Bilateral, Almedina, 1996, pág. 87, e A Hipótese da Declaração (Lato Sensu) Antecipada de Incumprimento por parte do Devedor, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003, pág. 364, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 5.ª edição, Almedina, pág. 90, e Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, AAFDL, pág. 296; Acs., v.g. da RC de 24.03.92 e 28.05.92, CJ, XVII, II, pág. 50 e XVIII, III, pág. 115 e do STJ de 07.03.91, BMJ n.º 405, pág. 458.↩︎

10. João Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, ci., pág. 164.↩︎

11. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 139.↩︎

12. Antunes Varela, RLJ, Ano 128, pág. 112, e Ac. do STJ de 12.01.10, www.dgsi.pt.↩︎

13. Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II, Coimbra Editora, págs. 1675 e 1676, nota 4861, Joana Farrajota, A Resolução do Contrato sem Fundamento, pág. 55 e David Nunes dos Reis, A (in)eficácia extintiva da resolução ilícita do contrato, págs. 654 e 655.↩︎

14. António Menezes Cordeiro, Da Resolução do Contrato, pág. 473, disponível, em https://portal.oa.pt/media/132086/antonio-menezes-cordeiro.pdf.↩︎

15. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, cit., pág. 209, António Pinto Monteiro, Contrato de Agência, 7.ª edição, 2010, págs. 138 e 139, e João Baptista Machado, RLJ 118.º, págs. 328 a 332.↩︎

16. José Carlos Brandão Proença, Do Incumprimento do contrato-promessa bilateral/A Dualidade execução específica, in Estudos Ferrer Correia, 1987, págs. 241, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra Editora, pág. 362, Do Incumprimento do Contrato Promessa Bilateral, Coimbra, 1986, pág. 87, A Hipótese da Declaração (Lato Sensu) Antecipada de Incumprimento por parte do Devedor, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª edição, vol. II, pág. 88, António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., cit. pág. 457, Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, AAFDL, pág. 296, Baptista Machado, RLJ Ano 118, pág. 275, nota (2) e Calvão da Silva, A Declaração da Intenção de não Cumprir, Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Pareceres), Coimbra, 1996, pág. 137; Acs. da RL de 15.12.2016 (503/15), CJ, n.º 274, Tomo V, 2016, Acs. do STJ de 12.05.2016 (2470/08), 22.05.2018 (27800/15) e 10.01.2012 (25/09), e da RG de 06.02.2104 (40112/06).↩︎

17. Vaz Serra, Contrato-Promessa, BMJ n.º 74, 1958, pág. 6.↩︎

18. O ponto é duvidoso. António Menezes Cordeiro – O Novíssimo Regime do Contrato Promessa, Estudos de Direito Civil, vol. I, Coimbra, 1987, pág. 85 - sustenta que não se trata de verdadeira resolução; contra, Brandão Proença, Do Incumprimento do Contrato Promessa Bilateral. A Dualidade Execução Específica – Resolução, cit., pág. 153.↩︎

19. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 375 e 376 e Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, cit., pág. 127, e Sousa Ribeiro, O Campo de Aplicação do Regime Indemnizatório do Artigo 442 do Código Civil: Incumprimento ou Mora? BFDUC, Volume Comemorativo, Coimbra, 2003, págs. 211 e ss. Este último autor entende que o contraente fiel que pede o valor do sinal ou da coisa sem haver incumprimento definitivo fica sujeito à excepção do cumprimento, mas que se houver incumprimento, ainda que força da extinção do prazo admonitório, fica excluída a oferta do cumprimento.↩︎

20. Assim, v.g., os Acs do STJ de 01.07.08, www.dgsi.pt., e de 27.11.97, BMJ nº 471, pág. 388. Este último indica, todavia, jurisprudência de sentido contrário, reafirmada, por exemplo, pelo Ac. do STJ de 10.02.98, CJ, STJ, VI, I, pág. 63.↩︎

21. Assim, v.g. os Acs. do STJ de 12.01.10 e de 06.10.11, www.dgsi.pt. Uma recensão da jurisprudência sobre o ponto pode ler-se António Menezes Cordeiro – Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo II, Almedina, Coimbra, 2010, págs. 388 e 389 – que, de resto, sustenta que, para o efeito considerado, é suficiente a simples mora.↩︎

22. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª edição, vol. II., cit. pág. 571. A função de garantia é assegurada pelo direito de retenção por uma via dupla: através de um efeito compulsório, resultante da pressão psicológica que a situação jurídica da retenção exerce sobre o dono da coisa; pela possibilidade de realização pecuniária, relacionada com as faculdades executivas, com pagamento preferencial da coisa retida, nos termos reconhecidos ao credor pignoratício e ao credor hipotecário (art.ºs 758.º e 759.º do Código Civil); cfr. António Menezes Cordeiro, Da Retenção do Promitente na Venda Executiva, ROA, Ano 57, nº 11, pág. 547.↩︎

