Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P2792
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: COSTA MORTÁGUA
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
RECURSO PER SALTUM
MATÉRIA DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200703140027925
Data do Acordão: 03/14/2007
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Referência de Publicação: DR I SÉRIE, 107, 4 DE JUNHO DE 2007, P. 3683
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
«Do disposto nos artigos 427º e 432º, alínea d), do Código de Processo Penal, este último na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, decorre que os recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo visando exclusivamente o reexame da matéria de direito devem ser interpostos directamente para o Supremo Tribunal de Justiça».
Decisão Texto Integral:

Acordam no plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I.
RELATÓRIO.

O Ministério Público interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão deste Supremo Tribunal (processo n.º 956/06 – 5.ª Secção), proferido em 20 de Abril de 2006, entretanto transitado em julgado, que determinou a “devolução dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, por ser o competente para deles conhecer”, fundando-se para tanto no entendimento de que quando o recurso do acórdão final do Tribunal Colectivo verse apenas matéria de direito fica na disponibilidade do recorrente interpô-lo para a Relação ou directamente para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recorrente alegou, em síntese, que quanto àquela disponibilidade do recorrente, no domínio da mesma legislação, o acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Abril de 2006, proferido no processo n.º 806/06 – 5.ª Secção, entretanto também transitado em julgado, sufragou entendimento oposto: naquele indicado contexto, o referido acórdão de 6 de Abril entendeu que não está na disponibilidade do recorrente a escolha do tribunal de recurso, sendo da competência exclusiva deste Supremo Tribunal o conhecimento do recurso interposto de acórdão final do Tribunal Colectivo que verse tão-só matéria de direito.
Nestes termos, o recorrente entendeu que deve ser fixada jurisprudência no sentido de que «o recurso da decisão final do tribunal colectivo, que vise exclusivamente o reexame de matéria de direito, é interposto directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, a quem compete, em exclusividade, o seu conhecimento, de harmonia com o disposto no artigo 432.º, alínea d), do Código de Processo Penal» (1)

Distribuídos os autos e notificado o recorrido, AA, para responder, querendo, veio este alegar que não se opõe à admissão do presente recurso (2).

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência e, por acórdão de 12 de Outubro de 2006, este Supremo Tribunal reconheceu a existência de oposição de julgados e determinou “o prosseguimento do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência” (3).

Cumprindo o disposto no n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal, foram notificados o recorrente e o recorrido para apresentarem as respectivas alegações escritas, as quais entretanto foram juntas aos autos.
Nelas, o recorrido concluiu nos seguintes termos:
“I. O Acórdão recorrido está em oposição com o Acórdão fundamento, relativamente à mesma questão essencial de direito e no domínio da mesma legislação.
II. O Acórdão recorrido decidiu que, nos termos do Código de Processo Penal, na redacção introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25.08, nos recursos interpostos de acórdãos do tribunal colectivo, que visem exclusivamente o reexame da matéria de direito, fica na disponibilidade do recorrente interpor o recurso directamente para a Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça.
III. O Acórdão fundamento decidiu que era exclusivamente competente para conhecer desses recursos o Supremo Tribunal de Justiça.
IV. Da interpretação literal das normas dos artigos 427.° e 432.°, alínea d), do C.P.P. resulta que é obrigatória a interposição directa para o Supremo Tribunal de Justiça daqueles recursos.
V. Nenhuma norma prevê expressamente a possibilidade de interpor recurso para a Relação de acórdãos do tribunal colectivo que visem exclusivamente o reexame da matéria de direito.
VI. Nenhuma norma atribui expressamente competência à Relação para conhecer desses recursos quando não haja também recurso da matéria de facto.
VII. Da interpretação histórica, lógica e sistemática daquelas normas resulta também que é obrigatória a interposição directa para o Supremo Tribunal de Justiça daqueles recursos.
VIII. Também razões pratico-normativas – designadamente, de celeridade, clareza e equidade processuais – justificam que apenas seja competente para conhecer desses recursos o Supremo Tribunal de Justiça.
IX. O disposto no n.º 7 do artigo 414.° do CPP não pode ser aplicado analogicamente aos casos em que os recorrentes divergem quanto ao tribunal a que dirigem os seus recursos, uma vez que nestes casos não procedem as razões justificativas da norma que se retira daquela disposição legal (art. 10.°, n.º 2, do C.Civil).
X. É inconstitucional, por violação do princípio do “juiz natural”, a norma que resulta dos artigos 414.°, n.º 7, 427.° e 432.°, alínea d), do C.P.P. quando interpretados no sentido de que fica na disponibilidade do recorrente interpor recurso de acórdão final do Tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito, directamente para a Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça.
XI. É inconstitucional por violação do princípio do “juiz natural”, do direito a um processo equitativo e dos princípios da plenitude dos direitos de defesa e da igualdade, a norma que resulta dos artigos 414.°, n.º 7, 427.° e 432.°, alínea d), do C.P.P. quando interpretados no sentido de que fica na disponibilidade do recorrente interpor recurso de acórdão final do Tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito, directamente para a Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça, atribuindo-se à Relação a competência para conhecer de todos os recursos interpostos daquela decisão quando um dos sujeitos processuais para ela recorra e mesmo que outro sujeito processual, designadamente o arguido, recorra para o Supremo Tribunal de Justiça, não visando nenhum dos recursos o reexame da matéria de facto.
XII. A jurisprudência do douto Acórdão recorrido viola as normas dos artigos 427.° e 432.°. alínea d), do C.P.P., interpretando-as com o aludido sentido que nem o sua letra nem o seu espírito suportam, violando também os normas dos artigos 9.º e 10.º, n.º, 2,. do C.Civil..
XIII. A Jurisprudência do douto Acórdão recorrido viola, ainda, as normas e princípios consagrados nos artigos 12.°, n.º 1, 20.°, n.º 4., e 32.°, n.ºs 1 e 9, da Constituição da República Portuguesa.
XIV. Face a tudo quanto antecede, deve ser fixada jurisprudência que resolva o conflito de jurisprudência entre os mencionados acórdãos;
XV. Propondo-se que seja fixada jurisprudência com o seguinte sentido:
O recurso da decisão final do tribunal colectivo que vise exclusivamente o reexame da matéria de direito é interposto directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, a quem compete, em exclusividade, o seu conhecimento de harmonia com o disposto no artigo 432.º, alínea d), do Código de Processo Penal, salvo quando da mesma decisão seja também interposto recurso que vise o reexame da matéria de facto – caso em que é competente a Relação para deles conhecer.
XVI. Em consequência, deve ser revisto o douto Acórdão recorrido, com as consequências legais daí advenientes, designadamente a anulação dos actos posteriores ao mesmo que dele dependam” (4)

