Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
418/14.1PTPRT.P1-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CÚMULO JURÍDICO
PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, 31, P. 954 - 961
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / DISPOSIÇÃO PRELIMINAR / PENAS ACESSÓRIAS E EFEITOS DAS PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES – PARTE ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA.
DIREITO PENAL – SUJEITOS DO PROCESSO / RECURSOS EXTRAORDINÁRIO / FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
DIREITO ESTRADAL – RESPONSABILIDADE / DISPOSIÇÕES GERAIS / DISPOSIÇÕES ESPECIAIS.
Doutrina:
-António Latas, As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, Revista do CEJ, 2014;
-Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, 181 e ss.;
-Faria Costa, RLJ n.º 3945, Julho-Agosto 2007, 322 e ss., 327 e 328;
-Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 4.ª reimp., 94, 157, 164 e 284 ; Acta n.º 42 de 30-10-1990, Comissão de Revisão do Código Penal, in Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, 481;
-Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, UCP, 1996, 27;
-Jescheck e Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5.ª Edição, Comares, Granada, 2002, 842;
-João Costa, Da Superação do Regime Actual do Conhecimento Superveniente do Concurso, Almedina, 2014, Nota 172, 70;
-M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, Almedina, 2014, 366 e 389, anotação 12.ª ao art.º 69.º e 15.ª ao art.º 78.º;
-Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18.ª Edição, 2007, anotação 7.ª ao art.º 77.º;
-Paulo Dá Mesquita, O Concurso de Penas, Coimbra Editora, 1997, 27;
-Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição, 2015, UCP;
-Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, UCEP, 3.ª Edição, 152;
-Tiago Caiado Milheiro, Cúmulo Jurídico Superveniente, Noções Fundamentais, Almedina, 2016, 141 a144.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.º 2, 69.º, N.º 1, ALÍNEA A), 71.º, 77.º, N.ºS 1, 2 E 4, 78.º, N.ºS 1, 3 E 4, 137.º, N.º 1, 148.º, N.º 1 E 292.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 437.º, N.ºS 1, 2 E 3 E 438.º N.ºS 1 E 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º, N.º 3 E 29.º, N.ºS 3 E 4.
CÓDIGO DA ESTRADA (CEST.): - ARTIGOS 134.º, N.º 3, 138.º, N.º 1, 141.º, 145.º, 146.º E 147.º.
REGIME GERAL DAS CONTRA-ORDENAÇÕES, APROVADO PELO D.L. N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO: - ARTIGOS 19.º E 32.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 692.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-06-2006, IN CJ, STJ, 2006, II, 223;
- DE 31-10-2012, PROCESSO N.º 15/08.0GAVRL.P1.S1.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 02-05-2012, PROCESSO N.º 319/10.2PTPRT.P1;
- DE 30-10-2013, PROCESSO N.º 387/12.2PTPRT.P1;
- DE 11-12-2013, PROCESSO N.º 969/12.2PWPRT.P1;
- DE 09-11-2016, PROCESSO N.º 1440/15.6PTAVR-A.P1;
- DE 19-04-2017, PROCESSO N.º 507/16.8PTPRT.P1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 18-02-2016, PROCESSO N.º 384/15.6PZLSB.L1-9.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 11-10-2006, PROCESSO N.º 0612894;
- DE 09-09-2009, PROCESSO N.º 226/08.9GTCBR-A.C1;
- DE 05-05-2010, PROCESSO N.º 183/09.4GBOAZ.P1;
- DE 07-12-2011, PROCESSO N.º 626/10.4GAPFR.P1;
- DE 03-12-2012, PROCESSO N.º 1165/09.1PTPRT.P1;
- DE 13-03-2013, PROCESSO N.º 1316/10.3PTPRT.P2;
- DE 03-12-2014, PROCESSO N.º 358/13.1GAILH.C1;
- DE 20-04-2015, PROCESSO N.º 794/15.9PFPRT.P1;
- DE 16-12-2015, PROCESSO N.º 37/15.5PTVIS.C1;
- DE 29-03-2017, PROCESSO N.º 16/16.5PFCTB.C1.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 29-06-2011, PROCESSO N.º 190/10.4GAVFR.C1;
- DE 28-03-2012, PROCESSO N.º 79/10.7GCSEI.C1;
- DE 10-04-2013, IN CJ, 2013, II, 47.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


- DE 29-11-2016, PROCESSO N.º 39/15.1GBCDV.E1.
Sumário :

«Em caso de concurso de crimes, as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, com previsão no n.º 1 al. a) do art. 69.º do CP, estão sujeitas a cúmulo jurídico.».
Decisão Texto Integral:


Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto veio, em 15 de Julho de 2016, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 3 de Junho de 2016, no Proc. n.º 418/14.1PTPRT.P1 e transitado em julgado em 20 de Junho de 2016, alegando encontrar-se em oposição com aqueloutro da mesma Relação proferido no Proc. n.º 1/13.9PJMTS.P1 em 25 de Novembro de 2015 e transitado em julgado em 11 de Dezembro de 2015 (acórdão fundamento), com publicação em www.dgsi.pt, cuja solução disse acolher.

Recebido o recurso no Supremo Tribunal de Justiça, a conferência da 5.ª secção julgou verificada a oposição de julgados e determinou o seu prosseguimento.

