Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | DOMÍNIO HÍDRICO DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO PROPRIEDADE PRIVADA CONFLITO DE INTERESSES INTERPRETAÇÃO DA LEI INTERPRETAÇÃO LITERAL ÓNUS DA PROVA TÍTULO DE AQUISIÇÃO | ||
Data do Acordão: | 11/30/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
Sumário : | I - No âmbito do regime previsto no artigo 15º, nº 2, da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro (que estabelece a titularidade dos recursos hídricos), na redação atual dada pela Lei nº 34/2014, de 19 de junho, pretendendo o interessado obter o reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de demonstrar, além da sua titularidade, que aqueles terrenos eram objeto de propriedade particular ou comum, antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas, por título legítimo (à luz do Código Civil de Seabra), não sendo necessária a prova de toda a história de transmissões do bem e do reatamento do trato sucessivo até ao momento presente. II - O entendimento amplo do preceito, segundo o qual o particular interessado deve fazer prova que o terreno permaneceu na condição de “propriedade privada” desde 1864 até ao momento atual, para além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9º, nº 2, do Código Civil), não está de acordo com a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), nem é exigido pela razão de ser do regime jurídico em causa, que teve por objetivo a proteção de direitos adquiridos. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça 1. AA, em seu nome e na qualidade de Cabeça-de-Casal da herança aberta por óbito de BB, CC, DD e cônjuge EE, intentaram ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra o Estado Português, pedindo a condenação deste no reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sobre a faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do ... (...), que incide sobre o prédio misto, denominado “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ... da freguesia de ..., e sobre o prédio misto sito na Quinta..., freguesia de ..., concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...77 da freguesia de .... Para tanto, alegaram, em síntese útil, que: os mencionados prédios, que confrontam a Norte com o ..., foram adquiridos pelos Autores por escritura pública de compra e venda outorgada em 15/06/1987; e os Autores adquiriram aqueles prédios na sequência do trato sucessivo de titulares privados que exerceram a sua posse sobre os mesmos desde data anterior a 31/12/1864. O Ministério Público, em representação do Estado Português, contestou por impugnação, alegando, em síntese útil, que: pelo menos na referida data de 31/12/1864, a propriedade do imóvel denominado “...” era da Fazenda Nacional que tinha o domínio direto e era a senhoria do mesmo; e propriedade do imóvel denominado “...” era da Fazenda Nacional por esta se arrogar sua proprietária. Foi proferido despacho saneador, tendo sido fixado o objeto do litígio e os temas de prova. Após ter sido realizada audiência final, foi proferida sentença, que julgou a ação parcialmente procedente, tendo sido decidido: “a) condenar o Réu Estado Português, a reconhecer o direito de propriedade dos Autores AA, CC e DD e cônjuge EE, sobre a faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do ... e que incide sobre o prédio misto, sito na Quinta..., freguesia de ..., concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...46 da freguesia de ...; b) absolver o Réu do demais peticionado pelos AA.”. 2. Inconformados com tal sentença, vieram os Autores e o Réu dela interpor recurso de apelação, aqueles, na parte em que o Réu foi absolvido do “demais peticionado”; e este, na parte em que foi condenado, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa decidido julgar: «1º - a apelação interposta pelos apelantes AA, em seu nome e na qualidade de Cabeça-de-Casal da herança aberta por óbito de BB; CC; DD e cônjuge EE improcedente, e, em consequência, em manter o decidido na alínea b) do dispositivo da sentença recorrida; 2º - a apelação interposta pelo Estado Português improcedente, e, em consequência, em manter o decidido na alínea a) do dispositivo da sentença recorrida». 3. Novamente inconformado, veio o recorrente Estado Português interpor recurso de revista excecional, invocando a al. c) do n.º 1 do artigo 672.º, protestando juntar acórdão-fundamento: Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08-02-2018 (Processo nº 1704/15.9T8PTM.E1). A questão fundamental de direito que indica como objeto do recurso de revista excecional é a seguinte: «A questão fundamental de direito colocada consiste em saber se o disposto no art.º 15.º da Lei nº 54/2005, de 15-11 (na redacção da Lei nº 34/2014, de 19-06) no seu n.º 2 (correspondente ao nº 1 original), exime o particular da obrigatoriedade de fazer prova, não só de que os bens sobre os quais pretenda ver reconhecida a sua propriedade se encontravam sob propriedade particular antes de 31-12-1864, ou 22-03-1868, mas também de que os mesmos permaneceram nessas circunstâncias ininterruptamente até à data actual». Nesta sequência, vieram os autores apresentar contra-alegações e interpor recurso de revista excecional subordinado, pugnando para que, mesmo que o Supremo Tribunal de Justiça venha a aplicar ao caso vertente a orientação do acórdão-fundamento, ainda assim decida que o prédio em litígio pertence aos autores, com base no regime da enfiteuse, que confere ao foreiro, “verdadeiro senhor do prédio”, o direito de propriedade, ainda que imperfeita. 4. Tendo a Relatora enviado o processo à Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, para o efeito de indagação dos pressupostos específicos da revista excecional, veio esta Formação, por acórdão de 22 de junho de 2021, a decidir o seguinte: «a) Admite-se a revista excecional interposta pelo Estado português; b) Não se admite a revista excecional subordinada interposta pelos AA.» 5. O recorrente Estado português formulou as seguintes conclusões na sua alegação de recurso: «1 - A questão fundamental de direito colocada consiste em saber se o disposto no art. art.º 15.º da Lei nº 54/2005, de 15-11 (na redacção da Lei nº 34/2014, de 19-06) no seu n.º 2 (correspondente ao nº 1 original), exime o particular da obrigatoriedade de fazer prova, não só de que os bens sobre os quais pretenda ver reconhecida a sua propriedade se encontravam sob propriedade particular antes de 31-12-1864, ou 22-03-1868, mas também de que os mesmos permaneceram nessas circunstâncias ininterruptamente até à data actual. 2 - No Acórdão recorrido decidiu-se que: Resulta do nº 2 do art. 15º da Lei nº 54/2005, de 15/11, na actual redacção (correspondente ao nº 1 de tal preceito, na redacção inicial), que o interessado que pretenda obter o reconhecimento da propriedade sobre parcela de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis tem apenas que provar, para além de ser o actual proprietário, que essa parcela de terreno era, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868, não se exigindo a prova da propriedade privada do terreno, de forma ininterrupta, desde aquelas datas, conforme o caso, até à data actual. 3 - Pelo contrário, são vários os Acórdãos proferidos, sobre a mesma questão de direito, que decidiram em sentido contrário ao do Acórdão recorrido. 4 - É o caso do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08-02-2018 (Processo nº 1704/15.9T8PTM.E1 - Relatora Maria Domingas Simões), cujo sumário é o seguinte: Compete ao autor demonstrar e provar a originária propriedade privada do bem e a posterior manutenção do bem nessa condição; assim sendo, a presunção de dominialidade terá que ser afastada relativamente a toda a 'história' do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio público; ora, como o ónus da prova recai, de forma absoluta, sobre o autor, este terá que demonstrar que o bem foi e continua a ser propriedade privada. 5 - É também o caso do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-03- 2020 (Processo nº 1925/13.9T2AVR.P1 – Relator Miguel Baldaia de Morais), em cujo sumário se afirma:
IV – Para a demonstração da propriedade privada sobre margem de águas públicas, o citado diploma, no seu artigo 15º, estabeleceu, a título principal, um critério geral de prova e, a título subsidiário, regimes probatórios especiais.
