Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO MAGALHÃES | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE MÉDICA DEVER DE INFORMAÇÃO CONSENTIMENTO INFORMADO LEGES ARTIS INCAPACIDADE FUNCIONAL AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO PROVA PERICIAL | ||
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Data do Acordão: | 07/02/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
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Sumário : | Num contexto de inflamação e de infecção do dente do siso, não se mostra abrangido pelo dever de informação do médico a comunicação ao doente, antes da extracção desse dente, do risco de lesão do nervo lingual, que é, nesse tipo de intervenções, de incidência rara ( taxa de 1,1%). | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça: * AA instaurou acção judicial contra BB pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 52.500,00, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento. Para fundamentar o seu pedido alegou, em síntese, que contratou com a ré, dentista, a extracção de um dente, acto que a ré executou mas em resultado de cuja execução a autora deixou de sentir o sabor e a textura com a metade direita da língua, situação que decorre da circunstância de, ao ministrar a anestesia à autora e extrair o dente, a ré ter atingido o nervo lingual, provocando-lhe hipostesia (diminuição da sensibilidade) da hemilíngua direita, principalmente no bordo lateral, a nível posterior. A ré, antes de iniciar a extracção do dente, devia ter mandado efectuar exames para determinar a sua localização e informado a autora do risco de ocorrência daquela situação, obtendo desta o consentimento para a realização da intervenção, o que não fez. Em consequência, causou danos à autora dos quais esta pretende ser ressarcida. A ré apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que a cirurgia correu dentro da normalidade, sem intercorrências ou complicações, tendo a ré seguido todos os procedimentos e regras de arte, não obstante a necessidade de reforço de anestesia dentro dos limites, tendo a extracção do dente sido feita de acordo com as boas práticas, respeitando as leges artis da sua profissão, com uso pela ré de toda a sua diligência, zelo, cuidado e perícia. Mais alega que transmitiu à autora toda a informação sobre a cirurgia em causa, esclarecendo-a de que se tratava de uma cirurgia para retirar um dente incluso, das implicações e riscos que daí poderiam advir, bem como, dos cuidados a ter no pré e no pós operatório; as complicações que podem surgir durante e após a remoção do siso, e concretamente as lesões do nervo lingual são extremamente raras, com uma taxa de cerca de 0,4% para lesões temporárias e para lesões permanentes com uma taxa ainda mais baixa, pelo que o risco das mesmas não tinha de ser transmitido à autora. Foi requerida e admitida a intervenção principal da AGEAS Portugal - Companhia de Seguros, S.A., em virtude de a ré ter celebrado com a interveniente seguro de responsabilidade civil profissional. A interveniente apresentou contestação, acompanhando a alegação da ré. Foi realizado julgamento e proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e a ré e a intervenientes condenadas a pagar à autora as quantias de € 348,00, acrescida de juros desde a citação, e € 14.000,00, acrescida de juros desde a data da sentença, em ambos os casos até integral pagamento. Do assim decidido, a interveniente AGEAS interpôs recurso de apelação, pedindo que se revogasse a decisão recorrida e se substituísse a mesma por uma outra que julgasse a acção improcedente por não provada e consequentemente, absolvesse a ré e interveniente do pedido formulado. Também a autora apresentou recurso de apelação, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que, mantendo o demais aí decidido, fixasse em € 20.000,00 o montante dos danos não patrimoniais e em € 1.348,00 o montante dos danos patrimoniais sofridos pela autora, aqui recorrente, quantias estas a ser pagas, € 20.000,00 solidariamente pelas ré e interveniente e € 1.348,00 a pagar pela ré, tudo acrescido dos juros de mora calculados nos termos decididos na sentença recorrida. Porém, a Relação julgou o recurso da autora improcedente e o da ré procedente, revogou a decisão recorrida e absolveu as rés do pedido. Não se conformou, desta feita, a autora que interpôs recurso de revista, que rematou com as seguintes conclusões: “A) No ponto 14 dos Factos Provados nos autos considerou o Mmo Juiz da Primeira Instância que as sequelas da lesão sofrida pela autora traduzem-se num (…) “défice funcional permanente fixável em 2 pontos na escala de 2 a 10” (…), fundamentando-se tal decisão no relatório pericial de fls… onde se lê que (…) “o défice funcional permanente, considerando a globalidade das sequelas do caso concreto (corpo, funções e situações de vida), e de acordo com a experiência médico-legal relativamente a estes casos, poderá ser fixável em 2 pontos (Capítulo I, A., 2, Na0201, coeficientes previstos na tabela 2 a 10)” (…) B) Tal factualidade considerada provada pela Primeira Instância não foi questionada pelas partes nem configura “erro manifesto” como se defende no Acórdão recorrido para justificar a sua decisão de oficiosamente proceder à alteração da sua redação para (…) “traduzindo-lhe tal situação num défice funcional permanente fixável em 2 pontos, numa escala de 0 a 100” (…) – cfr. pág. 15 do Acórdão recorrido, com negrito nosso – acrescentando-se no mesmo Acórdão que tal facto tem (…) “enorme relevância para a decisão de mérito” (…) – linha 15 da pág. 14 Acórdão recorrido, com sublinhado nosso. C) Com o devido respeito por tal entendimento, entende a recorrente que nem tal “pormenor” tenha “enorme relevo” para a decisão de mérito dos autos, nem se lhe afigura que na sua redação o Mmo Juiz da Primeira Instância tenha laborado em erro manifesto pois, o que resulta do código Na0201 da Tabela de Avaliação de Incapacidades em Direito Civil (DL 352/2007, de 23/10) aí citada e que é aplicável ao caso dos autos, é que a afetação, na face, do nervo trigémio, é valorizável de 2 a 10 pontos, tendo o relatório pericial de fls… e o Mmo Juiz da Primeira Instância se “limitado” a concluir que in casu tal valorização se fixa em 2 pontos, numa escala que poderia ir desde os aí referidos 2 pontos, até um máximo de 10!... D) Assim, não se vislumbra tal “erro manifesto” que o Acórdão recorrido aponta ao facto provado em 14 pela Primeira Instância, nem, muito menos, necessidade de reformulação oficiosa de tal facto como foi efetuado, nem tão-pouco que ele tenha o dito “enorme relevo” para a decisão de mérito a proferir nos autos (como infra se voltará), devendo, pois, manter-se a sua redação tal como ela se encontrava exarada pela Primeira Instância. Sem prescindir, E) Na sequência do procedimento que envolveu