Notificados os interessados, apenas o Ministério Público apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões:

1. Quanto à questão de saber se, em concurso de crimes, havendo lugar à aplicação de penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, pp. no art.º 69.º, n.º 1, alínea a), do CP, estas penas acessórias deverão ser cumuladas materialmente, a nossa resposta não pode deixar de ser negativa.

2. Acolhemos, antes, o entendimento de que devem ser observadas as regras do cúmulo jurídico estabelecidas nos art.ºs 77.º e 78.º do CP, na consideração do disposto no art.º 71.º do CP e no respeito dos princípios da necessidade, da mínima restrição dos direitos, da adequação e da proporcionalidade.

3. Dando cumprimento ao que dispõe a norma do art.º 442.º, n.º 2, do CP, entendemos ser este o sentido da jurisprudência a fixar”.

2. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência do pleno das secções criminais, cumprindo decidir.

3. Previamente e dado que o pleno pode decidir em sentido contrário ao da conferência da secção (art.º 692.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 4.º do CPP), importa verificar se, como esta decidiu, se verificam os pressupostos do recurso, designadamente a oposição de julgados.

Os pressupostos formais e substanciais dos art.ºs 437.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 438.º n.ºs 1 e 2, do CPP, estão preenchidos: o recorrente dispõe de legitimidade, o recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, foi devidamente identificado o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), bem como foi mencionado o lugar da respectiva publicação, ambos são de tribunal da relação e transitaram em julgado, respeitam à mesma questão de direito, foram proferidos no domínio da mesma legislação (art.º 69.º, n.º 1, alín. a), do CP, cuja redacção, dada pela Lei n.º 19/2013, de 21.02, não sofreu qualquer modificação durante o intervalo da prolação de qualquer deles que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida) e assentam em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto, sendo expressa a oposição das respectivas decisões.

O acórdão recorrido, nos termos do n.º 1 do art.º 78.º do CP, decidiu que, em caso de concurso de crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1 do CP, as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos do art.º 69.º, n.º 1, alín. a), do mesmo diploma legal, estão sujeitas às regras do cúmulo jurídico estabelecidas nos art.ºs 77.º e 78.º do CP e devem ser graduadas dentro dos limites legais, nos termos do art.º 71.º do mesmo diploma, em consequência tendo mantido a sentença cumulatória da 1.ª instância que, a partir das penas acessórias parciais de proibição de conduzir veículos com motor pelos períodos de 4 meses e 15 dias e 5 meses e 15 dias, fixou em 8 meses a pena acessória única.

Tal pronúncia foi proferida, no essencial, com base na seguinte fundamentação:

“ (…) Sendo a pena acessória uma verdadeira pena, apresenta-se como consequência jurídica de um restrito número de factos típicos com relevância penal, residindo a sua especificidade no facto de a sua aplicação se encontrar dependente da aplicação da pena principal.

Ora, se é uma verdadeira pena, então a sua medida é sempre a medida da culpa e toda a medida da pena que ultrapasse a medida da culpa é absolutamente ilegal (cfr. art.ºs 40.º, n.º 2 e 71.º, ambos do CP), sendo consensual que a medida da pena acessória é igualmente encontrada através daqueles critérios, conclui Faria Costa.

Este Autor refere que o sistema do cúmulo apresenta-se de maior justeza pelo facto de, com ele, se evitar que os factos penais ilícitos, após a aplicação das respectivas penas ganhem uma gravidade exponencial, porque vistos isoladamente ou compartimentados uns dos outros, gravidade essa que, obviamente, se reflectirá, em um primeiro momento, em uma culpa igual ou proporcionalmente grave e, em momento posterior, em pena de igual dosimetria à culpa, pois sendo a culpa relativa a cada facto ilícito-típico, tal redundará na ultrapassagem do limite da culpa.

Por isso, só através do sistema do cúmulo jurídico é que obtemos a imagem global dos factos praticados e, bem assim, do seu igual desvalor global, ou seja, só pelo exame dos factos em conjunto é que podemos avaliar a gravidade do ilícito e só através do cúmulo jurídico é possível proceder à avaliação da personalidade do agente e, dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas ou se, ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não radica na sua personalidade, mas antes em factores exógenos.

Exigência de culpa, de reintegração social e até mesmo de justa retribuição, obrigam o julgador a operar não o cúmulo material, mas sim o jurídico, porque só assim, com uma moldura penal abstracta da pena acessória encontrada nos termos do n.º 2 do art.º 77.º do CP, o julgador se pode afastar de uma pena fixa, igual à soma aritmética de todas as penas parcelares. Só desse modo o julgador conseguirá uma verdadeira individualização da sanção penal que não seja redutora da complexidade do caso concreto, encaminhando-se, então, para uma pena acessória justa porque respeitadora dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, continua Faria Costa”.

O acórdão fundamento decidiu que em caso de concurso dos crimes de homicídio por negligência do n.º 1 do art.º 137.º e ofensa à integridade física por negligência do n.º 1 do art.º 148.º, do CP, há lugar a cúmulo material das respectivas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, do n.º 1, alín. a), do art.º 69.º do CP (no caso fixadas pela 1.ª instância pelos períodos de 5 meses quanto ao 1.º crime e 4 meses quanto ao 2.º, cujo cumprimento sucessivo confirmou), assim consagrando solução oposta sobre a mesma questão de direito.