V – Esta prova documental deverá sustentar não só que a parcela de terreno se encontrava na propriedade de particulares antes de se estabelecer a presunção de dominialidade, mas também que a mesma nunca saiu da esfera privada, atendendo a que a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a história do bem.
VI - De acordo com esse critério geral, sobre o particular que pretenda ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre determinada parcela de terreno recai o ónus de comprovar documentalmente que a mesma ingressou antes de 31 de Dezembro de 1864 (ou 22 de março de 1868) no domínio privado dos particulares por título legítimo, tendo por referência o regime jurídico vigente à altura do acto ou facto jurídico dos quais emerge o direito de propriedade privada reclamada, ou seja, o regime anterior à vigência do Código Civil de 1867.
6 - Os Acórdãos divergentes foram proferidos no âmbito da mesma legislação, já citada acima: nº 2 do art. 15º da Lei nº 54/2005, de 15/11, na actual redacção (correspondente ao nº 1 de tal preceito, na redacção inicial). 7 - Conclui-se, pois, que, no âmbito da mesma legislação, foram encontradas soluções opostas para a mesma questão de direito, acima enunciada, por parte do Acórdão recorrido e do Acórdão-fundamento. 8 - O objecto do presente recurso cinge-se à discordância sobre a conclusão de direito a que chegou o Acórdão recorrido quanto à interpretação do art. 15º, nº 2 da Lei nº 54/2005, de 15-11, no sentido de isentar o Autor/Apelante da prova da propriedade privada sobre a faixa de terreno com a largura de 50 metros, contada desde o leito do ... e que incide sobre o prédio misto Quinta... (cuja propriedade pretenda ver reconhecida por parte do Estado), de forma ininterrupta, desde 31 de Dezembro de 1864 (ou 22 de março de 1868) até à data actual, conclusão essa que conduziu à condenação do Estado a reconhecer a referida propriedade. 9 - A prova da propriedade privada da dita parcela desde as datas em referência até à data actual é exigível, recaindo sobre o Autor/Apelante o ónus da mesma. 10 - A interpretação do art. 15º, nº 1 e nº 2 a) (versão original), a qual confina com o tema do presente recurso, já foi objecto de apreciação por parte do Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 326/2015, de 23-06-2015, publicado no D. R. 146/2015, Série II – 29-07-2015. 11 - Parte-se, desde logo, do disposto no art. 84º, nº 1 a) da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual Pertencem ao domínio público: a) As águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis com os respectivos leitos. 12 - Da posição assumida pelo Tribunal Constitucional no referido Acórdão, embora não versando especificamente o objecto do presente recurso, retira-se que o disposto no art. 15º, nº 2 da Lei nº 54/2005 (em vigor) constitui uma excepção à regra constitucional do domínio público dos terrenos aí referidos, e como excepção deve encarar-se. 13 - Ou seja, o preceito em causa visa assegurar (restritos) direitos já adquiridos pelos particulares, com o intuito de os não prejudicar; não visa facilitar a expansão da titularidade privada ao arrepio da regra constitucional. 14 - O referido preceito deve, pois, ser interpretado à luz desta exigência constitucional e legal. 15 - Tal exigência é compreensível, justificada e compatível com o princípio da proporcionalidade subjacente a toda a interpretação e aplicação do direito. 16 – E apenas se cumpre se couber ao particular o ónus de provar todos os elementos dos quais dependa o reconhecimento do seu direito, e não apenas uma parte, como pretende o Acórdão recorrido. 17 - A redacção do art. 15º, nº 2 da Lei nº 54/2005 é bem clara quanto à exigência de prova documental, ou seja, totalmente objectiva, quanto ao requisito da natureza privada do bem numa das datas nele referidas, sendo precisamente esse o seu escopo: garantir que não se suscitem dúvidas probatórias quanto a este requisito. 18 - Não se refere o preceito – e não tinha de se referir – à totalidade dos requisitos substantivos para o reconhecimento do direito que o Autor pretende fazer valer na acção, e que só a ele compete provar, já que os mesmos decorrendo sistema jurídico-legal considerado no seu todo. 19 - Nomeadamente, não se refere o preceito – e não tinha de se referir, face, nomeadamente, à conjugação da sua letra com a letra do nº 3 do citado art. 15º – à necessidade de o particular (Autor) provar que o bem se manteve privado entre as datas em referência e a actualidade. 20 – Tal requisito, embora indispensável e, por isso, resultante da aplicação da conjugação das normas legais aplicáveis, não é excluído pelo elemento literal do preceito sob apreciação. 21 -Atese do Acórdãorecorrido radica no pressuposto, pacífico, danecessidade de provar que o bem se manteve sem interrupções no âmbito da propriedade privada, ou seja, sem «que tenha ingressado, depois daquelas datas e por um qualquer motivo admissível, no domínio público». 22 - Ora, o possível ingresso do bem no domínio público não é um facto impeditivo, cuja prova caberá àquele contra quem a invocação foi feita (art. 342º, nº 2 do C. Civil). 23 - Trata-se, sim de um facto constitutivo do direito do Autor, sobre quem, nos termos do art. 342º, nº 1 do C. Civil, recai o ónus da prova – no caso o de provar, pela afirmativa, que a situação do bem foi contínua ao longo do período em referência, pois tal facto integra a esfera (embora não o núcleo) do direito que pretende fazer valer. 