23. Vaz Serra, Direito de Retenção, BMJ nº 65, pág. 103, Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 339, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Principia, Cascais, 2002, pág. 240 e 241 e Sérgio Nuno Coimbra Castanheira, Direito de Retenção do Promitente-Adquirente, in Garantia das Obrigações, Coordenação de Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Almedina, Coimbra 2007, págs. 498 e 499; Acs. do STJ de 17.04.07 e 13.07.07, www.dgsi.pt. O direito de retenção não está sujeito a registo e, por isso, a sua publicidade é, precisamente, a resultante da posse exercida pelo retentor, que permite que terceiros se apercebam da sua existência.↩︎

24. Antunes Varela, RLJ, Ano 119, pág. 226, e Sobre o Contrato Promessa, 2ª edição, Coimbra Editora, 1989, págs. 106 a 116 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição, vol. I, Coimbra Editora, 1987, pág. 778.↩︎

25. Acs. do STJ de 24.06.04 e de 10.01.08, www.dgsi.pt. e Fernando de Gravato Morais, Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, Almedina, 2009, págs. 232 a 234.↩︎

26. Acs. do STJ de 10.01.08, 18.12.07 e de 04.12.07 e da RP de 26.10.06, www.dgsi.pt, Ana Prata, O Contrato Promessa e o seu Regime Civil, cit., pág. 888 e Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, cit. pág. 184.↩︎

27. Acs. do STJ de 24.04.02 e 12.12.02, www.dgsi.pt e Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 3.ª edição, Almedina, pág. 221.↩︎

28. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Coimbra, 2009, pág. 83. Fala-se, por isso, num sistema de vínculos que emerge do contrato: Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 4.ª edição, 2012, págs. 186 e 187↩︎

29. Ana Perestrelo de Oliveira/ Madalena Perestrelo de Oliveira, Incumprimento Resolutório: Uma Introdução, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 97.↩︎

30. Madalena Perestrelo de Oliveira/Ana Perestrelo de Oliveira, cit., pág. 98 e Carlos Brandão Proença, A Resolução do Contrato em Direito Civil: Do Enquadramento e do Regime, Coimbra, 2016, pág. 129; Ac. do STJ de 09.05.2006 (37/06).↩︎

31. Joana Farrajota, A Resolução do Contrato sem Fundamento, Almedina, Coimbra. 2005, pág. 234.↩︎

32. Almeida Costa, Contrato Promessa, Uma Síntese do Regime Vigente, 9ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 12, nota 4. Contra, contudo, João Calvão da Silva, Negociações Preparatórias, cit., pág. 82.↩︎

33. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.11.94 e 25.11.99, CJ, STJ, II, III, pág. 157 e VII, III, 124, respectivamente; Maria Luiza do Valle Rocha “O conhecimento oficioso do abuso do direito”, in Revista de Direito Civil, Ano II, 2017, FDUL, CIDP, Almedina, pág. 216.↩︎

34. Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, cit., págs. 247 e 248.↩︎

35. Cfr. v.g., o Ac. da RE de 26.11.1987, CJ, XII, V, pág. 268, e de 23.1.1986, CJ, XI, I, pág. 231, e do STJ de 3.5.1990, BMJ n.º 397, pág. 454, e de 11.3.1999, www.dgsi.pt.↩︎

36. Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit. págs. 250 a 265, e Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, § 30, págs. 797 e ss.↩︎

37. Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no Direito Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume Comemorativo, Coimbra, 2003, pág. 305 e António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé, cit., págs. 828 a 836, Vaz Serra, Abuso do Direito (em Matéria de Responsabilidade Civil), BMJ n.º 85, pág. 262, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 1987, pág. 299, e Ac. do STJ de 16.031980, RLJ, Ano 114, pág. 76. Mas é claro que o acto abusivo pode ainda dar lugar, à nulidade, à anulabilidade, a inoponibilidade, ao alargamento de um prazo de caducidade ou de prescrição, etc. Cfr. Vaz Serra, RLJ, Ano 107, pág. 25.↩︎

38. Acs. do STJ de 15.12.2005, 14.12.2003 e 05.07.2001, www.dgsi.pt.↩︎

39. Acs. do STJ de 31.03.2004, de 12.08.2008 e de 19.02.2013, www.dgsi.pt.↩︎

40. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo I, 2009, Almedina, Coimbra, pág. 479, e “Violação positiva do contrato”, in Estudos de Direito Civil, Volume I, Almedina, Coimbra, 1987, págs. 124 a 126.↩︎

41. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 114 e 115.↩︎

42. Em sentido negativo, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, 6.ª edição, Almedina, pág. 20; em sentido afirmativo, Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, Almedina, Coimbra, 12.ª edição, pág. 84.↩︎

43. Ac. de 29.10.2015 (886/06); no mesmo sentido, o Ac. da RE de 27.06.2024 (3546/22).↩︎