a extração do seu dente 4.8, a A. ficou com hipostesia da hemilíngua direita, por força do atingimento do seu nervo lingual (nº 35 dos Factos Provados), sendo que esta ocorrência constitui um risco inerente ao procedimento cirúrgico, ainda mais porque a posição do nervo lingual varia de pessoa para pessoa (nº 37 dos Factos Provados); a Ré não informou a A. deste risco antes de lhe retirar o dente (nº 38 dos Factos Provados), risco esse que bem conhecia (nº 39 dos Factos Provados), sendo que no âmbito da prática clínica entende-se ser exigível a realização de um estudo radiográfico antecedente a uma exodontia (nº 40 dos Factos Provados) e o nervo lingual apenas é visível através de uma Tomografia Computorizada (TAC) (nº 41 dos Factos Provados), que a Ré não levou a cabo. F) Assim, em face de tal matéria de facto, entende a recorrente que a Ré médica dentista não actuou de acordo com as leges artis, negligenciou a efetivação de um exame (TAC) que se mostrava essencial para prevenir a ocorrência da lesão que acabou por provocar na A., ora recorrente e, para além disso, não obteve da sua paciente o necessário e legalmente exigível prévio consentimento informado para a cirurgia que nela realizou, o que é gerador de responsabilidade civil. Na verdade, G) É obrigação do médico dentista comunicar ao paciente os riscos “significativos”, isto é, aqueles que o médico sabe ou devia saber que são importantes e pertinentes, para uma pessoa normal colocada nas mesmas circunstâncias do paciente, chamado a consentir com conhecimento de causa no tratamento proposto, pois, tal como se diz na douta Sentença proferida pela Primeira Instância, a ocorrência de lesão no nervo lingual do paciente (…) “ainda que rara, constitui um risco inerente ao procedimento cirúrgico, não sendo de todo possível garantir a sua não ocorrência. Isto porque a posição do nervo lingual varia e apesar dos esforços para evitar lesão do nervo lingual durante a extração de um terceiro molar, esta pode, por vezes, ser inevitável” (…). A nosso ver, este risco insere-se, assim, naquilo que se vem designando de risco significativo. Afinal trata-se de um risco inerente àquela específica intervenção e é, sem dúvida, pertinente para o paciente. Isto tendo em conta uma pessoa normal colocada nas mesmas circunstâncias do paciente, e chamada a consentir com conhecimento de causa no tratamento proposto. Noutras palavras, a lesão no nervo lingual é um risco especializado: um evento não muito frequente mas que, quando se verifica, a vida do paciente resulta gravemente prejudicada, e apesar de raro, é específico daquela concreta intervenção”. Como se viu, um médico deve transmitir informação leal, clara e apropriada sobre os riscos graves relativos a intervenções e aos tratamentos propostos e ele não está dispensado pelo simples facto de estes riscos só se realizarem excecionalmente. Afinal, o paciente tem o direito de ser informado do risco mais grave relativo à intervenção a que se vai submeter” (…). “Como ensinava Orlando de Carvalho, no presente caso verificou-se, quanto a esta cirurgia, um dos riscos típicos que lhe andam ligados, pelo que o paciente tem direito a conhecê-lo para que possa formular um consentimento esclarecido” (…) A Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina dispõe no seu artº 5º que qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido, isto é, deve receber previamente a informação adequada quanto ao objetivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos. Também o Código Penal qualifica como um crime contra a liberdade pessoal as intervenções ou tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, isto é, os realizados sem consentimento do paciente (artº 156º do Código Penal, explicitando-se no artº 157º do mesmo diploma o que se entende por consentimento válido e relevante (…) “o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em risco a sua vida ou seriam gravemente suscetíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica” (…) - o que seguramente não é o caso que nos ocupa pois tal não se demonstrou nos autos, nem, aliás, sequer se alegou. Inexistindo consentimento informado o agente do ato médico será responsabilizado pela violação da autonomia do paciente. Atendendo à seriedade das consequências danosas inerentes à cirurgia em causa, à taxa de frequência com que podem ocorrer, a Ré médica tinha o dever de esclarecer a A. sobre as mesmas, dever esse que incumpriu, violando assim um dos deveres decorrentes do particular contrato de prestação de serviços que celebraram, concretamente o dever de prestar informação a fim de se obter do cliente-paciente um consentimento informado, dever esse que também é imposto por lei e protege os direitos absolutos da integridade físico-psíquica e da liberdade de vontade do paciente. H) Em face da factualidade provada nos autos, maxime nos pontos 35 e 37 a 41, é inequívoco que in casu estava a Ré obrigada ao dever, que não respeitou, de informar a sua paciente desse risco grave, significativo, especializado, específico daquela concreta intervenção, de lesão do nervo lingual da A., sendo assim ilícita a sua intervenção e, consequentemente, inequívoca a sua responsabilidade na produção do sinistro que aqui nos ocupa e, como tal geradora da obrigação de indemnizar, como se decidiu – e bem – na douta Sentença proferida pela Primeira Instância e que nesta parte nenhuma censura merece. I) Que o risco é grave e significativo evidencia-o as sequelas que dele resultaram para a A. e que vão descritas nos autos. J) Nos doutos Acórdãos da RL e deste Supremo Tribunal, proferidos respetivamente em 10-11-2016 e em 02-11-2017 no âmbito do processo nº 23592/11.4..., concluiu-se, num caso em tudo coincidente com o aqui em apreço, que o risco de lesão do nervo lingual em extrações do dente 4.8 é de 23%, sendo que nos presentes autos considerou-se provado (ponto 36 dos factos provados) que na literatura médica estima-se que a lesão do nervo lingual ocorre em 1,1% neste tipo de procedimentos. Porém, Tal facto considerado provado nos autos terá de ser interpretado com recurso à sua fonte, isto é, ao relatório pericial que lhe serviu de fundamento e aí o que se refere é que (…) “a lesão do nervo lingual é rara (1,1%), sendo que a extração do terceiro molar é a sua causa mais frequente” (…), isto é, referem-se aqueles 1,1% ao risco de lesão do nervo lingual por ocasião da extração de um qualquer dente, sendo que tratando-se do terceiro molar, tal risco aumenta substancialmente; daí que aquela percentagem de 1,1% não se possa aplicar sem mais às situações, como a que nos ocupa, de extração do terceiro molar, isto é, do dente 4.8. Aliás, nem se poderia conceber ou perceber que no caso dos citados Acórdãos da RL e do STJ se concluísse que as lesões do nervo lingual ocorrem em 23% das extrações dos terceiros molares e