24 - A prova a produzir pelo Autor sobre os factos constitutivos em causa não tem forçosamente de ser documental – pois a tal não obrigará o art. 15º, nº 2 da Lei 54/2005 (redacção actual), - podendo consistir em elementos sumários de outra natureza ou de carácter aproximativo. Aí sim, caberá ao réu, fazer a contraprova, se for caso disso, através de elementos mais sólidos. 25 - Deste modo, considera-se inclusivamente menos árduo encontrar elementos probatórios para a sequência cronológica do bem, quanto à sua natureza privada, do que os documentos relativos às datas precisas a que se refere o preceito cuja interpretação se discute. 26 - O conjunto de elementos probatórios exigidos para fazer valer a posição do Autor apenas como um todo incindível faz sentido, recaindo sobre este todo o ónus da prova. 27 - A cisão operada pela decisão recorrida entre dois segmentos no conjunto deelementos probatórios exigido, criadapara proceder aumarepartiçãodoónus da prova quanto à qual o diploma legal aplicável é omisso, não é admissível quer à luz de uma interpretação literal, quer à luz de uma interpretação sistemática ou teleológica. 28 - Não se encontra completa a causa de pedir invocada pelo Autor, a qual se circunscreve à titularidade, em data anterior a 31-12-1864, do direito de propriedade particular sobre a faixa de terreno denominada Quinta..., por não comportar o facto de, após tal data e até à actualidade, ter a mesma permanecido com essa natureza, sem que tivesse de algum modo entrado no domínio público. 29 - Neste contexto, e inversamente ao que consignou a decisão recorrida, reputa-se relevante o facto de o imóvel em referência, devido a demanda judicial que teve como sentença a passagem do morgado para a coroa, em 1802, ter estado fora da propriedade privada, facto que, aliás, o Autor/Apelante admitiu no art. 27º da petição inicial. 30 – O Acórdão recorrido, na parte que constitui o objecto do presente recurso, fez incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos arts.15º, nºs 2 e 3 da Lei nº 15/2005, de 15/11 (redacção actual) e 342º do C. Processo Civil, pelo que, na mesma parte, deve ser revogado e substituído por outro que absolva o Estado». 6. Os autores, recorridos, apresentaram contra-alegações, nas quais pugnam pela manutenção do decidido. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação A – Os factos As instâncias fixaram a seguinte factualidade provada: «1- Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...03, da freguesia de ..., o prédio, na mesma descrição caracterizado como: urbano com a área de 38.500,00m2, composto pelos artigos...57, ...58, ...59, ...93, ...94, ...95 e ...96 da ..., ... e ... e pelo artigo …8 da Secção X da ... da referida freguesia. 2 - Pela apresentação n.º ...9 de 18/10/1988 foi inscrita a favor dos Autores a aquisição do prédio acima referido, na proporção de 1/5 para os Autores CC, DD e mulher EE e 3/5 para o Autor AA e mulher BB. 3 - O prédio acima identificado tem implantado um edifício com a área de 30,42 m2 (artigo urbano 257), um edifício com a área de 66,96 m2 (artigo urbano 258), um edifício com a área de 128,00 m2 (artigo urbano 259), dois barracões com a área de 534 m2 (artigo urbano 293), uma barraca com a área de 55 m2 (artigo 294), um barracão com a área de 425 m2 (artigo urbano 295), dois fornos de cal e um telheiro com a área de 208 m2 (artigo urbano 296). 4 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...30, da freguesia de ..., o prédio, na mesma descrição caracterizado como: misto com a área aproximada de 30.000,00m2, composto pelo artigo ... da ..., ... e ... e pelo artigo...8 da ... da referida freguesia. 5 - Pela apresentação n.º ...9 de 18/10/1988 foi inscrita a favor dos Autores a aquisição do prédio acima referido, na proporção de 1/5 para os Autores CC, DD e mulher EE e 3/5 para o Autor AA e mulher BB. 6 - O prédio acima identificado tem implantado um armazém com uma dependência, com a área de 1.000,00 m2, omisso na matriz. 7 - No dia 15 de Junho de 1987, no ... Cartório Notarial de ..., foi celebrada escritura pública denominada de “Compra e Venda”, na qual constam como compradores os Autores e como vendedora a sociedade “Ariex – Areias do Tejo Reunidas, Lda., Lda.”, declarando esta vender aos Autores os imóveis acima identificados. 8 - Os prédios acima identificados são confinantes e confrontam a norte com o .... 9 - O ... é constituído por águas navegáveis. 10 - Os Autores têm instalados nos prédios em causa nos presentes autos estaleiros de construção e reparação naval. 11 - A actividade de construção e reparação naval é realizada nos prédios acima mencionados há várias décadas. 12 - O prédio identificado no ponto 1 encontra-se descrito no Livro nº ... com o nº ...98 o qual foi desanexado do prédio descrito sob o nº ...31, a fls. 23 do Livro ..., da .... 13 - Consta da descrição predial nº ...31, a fls. 23 do Livro ... que II celebrou com a Fazenda Nacional, relativamente ao prédio em causa, “... denominada da ...”, com (...) casas de habitação, adega e outras casas de officina de lavoura (...) por escriptura de renovação, lavrada nas notas do tabeliãoFF d´este julgado do ... em data de 29 de Outubro de 1864, por nomeação, que dele lhe fez em verba testamentária seu padrasto GG”. 