Por sua vez, o Ministério Público, terminou as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
“1. Entendendo-se que o aresto recorrido deverá ser revogado e que o conflito que se suscita há-de resolver-se fixando-se jurisprudência no sentido do decidido no aresto fundamento.
2. Propõe-se, para tal efeito, a seguinte redacção:
“O recurso da decisão final do tribunal colectivo, que vise exclusivamente o reexame de matéria de direito, é interposto directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, a quem compete, em exclusividade, o seu conhecimento, de harmonia com o disposto no artigo 432.°, alínea d) do Código de Processo Penal” (5).

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência do Pleno das Secções Criminais a que alude o artigo 443.º do Código de Processo Penal, cumprindo ora conhecer e decidir.

II.
REAFIRMAÇÃO DO RECONHECIMENTO DA OPOSIÇÃO DE JULGADOS E SANEAMENTO DOS AUTOS.

Da exposição precedente, é manifesto que os dois acórdãos em conflito, o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, ambos deste Supremo Tribunal, os dois já transitados em julgado, pronunciaram-se em sentido contrário relativamente a uma mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação e no que respeita a factos idênticos: relativamente a recurso interposto de acórdão final do Tribunal Colectivo que exclusivamente diga respeito a matéria de direito, o acórdão recorrido concluiu que o recorrente pode optar por interpor tal recurso para a Relação ou para este Supremo Tribunal, ao passo que o acórdão fundamento entendeu que a competência para a apreciação e decisão de um tal recurso pertence exclusivamente a este Supremo Tribunal, inexistindo, pois, qualquer direito de opção por parte do recorrente.
Nestes termos, confirma-se, ora em plenário, a presença da oposição de julgados a que se refere o artigo 437.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.

Inexistem quaisquer questões processuais ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

III.
DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA EM CAUSA.

Atentos os articulados apresentados nos presentes autos e as respectivas motivações, o objecto deste recurso extraordinário para fixação de jurisprudência cinge-se a saber qual o tribunal competente para apreciar e decidir do recurso interposto do acórdão final do Tribunal Colectivo que verse tão-só matéria de direito.
Dito de outra forma, em causa está saber se o recorrente de acórdão final do Tribunal Colectivo que pretenda o reexame deste apenas em termos do direito aplicado ou a aplicar tem, ou não, a faculdade de escolher o tribunal de recurso: uma resposta afirmativa implicará que se reconheça ao recorrente a faculdade de optar por recorrer para o Tribunal da Relação ou directamente para este Supremo Tribunal, sendo que um entendimento oposto concluirá que o recorrente carece daquela opção e, por isso, um tal recurso deverá ser interposto necessariamente para este Supremo Tribunal.
Seja como for, em causa não está saber qual o tribunal competente quando o recurso do acórdão do Tribunal Colectivo verse matéria de facto e de direito.
Relativamente a essa situação inexiste oposição de julgados nos acórdãos recorrido e fundamento, termos em que carece de sentido a apreciação e decisão neste acórdão dessa matéria, a qual aparece indicada na parte final da fixação de jurisprudência proposta pelo requerido (6).