no caso dos autos que elas ocorrem em apenas 1,1% dos casos, sendo que é abundante a literatura médica que refere que tal percentagem é de 23% de incidência de parestesia do nervo lingual (como se nos referidos doutos Acórdãos da RL e do STJ) e a coincidência entre o que aí foi julgado e o objeto dos presentes autos é praticamente total: o dente do siso que foi extraído é também o dente 4.8 (terceiro molar), as respetivas pacientes têm idênticas caraterísticas (idade, sexo, etc.), tudo aconteceu no mesmo país e na mesma época histórico-temporal, sendo ainda coincidentes as respetivas lesões e sequelas: lesão do nervo lingual e hipostesia da hemilíngua direita. Mas ainda que se entendesse que tal risco de lesão, mesmo no caso de extração de um terceiro molar, é bastante reduzido ou raro (como se defende no Acórdão recorrido), sempre se teria de concluir que, não obstante, trata-se de um risco que é grave (atentas as sequelas que dela resultam) e específico do procedimento cirúrgico em questão pelo que, nos termos supra apontados, sempre se impunha que previamente à cirurgia o paciente dele fosse informado, o que a Ré dentista não fez. K) Tendo em conta a idade da A. à data dos factos, a gravidade da lesão que sofreu e as sequelas permanentes daí resultantes, a compensação pelos danos não patrimoniais daí decorrentes para a A. deve ser fixada em € 50.000,00, à qual deve acrescer indemnização pelos danos patrimoniais que, em face das despesas que a A. teve de suportar e que os autos consideraram provados, deve incluir aqueles encargos que igualmente suportou e que nem carecem de alegação e prova pois são do conhecimento de todos, nomeadamente os gastos com deslocações, perdas de tempo, aquisição de medicamentos, o que no entender da A. ascende, tudo somado, a pelo menos € 1.348,00. Na verdade, Tendo em conta que: • À data dos factos a A. tinha 25 anos de idade, as sequelas resultantes do facto ilícito remontam a 29.10.2016 e permanecerão por toda a sua vida, traduzindo-se não apenas na “perda do paladar e na sensação de “boca seca” como se lê na pág. 28, in fine, da douta Sentença da Primeira Instância, mas também na perda do tacto com a metade direita da sua língua, isto é, não apenas a perda do sabor dos alimentos, mas também a sua textura, as sensações de quente e frio, ao que acresce a necessidade de frequentemente beber água, como se lê no facto provado nº 10, o que é, naturalmente, profundamente angustiante e condicionador da qualidade de vida a que tem direito (veja-se: a A. jamais se sentirá “confortável” num “jantar de amigos”, jamais apreciará a qualidade da comida ou da bebida, jamais se sentirá “confortável” a preparar e/ou confecionar refeições pois não saberá – porque não sente – se os alimentos estão temperados ou não, se são doces ou amargos, salgados ou insossos, crus ou muito cozidos, duros ou moles, quentes ou frios); • Tais constrangimentos não se ficam pela ausência do sabor e da textura dos alimentos, pois a falta de tacto que passou a ter na sua língua condiciona-a e constrange-a também nas suas relações amorosas, nomeadamente na troca de carícias, e também na fala porquanto aquela sensação de ter a sua língua permanentemente “anestesiada”, “encortiçada”, naturalmente lhe dificulta a articulação de alguns vocábulos; • Os constrangimentos e condicionamentos que no dia-a-dia aquela falta de tacto e paladar com que a A. agora terá de viver toda a sua vida vão bastante para além daqueles que em dado momento se contabilizem pois é em cada concreto e particular momento da vida quotidiana que eles se revelam, é nos episódios da vida corrente – e muitas vezes nos menos esperados - que se evidencia a falta que o paladar e o tacto implica na vida quotidiana (a título meramente elucidativo pense-se que ao ingerir alimentos como peixe, não consegue a A. sentir se tem alguma espinha sobre a sua língua, levando a engoli-la e a engasgar-se; e também no morder da língua sem que disso se aperceba; e também no deixar escorrer pela sua face um fio de saliva sem nisso reparar ou controlar…); • Ainda por força de tais danos, algumas profissões e/ou “hobbies” (v.g. cozinheira, enóloga, nutricionista) a A. não mais poderá aspirar a ter. Entende a A. que a indemnização por danos patrimoniais a que tem direito deve fixar-se em quantia nunca inferior a € 50.0000,00. E nem se diga, como se lê no Acórdão recorrido, que “na parte esquerda da língua a A. conserva esses sentidos” e assim “não se viu privada totalmente desse sentido” …. (pág. 23 do Acórdão) pois seguramente que ter metade da língua permanentemente anestesiada, encortiçada, não é algo que se possa qualificar de “insignificante”, “diminuto”, de “expressão residual” … como também não é “residual” ou “insignificante” perder uma vista ou um ouvido com o argumento de que o ser humano tem dois olhos e dois ouvidos e, como tal, a visão ou audição não é significativamente afetada pela perda de um deles. Todos (re)conhecem o quanto é “desagradável“ e limitador dos movimentos os efeitos de uma anestesia local administrada por ocasião do tratamento de um qualquer dente; porém, enquanto normalmente esse efeito passa ao fim de alguns minutos, no caso da A. essa sensação de ter metade da sua língua anestesiada / encortiçada irá perdurar para toda a sua vida. Também não se diga, como se lê na pág. 23 do Acórdão recorrido, que as sequelas que dessa lesão do nervo lingual resultaram para a A., aqui recorrente, configuram (…) “uma incapacidade diminuta, com expressão residual, sendo certo que quase todos nós já experienciamos ao longo da vida incapacidade de bem maior dimensão que nos condicionam, seguramente, mas que não são graves (v.g. quando necessitamos de óculos para ler)” (…), pois o que cuidamos nestes autos não resulta de qualquer maleita que seja consequência do avançar da idade mas de lesões decorrentes de um concreto ato cirúrgico que a partir dos seus 25 anos de idade a A. passou a ter de conviver… Aliás, diga-se ainda a este propósito que naquele caso praticamente coincidente com o dos autos e que é tratado nos citados Acórdãos da RL e do STJ, nem sequer se faz referência a qualquer grau (%) de incapacidade permanente que tenha resultado para a paciente, e tal não foi – como não poderia ser - obstáculo à conclusão pelas instâncias julgadoras da responsabilidade do médico por omissão do dever de obter prévio consentimento informado do seu paciente, nem obstáculo à fixação de indemnização pelos danos decorrentes da lesão desse nervo lingual. Nestes termos e nos melhores de Direito que Vªs Exs, Senhores Juízes Conselheiros, sabiamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via dela, revogar-se o douto Acórdão recorrido e substituir-se o mesmo por outro que julgue a presente ação procedente e fixe na quantia de € 50.000,00 o montante dos danos não patrimoniais e em € 1.348,00 o montante dos danos patrimoniais sofridos pela A., aqui recorrente, em consequência das lesões para si advindas em consequência do ato médico discutido nos autos, quantias estas a ser pagas € 20.000,00 solidariamente pelas Ré e Interveniente AGEAS e o remanescente a pagar pela Ré, tudo acrescido dos juros de mora calculados nos termos decididos na douta Sentença que proferida pela Primeira Instância”. A ré contra-alegou formulando as seguintes conclusões: “1. Este Supremo Tribunal está impedido de apreciar os pontos A RARIDADE DA LESÃO DO NERVO LINGUAL e A GRAVIDADE DAS SEQUELAS DECORRENTES DA INTERVENÇÃO CIRÚRGICA das alegações da recorrente pois para tanto impunha-se uma reapreciação da matéria de facto julgada provada que está vedada a este Supremo Tribunal, sob pena de comutar-se numa verdadeira terceira instância; 2. O douto Tribunal da Relação do Porto promoveu oficiosamente a alteração do facto provado n.