14 - Foi celebrada “escriptura de renovação de vidas com hypotheca”, outorgada no “anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos sessenta e quatro aos vinte e nove dias do mez de Outubro nesta Villa do ...”, da qual consta “…aqui presentes de uma parte o HH (…) ..., cavaleiro da ..., administrador (…), como representante da Fazenda Nacional, autorizado por Despacho do Digníssimo Delegado do Tesouro Público, (…) e da outra (…) II, casado, primeiro oficial na reserva e morador (…) e, por ele (…) HH (…) ... (…) que pela extinção do ... foi incorporado à Fazenda Nacional um prazo de vidas de livre nomeação no qual foi (…) vida GG (…), padrasto do segundo (…) cedeu o direito de conservação: o qual prazo consta de uma ... denominada da ..., lugar ... do ... deste julgado e concelho e se compõe de casa de habitação, adega (…). O referido prazo foreiro à Fazenda Nacional (…). Este foreiro (…) pagarão à Fazenda Nacional, de foro em cada ano (…).” 15 - O prédio identificado no ponto 4 encontra-se descrito no Livro nº ... com o n.º ...36, o qual advém do prédio descrito sob o nº ..., a fls. 28 v. do Livro ..., da ..., o qual foi inscrito com o nº ....36 16 - Da referida descrição predial consta que a “... denominada do ..., situada na freguesia de ... d´... do concelho do ..., composta de casa de habitação e alguma vinha e árvores de ..., que confronta pelo Norte com o ..., pelo Nascente com a Quinta da ..., e pelo ... e ... com terra do ... (…) constitui um prazo foreiro em 42$000 reis annuaes”. 17 - Consta do averbamento nº 1 “do prédio acima descripto denominado “Quinta...” consta (…) de um chalet para habitação, casa para caseiro, palheiro, e pateos para animais, abegoaria, adega com lagariças, pomar, terra para horta, vinha, dois poços com engenho, tendo cada um barracão coberto de telha e um morro d´areia para construções, em exploração (…) ”. 18 - Encontra-se na inscrição predial nº ... que o ora mencionado prédio foi inscrito por força de “uma certidão authentica extraída em 11 do dito mez e anno pelo escrivão do juízo de direito d´esta comarca, JJ, dos autos cíveis da acção ordinária intentada por contra a Fazenda Nacional para haver o domínio pleno do prédio ... descripto a fls. 28 v. do ... desta conservatória, por este fazer parte do vínculo instituído por LL ou MM em 18 de junho de 1544 (…)”. 19 - Consta dos autos cíveis da acção ordinária intentada por NN contra a Fazenda Nacional “para haver o domínio pleno do prédio ...51, descrito a fls. 28 v. do ... desta conservatória (Quinta...), o referido NN logrou provar que “ Dona ... (…) MM instituiu em dezoito de junho de mil quinhentos e quarenta e quatro vínculo da terça (...) que o vínculo foi constituído na ... denominada do ... (…) que em oito de Novembro de mil setecentos e sessenta e quatro (…) OO (…) reconheceu o vínculo referido por senhor directo da Quinta... (…) que os administradores (…) de OO (…) pagavam continuada e sucessivamente aos administradores do vínculo de LL o foro annual de quarenta e dois mil reis e estes sempre foram reputados publica e geralmente desde o referido afforamento como directos senhores da Quinta... (…) que o Autor era legítimo administrador e possuidor dos bens do vínculo instituído por LL e como tal reconhecido por todos geralmente, sem contradição alguma (…) que o autor desde que sucedeu na administração do vínculo de LL (…) ano de mil oitocentos e cinquenta e sete, sempre recebeo o dito foro de quarenta e dois mil reis das pessoas que possuiam e gozavam do domínio util da ... (…) que a Fazenda Nacional se apoderou então da ... e a tem disfrutado como sua por intervenção de seus rendeiros e nunca pagou foros ao autor e tem tentado vendela como livre do foro e com injuria dos direitos do autor”. 20 - É mencionado no testamento de Dona PP, de 2 de Abril de 1597, que a mesma deixou o prédio identificado em 1 ao .... 21 - As Ordens Religiosas foram extintas no dia 30 de Maio de 1834, sendo os respectivos bens incorporados na Fazenda Nacional. 22 - A Fazenda Nacional levou à praça o prédio referido no ponto 1, nos dias 14 de Dezembro de 1865, 7 de Abril de 1870 e 30 de Maio de 1870, sem que o mesmo fosse arrematado. 23 - O prédio ora mencionado foi arrematado por QQ em 4 de Outubro de 1870, depois de ter ido à praça. 24 - A Fazenda Nacional não contestou a acção no prazo, previsto à data, de “trez audiências”, tendo sido proferido despacho pelo ... a fixar um prazo diverso – quatro meses – para o efeito. 25 - NN interpôs recurso de agravo do despacho do ... para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando a improrrogabilidade do prazo para contestar. 26 - Por Acórdão proferido em 02 de Maio de 1871, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que “os prazos marcados na lei do processo para apresentação dos articulados, são fataes, não podendo assim ser alterados pelos julgadores” e que “a Nova Reforma Judicial não concede à Fazenda Pública privilégio algum a tal respeito, ficando assim equiparado a qualquer outro litigante”, revogando o despacho recorrido. 27 - A Fazenda Nacional interpôs recurso de Revista do Acórdão proferido pela Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi conhecido por aquele Tribunal. 28 - Foi celebrada escritura de compra e venda, datada de 26 de Agosto de 1881, que teve como objecto o prédio descrito no ponto 4, da qual consta “que o designado prédio veio à posse de” RR “em disposição testamentária de seu tio NN, de cuja herança pagou a competente contribuição.”»