IV.
A FUNDAMENTAÇÃO DOS ACÓRDÃOS RECORRIDO E FUNDAMENTO.

Apelando a critérios de interpretação jurídica, os acórdãos recorrido e fundamento concluem de forma antagónica quanto ao indicado objecto da presente fixação de jurisprudência.
Em sede de fundamentação da decisão, no acórdão recorrido consignou-se, no essencial, que:
“As disposições legais onde estão previstas e determinadas as questões relacionadas com matéria de recursos, e que ao caso ora interessa, são os arts. 427.°, 428.°, 432.° e 434° C.Pr.Penal.
(…) Com a revisão do C.Pr.Penal operada pela Lei 59/98, de 25 Agosto, foram introduzidas significativas alterações em matéria de recursos, abrindo-se a possibilidade aos Tribunais da Relação de conhecerem dos recursos de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, mesmo que restritos a matéria de direito, desde que para eles tenham sido interpostos.
É, aliás, o próprio legislador que justifica o alcance destas alterações ao afirmar [in Motivos da Proposta de Lei 157/VII]:
c) Faz-se um uso discreto do princípio da «dupla conforme», harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade;
d) Admite-se o recurso per saltum, justificado pela medida da pena e pela limitação do recurso a matéria de direito;
e) Retoma-se a ideia de diferenciação orgânica, mas apenas fundada no princípio de que os casos de pequena ou média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça;
f) Ampliam-se os poderes de cognição das Relações, evitando-se que decidam, por sistema em última instância.
A regra geral em matéria de competência quanto a recursos é, agora, a de que o recurso da decisão proferida por tribunal da 1.ª instância se interpõe para a Relação, constituindo única excepção a que se prende com as decisões do tribunal do júri, em que o recurso é interposto directamente para o Supremo Tribunal de Justiça. As Relações passaram a conhecer de facto e de direito ou só de facto das decisões finais dos tribunais colectivos.
Quando nos recursos esteja em causa matéria exclusivamente de direito, do mesmo modo que o Supremo também as Relações deles podem conhecer.
E afigura-se-nos que esta competência é optativa, desde logo porque deste modo se faculta aos interessados, caso a decisão lhes seja desfavorável e não estejam definitivamente convencidos da sua bondade, um segundo grau de recurso, submetendo a questão a nova apreciação e agora do Supremo Tribunal de Justiça.
Como reforço desta interpretação pode invocar-se o disposto no art. 725.° C.Pr.Civil, onde se coloca na disponibilidade dos recorrentes a possibilidade de recorrer directamente para o Supremo Tribunal de Justiça (…).
Neste entendimento, resguarda-se o conhecimento do Supremo para casos de maior gravidade, ampliam-se os poderes de cognição das Relações e possibilita-se ou amplia-se a possibilidade de um duplo grau de recurso, além de assim se alcançar uma solução sintonizada com o sistema processual civil.
E não se compreenderia que as Relações tenham competência para conhecer dos recursos quando esteja em causa conhecimento de matéria de facto ou matéria de facto e de direito e já não a tivessem quando apenas estivesse em causa o conhecimento de matéria de direito.
Daí que, e em conclusão, se possa afirmar que, quando o recurso verse apenas matéria de direito, fica na disponibilidade do recorrente interpor o recurso directamente para a Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça.
(…) Esta conclusão não é posta em causa pelo facto de um dos recorrentes ter optado pelo Supremo Tribunal de Justiça e outro pelo Tribunal da Relação, porquanto nestas condições e de acordo com o disposto no n.º 7 do art. 414.° C.Pr.Penal, aplicável a situações como a vertente, ambos os recursos serão julgados conjuntamente pelo tribunal de menor hierarquia cuja intervenção foi provocada” (7)
Por sua vez, o acórdão fundamento (8) exprimiu-se, basicamente, no sentido de que:
Os artigos 432.º, al. d), e 427.º do Código de Processo Penal são “directamente aplicáveis à situação.
Afigura-se-nos, em definitivo, óbvio, que sendo a fixação da competência uma matéria de interesse e ordem pública, essa natureza necessariamente (= imperativamente) subtrai a mesma da livre opção do recorrente.
Assume-se, aqui, reserva relativa de competência da Assembleia da República (artigo 165.°, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa), constituindo questão cuja definição não pode ser deixada ao critério de quem tem o poder, mas também o dever, de aplicar o que está legislado
O que significa que se a Relação se arrogasse competência para conhecer dos recursos de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito, estaria a ultrapassar os limites da sua competência, em flagrante violação das normas indicadas.
Mais:
Torna-se necessário que em cada momento concreto do processo, o seu interveniente conheça, em absoluto, o direito que, processualmente, lhe assiste, sem ter que contar com surpresas determinadas por interpretações decorrentes de normas que, afinal, expressam e são suficientemente expressivas do respectivo conteúdo – artigo 9.° do CC.
Assim, quando se fala em matéria de direito, tout court, tal qualificação tem um único conteúdo e, no caso em apreço, prevenido no citado artigo 432°, a!. d), um único destinatário.
E, naturalmente, quando se fala em matéria de direito e em matéria de facto, em simultâneo, essa mesma qualificação só pode ter – como tem, e efectivamente tem – um outro conteúdo e um outro destinatário.
Vem isto a propósito das ilações que, eventual e apressadamente se poderão retirar do disposto nos artigos 414.°, n.º 7, do CPP, 412.°, n.ºs 3 e 4, e 428.°, do CPP, quando, no circunstancialismo aí concretamente expresso, há lugar ao julgamento de recursos sobre matéria de direito por parte das Relações.
É ilegítimo – e contra legem - retirar daí a conclusão que as Relações poderão julgar os recurso oriundos do tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, quando esta competência se acha atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça.
Como conceber que haja dois juízes ou dois tribunais simultaneamente competentes para a mesma questão e que o recorrente possa escolher entre um e outro conforme a sua conveniência de momento?
Em outra perspectiva, assinale-se que as regras previstas no artigo 725.° do CPC – que, elucidativamente, não existem no processo penal – não deixam à simples escolha do recorrente a decisão de recorrer para a Relação ou para o STJ, pois é ouvida a parte contrária, o Juiz de 1.ª instância tem o poder de se opor, e o STJ pode alterar a decisão.
Aliás, no processo civil, a regra é a de que das decisões do tribunal colectivo se recorre para a Relação, mesmo nos casos restritos à apreciação da matéria de direito, podendo as partes requerer que o recurso se faça “per saltum” para o STJ; no processo penal, para os que adoptam a referida interpretação, a regra será a contrária, pois recorre-se para o STJ, mas o recorrente pode escolher que o recurso siga primeiro para a Relação.
No processo civil a excepção à regra visa acelerar a decisão final (com o recurso “per saltum”); no processo penal a pretendida excepção permitiria o seu protelamento (com um novo e imprevisto recurso).
Este protelamento, a ser admitido, constituiria uma intolerável diminuição das garantias de defesa, pois o recorrente – que de acordo com esta opinião “escolhe” o tribunal “ad quem” – pode ser o assistente ou o M.º P,º e o arguido ficaria sem a oportunidade de se opor. De resto, tendo o recorrente escolhido a Relação, o Acórdão neste proferido pode não ter recurso para o STJ (cfr. artigos 14.°, n.ºs 1 e 2, al. a) e 400.°, n.° 1, al. e), do CPP), pelo que o recorrido (que pode ser o arguido) vê diminuída a garantia de ver o seu caso apreciado pelo mais alto Tribunal.
(…) Enfim, se o legislador quisesse a solução de permitir a escolha dos recorrentes neste domínio, teria redigido o artigo 432.°, al. d), do seguinte modo: «Pode recorrer-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito>. Mas, não, o legislador foi imperativo: «Recorre-se para o Suprem Tribunal de Justiça»” (9)