Conforme o sumário que acompanha a publicação desse acórdão em www.dgsi.pt,as penas acessórias, consistentes na proibição de conduzir veículos motorizados aplicadas por força do art.º 69.º, n.º 1,alín. a), do CP, em consequência da condenação por crimes rodoviários, não estão sujeitas a cúmulo jurídico”.

Da fundamentação pode recortar-se que, “quanto a nós, adiantamos já seguir a tese dos defensores da acumulação material, por se nos afigurar a única defensável de iure constituto.

É que, não obstante a fixação das penas acessórias funcionar dentro dos limites da culpa e visar, tal como a pena principal, exigências de prevenção, é hoje ponto assente a diferente natureza dos fins prosseguidos e dos objectivos de política criminal de cada um desses tipos de penas.

Ninguém duvidando, no que à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados respeita e que ora nos ocupa, do seu implícito escopo de recuperação do comportamento estradal do autor do crime. Nomeadamente que nela, para além das exigências de prevenção gerais e especiais que contendem com a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, comuns à pena principal, está também presente o efeito de contribuição para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano e, mesmo, um efeito de prevenção geral de intimidação dentro dos limites da culpa.

Por outro lado, o legislador penal disciplinou expressamente o regime da aplicação das penas acessórias em caso de concurso de infracções, seja ele originário ou superveniente, como decorre dos art.ºs 77.º, n.º 4 e 78.º, n.º 3, do CP. Estatuindo, no primeiro, a obrigatoriedade de imposição ao agente da pena acessória, ainda que prevista por uma só das leis aplicáveis. Consagrando, por sua vez, no caso de ocorrência superveniente do concurso, como regra, a manutenção das penas acessórias aplicadas na sentença anterior, admitindo, a título excepcional, a sua revogação por desnecessidade face ao teor da nova decisão; sendo que, se apenas aplicáveis ao crime que falta apreciar só serão decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.

Não obstante esta regulação pormenorizada, em momento algum a lei prevê a imposição de pena acessória única, contrariamente ao que acontece com as penas principais o que, em face das suas diferentes naturezas, só poderá significar que o legislador quis excluir a possibilidade de realização de cúmulo jurídico para as penas acessórias”.

A diversidade dos tipos legais de crime em apreciação num e noutro acórdão é para o caso despicienda, relevando, sim, a sua natureza de crimes relacionados com a circulação rodoviária a que seja aplicável pena acessória de proibição de conduzir veículo com motor, dado que, o que está verdadeiramente em causa é a forma de determinação do concurso das penas acessórias adjuvantes das penas principais, de uns e outros, de proibição de conduzir veículos com motor, com previsão no n.º 1, alín. a), do art.º 69.º do CP (alínea essa que abarca, de resto, qualquer um dos tipos legais apreciados), seguindo o acórdão recorrido a via do cúmulo jurídico e o acórdão fundamento a da acumulação material, essa sendo, pois, a mesma questão de direito que importa pacificar.

O acórdão recorrido tem subjacente uma situação de conhecimento superveniente do concurso de crimes (art.º 78.º, n.º 1, do CP), enquanto o acórdão fundamento versa sobre o concurso (originário) de crimes, do art.º 77.º, n.º 1, do CP.

Tal nuance não tem virtualidade para alterar a identidade fáctica de ambos os arestos, uma vez que a regra do conhecimento superveniente, qual remédio, mais não visa que ficcionar o conhecimento atempado e contemporâneo do concurso do art.º 77.º, n.º 1, do CP, para cujas regras, aliás, remete.

Daí que a jurisprudência a fixar não deva distinguir os momentos do conhecimento do concurso, essa não sendo (a) questão objecto do recurso.

Em suma, como decidiu a conferência da secção, verifica-se oposição de julgados no domínio da mesma legislação, em relação à mesma questão de direito, sublinhe-se: o acórdão recorrido entende que, em caso de concurso, as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, do n.º 1 do art.º 69.º do CP, estão sujeitas a cúmulo jurídico, já o acórdão fundamento sustenta que tais penas deverão cumular-se materialmente, nada obstando, assim, ao conhecimento do mérito do recurso de fixação de jurisprudência.

II

1. A questão em apreço, da admissibilidade ou inadmissibilidade do cúmulo jurídico em caso de concurso de penas acessórias (ou melhor, de concurso de crimes punidos com pena acessória), tem dividido quer a jurisprudência, quer a doutrina.

Para além do acórdão recorrido, pronunciaram-se pela tese do cúmulo jurídico, por exemplo, os acórdãos (publicados, sem outra indicação, em www.dgsi.pt) do Tribunal da Relação do Porto de 19.04.2017 (Proc. 507/16.8PTPRT.P1), 09.11.2016 (Proc. 1440/15.6PTAVR-A.P1), 30.10.2013 (Proc. 387/12.2PTPRT.P1), 11.12.2013 (Proc. 969/12.2PWPRT.P1) e 02.05.2012 (Proc. 319/10.2PTPRT.P1), do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.02.2016 (Proc. 384/15.6PZLSB.L1-9, cujo sumário enferma de lapso manifesto ao indicar tratar-se de cúmulo material, quando se queria dizer jurídico) e Tribunal da Relação de Coimbra de 29.03.2017 (Proc. 16/16.5PFCTB.C1), 16.12.2015 (Proc. 37/15.5PTVIS.C1), 03.12.2014 (Proc. 358/13.1GAILH.C1) e 09.09.2009 (Proc. 226/08.9GTCBR-A.C1).