B – O Direito 1. Os Autores intentaram a presente ação com o objetivo de obter a declaração de que, por si e ante possuidores, são proprietários e possuidores, desde data anterior a 31 de dezembro de 1864 e até ao presente, da faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do ... (...), que incide sobre os prédios mistos: (i) denominado “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...77 da freguesia de ...; (ii) sito na Quinta..., freguesia de ..., concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...46 da freguesia de .... A questão em apreço, objeto do presente recurso de revista, reporta-se apenas à titularidade do prédio sito na Quinta... e pode descrever-se do seguinte modo, tal como consta no acórdão recorrido: «- saber se os pressupostos do reconhecimento do direito de propriedade dos apelantes previstos no art. 15º, nº 1 e nº 2, al. a) da Lei nº 54/2005, de 15/11, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 78/2013, de 21/11 (vigente à data da propositura da presente acção: 30/06/2014) e actualmente previstos, respectivamente, nos nºs 2 e 3 daquele preceito, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06, estão preenchidos relativamente à “faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do ... (...), que incide sobre “o prédio misto sito na Quinta..., freguesia de ..., concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...46 da freguesia de ...”». Sobre a referida questão o acórdão recorrido afirmou o seguinte: «Resulta do nº 2 do art. 15º da Lei nº 54/2005, de 15/11, na actual redacção (correspondente ao nº 1 de tal preceito, na redacção inicial), que o interessado que pretenda obter o reconhecimento da propriedade sobre parcela de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis tem apenas que provar, para além de ser o actual proprietário, que essa parcela de terreno era, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868, não se exigindo a prova da propriedade privada do terreno, de forma ininterrupta, desde aquelas datas, conforme o caso, até à data actual.» (sublinhado nosso). Já o acórdão-fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, de 08-02-2018, no processo n.º 1704/15.9T8PTM.E1, considerou que «(…) não logrou a A. fazer prova de que o prédio por si adquirido, incluindo a faixa que a nascente confina com a rocha do mar, foi adquirido e pertencia a privados em data anterior a 1868 por justo título, nem logrou fazer o reatamento do trato sucessivo desde então através de uma ininterrupta cadeia de transmissões, conforme exige o nº 2 do art. 15º da Lei 54/05 (cf. ainda o n.º 1 do art. 342º do CC), assim prevalecendo a presunção de dominialidade da mesma faixa (cf. art. 12º, nº 1, al. a), in fine)». Nele se sumariou a seguinte orientação: «Compete ao autor demonstrar e provar a originária propriedade privada do bem e a posterior manutenção do bem nessa condição; assim sendo, a presunção de dominialidade terá que ser afastada relativamente a toda a 'história' do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio público; ora, como o ónus da prova recai, de forma absoluta, sobre o A., este terá que demonstrar que o bem foi e continua a ser propriedade privada». Esta divergência de orientações centra-se na questão de saber se, para a procedência de uma ação de reconhecimento da propriedade privada sobre determinada parcela, ao abrigo do artigo 15º, nº 2 da Lei nº 54/05, de 15-11, é exigível ao autor/interessado tão só a prova documental de que a propriedade privada existia antes das datas mencionadas naquele preceito (antes de 31-12-1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22-3-1868); ou se deve o autor/interessado fazer também prova das transmissões subsequentes do bem até à sua atual propriedade (ou seja, provar que a propriedade privada desse terreno se manteve, ininterruptamente, desde uma daquelas datas, conforme o caso, até à data atual).
Quid iuris?
2. Importa, pois, apurar se, para além da prova da titularidade do direito de propriedade com referência à 31-12-1864, aqueles que pretendam obter o reconhecimento do domínio privado têm, ainda, de demonstrar a cadeia sucessiva de transmissões na esfera do direito privado ocorrida desde então. O regime jurídico aplicável consta da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, de acordo com a redação da Lei n.º 34/2014. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 84.º da CRP, pertencem ao domínio público, entre outros bens, «as águas territoriais com os seus leitos e fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos». A propósito deste preceito constitucional, afirmou o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/2015, que se pronunciou pela constitucionalidade do artigo 15.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), da Lei n.º 54/2005, na redação da Lei n.º 78/2013 (quando interpretada no sentido de a obrigatoriedade da prova a efetuar pelos autores se reportar a data anterior a 31 de dezembro de 1864), o seguinte: «Trata-se de uma disposição que assenta na convicção de que as águas, pela sua importância e afetação públicas, devem estar fora do comércio jurídico privado e de que são, portanto, inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis. Na verdade, o domínio público hídrico, na medida em que se ache funcionalmente ligado à "circulação" de bens, pessoas e ideias, diz respeito a coisas tidas por vitais para a comunidade, ou seja, dotadas de um «grau de utilidade pública primordial», circunstância que explica a integração dominial de que são objeto na generalidade dos ordenamentos jurídicos (cf., neste sentido, José Pedro Fernandes, "Domínio Público", Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume IV, pp. 166 e ss.). Nos termos da alínea f) do mesmo dispositivo constitucional, o conjunto das coisas públicas integra ainda «outros bens como tal classificados por lei». De acordo com a doutrina nacional, isto significa que há bens que são declarados dominiais pela CRP, e cuja declaração de dominialidade não pode ser revogada por lei ordinária: são os bens dominiais por natureza, herdeiros das antigas res communes omnium; e há bens que são dominiais por serem assim declarados por lei, e cuja dominialidade está, portanto, na disponibilidade do legislador ordinário: são os bens dominiais por determinação legal [cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Volume II, 9.ª edição (reimpressão), 1980, p. 897; João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, Lisboa, Âncora, 2013, 11.ª edição, pp. 184/185] (…) Ora, as margens de águas públicas não integram, à luz da CRP, o domínio público por natureza. A sua classificação legal como dominiais surgiu com o artigo 2.º do Decreto Régio de 31 de dezembro de 1864, que incluiu no domínio público imprescritível os portos de mar e praias e os rios navegáveis e flutuáveis, com as suas margens, os canais de valas, os portos artificiais e as docas existentes ou que de futuro se construíssem (cf. Diogo Freitas do Amaral/José Pedro Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, Coimbra Editora, 1978, p. 100). Segundo a doutrina, a atribuição de caráter dominial às praias - e, acrescentamos, às margens de cursos de água navegáveis e flutuáveis - implicou, tão-somente, a incorporação no domínio público dos terrenos marginais que já pertenciam ao domínio privado do Estado. Por outras palavras, «a lei não teve manifestamente em vista reduzir de um golpe à propriedade pública todos os terrenos das praias, incluindo os que estivessem na propriedade privada dos particulares» [cf. Afonso Rodrigues Queiró, "As praias e o domínio público (Alguns problemas controvertidos)", Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.os 3258, 3259 e 3260, 1964, p. 337]». A Constituição optou por não declarar a dominialidade de todas as margens de águas públicas, costeiras ou não costeiras, conferindo uma margem de conformação ao legislador. A lei tem admitido expressamente a existência de margens de propriedade pública e de margens de propriedade privada, condicionando a segunda a um regime de prova muito exigente, sob pena de tais margens se considerarem públicas e, por conseguinte, dominiais (cf. o artigo 5.