º 14 (redação original: «Traduzindo-se tal situação num défice funcional permanente fixável em 2 pontos numa escala de 2 a 10»), concedendo-lhe a seguinte redação: «Traduzindo-se tal situação num défice funcional permanente fixável em 2 pontos numa escala de 0 a 100»; 3. Para justificar a alteração oficiosa, aquele tribunal esclareceu, e bem, que se estava perante um lapso manifesto do tribunal a quo induzido em erro pelo teor do relatório da perícia médica que fixou o coeficiente de 2 pontos atendendo ao Capítulo I, A., 2, Na0201 – que tem coeficientes previstos de 2 a 10 (Anexo II do Decreto-Lei n.º 352/ 2007, de 23/10); 4. Clarificando que não se estava perante um défice de 2 pontos numa escala de 2 a 10, mas sim num défice de 2% – até porque é ilógico uma escala começar em 2; 5. O sentido propugnado pelo Tribunal da Relação do Porto de que os coeficientes correspondem a percentagens resulta, desde logo, do decreto-lei n.º 352/2007, de 23 de outubro (no qual consta a Tabela de Avaliação de Incapacidades em Direito Civil) podendo ler-se no respetivo preâmbulo «Com tal publicação são ajustadas as percentagens de incapacidade aplicáveis em determinadas patologias (…)», pelo que bem andou aquele douto Tribunal por atentar no manifesto lapso; 6. Sob a epígrafe O ARGUMENTO DE QUE INFORMAR A PACIENTE PODERIA INFLUENCIAR A SUA DECISÃO E QUE TAL FACTO DISPENSA A OBTENÇÃO DO CONSENTIMENTO INFORMADO, a recorrente procura rebater o entendimento sufragado no douto acórdão de que o excesso de informação pode ser contraproducente, na medida em que o paciente não possui o conhecimento científico suficiente para ponderar devidamente os riscos de uma intervenção médica face à necessidade da mesma para a sua saúde. 7. Concluindo que ao paciente devem ser comunicados os riscos graves, significativos ou especializados, excecionais e ainda os típicos, deturpando manifestamente o preconizado pelo douto Tribunal da Relação do Porto; 8. Nas palavras do acórdão indevidamente posto em causa «O objetivo da informação é o de permitir que o doente possa determinar, à luz do seu entendimento e valores, se deseja ou não consentir na intervenção, tomando uma decisão assente nos pressupostos de autorresponsabilização e da liberdade de escolha»; 9. Mais propugnando que o dever de informação afirma-se no momento no qual «o doente, na posse da informação necessária, devidamente esclarecido dos riscos e alternativas, autoriza a realização de um ato médico, legitimando a intervenção de terceiros sobre o seu corpo e a sua integridade física, ou seja, dispõe desse segmento da sua personalidade tendo em vista da obtenção do ganho sanitário – de diagnóstico ou tratamento, curativo ou estético – que o ato médico visa proporcionar. É este objetivo que legitima, do ponto de vista ético-jurídico, a disponibilidade de elementos da personalidade humana que seriam indisponíveis e torna essa disposição compatível com a dignidade humana»; 10. Concluindo que diferentes densidades do dever de informação são legítimas atendendo ao contexto concreto da sua prestação: situação de urgência médica em que protelar a realização do procedimento agrava os danos (como o caso dos autos) ou quando já existe uma relação de confiança em que o médico atende de modo particular aos interesses do doente (como também é o caso dos autos) em oposição a uma intervenção médica realizada por um profissional que o doente desconhece a sua experiência e aptidão técnica; 11. Aquela decisão relevou ainda a «capacidade intelectual [do doente] para compreender a informação que lhe é transmitida e de se relacionar com ela do ponto de vista da tomada de decisão» que implica um dever de informação mais denso do que quando o paciente não tem conhecimentos que lhe permitam apreender e avaliar a informação; 12. Seguindo a jurisprudência maioritária sobre esta matéria, concluiu ainda que os riscos pouco frequentes (como o dos autos) graves ou não, não merecem ser transmitidos; 13. Considerando os critérios propostos no acórdão de 02- 12-2020, no processo n.º 359/10.1..., proferido por este douto Tribunal (necessidade terapêutica, frequência estatística, gravidade e comportamento do paciente) o Tribunal da Relação do Porto concluiu que no caso concreto o risco não teria dignidade que justificasse a sua expressa menção; 14. Para tanto, relevou a diminuta frequência estatística de apenas 1,1%, a reduzida gravidade (não está em causa a perda de paladar ou da sensibilidade, mas sim uma diminuição dessa sensibilidade) de uma incapacidade de 2% e a necessidade do ato médico em causa face à patologia associada ao dente da A. não ser superável com tratamentos medicamentosos (aqui se incluindo a toma de antibióticos), provocando fortes dores à A.; 15. Concluindo, por isso, não existir matéria provada nos autos que sustentasse a frequência ou a gravidade da lesão, mas antes a necessidade de realização da cirurgia; 16. No que concerne ao quantitativo indemnizatório a título de danos não patrimoniais, crê a recorrida que o montante proposto pela recorrente, de 50.000,00 €, é manifestamente exagerado atendendo aos factos julgados provados; 17.O tribunal de primeira instância considerou todos os danos sofridos, tal como se extrai da fundamentação da sentença relativa ao segmento condenatório dos danos não patrimoniais; 18.O que não disse a recorrente mas importa saber é que aquele tribunal não atendeu exclusivamente a estes danos na fixação do quantum indemnizatório; 19.Na ponderação realizada por aquele tribunal igualmente pesou a limitação da responsabilidade em caso de mera culpa (artigo 494.º do Código Civil) porquanto ficou provado que o dano «não tem origem na má prática clínica. Bem pelo contrário, ele pode verificar-se quando as boas práticas são observadas como foi o caso» – p. 11 da sentença; 20. Acresce que ficou igualmente provado que «Esta ocorrência constitui um risco inerente ao procedimento cirúrgico, ainda para mais porque a posição do nervo lingual varia de pessoa para pessoa» (facto provado n.