Pela tese da acumulação material e para lá do acórdão fundamento, pronunciaram-se, por exemplo, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 20.04.2015 (Proc. 794/15.9PFPRT.P1), 13.03.2013 (Proc. 1316/10.3PTPRT.P2), 03.12.2012 (Proc. 1165/09.1PTPRT.P1), 07.12.2011 (Proc. 626/10.4GAPFR.P1), 05.05.2010 (Proc. 183/09.4GBOAZ.P1), 11.10.2006 (Proc. 0612894), do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.04.2013 (CJ, 2013, II, pág. 47), 28.03.2012 (Proc. 79/10.7GCSEI.C1), 29.06.2011 (Proc. 190/10.4GAVFR.C1) e do Tribunal da Relação de Évora de 29.11.2016 (Proc. 39/15.1GBCDV.E1).

Também o Supremo Tribunal de Justiça teve ensejo de se pronunciar sobre tal vexata quaestio nos acórdãos de 21.06.2006 (CJ/STJ, 2006, II, pág. 223, com o sumário: “São aplicadas as regras do cúmulo jurídico de penas estabelecidas nos artigos 77.º e 78.º do CP ao concurso de sanções acessórias”) e de 31.10.2012 (Proc. 15/08.0GAVRL.P1.S1, com o sumário: “III. As penas acessórias são verdadeiras penas. Assim sendo, são aplicáveis às penas acessórias (a todas elas), com as devidas adaptações, as disposições dos art.ºs 77.º e 78.º do CP”), um e outro, portanto, no sentido da 1.ª orientação, ou seja, do cúmulo jurídico das penas acessórias.

Na doutrina, pela profundidade do tratamento em concreto da questão, merece especial destaque o Estudo de Faria Costa publicado na RLJ n.º 3945 (Julho-Agosto de 2007), págs. 322 e ss. sob o sugestivo título “Penas acessórias – Cúmulo Jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]”, a cuja pergunta haveria de responder no sentido do cúmulo jurídico.   

Igual entendimento parece expressar Maia Gonçalves quando, na anotação 7.ª ao art.º 77.º do seu “Código Penal Português, Anotado e Comentado” (18.ª edição – 2007), refere que o dispositivo do n.º 4 desse preceito é a consagração do sistema da pena conjunta.

No mesmo sentido parece ir João Costa (“Da Superação do Regime Actual do Conhecimento Superveniente do Concurso”, Almedina, 2014, nota 172 de pág. 70) quando salienta que o n.º 4 do art.º 77.º do CP “confirma o entendimento fundamentante do sistema da pena conjunta”, “neste contexto” (sic) remetendo para o referido Estudo de Faria Costa.

Mais clara é a posição seguida por António Latas (“As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro”, Revista do CEJ, 2014) ao defender o cúmulo jurídico das penas acessórias, em suma, dado o art.º 77.º do CP as não excluir e em princípio as mantendo no n.º 3 do art.º 78.º face às penas principais, se aplicadas em sentença anterior ou a crime que falte apreciar, de resto sendo a solução do cúmulo jurídico a que melhor se coaduna com a natureza de verdadeira pena que constitui a proibição de conduzir.

Essa parece ser também a actual posição (reserva que tem a ver com a anotação 12.ª ao art.º 69.º, onde, à semelhança das edições de 2008 e 2010 da mesma obra, em anotações equivalentes, se sustenta o contrário) de Paulo Pinto de Albuquerque, expressa na 3.ª (e última) edição (2015) do seu “Comentário do Código Penal” (UCP), em cuja anotação 12.ª ao art.º 77.º acrescentou que “o cúmulo das penas acessórias, mormente da proibição de conduzir veículos com motor, é um cúmulo jurídico, uma vez que a sua aplicação depende da valoração dos critérios gerais de determinação das penas, incluindo o disposto no art.º 77.º, ainda que se trate de conhecimento superveniente (…) ”.

Claro é ainda Tiago Caiado Milheiro (“Cúmulo Jurídico Superveniente, Noções Fundamentais”, Almedina, 2016, págs. 141-144) quando, a propósito da interpretação do n.º 4 do art.º 77.º e n.º 3 do art.º 78.º, do CP, defende que “é mais correcto em termos hermenêuticos a interpretação que admite o cúmulo jurídico das penas acessórias (da mesma natureza), originária ou supervenientemente” por razões que, em suma, se prendem com a natureza da pena acessória enquanto verdadeira pena ligada ao facto e à culpa do agente, cuja medida não pode exceder, o que só é compatível com o cúmulo jurídico e, por outro, dado que aqueles normativos só disciplinam “aquelas situações em que as penas acessórias não concorrem entre si”, sem excepcionar as regras gerais do concurso, para lá de ser incoerente que se cumulem juridicamente as penas principais e já não as penas acessórias.

Em sentido contrário, ou seja, de que as penas acessórias, mormente de proibição de conduzir veículos com motor, são cumuladas materialmente, apontam M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio quando, na anotação 12.ª ao art.º 69.º e 15.ª ao art.º 78.º do “Código Penal – Parte geral e especial” (Almedina, 2014, págs. 366 e 389), salientam que “não há cúmulo jurídico de sanções acessórias, devendo as mesmas ser cumpridas sucessivamente em caso de pluralidade (art.º 77.º, n.º 4)”.