º da Lei n.º 54/2005). Como entendeu o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/2015 «(…) tolera-se o direito de propriedade privada sobre margens de águas públicas, muito embora tendo presente que, na falta de comprovação daquele direito, o relevo dos terrenos para o interesse público alavanca necessariamente a sua dominialidade, ou seja, a assunção da conveniência de uma afetação e destino públicos, e, logo, a recondução à propriedade de entes públicos. Este regime jurídico persegue, como se perceciona, um equilíbrio entre, por um lado, o princípio do respeito pelos direitos adquiridos dos particulares, e, por outro, a conveniência de que as margens de águas públicas, por condicionarem a utilização dessas águas, integrem o domínio público, ou seja, estejam sujeitas um regime especial de direito público caracterizado por um reforço das medidas de proteção das coisas que o integram. Por isso, mesmo quando o particular logre comprovar o seu direito de propriedade sobre margens de águas públicas, o legislador dispõe de diversos mecanismos para instituir a eventual afetação pública desses terrenos, tais como o direito de preferência em caso de alienação forçada ou voluntária, a expropriação e a constituição de servidões administrativas (cf. os artigos 16.º e 21.º, da Lei n.º 54/2005). Entretanto, com a alteração promovida pela Lei n.º 34/2014, de 19 de junho, o reconhecimento da propriedade privadas sobre margens de águas públicas deixou de estar sujeito a qualquer prazo, infirmando a teleologia ínsita à Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que foi a de evitar a "instabilidade permanente da base dominial".»
3. A Lei n.º 54/2005 veio delimitar os recursos hídricos que integram o domínio público e aqueles que, ao invés, pertencem a particulares. Nos termos do artigo 2.º, o domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas. O domínio público marítimo, que inclui as águas costeiras e territoriais, as águas interiores sujeitas à influência das marés, bem como os respetivos leitos, fundos marinhos e margens, pertence sempre ao Estado, nos termos do disposto nos artigos 3.º e 4.º do citado diploma. Já o domínio público lacustre e fluvial compreende cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos, e ainda as margens pertencentes a entes públicos (al. a) do artigo 5.º). E, de acordo com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que delimita o leito das águas, sendo que, de acordo com o n.º 3 do citado preceito legal, a margem das restantes águas navegáveis ou flutuáveis tem a largura de trinta metros. O regime consagrado no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005 estabelece que compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio A ação proposta pelos autores, em que peticionam o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos e de margens, surge neste contexto legislativo. No caso vertente, estamos perante um conflito de interesses quanto à qualificação da natureza dos bens, defendendo os autores a sua natureza privada e o Estado a sua natureza pública.
Vejamos: O artigo 15.º, n.º 2 da Lei n.º 54/2015, sob a epígrafe, «Reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos», afirma que «Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868». Deste modo, ou tais parcelas de leitos e margens já eram antes destas datas propriedade privada ou, ressalvados os casos de desafetação, não poderiam ser apropriadas por particulares após o legislador ter estabelecido a sua dominialidade. A menção legislativa àquelas concretas datas como marcos temporais provém da circunstância de ter sido a partir do Decreto de 31 de Dezembro de 1864 que os leitos e margens se tornaram públicos, prescrevendo o seu artigo 2.º que eram “do domínio público imprescritível, os portos do mar e praias e os rios navegáveis e flutuáveis, com as suas margens, os canais e valas, os portos artificiais e docas existentes ou que de futuro se construam…”. Já a data de 22 de março de 1868 refere-se ao facto de as arribas alcantiladas terem passado a integrar o domínio público com a entrada em vigor do Código Civil de 1867, cujo artigo 380.º § 4.º - preceito onde se faz a enumeração exemplificativa de coisas públicas – se dispunha que “as faces ou rampas e os capelos dos cômoros, valadas, tapadas, muros de terra ou de pedra e cimento erguidos artificialmente sobre a superfície do solo marginal, não pertencem ao leito ou álveo da corrente, nem estão no domínio público, se à data da promulgação do Código Civil não houverem entrado nesse domínio por forma legal”. O domínio público fluvial e lacustre, ao contrário do que sucede com o domínio público marítimo, não integra o chamado domínio público necessário do Estado, admitindo a lei, dentro de certos pressupostos, a propriedade privada sobre esses bens. Em matéria de reconhecimento da propriedade privada sobre esses terrenos, o atual regime é idêntico ao que foi estipulado no Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, em cujo artigo 8.º, n.º 1 se estipulava que «As pessoas que pretendam obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis devem provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular, ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1862». No Preâmbulo deste diploma revelou o legislador preocupação com a dificuldade da prova para os particulares, afirmando que: “Já quanto ao reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens públicas se tocou num aspecto mais relevante, que, sem envolver modificação profunda do direito vigente, beneficia contudo num ponto importante, aliás, com inteira justiça, os proprietários particulares: quando se mostre terem ficado destruídos por causas naturais os documentos anteriores a 1864 ou a 1868 existentes em arquivos ou registos públicos, presumir-se-ão particulares os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas. Aliviando deste modo o peso do ónus da prova imposto aos interessados, vai-se ao encontro da opinião que se tem generalizado no seio da Comissão do Domínio Público Marítimo, dada a grande dificuldade, em certos casos, de encontrar documentos que inequivocamente fundamentem as pretensões formuladas à Administração Dominial], venha também o intérprete em sede de hermenêutica jurídica a contribuir [sendo “parte do problema, que não da solução”] para o acentuar das dificuldades já existentes.”. O legislador nacional tem admitido a persistência dos direitos de propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens de águas públicas, isto é, águas pertencentes ao domínio público hídrico, mas estabeleceu uma presunção ilidível de dominialidade, fazendo impender sobre o particular o ónus de provar a titularidade da propriedade sobre tais parcelas de terreno e de, assim, as subtrair ao domínio público hídrico a que, de outro modo, pertenceriam.