V.
FUNDAMENTAÇÃO.

Enunciada a questão cuja jurisprudência importa aqui fixar, indicada a fundamentação essencial sufragada pelos acórdãos recorrido e fundamento sobre a questão jurídica em causa e referenciada jurisprudência e doutrina sobre a matéria, cumpre ora tomar posição sobre tal questão, fixando jurisprudência.
Tal desiderato impõe que se proceda à interpretação das normas jurídicas pertinentes à questão enunciada segundo critérios comummente aceites, fundados no disposto no artigo 9.º do Código Civil (10)
A delimitação do sentido e alcance da norma jurídica decorre sempre da sua interpretação, constituindo esta uma tarefa permanente na actividade jurisdicional (11)
1 - Da fundamentação das posições em confronto quanto ao objecto da presente fixação, expressa nas diversas referências jurisprudências e doutrinais já aludidas, alcança-se que são trazidas à colação as normas jurídicas decorrentes dos artigos 411.º, n.º 4, 414.º, n.º 7, 427.º, 428.º, n.º 1, 432.º, alínea d), e 434.º, todos do Código de Processo Penal, e 725.º do Código de Processo Civil.
Nem todos se referem à totalidade dessas normas nas respectivas fundamentações e outros invocam também elementos lógicos inerentes à interpretação jurídica, como sejam os elementos histórico, sistemático e teleológico.
Vejamos.
2.
O preceituado nos artigos 427.º e 432.º, alínea d), do Código de Processo Penal, este último na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, configura-se como ponto de partida determinante da posição a sufragar quanto ao dilema que a presente fixação pretende resolver.
Segundo o apontado artigo 427.º, “exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso de decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a Relação”.
De acordo com o disposto no aludido artigo 432.º, alínea d), na indicada redacção, “recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito”.
Com o muito respeito devido pela posição contrária, do disposto naqueles dois preceitos legais decorre que os recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, devem ser interpostos directamente para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na verdade, o referido artigo 427.º declara a existência de “recurso directo” para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo que as situações de um tal recurso são as previstas no artigo 432.º.
Ora, na sua alínea d), aquela última disposição legal expressamente afirma que dos acórdãos finais do tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, “recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça”.
Os termos usados inculcam uma ideia de imperatividade - “recorre-se” - que não se compadece com uma mera faculdade, pressuposta por todos os que seguem o entendimento do acórdão recorrido.
3.
Dos artigos 411.º, n.º 4, 414.º, n.º 7, 428.º, n.º 1, e 434.º do Código de Processo Penal não decorrem elementos relevantes ao objecto da presente fixação, nomeadamente os pretendidos pelo entendimento sufragado no acórdão recorrido.
O disposto no n.º 4 do artigo 411.º do Código de Processo Penal (12) transferido, com a revisão de 1998, da tramitação do “recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça” para a “tramitação unitária”(13) de recursos, comum, pois, à Relação e ao Supremo Tribunal de Justiça -, é um corolário do próprio regime recursivo instituído: como o Supremo Tribunal de Justiça, também a Relação pode conhecer recurso apenas de direito, quer em razão de estar em causa decisão final de um Tribunal Singular e o recurso desta dizer respeito tão-só à matéria de direito, quer por virtude do recurso de direito ser interposto juntamente com outro ou outros recursos da matéria de facto quanto a acórdão final do Tribunal Colectivo.
O preceituado no n.º 7 do artigo 414.º do mesmo Código de Processo Penal (14) deve ser encarado como uma salvaguarda da unidade e coerência das decisões judiciais, fundando-se também em preocupações de economia processual.
Com a reforma de 1998, assumidamente, concedeu-se às Relações um recurso efectivo em matéria de facto e negou-se ao Supremo Tribunal o conhecimento deste, salvo nos limitados termos do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pelo que o referido artigo 414.º, n.º 7, outro desiderato não pretende que conceder à Relação competência para conhecer recursos tão-só de direito quando ela é também chamada a conhecer recursos que versem sobre matéria de facto na mesma situação.
Digamos que estamos aqui perante uma competência por arrastamento e só isso.
A Relação conhece de recursos exclusivamente de direito interpostos de acórdãos do Tribunal Colectivo quando tem igualmente de se pronunciar, quanto a tais acórdãos, de recurso que verse matéria de facto.
A unidade e coerência das decisões judiciais ditaram que o legislador assim prescrevesse, sendo que razões de economia processual justificam também a solução encontrada.
A esta luz deve ser entendido o regime do aludido artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (15).
As Relações conhecem de facto e de direito nos casos em que a lei o estabelece, sendo que, conforme resulta do anteriormente exposto, o conhecimento de direito dos acórdãos finais dos Tribunais Colectivos resulta sempre da necessidade de intervenção da Relação relativamente a recurso da matéria de facto.
Embora a regra geral de hermenêutica jurídico-lógica contida no argumento de maioria de razão possa levar a afirmar-se que “quem pode o mais, pode o menos” – e no caso ser-se-ia tentado a afirmar que se a Relação conhece de facto e de direito, também pode conhecer apenas de direito -, entende-se que tal argumento na situação em apreço não pode ser invocado, pois, não tem em conta a unidade do sistema jurídico processual-penal, elemento interpretativo relevante consagrado no referido artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil.
Conforme já se deixou dito e explicado, atenta a unidade de um tal sistema, não resulta que à Relação seja atribuída competência para apreciar e decidir de recurso exclusivamente de direito interposto de acórdão final do Tribunal Colectivo.
Antes, resulta, o contrário: desde logo, o aludido artigo 432.º, alínea d), na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, dispõe “recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito”.
Finalmente, quanto ao artigo 434.º do Código de Processo Penal (16) o mesmo refere-se tão-só à competência deste Supremo Tribunal, limitando-a, em regra, ao reexame de matéria de direito, e nada alude à competência da Relação, pelo que extrair dele consequência quanto a esta não se afigura aceitável.
4.
A menção ao disposto no artigo 725.º do Código de Processo Civil (17) afigura-se desapropriada na apreciação do objecto da presente fixação, nomeadamente, quando, em nome de uma pretensa unidade do sistema processual, se considera consagrado um recurso per saltum(18) também em processo penal e, assim, estabelecida a faculdade de recorrer para o Supremo Tribunal do acórdão final do Tribunal Colectivo que verse apenas matéria de direito.
Desde logo, porque o sistema de recursos em matéria penal é autónomo em relação ao processo civil, sem prejuízo da aplicação de normas deste “nos casos omissos” quando se “ harmonizem com o processo penal” (19), o que não é a situação.
Entender sem mais como caso omisso em processo penal o recurso per saltum e, por isso, recorrer às regras do processo civil que regulam a matéria seria esquecer a autonomia daquele e presumir uma intenção legislativa a partir do nada.
Por outro lado, afigura-se que não é possível presumir essa intenção a partir designadamente das normas constantes dos referidos artigos 427.º, 428.º, n.º 1, e 432.º, alínea d), do Código de Processo Penal.
Com efeito, para além do que já se deixou dito quanto àqueles preceitos legais, a disciplina do recurso per saltum no processo civil está especificadamente regulada, com expressa referência, nomeadamente, aos pressupostos da sua admissibilidade, reconhecimento do direito ao contraditório, alcance da decisão judicial tomada sobre a matéria e regime de subida do respectivo recurso.
Ora, se a intenção do legislador fosse a de consagrar igualmente um recurso per saltum em processo penal teria também regulado expressa e especificadamente um tal recurso nessa sede, à semelhança do que sucedeu em processo civil, em nome da necessária coerência do sistema jurídico.
O facto de assim não ter procedido leva-nos a concluir no sentido da inexistência de um recurso per saltum em processo penal.
Dito de outro modo, face ao nosso regime processual-penal, a absoluta ausência de uma regulamentação de um recurso per saltum obsta a que se entenda consagrado um tal recurso no âmbito daquele regime.
O recurso do acórdão final do Tribunal Colectivo que verse tão-só matéria de direito deve ser interposto directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, inexistindo, pois, qualquer faculdade de escolha do tribunal de recurso e, por isso, um verdadeiro e próprio recurso per saltum em processo penal: em tal situação o reexame da matéria de direito é da exclusiva competência do Supremo Tribunal.
Então, este tribunal não é chamado a intervir em virtude do exercício de uma faculdade da parte que lhe confere a possibilidade de escolher o Supremo Tribunal como tribunal de recurso e assim permitir que o recurso “salte” o Tribunal da Relação, que seria o normalmente competente, e é, do ponto de vista hierárquico, imediatamente superior ao Tribunal Colectivo e inferior ao Supremo Tribunal de Justiça.
5.
Elementos históricos relevantes consolidam o entendimento que se vem sufragando na presente fixação de jurisprudência.
Em primeiro lugar, há a referir o afirmado pelo Presidente da Comissão de Revisão do Código de Processo Penal de 1998, Professor Germano Marques da Silva, em sede parlamentar, quando aí, referindo-se a alterações em matéria de recurso, afirmou que:
“(…) A grande alteração neste domínio resulta da admissibilidade do recurso perante as relações de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, quando o recurso verse matéria de facto e de direito, pois se o recurso visar apenas o reexame da matéria de direito deve ser interposto directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, quando o julgamento em 1.ª instância seja, naturalmente, da competência do tribunal colectivo” (20).
A alteração deste entendimento sufragado pelo Presidente da Comissão de Revisão do Código exigiria uma explicitação em sentido contrário do legislador no texto legal, o qual debalde se encontra.
Em segundo lugar, ainda como elemento histórico relevante e em reforço da posição que se vem sufragando neste acórdão, cumpre referir a 16.ª Consideração da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, de que veio a resultar na Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que introduziu a revisão do Código de Processo Penal de 1998.
Aí se diz que:
“ (…) As alterações introduzidas em matéria de recursos não pretendem consagrar uma inversão de concepções básicas. Pelo contrário, continua a apostar-se em objectivos de economia processual, de eficácia e de garantia, só que através de instrumentos mais consistentes, adequados e dialogantes, obtidos a partir da reavaliação dos meios disponíveis, da tradição jurídica e da cultura prevalecente.
Assim:
a) Restitui-se ao Supremo Tribunal de Justiça a sua função de tribunal que conhece apenas de direito, com excepções em que se inclui a do recurso interposto do tribunal de júri; (21)