º 37) estimando-se que esta lesão ocorra apenas em 1,1 % das pessoas submetidas a este procedimento (facto provado n.º 36); 21. De resto, contraria frontalmente a factualidade provada que a A. tenha perdido a capacidade de sentir a textura dos alimentos ou a temperatura dos mesmos, pois o nervo lingual foi apenas «parcialmente afetado na metade direita da sua língua» (facto provado n.º 12), resultando do relatório pericial que se verifica «uma diminuição de sensibilidade da hemilíngua direita, principalmente no bordo lateral, a nível posterior» mas não a sua perda total - pp. 4 e 5 do relatório pericial junto aos autos a fls.; 22. Também não é verdade que a A. esteja incapaz de sentir totalmente o paladar, a textura e a temperatura dos alimentos e, por isso, incapaz de exercer atividade de cozinheira ou enóloga como estranhamente veio agora alegar, pelo contrário, a prova testemunhal produzida confirmou que a A. continua a cozinhar; 23. Salientando-se que à data dos factos, a A. já tinha o seu percurso profissional delineado como esteticista (conforme resulta dos factos provados n.º19), não sendo razoável, expectável ou sequer defensável que enveredasse pelas profissões sugeridas apenas em sede de recurso; 24.Mais se diga que não foi provado (nem sequer alegado) que a A. tenha na boca qualquer nervo motor afetado pelo que não se alcança qual o constrangimento no ato social de partilhar uma refeição referido pela A., nem se verifica qualquer nexo causal com a alegação de insensibilidade e falta de controlo de saliva escorrer pela face; 25.No cálculo do valor fixado na sentença proferida a título de danos patrimoniais, o tribunal de primeira instância atendeu exclusivamente (e bem) à factualidade que foi julgada provada; 26. O acréscimo de 1.000,00 € proposto pela A. Recorrente não tem a mínima correspondência com a factualidade julgada provada; 27. AA. Não fez prova da alegada compra de medicamentos ou outros gastos como agora vem alegar; 28. Como também não fez prova de falta ao emprego, muito pelo contrário; 29.Assim, atendendo à prova produzida em audiência sobre esta matéria, o tribunal a quo fez a mais correta interpretação dos factos e do direito aplicável. Termos em que e sem necessidade de mais considerandos, deve ser negado provimento ao recurso interposto, com todas as consequências legais.” Cumpre decidir. Na decisão recorrida foram elencados como provados os seguintes factos: “1. A ré BB exerce a profissão de médica dentista por conta própria, na denominada “Clínica M...”, sita na E.N. ...27, nº ..., em ..., ..., da qual é proprietária, encontrando-se inscrita na respectiva Ordem dos Médicos Dentistas com o n.º ...23. 2. A autora AA é cliente da ré há mais de dois anos, sendo esta que tem vindo a tratar da higiene oral da autora. nomeadamente da limpeza dos seus dentes, tratamento das cáries, branqueamento, etc. 3. Em Outubro de 2016, a autora sentiu dores num dos seus dentes e em consulta que agendou com a ré naquela sua Clínica, concluiu esta que se tratava do dente 4.8, isto é, o “dente do siso” e que se devia proceder à sua extracção ou remoção, o que foi aceite pela autora, acordando autora e ré que esta procedesse à remoção, tendo para o efeito agendado a manhã do dia 29 de Outubro de 2016, naquela mesma clínica. 4. Após anestesiada a zona do dente a extrair, a ré procedeu à sua remoção. 5. A autora pagou à ré, por este acto a quantia de €80,00, conforme doc. 6 junto com a petição, cujo teor se considera reproduzido. 6. Após isto, a autora continuou a fazer a sua higiene dentária na clínica da ré. 7. A autora nasceu em ... de Março de 1991 (certidão junta sob doc. 5 com a petição inicial, cujo teor se considera reproduzido). 8. A ré transferiu a responsabilidade civil decorrente da sua actividade profissional para a interveniente Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A, no âmbito do protocolo com a Ordem dos Médicos Dentistas, mediante contrato de seguro com apólice número ...39, válido e em vigor à data dos factos em causa nos presentes autos, conforme doc.1 junto com o articulado da interveniente, em cujas condições particulares consta como capital seguro e/ou limite de indemnização €20.000,00 por sinistro. 9. A ré, através da sua mandatária, participou à interveniente Ageas o sinistro dos autos, conforme doc. 4 e 5, juntos com a contestação, cujo teor se considera reproduzido. 10. Desde a extracção do dente que a autora tem uma sensação de estar com a sua língua “anestesiada”, sensação essa que se traduz numa total ausência de sentir o sabor (paladar), bem como a textura (tacto), com a metade direita da sua língua. 11. Ao extrair o dente e ao ministrar a anestesia à autora a ré atingiu o nervo lingual da autora, provocando-lhe hipostesia (diminuição da sensibilidade) da hemilíngua direita, principalmente no bordo lateral, a nível posterior. 12. Desde aquele dia 29.10.2016 que a autora deixou de sentir o paladar e o tacto com a metade direita da sua língua, nomeadamente o sabor dos alimentos, a sua textura, as sensações de quente ou frio, ao que tudo se soma uma constante sensação de estar com a boca seca e a necessidade de frequentemente beber água, o que se mantém no presente. 13. E que se manterá por toda a sua vida. 14. Traduzindo-lhe tal situação num défice funcional permanente fixável em 2 pontos na escala de 2 a 10. 15. Situação essa que lhe causa mal-estar e desgosto. 16. Após a extracção daquele dente, a ré receitou à autora alguns medicamentos que este adquiriu por valor não concretamente apurado. 17. Com vista a apurar a causa daquela perda de sensibilidade na sua língua, pagou a autora ao Centro ..., Lda., em exames médicos que aí efectuou em 12.06.2018, concretamente um TAC maxilar e um TAC mandibular (maxilar inferior), a quantia de € 200,00. 18. E ao Hospital da ... pagou a autora €68,00 pela consulta que em 18.06.2018 aí efectuou, da especialidade de neurologia. 19. Desde Novembro de 2017, que a autora exerce a profissão de esteticista, por conta própria, da qual retira, em média, €800,00 mensais. 20. No dia 09-Maio-2014 durante um tratamento de destartarização dentária, a autora queixou-se à ré de dor na região do dente do siso inferior direito (4.8.), apresentando inflamação, razão pela qual, a ré lhe prescreveu um anti-inflamatório, concretamente, Ibuprofeno (anti-inflamatório não esteróide com propriedades analgésicas). 21. A 01-Dezembro-2014 em consulta para restauração do dente 1.6 a autora voltou a queixar-se à ré de dor na região do dente do siso inferior direito (4.8), tendo-lhe esta prescrito, novamente, anti-inflamatório, concretamente, Nimesulida (anti-inflamatório não esteróide com propriedades analgésicas). 