4. O artigo 15.º, n.º 2, da Lei 54/2005, exige que a demonstração da titularidade privada de tais terrenos seja feita mediante prova documental, e os particulares têm, ainda, de provar que tais terrenos eram objeto de propriedade privada, através de título legítimo, antes da data de 31 de dezembro de 1864. A compreensão do exato sentido e alcance do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005 reclama o recurso ao elemento histórico, retirado da exposição de motivos anexa à Proposta de Lei n.º 19/X. Aí se esclarece que, em matéria de reconhecimento de propriedade privada, a intenção legislativa foi a de impedir que a proteção dos direitos privados pudesse gerar a «instabilidade permanente da base dominial», para que não se permitisse indefinidamente a invocação de direitos privados anteriores a 1864 ou 1867, estabelecendo-se, por conseguinte, que as ações dos privados deviam ser interpostas até 1 de janeiro de 2014, parecendo este limite temporal razoável para a reivindicação de tais direitos, tendo em conta que a possibilidade de reconhecimento constava já do Decreto-Lei n.º 468/71. O preceito sofreria ainda ulteriores modificações introduzidas pela Lei n.º 78/2013, de 21 de novembro, que alargou o prazo para a propositura da ação judicial de reconhecimento da propriedade privada, fixando-o em 1 de julho de 2014. Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 349/XII/2.ª, elencam-se as razões que estiveram subjacentes a tal alargamento, entre elas as dificuldades sentidas pelos particulares nas ações atinentes ao reconhecimento do direito de propriedade privada. O objetivo da lei foi o de «atenuar os efeitos negativos de um processo moroso e complexo de prova da titularidade, devendo o legislador desencadear todos os mecanismos que confiram maior segurança jurídica à confirmação do título de propriedade, seja ao privado, seja ao próprio Estado, enquanto pessoa de bem». Afirma-se também neste projeto-lei que «Aliás, e de resto, uma interpretação a contrario da presente norma resulta que quem não intentar a supra mencionada ação judicial dentro do prazo (até mesmo por simples desconhecimento) ou quem a intentar mas não lograr fazer esta verdadeira probatio diabolica, verá perdida a sua propriedade a favor do Estado, sem que haja lugar a qualquer tipo de compensação. Assim, propõe-se «(…) a prorrogação por dois anos do prazo previsto no artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, isto é, até 1 de janeiro de 2016, período durante o qual a Administração deve empreender as competentes ações de delimitação do Domínio Público Hídrico, a par de uma grande campanha de informação e sensibilização, em articulação com os Municípios e as Freguesias, alertando, por essa via, os milhares de potenciais visados, real e hipoteticamente, pela mesma Lei». A redação do artigo 15.º foi novamente alterada pela Lei n.º 34/2014, de 19 de junho, que lhe conferiu a redação aplicável ao caso dos autos e que é também a redação atual no que diz respeito ao n.º 2 do preceito. Este novo regime teve por objetivo principal eliminar a fixação de prazo para a propositura da ação de reconhecimento da propriedade privada sobre margens de águas públicas. A Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 557/XII/3.ª afirma que: «[...] Neste contexto, justifica-se, por isso, repor a possibilidade de os titulares do direito de propriedade sobre parcelas de terrenos de leitos e margens de águas navegáveis e flutuáveis anterior a 31 de dezembro de 1864 ou, no caso de arribas alcantiladas, a 22 de março de 1868 instaurarem, a todo o tempo, as ações judiciais para reconhecimento dos seus direitos». Da evolução do preceito deduz-se que objetivo do legislador foi o de prolongar, até ser eliminado qualquer limite temporal, o período de tempo durante o qual os particulares podem intentar estas ações de reconhecimento da titularidade privada sobre as águas fluviais. O legislador, quando se reporta a estas ações judiciais nas exposições de motivos do diploma original e nas alterações subsequentes, refere expressamente a prova da titularidade privada antes das datas de 1864 ou 1867, sem nunca referir eventuais dificuldades probatórias em períodos posteriores e sem nunca conjeturar que, entre 1864 e a atualidade, essa propriedade privada podia ter passado para o domínio público, provavelmente por entender, que, se fosse esse o caso, o Estado teria acesso às provas da dominialidade pública. Por outro lado, como vimos, reconhece que a prova da titularidade privada anterior a 1864 ou 1867 é uma prova diabólica, e prevê para facilitar a posição do particular, nas situações em que os documentos desapareceram ou foram destruídos as soluções fixadas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 15.º.
5. Nos termos do artigo 15.º, n.º 2, cabe ao autor, para além de provar que é o proprietário atual, prevalecendo-se, por exemplo, da presunção registral, demonstrar a aquisição privada do bem por algum dos modos legítimos de adquirir no período anterior a 3 de dezembro de 1864. Constituem título legítimo de aquisição, entre outros, todos os expressamente previstos no artigo 1316.º do CC (contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação e acessão), e ainda, a aquisição por preocupação, doação régia ou concessão, no que respeita às águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de março de 1868 (cfr. Manuel do Carmo Bargado, “O reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos do domínio público hídrico”, Julgar online, 2013, p. 21). Nos termos da letra da lei, apenas estes dois requisitos são necessários, sendo que a prova reportada à data de 31 de dezembro de 1864 ou 22 de março de 1868 já é uma prova particularmente difícil e que defende os interesses do Estado e os interesses coletivos, na medida em que, na falta desta prova, aplica-se a presunção de dominialidade sem onerar o Estado com qualquer encargo probatório, tendo o legislador entendido que esta solução protege o interesse público, e assim também o entendeu o Tribunal Constitucional no Acórdão 326/2015. Todavia, a tal encargo probatório sobre o particular reportado às datas indicadas, acresce ainda, na tese defendida pelo recorrente Ministério Público, o ónus de demonstrar que essa mesma natureza privada se manteve, de forma ininterrupta, até à atualidade.