De igual entendimento é Paulo Dá Mesquita (“O Concurso de Penas”, Coimbra Editora, 1997, pág. 27), ao referir que “as penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicáveis e acumuladas materialmente à pena principal conjunta, ainda que previstas apenas por uma das normas incriminadoras aplicáveis, como determina o art.º 78.º, n.º 4, do CP 82 (art.º 77.º, n.º 4, da Red. 95)”.

2. Os argumentos que sustentam a tese do cúmulo jurídico, seguida pelo acórdão recorrido, radicam fundamentalmente na natureza das penas acessórias que, enquanto verdadeiras penas, estão indissoluvelmente ligadas ao facto e à culpa do agente pelo que, em caso de concurso, não podem deixar de estar sujeitas ao critério geral do n.º 1 do art.º 77.º do CP (diploma doravante a considerar sempre que outro se não indique).

Por outro lado, a literalidade do n.º 4 do art.º 77.º e do n.º 3 do art.º 78.º não permite, em bom rigor, excepcionar as regras do concurso e correspondente cúmulo jurídico.

Por outro lado, ainda, seria incoerente permitir o cúmulo jurídico das penas principais e obrigar à acumulação material das penas acessórias, quando igualmente visam finalidades de prevenção geral e especial, ainda que, também, no caso da proibição de conduzir, acresça um contributo para a emenda cívica do condutor imprudente e também um efeito de prevenção geral de intimidação dentro dos limites da culpa.

Já a tese contrária, do acórdão fundamento, da acumulação material da penas acessórias, parte da diferente natureza dos fins prosseguidos e dos objectivos de política criminal a alcançar pelas penas principais e pelas penas acessórias, mormente não sendo possível a respectiva suspensão da execução, podendo a duração da pena ser proporcionalmente diferente numas e noutras, não prevendo o n.º 1 do art.º 77.º o cúmulo de penas acessórias (pena acessória única), quando, quer o n.º 4 do art.º 77.º, quer o n.º 3 do art.º 78.º disciplinam expressamente o cúmulo material de tais penas.

Invoca-se ainda o caso paralelo do n.º 3 do art.º 134.º do Cód. Estrada, que impõe que as sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso (coima e sanção acessória de inibição de conduzir) sejam sempre cumuladas materialmente, argumentando-se não fazer sentido que o legislador previsse regime mais gravoso para o direito contra-ordenacional estradal que para o direito penal, onde o desvalor social da conduta é maior e mais prementes são as necessidades de prevenção.

Vejamos por qual das posições optar.

3. Com aplicação ao caso em apreço, dispõe o art.º 78.º do CP, por sua vez epigrafado de “conhecimento superveniente do concurso”:

1. Se depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.

2. O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.

3. As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior”.

E o art.º 77.º, o seguinte:

1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

3. Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”.

É pacífico que o sistema consagrado neste preceito legal configura um sistema de pena conjunta, obtido através de um cúmulo jurídico e que, embora de pena única, encontra num princípio de acumulação a fonte essencial de inspiração (Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 4.ª reimp., pág. 284).

O art.º 69.º, inserido no capítulo das penas acessórias e sob a epígrafe de “proibição de conduzir veículos com motor”, dispõe no n.º 1, alín. a), que “é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículos motorizados com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º ”.

Penas acessórias são aquelas que só podem ser pronunciadas na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal e visam proteger determinados interesses colocados em perigo com a prática do crime.

Não se trata já de efeitos da condenação na pena principal, mas de efeitos do crime, de pena só aplicável, ainda que necessária, mas não automaticamente, pela prática de um determinado crime e quando, e só quando, o agente for condenado numa pena principal.

Porque de verdadeiras penas se trata, torna-se indispensável que, enquanto instrumentos de política criminal, ganhem um específico conteúdo de censura do facto, por aqui se estabelecendo a sua necessária ligação à culpa, sendo que a respectiva medida, dentro da moldura legal, deve obedecer aos critérios legais gerais de fixação da medida concreta (Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 157 e ss. e Germano Marques da Silva, “Crimes Rodoviários – Pena Acessória e Medidas de Segurança”, UCP, 1996, pág. 27 e Jescheck e Weigend, “Tratado de Derecho Penal – Parte General”, 5.ª edição, Comares, Granada, 2002, págs. 842 e ss., especificamente quanto à pena acessória de proibição de conduzir).

A pena acessória de proibição de conduzir do art.º 69.º foi introduzida pelo DL n.º 48/95, de 15.03, preceito que depois foi alterado pelo DL n.º 77/2001, de 13.07 e pela Lei n.º 19/2013, de 21.02.

Esse diploma introduziu também a medida de segurança previstas no art.º 101.º, depois alterada pela Lei n.º 65/98, de 02.09 e pela mencionada Lei n.º 77/2001 e que versa sobre a “cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor”.

Já antes da introdução daquela pena acessória, Figueiredo Dias (ob. cit., pág. 164) preconizava que “deve, no plano de lege ferenda enfatizar-se a necessidade e a urgência político – criminais de que o sistema sancionatório português passe a dispor – em termos de direito penal geral e não somente de direito penal da circulação rodoviária – de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. Uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável. Uma tal pena – possuidora de uma moldura penal específica – só não teria lugar quando o agente devesse sofrer, pelo mesmo facto, uma medida de segurança de interdição da faculdade de conduzir, sob a forma de cassação da licença de condução ou de interdição da sua concessão.