O declarado propósito de “não (…) inversão de concepções básicas”, “de economia processual” e “de eficácia”, com apelo à “tradição jurídica” e “cultura prevalecente”, bem como de restituir “ao Supremo Tribunal de Justiça a sua função de tribunal que conhece apenas de direito” só se ajusta de forma razoável com a orientação seguida na presente fixação de jurisprudência.
A outra posição aqui em confronto constituiria uma alteração radical de concepções básicas tradicionais no nosso sistema jurídico processual-penal.
Permitiria um terceiro grau de jurisdição, constitucionalmente inexigível (22) que protelaria o processo.
E conferiria ao Supremo Tribunal de Justiça uma competência mais limitada, quase residual, por, em virtude da dupla conforme, tal competência ficar limitada em grande medida à apreciação de crimes a que seja aplicável pena de prisão superior a oito anos (23).
Nestes termos, o constante da alínea d) da referida 16.ª Consideração da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII (24) não pode ter o alcance que alguns pretendem.
A expressão “recurso per saltum” aí empregue não o é em sentido técnico-jurídico, nos termos já aqui anteriormente explicitados.
Com ela pretende-se tão-só aludir à existência de um recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça quando no recurso está em causa tão-só matéria de direito.
Outro sentido exigiria uma outra explicitação legal, que inexiste no caso, sendo que, conforme resulta do que se deixou dito, da nossa apreensão do sistema jurídico-processual penal não decorre um recurso per saltum em sentido próprio. Bem pelo contrário, o que justifica que se tenha por inócua a aludida expressão usada pelo legislador referida 16.ª Consideração da Exposição de Motivos – as qualificações ou termos legais valem o que valem.
De igual modo, configura-se sem interesse para a presente fixação aquilo que consta das alíneas c), e) e f) da aludida 16.ª Consideração da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII (25)
A “intervenção do Supremo Tribunal de Justiça a casos de maior gravidade” decorre do disposto no artigo 432.º do Código de Processo Penal, já aqui aludido, sendo que nesse preceito legal expressamente se confere a este Supremo Tribunal competência para apreciar e decidir dos recursos de “acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito”.
Por outro lado, não se descortina que o entendimento aqui sufragado postergue o “uso discreto do princípio da «dupla conforme»”, “a ideia de diferenciação orgânica” e a pretendida ampliação dos “poderes de cognição das relações”.
Com a fixação de jurisprudência no sentido aqui preconizado continuará o uso da “dupla conforme”, bem como a diferenciação orgânica entre a Relação e o Supremo Tribunal de Justiça, sendo que os poderes de cognição daquele Tribunal continuam a ter-se por ampliados após a revisão do processo penal de 1998.
6.
A posição seguida na presente fixação de jurisprudência é a que melhor salvaguarda princípios constitucionalmente consagrados.
Desde logo, o princípio do juiz natural, reconhecido no n.º 9 do artigo 32.º da nossa Constituição (26)
Tal princípio, fundamental num Estado de Direito Democrático material, confere aos cidadãos o direito de serem julgados por um tribunal previsto como competente por lei anterior.
Mais, tal princípio impõe que «as normas, tanto orgânicas como processuais», contenham «regras que permitam determinar o tribunal que há-de intervir em cada caso em atenção a critérios objectivos, não sendo admissível que a lei autorize a escolha discricionária do tribunal ou tribunais que hão-se intervir no processo» (27)
Depois, o entendimento aqui expresso leva em conta o princípio de reserva de lei numa sua maior dimensão, princípio esse que, no que aqui releva, estabelece a reserva relativa da Assembleia da República quanto à matéria de fixação da competência jurisdicional (28)
Finalmente, a celeridade processual, sendo também um valor constitucional em sede de “processo criminal” (29) , melhor se alcança num recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça quando tal recurso verse apenas sobre matéria de direito do acórdão do Tribunal Colectivo.
Ao assim entender, evita-se, a ocorrência de um terceiro grau de jurisdição em certas situações, libertando tempo às Relações, designadamente para procederem a um efectivo reexame da matéria de facto, um dos desideratos principais da Reforma do Processo Penal de 1998.
Em suma, estamos convictos que a posição aqui seguida é a que melhor se ajusta à natureza pública da matéria em causa, na medida em que é a que mais se coaduna com os princípios constitucionalmente relevantes nesse domínio, acautelando, pois, melhor, nomeadamente, os princípios do juiz natural, de reserva lei e de celeridade processual.
7.
Com recurso a critérios de interpretação jurídica comummente aceites, fundados nos seus elementos literal, sistemático e teleológico, entende-se que do disposto nos indicados artigos 427.º e 432.º, alínea d), do Código de Processo Penal, este último na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, decorre que os recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, devem ser interpostos directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, termos em que deve ser fixada jurisprudência e, em consequência, revogado o acórdão recorrido, devendo os recursos interpostos por AA e pelo Ministério Público, constantes do processo n.º 956/06-5.ª Secção, serem apreciados e decididos por este Supremo Tribunal (artigo 445.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).