Mas não tem razão.
O texto da lei é o ponto de partida da interpretação. Ora, o teor da norma do nº 2, do artigo 15º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, apenas refere a exigência de prova documental da propriedade privada do terreno com referência a momento anterior a concreta data [31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, 22 de março de 1868]. Julgamos, pois, que a letra da lei se refere apenas à originária propriedade privada do bem, mas não à posterior manutenção do bem nessa condição. O ónus de demonstrar, para ilidir a presunção de dominialidade, que o bem teve esta natureza durante a toda a sua “história”, desde 1864 até à atualidade, é uma prova diabólica. É certo que o elemento gramatical pode ser corrigido pelos elementos teleológico, sistemático e histórico de interpretação. Todavia, resulta da evolução histórica do regime jurídico, acima traçada, e das subsequentes Exposições de Motivos que o legislador nunca se referiu a este requisito adicional e que o objetivo do regime foi dar uma oportunidade aos particulares de comprovarem a titularidade privada de recursos hídricos ou fluviais abrangidos por uma presunção de dominialidade. Com efeito, o escopo do nº 2 do artigo 15º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, foi o de salvaguardar situações jurídicas subjetivas já existentes aquando da introdução no ordenamento jurídico de uma legislação em sede de definição da natureza e classificação das águas, seus leitos e margens. Se o legislador tivesse pretendido a prova de toda a história de transmissões sobre o bem e do reatamento do trato sucessivo até ao momento presente, teria referido esta questão no preceito, cujo teor regula expressamente apenas a prova documental da titularidade privada para o período anterior a 1864 ou 1868, criando alternativas para a hipótese de estes documentos terem desaparecido. Ora, se o legislador tivesse em mente toda a história do bem, necessariamente teria referido tal questão na própria letra do preceito, até porque tratando-se de um período temporal superior a cem anos, haveria, também, que regular as consequências da perda ou destruição dos documentos para esse período. Acresce que, tratando-se de um preceito que já conheceu alterações sucessivas, em que foram consideradas, como resulta das Exposições de Motivos, questões práticas relacionadas com a morosidade e complexidade dos processos judiciais, o legislador, se entendesse dever exigir os documentos comprovativos da titularidade privada para todo o período posterior a 1864, tê-lo-ia feito aquando de uma dessas alterações. Para além disto, resulta da exposição de motivos que foram ouvidas várias entidades aquando da elaboração da lei, tudo indicando que o processo legislativo do diploma legal foi um processo cuidado e refletido, e que o legislador está informado sobre a problemática em causa, não sendo crível que na letra do preceito tivesse pecado por defeito, dizendo menos do que aquilo que queria dizer. Até porque o intérprete tem de presumir, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Relativamente ao argumento do recorrente, segundo o qual, desde modo, não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio público, pensamos que, a verificar-se essa hipótese, trata-se de um facto jurídico, cuja prova incumbe ao réu, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, por se tratar de um facto impeditivo do direito do autor. De resto, sendo o réu o Estado, não pode deixar de se entender que é a parte que em melhores condições se encontra para alegar o ingresso no domínio público durante esse período temporal e dispor dos instrumentos aptos a fazer essa prova. Assim, concluímos que o entendimento amplo do preceito, segundo o qual o particular interessado deve fazer prova que o terreno permaneceu na condição de “propriedade privada” desde 1864 até ao momento atual, para além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9º, nº 2, do Código Civil). A razão de ser do regime jurídico em causa, que, diferentemente de outras ordens jurídicas congéneres da nossa, como a Espanha, reconhece a propriedade privada de recursos hídricos e fluviais, foi a proteção de direitos adquiridos pelos particulares em momento anterior a 31-12-1864 e encontrar um ponto de equilíbrio com o interesse público, que permitisse aos particulares disporem da oportunidade prática de obterem o reconhecimento dos seus direitos. 6. Em consequência, considerando o teor literal do artigo 15º da Lei nº 54/2005 (em qualquer das versões) e o espírito subjacente a este diploma legal, entendemos que, provada a propriedade privada do terreno antes de 31/12/1864 e a propriedade atual do interessado (factos provados nºs 15 a 19 e 24 a 28), bem andou o acórdão recorrido ao considerar preenchida a causa de pedir invocada da titularidade, em data anterior a 31/12/1864, do direito de propriedade particular sobre a faixa de terreno ora em referência, causa de pedir essa, subsumível à previsão do artigo 15º, nº 1 da Lei nº 54/2005, de 15/11, na versão vigente à data da instauração da ação – e, atualmente, subsumível à previsão do nº 2 daquele preceito, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06. 7. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC: I - No âmbito do regime previsto no artigo 15º, nº 2, da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro (que estabelece a titularidade dos recursos hídricos), na redação atual dada pela Lei nº 34/2014, de 19 de junho, pretendendo o interessado obter o reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de demonstrar, além da sua titularidade, que aqueles terrenos eram objeto de propriedade particular ou comum, antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas, por título legítimo (à luz do Código Civil de Seabra), não sendo necessária a prova de toda a história de transmissões do bem e do reatamento do trato sucessivo até ao momento presente. II - O entendimento amplo do preceito, segundo o qual o particular interessado deve fazer prova que o terreno permaneceu na condição de “propriedade privada” desde 1864 até ao momento atual, para além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9º, nº 2, do Código Civil), não está de acordo com a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), nem é exigido pela razão de ser do regime jurídico em causa, que teve por objetivo a proteção de direitos adquiridos.
III – Decisão Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido. Sem custas, atenta a isenção de que beneficia o recorrente Estado.
Lisboa, 30 de novembro de 2021
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)
Fernando Samões (2.º Adjunto) |