22. Dois meses depois, em consulta a 02-Fevereiro-2015 a ré verificou que a inflamação do já identificado dente do siso da autora tinha evoluído e apresentava sinais de pericoronarite e foi a mesma, novamente, medicada, desta feita com Etoricoxib 90mg (anti-inflamatório), tratamento com duração de 3 dias. 23. Em consulta com a ré no dia 22-Outubro-2016 a autora queixou-se de que sentia uma pressão nos dentes antero-inferiores. 24. A ré efectuou um RX ao dente do siso inferior direito da autora e verificou que a pressão nos dentes antero-inferiores de que a mesma se queixava estava a ser provocada por aquele dente, incluso, e que os estava a empurrar originando tal sintomatologia. 25. Acontece que a autora, antes de ser paciente da ré, tinha efectuado um tratamento de correcção ortodôntica (para correcção da posição dos dentes e seu alinhamento). 26. Quando o dente do siso mostra sinais de erupção, como era o caso do dente do siso inferior direito (4.8) da autora, o risco de apinhamento (mal posicionamento dos dentes) e de pressão dentária é mais elevado, e compromete o sucesso do resultado alcançado com o tratamento ortodôntico. 27. Por isso, nessa consulta (22.10.2016), e uma vez que o referido dente do siso já tinha, por diversas vezes, inflamado e infeccionado, a ré aconselhou e propôs à autora a sua extracção. 28. Antes de extrair o dente, a ré começou por ministrar à autora anestesia local (solução injectável) na zona do dente do siso a extrair com recurso a uma seringa e agulha. 29. Tal solução anestésica tinha a mesma composição química que a solução injectável anestésica que a ré utiliza em idênticos procedimentos de extracção, e é composta por Xilonibsa 2% com epinefrina (solução injectável). 30. Para procedimentos de extracção de dente do siso num adulto saudável, com cerca de 70Kg, podem ser ministradas mais de 8 doses, pois que, a dose máxima recomendada de referida solução anestésica (que contem um anestésico local) é de 8,8 cartuchos. 31. Pelo que, as doses de anestesia ministradas pelos profissionais para a realização tal procedimento cirúrgico variam consoante a sensibilidade e resistência à dor apresentada pelo paciente, a ansiedade, os nervos, etc. 32. No caso, foram ministradas pela ré, reforços da dose inicial de anestesia local (com a composição e nos limites referidos supra), de modo a que o procedimento cirúrgico de extracção do dente se iniciasse e decorresse sem qualquer dor para a autora. 33. A cirurgia correu sem quaisquer intercorrências ou complicações. 34. Para a extracção do aludido dente a ré utilizou os procedimentos e as práticas comuns nestas intervenções cirúrgicas, designadamente, a odontosecção (secção/fraccionamento do dente), osteotomia e sutura, tudo por forma facilitar a sua remoção. 35. Na sequência do procedimento que envolveu a extracção do dente 48 e a autora ficou com hipostesia da hemilíngua direita, por força do atingimento do nervo lingual. 36. Na literatura médica, estima-se que a lesão do nervo lingual ocorre em 1.1% neste tipo de procedimentos. 37. Esta ocorrência constitui um risco inerente ao procedimento cirúrgico, ainda para mais porque a posição do nervo lingual varia de pessoa para pessoa. 38. A ré não informou a autora deste risco, antes de lhe retirar o dente. 39. A ré conhecia a existência deste risco. 40. No âmbito da prática clínica entende-se ser exigível a realização de um estudo radiográfico antecedente a uma exodontia. 41. O nervo lingual apenas é visível através de uma tomografia computorizada (TAC). Alteração do facto 14. No acórdão da Relação escreveu-se: “Importa, no entanto, corrigir um manifesto lapso que consta da decisão sobre a matéria de facto e mais propriamente do ponto 14. Lapso esse que pese embora não tenha sido referido por nenhuma das partes no recurso entendemos poder e dever sanar oficiosamente nesta oportunidade face à clarividência do erro e do modo como o mesmo deve ser sanado. No aludido ponto foi dado como provado que as sequelas da lesão sofrida pela autora se traduzem «… num défice funcional permanente fixável em 2 pontos na escala de 2 a 10». Nem o Mmo. Juiz a quo nem as partes atentaram devidamente no que está escrito, apesar da enorme relevância do facto para a decisão de mérito. Uma escala de 2 a 10 é uma escala nunca vista; conhecem-se escalas por exemplo de 0 a 10, de 0 a 20, de 0 a 100, mas de 2 a 10 não porque uma escala dessas deixa de fora as hipóteses 0 e 1 que do ponto de vista teórico são sempre possíveis. Na lacónica motivação da decisão que agrupou, sem explicação, os pontos 10 a 15 diz-se apenas na parte que pode contender com o facto 14, que a decisão «resulta desde logo da perícia». No relatório da perícia que terá sido, portanto, o fundamento probatório da decisão, o perito responde à questão de saber se as sequelas para a autora se traduzem numa IPP e, na afirmativa, de que grau, nos seguintes termos: «O défice funcional permanente, considerando a globalidade das sequelas do caso concreto (corpo, funções e situações de vida) e a Tabela de Avaliação de Incapacidades em Direito Civil (Anexo II do Decreto-Lei nº 352/2007, de 23/10), e de acordo com a experiência médico-legal relativamente a estes casos, poderá ser fixável em 2 pontos (Capítulo I, A., 2, Na0201, coeficientes previstos na tabela 2 a 10).» Como se vê, o perito não disse que a incapacidade permanente era de 2 pontos numa escala de 2 a 10, como de modo desatento se julgou provado, afirmou sim que era de 2 pontos segundo os coeficientes das tabelas 2 a 10 anexas à Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil, tabelas essas que possuem a escala de 0 a 100. Uma vez que é manifesto o lapso, único o meio de prova a atender, cristalino o sentido desse meio de prova e inequívoca a forma de o suprir o lapso, altera-se a redacção do ponto 14, a qual passa a ser a seguinte: «14. Traduzindo-lhe tal situação num défice funcional permanente fixável em 2 pontos numa escala de 0 a 100».” ( fim da transcrição) Considera a recorrente que o juiz da 1ª instância não laborou em erro manifesto pois o que resulta do código Na0201 da Tabela de Avaliação de Incapacidades em Direito Civil (DL 352/2007, de 23/10) citada e que é aplicável ao caso dos autos, é que a afectação, na face, do nervo trigémio, é valorizável de 2 a 10 pontos, tendo-se o juiz “limitado” a concluir, com base no relatório pericial, que, in casu, tal valorização se fixa em 2 pontos, numa escala que poderia ir desde os aí referidos 2 pontos até um máximo de 10. Assim, não só não vislumbra tal “erro manifesto” que o acórdão recorrido aponta ao facto provado em 14, nem, muito menos, necessidade de reformulação oficiosa de tal facto como foi efectuado, nem tão-pouco que ele tenha o dito “enorme relevo” para a decisão de mérito a proferir nos autos, devendo, pois, manter-se a sua redaçcão tal como ela se encontrava exarada pela primeira instância. Cremos que a recorrente não