VI.
Decisão.

Pelo exposto,
1. concede-se provimento ao recurso interposto;
2. fixa-se a seguinte jurisprudência:
«Do disposto nos artigos 427.º e 432.º, alínea d), do Código de Processo Penal, este último na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, decorre que os recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, devem ser interpostos directamente para o Supremo Tribunal de Justiça»;
3. revoga-se o acórdão recorrido e, em conformidade com a jurisprudência ora fixada, determina-se que os recursos interpostos por AA e pelo Ministério Público, constantes no processo n.º 956/06-5.ª Secção, sejam apreciados e decididos por este Supremo Tribunal.

Dê-se observância ao disposto no artigo 444º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Sem custas.

Lisboa, 14 de Março de 2007.—António Joaquim da Costa Mortágua (relator)—António Silva Henriques Gaspar—António Artur Rodrigues da Costa—José Vítor Soreto de Barros—Armindo dos Santos Monteiro—João Manuel de Sousa Fonte—Arménio Augusto Malheiro de
Castro Sottomayor—António José Henriques dos Santos Cabral—António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes— Eduardo Maia Figueira da Costa—José Eduardo Reino Pires—António Pires Henriques da Garça—Alfredo Rui Francisco Gonçalves Pereira— Luís Flores Ribeiro—
José António Carmona da Mota— António Pereira Madeira (revendo posição anteriormente assumida)— Manuel José Carrilho de Simas Santos (vencido conforme declaração em anexo)— José Vaz dos Santos Carvalho.

Declaração de voto

Votei vencido pois mantenho o entendimento que expendi quer em diversos escritos, alguns referidos na nota 7 do douto acórdão que antecede.
Continuo a entender, como escrevi nos sumários de acórdãos por mim relatados (de 30 de Novembro de 2000, processo n.o 2791/00-5, de 22 de Fevereiro de 2001, processo n.o 3829/00-5, de 10 de Maio de 2001, processo n.o 689/01-5, de 22 de Novembro de 2001, processo n.o 2742/01-5, e de 6 de Dezembro de 2001, processo n.o 3533/01-5): «1—Interposto um recurso de decisão final do
tribunal colectivo que visa exclusivamente o reexame da matéria de direito para o Tribunal da Relação, deve ser este e não o Supremo Tribunal a conhecê-lo.
2—Com efeito, a revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.o 59/98, de 25 de Agosto,
não acolheu o entendimento de os recursos de decisões finais do tribunal colectivo restritos à matéria
de direito têm de ser necessariamente dirigidos ao Supremo Tribunal de Justiça e por este conhecidos por falecer competência para tal às relações.
3—Na verdade, a possibilidade de recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo visando exclusivamente o reexame de matéria de direito [alínea d) do artigo 432.o do Código de Processo Penal] não impede a Relação de conhecer dos recursos de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo restritos ao reexame de matéria de direito (no dizer do artigo 411.o, n.o 4, do Código de Processo Penal).
4—Com a revisão efectuada pela Lei n.o 59/98: Foi consagrado o recurso das decisões de 1.a instância para a Relação como regime regra, apenas com a excepção do recurso directo para o Supremo das decisões finais do tribunal do júri, excepção que não abrange o recurso per saltum para o Supremo Tribunal quando se impugnam decisões extraídas pelo tribunal colectivo (artigo 427.o do Código de Processo Penal); Reconheceu-se o princípio de atribuir às relações
competência para conhecer dos recursos restritos à matéria de direito, mesmo que se trate de recursos de decisões finais do tribunal colectivo (cf. artigos 414.o, n.o 7, e 428.o, n.o 1, do Código de Processo Penal); Com o intuito de aproximação de tal regime com o que está concebido para o processo civil, significativo da ideia de harmonização de sistemas que se completam:
Abriu-se um caminho processual que propicia a possibilidade de discussão, sem limites, dos vícios referidos no n.o 2 do artigo 410.o do Código de Processo Penal, e viabiliza um efectivo 2.o grau de recurso; Transferiu-se para a tramitação unitária (comum às relações e ao Supremo) a disposição, anteriormente exclusiva deste último, que previa a possibilidade de alegações escritas nos recursos restritos à matéria de direito (anterior artigo 434.o, n.o 1, e actual artigo 411.o, n.o 4, do Código de Processo Penal); Consagrou-se o recurso per saltum das decisões finais do tribunal colectivo restrito à matéria de direito, como expediente impugnatório que, como o próprio nome indica, permite que se salte sobre o tribunal normalmente competente, o que pressupõe que o tribunal ultrapassado (no caso a Relação) tem também essa competência.»
Manuel Simas Santos.