As razões político – criminais que justificam a aludida necessidade e urgência de uma regulamentação deste tipo são (infelizmente) por demais óbvias entre nós para que precisem de ser especialmente encarecidas. Se, como se acentuou, pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso, à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano”.

Também o Código da Estrada prevê uma sanção acessória denominada de inibição de conduzir, aplicável às contra-ordenações graves (por um período fixado entre 1 mês e 1 ano) e muito graves (entre 2 meses e 2 anos) (art.ºs 138.º, n.º 1, 145.º, 146.º e 147.º), a qual se distingue da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pela sua natureza administrativa, embora o conteúdo material seja idêntico, de proibição de conduzir veículos motorizados.

A sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves pode ser objecto de suspensão (141.º do CE), medida que está vedada à sanção acessória de contra-ordenações muito graves que, contudo, pode beneficiar da atenuação especial dos limites mínimos e máximos da inibição.

Em caso de concurso, as sanções aplicadas (coima e sanção acessória de inibição de conduzir) são sempre cumuladas materialmente (art.º 134.º, n.º 3, do CE).

Trata-se de uma norma especial, sem paralelo no regime geral das contra-ordenações (DL n.º 433/82, de 27.10) que, nos seus art.ºs 19.º e 32.º, prevê o cúmulo jurídico de coimas e sanções acessórias no caso de pluralidade de infracções.

A acumulação material de coimas e de sanções acessórias não pode ser transposta para o direito penal seja por analogia ou interpretação extensiva, sob pena de violação do princípio da legalidade na determinação da pena (art.º 1.º, n.º 3, e 29.º, n.ºs 3 e 4, da CRP), seja por recurso interpretativo ao caso paralelo, desde logo dada a diferença qualitativa entre o direito penal, que enquanto última ratio da política criminal tutela bens ou valores assumidos como fundamentais pela consciência ético-social, e o direito estradal enquanto direito de mera ordenação social, cujos interesses protegidos, embora socialmente relevantes, não revestem essa característica de fundamentalidade (Taipa de Carvalho, “Direito Penal – Parte Geral”, UCEP, 3.ª ed., pág. 152).

Quanto ao argumento de o regime penal do cúmulo jurídico para as penas acessórias ser mais benéfico que o regime do cúmulo material para as sanções acessórias (sublinhando, fixadas, no caso das penas acessórias de proibição de conduzir por um período entre 3 meses e 3 anos e, no caso das sanções de inibição de conduzir, entre 1 mês e 1 ano, ou entre 2 meses e 2 anos, consoante se trate, respectivamente, de contra-ordenações graves ou muito graves), o mesmo foi apreciado por Faria Costa no mencionado Estudo (pág. 328) no sentido, que comungamos, de não colher. “E não colhe [salienta] pelo seguinte: porque o desvalor e a reprovação social que merece aquele que praticou um ilícito criminal deve ser sempre maior do que o desvalor e a reprovação social dado aqueloutro que praticou uma contra-ordenação. E muito especialmente porque estando em causa dois ordenamentos jurídicos sancionatórios de gravidade material tão desigual, por certo que as molduras abstractas previstas no CP terão de ser sempre mais gravosas do que as das sanções acessórias. Portanto, por aqui se frustra, de imediato, a hipótese de a pena acessória vir a ser inferior à sanção acessória. A não ser assim, a não se espelhar essa diferença de valoração também nas molduras penais dos dois ordenamentos, a não se revelar a maior ofensividade da censura jurídica no crime do que na contra-ordenação, por certo também aqui haveria violação do princípio da igualdade e, em última análise, do princípio da perequação. Não colhe ainda porque a pena a aplicar em concreto, depois de efectuada a operação do cúmulo jurídico, pode perfeitamente ser igual – ou pelo menos ser praticamente igual – à pena a que se chega através do funcionamento das regras do cúmulo material”.

Quanto à impossibilidade de suspensão das penas acessórias é argumento que, por irrelevante, igualmente não colhe. Também a pena de multa é insusceptível de suspensão, não sendo isso que lhe retira a possibilidade de ser cumulada juridicamente em caso de concurso de penas da mesma natureza…

Já a diferente proporcionalidade entre a medida da pena principal e a da pena acessória, naturalmente nada impede que na respectiva aplicação sejam seguidos os mesmos critérios gerais de determinação das penas, tendo em conta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, de forma a salvaguardar, de resto, o princípio da não automaticidade (art.º 65.º), bem como a proibição de penas acessórias fixas.

4. Do que vem exposto, já resulta a opção pela tese do cúmulo jurídico das penas acessórias, em concreto da pena de proibição de conduzir veículos com motor.

a) – Importa referir ainda que, quanto ao argumento da diferente natureza dos fins prosseguidos e dos objectivos de política criminal a alcançar pela pena principal e pela pena acessória, esta a visar um escopo de recuperação do comportamento estradal do autor do crime, também não colhe.

Sendo um dado a opção legislativa de considerar essa proibição como pena acessória, enquanto verdadeira pena não pode ficar indiferente às finalidades das penas principais, nos termos do art.º 40.º, bem como aos critérios de determinação da medida da pena previstos no art.º 71.º, dentro dos limites por ela definidos (3 meses a 3 anos).

A lei não distingue, aí, entre penas principais e penas acessórias, pelo que não deixa de ter aplicação, também aqui, o velho brocardo ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus.