tem razão. Ao referir um défice funcional permanente fixável em 2 pontos na escala de 2 a 10, o facto 14, na sua redacção, revela-se, sem dúvida, enganador na medida em que o défice de 2 pontos foi fixado entre o coeficiente mínimo de 2 e o máximo de 10 pontos, dentro de uma escala de 0 a 100. Verifica-se, assim, lapso, a justificar correcção. Violação das leges artis. Tendo ficado provado que na sequência do procedimento que envolveu a extração do seu dente 4.8, a autora ficou com hipostesia da hemilíngua direita, por força do atingimento do seu nervo lingual (nº 35 dos Factos Provados), sendo que esta ocorrência constitui um risco inerente ao procedimento cirúrgico, ainda mais porque a posição do nervo lingual varia de pessoa para pessoa (nº 37 dos Factos Provados), que a R. conhecia bem esse risco (nº 39 dos Factos Provados), sendo que no âmbito da prática clínica entende-se ser exigível a realização de um estudo radiográfico antecedente a uma exodontia (nº 40 dos Factos Provados) e o nervo lingual apenas é visível através de uma Tomografia Computorizada (TAC) (nº 41 dos Factos Provados), entende a recorrente que a ré médica dentista não actuou de acordo com as leges artis, negligenciando a efectivação de um exame (TAC) que se mostrava essencial para prevenir a ocorrência da lesão que acabou por provocar na autora, ora recorrente. Verifica-se, porém, que a sentença, apreciando a causa de pedir relacionada com o erro médico por violação das leges artis, não reconheceu razão a esse fundamento da acção, considerando que a ré actuou de acordo com as leges artis em sentido estrito. Ora, a autora, que recorreu apenas das indemnizações, não requereu na apelação, como devia, a ampliação do recurso relativamente a esse fundamento em que decaiu, nos termos do art. 636º, nº 1 do CPC e, por isso, o acórdão da Relação não se pronunciou sobre a matéria. Assim sendo, não pode a recorrente suscitar esta questão na revista por se tratar de questão nova, não submetida à apreciação da Relação (cfr. Ac. STJ de 7.7.2016, proc. 156/12.0TTCSC.L1.S1, www.dgsi.pt). Violação do consentimento informado. Na sentença recorrida, os réus foram condenados a indemnizar a autora por se ter entendido que aquela não informou a autora do risco de a cirurgia de extracção do dente provocar a lesão que veio a ocorrer e, consequentemente, não obteve da autora o consentimento livre e informado que era condição da licitude da intervenção que realizou. Entendeu, de maneira diferente, a Relação no acórdão recorrido. Assim, depois de abundante citação doutrinária e jurisprudencial, em que acolheu a tese de André Dias Pereira (“Responsabilidade médica e consentimento informado…”), no sentido de que o médico tem a obrigação de comunicar os riscos significativos, isto é, “aqueles que o médico sabe ou devia saber que são importantes ou pertinentes, para uma pessoa normal colocada nas mesmas circunstâncias do paciente, chamado a consentir com conhecimento de causa no tratamento proposto” e que “(…) o risco será significativo, em razão dos seguintes critérios: (1) a necessidade terapêutica da intervenção (2) em razão da sua frequência (estatística), (3) em razão da sua gravidade, e (4) em razão do comportamento do Paciente”, a Relação considerou que o risco não era grave nem frequente. Insurge-se contra este entendimento a recorrente, que acompanha a sentença na parte em que considera grave o risco da ocorrência de lesão no nervo lingual do paciente: “ (…) ainda que rara, constitui um risco inerente ao procedimento cirúrgico, não sendo de todo possível garantir a sua não ocorrência. Isto porque a posição do nervo lingual varia e apesar dos esforços para evitar lesão do nervo lingual durante a extração de um terceiro molar, esta pode, por vezes, ser inevitável” (…). A nosso ver, este risco insere-se, assim, naquilo que se vem designando de risco significativo. Afinal trata-se de um risco inerente àquela específica intervenção e é, sem dúvida, pertinente para o paciente. Isto tendo em conta uma pessoa normal colocada nas mesmas circunstâncias do paciente, e chamada a consentir com conhecimento de causa no tratamento proposto. Noutras palavras, a lesão no nervo lingual é um risco especializado: um evento não muito frequente mas que, quando se verifica, a vida do paciente resulta gravemente prejudicada, e apesar de raro, é específico daquela concreta intervenção”. Como se viu, um médico deve transmitir informação leal, clara e apropriada sobre os riscos graves relativos a intervenções e aos tratamentos propostos e ele não está dispensado pelo simples facto de estes riscos só se realizarem excecionalmente. Afinal, o paciente tem o direito de ser informado do risco mais grave relativo à intervenção a que se vai submeter” (…). Como ensinava Orlando de Carvalho, no presente caso verificou-se, quanto a esta cirurgia, um dos riscos típicos que lhe andam ligados, pelo que o paciente tem direito a conhecê-lo para que possa formular um consentimento esclarecido (…)” Considera, assim, a recorrente que em face da factualidade provada nos autos, maxime nos pontos 35 e 37 a 41, é inequívoco que estava a ré obrigada ao dever, que não respeitou, de informar a sua paciente desse risco grave, significativo, especializado, específico daquela concreta intervenção, de lesão do nervo lingual da A., sendo assim ilícita a sua intervenção e, consequentemente, inequívoca a sua responsabilidade na produção do sinistro que aqui nos ocupa e, como tal geradora da obrigação de indemnizar, como se decidiu na sentença proferida pela primeira instância. Antes, porém, sublinha que, tal como resulta do Ac. STJ de 2.11.2017 no proc. 23592/11.4T2SNT.L1, o risco de lesão do nervo lingual em extrações do dente 4.8 é de 23%. Assim, tendo ficado provado nestes autos que “na literatura médica estima-se que a lesão do nervo lingual ocorre em 1,1% neste tipo de procedimentos “ ( facto 37) conclui que, a partir do relatório pericial, que refere” a lesão do nervo lingual é rara (1.15), sendo que a extracção do terceiro molar é a sua causa mais frequente”, que aqueles 1,1% se referem ao risco de lesão do nervo lingual, sendo que, tratando-se do terceiro molar, tal risco aumenta substancialmente. Porém, não é possível tal interpretação. Em primeiro lugar, não se pode importar para a argumentação destes autos, um facto dado como provado noutro processo, nem alterar o facto 37 em função de uma qualquer dissertação científica sobre o assunto. Carece o Supremo Tribunal de competência para alterar a matéria de facto. Em segundo lugar, e como refere o acórdão recorrido, o que o perito afirma, no relatório pericial, é que “ na realização de actos médicos da especialidade de dentista a lesão do nervo lingual tem uma taxa de incidência de 1,1% e que nos casos em que essa lesão ocorre o acto médico que mais frequentemente lhe está na