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(1) Cf. de fl. 2 a fl. 4 dos autos.
(2) Cf. fls. 19 e 20 do processo.
(3) Cf. de fl. 38 a fl. 40 dos autos.
(4) Cf. de fl. 43 a fl. 60 do processo.
(5) Cf. de fl. 62 a fl. 100 dos autos.
(6) Recorde-se que o requerido propõe também que seja fixada jurisprudência no sentido de que «quando da [. . .] decisão» final do tribunal colectivo «seja também interposto recurso que vise o reexame da matéria de facto» o tribunal da relação «é competente [. . .] para dele conhecer».
(7) Cf. fls. 14 e 15 dos autos. No mesmo sentido, entre muitos outros acórdãos, citam-se os deste Supremo Tribunal de 18 de Outubro de 2000, processo n.o 2193/00-3.a; de 10 de Maio de 2001, processo n.o 689/01-5.a; de 21 de Junho de 2001, processo n.o 1298/01-5.a; de 22 de Novembro de 2001, processo n.o 2742/01-5.a; de 5 de Dezembro de 2001, processo n.o 2986/01-3.a; de 6 de Dezembro de 2001, processo
n.o 3533/01-5.a; de 10 de Janeiro de 2002, processo n.o 4107/01-5.a; de 24 de Janeiro de 2002, processo n.o 130/02-5.a; de 24 de Janeiro de 2002, processo n.o 4299/01-5.a; de 10 de Abril de 2002, processo
n.o 150/02-3.a; de 11 de Abril de 2002, processo n.o 978/02-5.a; de 15 de Maio de 2002, processo n.o 1681/02-3.a; de 19 de Junho de 2002, processo n.o 1541/02-3.a; de 4 de Julho de 2002, processo
n.o 2357/02-5.a; de 10 de Julho de 2002, processo n.o 1556/02-3.a; de 9 de Outubro de 2002, processo n.o 2796/02-3.a; de 23 de Outubro de 2002, processo n.o 3113/02-3.a; de 6 de Março de 2003, processo
n.o 256/03-3.a; de 24 de Setembro de 2003, processo n.o 2127/03-3.a; de 16 de Outubro de 2003, processo n.o 2719/03-5.a; de 26 de Janeiro de 2006, processo n.o 273/06-5.a; de 9 de Fevereiro de 2006, processo
n.o 109/06-5.a; de 14 de Março de 2006, processo n.o 778/06-5.a; de 14 de Setembro de 2006, processo n.o 2421/06-5.a; de 21 de Setembro de 2006, processo n.o 2658/06-5.a; de 28 de Setembro de 2006, processo
n.o 3107/06-5.a, e de 19 de Outubro de 2006, processo n.o 3522/06-5.a Também no mesmo sentido Simas Santos e Leal-Henriques, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, 2001, O Novo Código e
os Novos Recursos, pp. 786 a 790, e Recursos em Processo Penal, 2002, pp. 125 a 127.
(8) Relatado pelo aqui relator.
(9) Cf. de fl. 31 a fl. 35 dos autos. No mesmo sentido, entre muitos outros acórdãos, citam-se os deste Supremo Tribunal de 17 de Outubro de 2001, processo n.o 1573/01-3.a; de 24 de Outubro de 2001, processo n.o 679/01-3.a; de 22 de Novembro de 2001, processo n.o 2258/01-5.a; de 16 de Janeiro de 2002, processo n.o 3059/01-3.a; de 20 de Fevereiro de 2002, processo n.o 4210/02-3.a; de 21 de Fevereiro de 2002, processo n.o 3023/01-5.a; de 29 de Janeiro de 2003, processo n.o 4088/02-3.a; de 12 de Fevereiro de 2003, processo n.o 3725/02-3.a; de 22 de Maio de 2003, processo n.o 867/03-5.a; de 29 de Maio de 2003, processo n.o 1104/03-5.a; de 1 de Outubro de 2003, processo n.o 1658/03-3.a; de 29 de Outubro de 2003, processo n.o 1494/03-3.a; de 14 de Janeiro de 2004, processo n.o 3163/03-3.a; de 24 de Março de 2004, processo n.o 4422/03-3.a, e de 20 de Setembro de 2006, processo n.o 1920/06-3.a Na doutrina, a mesma posição é defendida por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2000, pp. 365 e 369, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Comentado e Anotado, 2005, pp. 879 a 881, e José Manuel Vilalonga, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Direito de Recurso em Processo Penal, 2004, p. 377.
(10) Sob a epígrafe «Interpretação da lei», o artigo 9.o do Código Civil dispõe que:
«1—A interpretação não deve cingir-se à letra da lei mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2—Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3—Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»
(11) Cf., entre muitos outros, Inocêncio Galvão Telles, Introdução do Estudo do Direito, vol. I, 1999, pp. 235 a 239, e José de Oliveira Ascensão, O Direito—Introdução e Teoria Geral, 2005, pp. 391 e 392.
(12) Segundo o n.o 4 do referido artigo 411.o, na redacção da Lei n.o 59/98, de 25 de Agosto: «No requerimento de interposição de recurso restrito a matéria de direito, ou até ao exame a que se refere o artigo 417.o, o recorrente pode requerer que, havendo lugar a alegações, elas sejam produzidas por escrito.»
(13) Cf. o artigo 434.o, n.o 1, do Código de Processo Penal na redacção anterior à Lei n.o 59/98, de 25 de Agosto, e as epígrafes dos capítulos II e IV do título I («Dos recursos ordinários») do livro IX («Dos recursos») do Código de Processo Penal.
(14) O n.o 7 do artigo 414.o, na redacção da Lei n.o 59/98, de 25 de Agosto, dispõe que, «[h]avendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente».
(15) Dispõe aí que «[a]s relações conhecem de facto e de direito».
(16) Na redacção da Lei n.o 59/98, de 25 de Agosto, preceitua-se que «[s]em prejuízo do disposto no artigo 410.o, n.os 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito».
(17) Nos termos do artigo 725.o do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.o 180/96, de 25 de Setembro:
«1—Quando o valor da causa ou da sucumbência, nos termos do n.o 1 do artigo 678.o, for superior à alçada dos tribunais judiciais de 2.a instância e as partes, nas suas alegações, suscitarem apenas questões de direito, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 721.o e dos n.os 1 e 2 do artigo 722.o, pode qualquer delas, não havendo agravos retidos que devam subir nos termos do n.o 1 do artigo 735.o, requerer nas conclusões que o recurso interposto de decisão de mérito proferida em 1.a instância suba directamente ao Supremo
Tribunal de Justiça.
2—O juiz ouvirá a parte contrária sempre que esta não haja tido oportunidade de se pronunciar, em alegação subsequente, sobre o requerimento a que alude o número anterior.
3—A decisão do juiz que indefira o requerido e determine a remessa do recurso à Relação é definitiva.
4—Se, remetido o processo ao Supremo Tribunal de Justiça, o relator entender que as questões suscitadas ultrapassam o âmbito da revista, determina que o processo baixe à Relação a fim de o recurso aí ser processado, nos termos gerais, como apelação; a decisão do relator é, neste caso, definitiva.
5—Se o relator admitir o recurso para ser processado como revista, pode haver reclamação para a conferência, nos termos gerais.
6—No caso de deferimento do requerimento previsto no n.o 1, o recurso é processado como revista, salvo no que respeita ao regime de subida e efeitos, a que se aplicam os preceitos referentes à apelação.»
(18) No sentido técnico-jurídico aqui empregue, o recurso per saltum caracteriza-se pela possibilidade concedida a uma das partes ou às partes de «saltar» sobre o tribunal normalmente competente para conhecer do recurso, atribuindo, pois, este à apreciação de um tribunal superior ao normalmente competente—cf. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, 2001, pp. 280 e 281, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, pp. 494 e 495, e Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2003, pp. 129 a 131.
(19) Cf. o artigo 4.o do Código de Processo Penal: «Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.»
(20) Cf. o Código de Processo Penal, Processo Legislativo, vol. II, t. II, 66.
(21) Cf. o Código de Processo Penal, Processo Legislativo, vol. II, t. I, 20.
(22) O artigo 32.o, n.o 1, da Constituição da República Portuguesa, na redacção da Lei Constitucional n.o 1/97, de 20 de Setembro, dispõe que «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso», o que tem sido unanimemente entendido pela 3690 Diário da República, 1.a série—N.o 107—4 de Junho de 2007 doutrina e jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de que tal implica o direito a um grau de recurso em termos amplos, abrangendo questões de direito e facto—cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t. I, 2005, p. 355. Na jurisprudência do Tribunal Constitucional, entre muitos outros, v. os Acórdãos n.os 189/01, processo n.o 168/01-1.a, de 3 de Maio de 2001; 377/03, processo n.o 202/03, de 15 de Julho de 2003; 264/04, processo n.o 369/04-3.a, de 15 de Abril de 2004; 640/2004, processo n.o 909/03-3.a, de 12 de Novembro de 2004; 2/2006, processo n.o 954/05-2.a, de 3 de Janeiro de 2006; 64/06, processo n.o 707/05-Plenário, de 24 de Janeiro de 2006, e 140/06, processo n.o 601/05-2.a, de 21 de Fevereiro de 2006.
(23) Cf. artigo 400.o, n.o 1, alíneas e) e f), do Código de Processo Penal.
(24) Segundo a referida alínea d), com as alterações propostas, «admite-se o recurso per saltum, justificado pela medida da pena e pela limitação do recurso a matéria de direito»—Código de Processo Penal, Processo Legislativo, vol. II, t. I, 20.
(25) Aí refere-se que com a reforma de 1998:
«c) Faz-se um uso discreto do princípio da ‘dupla conforme’, harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade;
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
e) Retoma-se a ideia de diferenciação orgânica, mas apenas fundada no princípio de que os casos de pequena ou média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça;
f) Ampliam-se os poderes de cognição das relações, evitando-se que decidam por sistema em última instância.»
(26) Estabelece-se aí, na redacção da Lei Constitucional n.o 1/97, de 20 de Setembro, que «[n]enhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior».
(27) Cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in ob. cit., p. 363. No mesmo sentido, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1984, p. 323, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, 2000, p. 54.
(28) Cf. o artigo 165.o, n.o 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa, na redacção da Lei Constitucional n.o 1/97, de 20 de Setembro, que preceitua: «É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
p) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos.»
No mesmo sentido quanto ao princípio de reserva de lei v. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2002, pp. 256 e 836.
(29) O artigo 32.o tem por epígrafe «Garantias de processo criminal» e o seu n.o 2, na redacção da Lei Constitucional n.o 1/82, de 30 de Setembro, dispõe que «[t]odo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».