Por outro lado, na determinação da pena única do concurso, à luz do n.º 1 do art.º 77.º, de crimes puníveis com penas principais e penas acessórias, não se vê como, na consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente, possa cindir-se a apreciação de tais penas, sendo que a obrigatoriedade do cúmulo material das penas acessórias, só por o serem, não deixaria de violar o princípio da culpa e de frustrar as finalidades de prevenção, dado que só através do cúmulo jurídico, na consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, é possível alcançar a pena proporcionalmente adequada.

Já as razões de política criminal, traduzidas na especial censurabilidade de determinados tipos de condutas, fazem mais parte do tipo legal definido pelo legislador, que da pena concretamente determinada.

b) – Quanto ao argumento da falta de previsão da pena acessória única, ou seja, de que a lei não prevê o cúmulo jurídico de tal tipo de penas, importa obtemperar que o art.º 77.º versa sobre concurso de crimes que não propriamente de penas, cuja função é delimitar a moldura penal abstracta do concurso, mas dispondo-se aí que são juridicamente cumuláveis penas da mesma natureza, o preceito não exclui as penas acessórias, a que faz referência expressa no n.º 4 e mesmo no caso de concurso entre penas principais de multa e de prisão faz-se aí referência a uma pena única.

 c) – Quanto à interpretação do n.º 4 do art.º 77.º (as penas acessórias são sempre aplicadas ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis) e do n.º 3 do art.º 78.º (as penas acessórias aplicadas na sentença anterior mantêm-se salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior), no sentido de se ver naquela aplicação e na manutenção a acumulação material das penas acessórias, igualmente não convence.

Ao dispor sobre a interpretação da lei, reza o art.º 9.º do Cód. Civil, no seu n.º 1, que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, o n.º 2 que, “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” e, o n.º 3, que, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e sobre exprimir o seu pensamento em termos adequados”. 

Na lição de Baptista Machado (“Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1983, págs. 181 e ss.) tradicionalmente são dois os factores interpretativos: o elemento gramatical, ou seja, o texto, a “letra da lei”, e o elemento lógico que, por sua vez, se subdivide no elemento racional ou teleológico, elemento sistemático e histórico.

A letra da lei é o ponto de partida da interpretação, desde logo lhe cabendo uma função negativa – a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei, cabendo-lhe também uma função positiva, isto é, se o texto comportar apenas um sentido é esse o sentido da norma, sem prejuízo de se poder concluir, com base noutras normas, que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador.

De acordo com esse autor, “quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis. É que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita. Ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento”.

Voltando aos preceitos legais em causa, afirmar-se no n.º 3 do art.º 78.º que em caso de conhecimento superveniente do concurso as penas acessórias aplicadas em anterior sentença se mantêm, salvo quando desnecessárias face à nova decisão e se apenas forem aplicáveis ao crime que falta apreciar só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior, desde logo não permite sustentar que as penas acessórias em concurso não possam ser objecto de cúmulo jurídico.

Impondo a manutenção das penas acessórias anteriormente aplicadas, salvo se desnecessárias em vista da nova condenação, como será o caso de a pena acessória de proibição de conduzir concorrer com a medida de segurança de “cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo automóvel” do art.º 101.º, ou se, num segundo juízo se entenda serem agora demasiado severas (assim, Figueiredo Dias, Acta n.º 42 de 30.10.90, da Comissão de Revisão do Código Penal, in “Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, pág. 481), a letra da lei não aponta no sentido de que tais penas se mantenham em acumulação material.

Já a segunda parte do preceito (“se forem aplicáveis ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face de decisão anterior”), visa prevenir, p. ex., que a pena acessória prevista para um dos crimes em concurso superveniente possa não ser aplicada, como além, agora mutatis mutandis, por falta dos pressupostos materiais, desde logo no que respeita à proibição de conduzir, se antes tiver sido aplicada concorrente medida de segurança de cassação do título e medida e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor” (art.º 101.º).

Quanto ao n.º 4 do art.º 77.º, no sentido de as penas acessórias serem sempre aplicadas ao agente, também o texto mais não visa que a salvaguarda da aplicabilidade de uma pena acessória em caso de concurso, ainda que prevista por uma só das leis aplicáveis.

Enquanto, além, a lei diz que se mantêm, porque se trata de um concurso superveniente e já antes houve lugar à aplicação de penas acessórias, aqui, diz-se que são sempre aplicadas porque está em causa a realização de um cúmulo inicial ou originário, isto é, se estivermos perante um concurso real ou efectivo de crimes e uma (ou mais) das penas parcelares a englobar for constituído por uma pena principal e outra acessória esse preceito limita-se a dizer que as penas acessórias são sempre aplicadas.

É, pois, de uma questão de necessidade de aplicação das penas acessórias em caso de concurso, superveniente ou não, de que tratam tais preceitos, aí se não vislumbrando qualquer compromisso legal com a sua acumulação material, ou exclusão do cúmulo jurídico.

Com Baptista Machado poderíamos dizer ser esse o sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado das expressões verbais utilizadas.