origem é a extracção dos terceiros molares. Portanto, a taxa de incidência da lesão na extracção de dentes é uma só; se olharmos para os casos em que a lesão ocorreu e procurarmos a taxa de incidência de cada uma das suas causas apuradas é que vamos encontrar taxas de incidência (da causa) em que a extracção do terceiro molar terá uma manifestação mais relevante.” Como assim, não se pode deixar de concordar com o acórdão no sentido de que um risco que tem uma taxa de incidência de apenas 1,11% é um risco que, em termos de frequência, não é nada significativo e que não é, por isso, que deve ser abrangido pelo dever de informação do médico. Já não comungamos, porém, com o entendimento da Relação de que o risco da lesão lingual não é grave. Sobre este assunto a Relação escreveu: “Resulta dos pontos 10 a 14 da matéria de facto que o atingimento do nervo lingual causou diminuição da sensibilidade da metade direita da língua e principalmente no seu bordo lateral e na parte de cima da língua. Portanto, a autora não perdeu totalmente a sensibilidade táctil e dolorosa da língua, apenas viu essa sensibilidade diminuída. Quanto à afectação do sentido do paladar a situação é igual; a autora apenas viu esse sentido ser afectado na parte direita da língua, o que significa que na parte esquerda conserva esse esse sentido, donde resulta que a autora não se viu privada totalmente desse sentido, apenas terá um sentido menos apurado, menos notório, menos amplo do que sucedia antes da lesão. É certo que estamos perante uma sequela permanente, irreversível e que da mesma advém claramente um dano biológico. Todavia, estamos perante um dano que segundo as tabelas de danos corporais em direito civil corresponde a uma incapacidade de somente 2 pontos, numa escala de 0 a 100, ou seja, é uma incapacidade diminuta, com expressão residual, sendo certo que quase todos nós experienciamos ao longo da vida incapacidades de bem maior dimensão que nos condicionam, seguramente, mas que não são graves (v.g. quando necessitamos de óculos para ler).” É verdade que a autora não perdeu totalmente a sensibilidade táctil e dolorosa da língua, apenas viu essa sensibilidade diminuída “ na hemilíngua direita ( diminuição da sensibilidade, principalmente no bordo lateral a nível posterior (facto 11). O risco era, no entanto, o de hipoestesia da língua inteira: pese embora a autora tenha ficado afectada do sentido do paladar e da textura (tacto) na parte direita da língua (facto 10), corria, também, o risco de ficar totalmente privada desses sentidos em toda a língua. Mas mesmo que consideremos apenas as sequelas verificadas, pensamos que, ainda assim, as lesões se devem considerar graves, dado o órgão atingido e a natureza das sequelas, que à data do julgamento (Junho de 2021) ainda persistiam ( decorridos quase 5 anos). E não se diga que o dano foi valorizado apenas em 2 numa escala de 2 a 10. O facto de a tabela valorizar esse dano de forma tão ligeira não pode impedir o julgador de exprimir uma opinião não necessariamente coincidente. O paralelo com a incapacidade visual, de maior dimensão, nem sempre colherá, quando esta se apresenta como corrigível e a hipoestesia não é revertida (v. sobre a recuperação desta última, https://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/9044/1/PPG_30820.pdf.) Porém, e apesar de o risco ser grave, a sua rara verificação (ou concretização) não justificará, no caso em apreciação, a informação do médico. Sufraga-se, a este propósito, o que se escreveu no Ac. STJ de 9.10.2014, proc. 3925/07.9TVPRT.P1.S1: “O conteúdo do dever de informação é elástico, não sendo, nomeadamente, igual para todos os doentes na mesma situação; Abrange, salvo ressalvas que aqui não interessam e além do mais, o diagnóstico e as consequências do tratamento; Estas são integradas pela referência às vantagens prováveis do mesmo tratamento e aos seus riscos; Não se exigindo, todavia, uma referência à situação médica em detalhe; Nem a referência aos riscos de verificação excepcional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento.” ( destaque nosso). Este acórdão apoia-se, fundamentalmente, no Estudo de Álvaro Rodrigues, em A Responsabilidade Médica em Direito Penal, a pág. 346, que defende que: “Quanto aos efeitos secundários, sequelas e riscos do tratamento a doutrina recomenda o esclarecimento daqueles que se verificam com frequência, não havendo necessidade de focar os riscos de carácter excepcional na sua verificação. Mais uma vez, aqui, como em tudo na vida, o melhor critério será o da ponderação dos interesses em jogo, mediante uma atitude ética e conscienciosa, que procurando devolver a saúde ao doente, tenha sempre no horizonte o direito deste à sua liberdade de decisão convenientemente esclarecida” ; e também no de André Dias Pereira, intitulado “O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica, in Responsabilidade Civil dos Médicos, Centro Biomédico da Universidade de Coimbra, n.º 11”, em que se escreve, a pág. 478: “Assim, partindo da constatação de que a medicina é uma actividade que gera riscos, na tarefa da imputação objectiva dos danos, devemos destrinçar quais os riscos que a ordem jurídica pretende que sejam suportados pelo doente e quais devem ser suportados pelo médico. Os últimos devem ser comunicados ao paciente, para que este, em liberdade e em consciência decida sobre se autoriza a intervenção, autocolocando-se em perigo; não sendo esclarecidos, o médico deverá compensar do doente pelos danos causados. Os primeiros (os que deve ser suportados pelo paciente) por motivos vários como a extrema raridade, a sua imprevisibilidade, o conhecimento comum, entre outros motivos, não carecem de ser transmitidos; se se verificarem deverá ser o paciente a suportá-los: casum sentit dominus.” (destaques nossos) Argumenta a recorrente que, sendo o risco daa lesão do nervo lingual específico daquela concreta intervenção cirúrgica de extracção de molar, deve tal risco ser comunicado. Porém, e como se retira do exposto, deve esse risco ter alguma frequência. E aqui a frequência rara de 1,1% não parece justificar a informação, num contexto, aliás, de inflamação e infecção do dente e, por consequência, de dor, em que a solução de extracção do siso se apresenta, como é do conhecimento comum, como a solução óbvia para a resolução do problema. Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC): “Num contexto de inflamação e de infecção do dente do siso, não se mostra abrangido pelo dever de informação do médico a comunicação ao doente, antes da extracção desse dente, do risco de lesão do nervo lingual, que é, nesse tipo de intervenções, de incidência rara ( taxa de 1,1%).” Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido. Custas pela recorrente. * Lisboa, 2 de Julho de 2024 António Magalhães (Relator) Jorge Arcanjo Manuel Aguiar Pereira |