A propósito da falibilidade do elemento literal de interpretação, Faria Costa (Estudo, pág. 328) refere que, “em bom rigor interpretativo, mesmo com recurso ao elemento gramatical ou literal daqueles artigos, não vemos como se possa daí retirar – de uma forma límpida e clara – a não aplicação das regras do cúmulo jurídico, no âmbito das penas acessórias da mesma espécie. Isto é, se, por um lado, dali não se retira, inequivocamente, a aplicação do sistema do cúmulo jurídico, por outro, também, não se retira de uma forma que não deixe margem para dúvidas, o seu contrário”.

Também do elemento histórico de interpretação nada pode retirar-se no sentido de as penas acessórias deverem sujeitar-se à acumulação material.

A redacção daqueles preceitos, oriunda da reforma penal de 1995, não é muito diferente da versão original do Código Penal de 1982.

Reportando este diploma legal o conhecimento superveniente do concurso ao art.º 79.º, n.º 2, usava, em vez da forma verbal presente “mantêm-se”, a forma futura “manter-se-ão”. Já o então art.º 78.º (hoje 77.º) no n.º 4 em vez da expressão “são sempre” usava a expressão “podem ser sempre”.

São fórmulas equivalentes, para uma época em que as penas acessórias não constituíam penas, mas efeitos das penas (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 94) e, no dizer de Faria Costa (Estudo, pág. 328), essa é a razão por que o legislador não estabeleceu expressamente para as penas acessórias as regras do cúmulo jurídico em situação de concurso efectivo.

De resto, no seio da Comissão de Revisão do Código Penal (1995), mormente das correspondentes actas n.ºs 9, 16 e 42 (ob. cit., págs. 81, 156 e 476), nunca foi discutida, ou ventilada, sequer, a hipótese da acumulação material das penas acessórias.

O que resulta do sentido do n.º 4 do art.º 78.º, bem como do n.º 3 do art.º 77.º, conjugadamente com o disposto no art.º 69.º é que as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor se mantêm e se aplicam em face da pena principal e não isoladamente (e em adição material) em relação a cada uma das penas acessórias aplicadas em caso de pluralidade de penas dessa natureza.

Já o elemento racional ou teleológico de interpretação é (mais) decisivo.

Com efeito, quanto às penas acessórias e conforme acima salientado, como verdadeiras penas que são, nenhuma razão existe para que sejam subtraídas às regras do cúmulo jurídico, que é o que vigora no nosso sistema jurídico para o cúmulo das penas principais, mormente para a proibição de conduzir veículos com motor, cuja medida da pena terá que ser determinada em concreto dentro dos limites da moldura abstracta da alín. a) do n.º 1 do art.º 69.º, tendo em vista o princípio da culpa, da gravidade dos factos e dos fins das penas, de prevenção geral e muito em particular de prevenção especial.

Como decisivo não deixa de ser o elemento sistemático quando o legislador reportou as penas acessórias ao contexto das normas reguladoras do próprio cúmulo jurídico.

E não será a falta de indicação no n.º 2 do art.º 77.º de um limite máximo para a soma das penas acessórias parcelares que pode constituir óbice ao cúmulo jurídico, não surpreendendo que (em casos que se perspectivam algo remotos, além do mais tendo em conta a possibilidade de aplicação da medida de segurança de cassação do título prevista no art.º 101.º às situações, já, de perigosidade), possa ser aplicado, por analogia, em benefício do condenado, o limite máximo correspondente à pena de prisão.

d) – Do exposto resulta ser sobretudo a partir da natureza das penas acessórias enquanto verdadeiras penas que, no caso de concurso, possam beneficiar, tal como as penas principais, das regras do cúmulo jurídico estabelecidas nos art.ºs 77.º e 78.º, porque, voltando a parafrasear Faria Costa (pág. 327), “ [só] desse modo o julgador conseguirá uma verdadeira individualização da sanção penal que não seja redutora do caso concreto, encaminhando-se, então, para uma pena acessória justa porque respeitadora dos princípios da igualdade e da proporcionalidade”.

5. Em conclusão, as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, enquanto verdadeiras penas com função adjuvante das penas principais, destinadas à tutela de bens jurídicos subjacentes ao tipo legal dos crimes praticados, limitadas pelo princípio da culpa (art.º 40.º) e determinadas nos termos do art.º 71.º, ambos do Código Penal, não poderão, em caso de concurso, deixar de ter o tratamento das regras do cúmulo jurídico que o legislador adoptou para as penas principais, já que só o cúmulo jurídico permite alcançar uma pena proporcional e justa na sua medida.

O acórdão recorrido, ao optar pela solução do cúmulo jurídico, seguiu a orientação que aqui e agora se afirma.

III

Face ao exposto, os juízes que constituem o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça decidem:

a) – Confirmar o acórdão recorrido;

b) – Fixar a seguinte jurisprudência:

Em caso de concurso de crimes, as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, com previsão no n.º 1, alín. a), do art.º 69.º do Código Penal, estão sujeitas a cúmulo jurídico”.

Sem custas.

Cumpra-se o disposto no n.º 1 do art.º 444.º do CPP.


Supremo Tribunal de Justiça, 11 de Janeiro de 2018

Francisco Caetano (relator)
Manuel Augusto de Matos
Carlos Almeida
Lopes da Mota
Vinício Ribeiro
Santos Carvalho
Santos Cabral
Oliveira Mendes
Souto de Moura
Pires da Graça
Raul Borges
Manuel Braz
Isabel São Marcos
Gabriel Catarino
Helena Moniz
Nuno Gomes da Silva
Henriques Gaspar (Presidente)