Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | CATARINA SERRA | ||
| Descritores: | CONTRATO DE TRANSPORTE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA - TIR CONVENÇÃO CMR INCUMPRIMENTO DO CONTRATO EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO DOLO NEGLIGÊNCIA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL PRESUNÇÃO DE CULPA CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS NEXO DE CAUSALIDADE FACTO ILÍCITO TRANSPORTE RODOVIÁRIO | ||
| Data do Acordão: | 10/23/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Sumário : | Nos termos do artigo 29.º, n.º 1, da Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), o regime de limitação da responsabilidade do artigo 23.º da CMR apenas é afastado quando os factos permitam concluir que o dano deriva de dolo do transportador ou de falta lhe seja imputável em grau próximo de censurabilidade. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO Recorrente: GENERIS – FARMACÊUTICA, S.A. Recorrida: ALFALOC – TRANSPORTES, LDA. 1. GENERIS – FARMACÊUTICA, S.A. instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra ALFALOC – TRANSPORTES, LDA., peticionando a condenação desta no pagamento “a título de indemnização, o montante total de €47.620,57 (quarenta e sete mil, seiscentos e vinte euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescido dos juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento”. 2. O Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença da qual consta: “De acordo com o supra exposto e de harmonia com o disposto nos preceitos legais supracitados, julgo a acção improcedente por não provada, em consequência do que: A) Absolvo a ré, ALFA LISBON – GESTÃO DE PROCESSOS DE EXPEDIÇÃO, LDA., do pedido; B) Condeno a autora, GENERIS – FARMACÊUTICA, S.A., no pagamento das custas do processo”. 3. Inconformada, apelou a autora, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se: “Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a Apelação apresentada pela Autora e, em consequência, confirmar a Sentença recorrida”. 4. Ainda inconformada, vem a autora interpor recurso de revista “nos termos conjugados dos artigos 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 637.º, n.ºs 1 e 2, 638.º, n.º 1, 671.º, n.º 1 e 3 (última parte), 672.º, n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 alíneas a) e c), 674.º, n.º 1, alíneas a) e c), 675.º, n.º 1 e 676.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (“CPC”), a subir imediatamente e nos próprios autos e com efeito devolutivo”. Conclui as suas (extensíssimas) alegações nos seguintes moldes: “A. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o qual confirmou a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, julgando a ação totalmente improcedente, por concluir que: (i) para efeitos de aplicação do n.º 1 do artigo 29.º da CRM , o Ordenamento Jurídico Nacional não equipara a negligência ao dolo; (ii) a atuação da Recorrida, no caso dos autos, não consubstanciou uma atuação dolosa, não sendo, por isso, aplicável o n.º 1 do artigo 29.º da CRM. B. A decisão vertida no Acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.10.2017 (Processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S1-Olindo Geraldes), já transitado em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, o que justifica a admissibilidade do presente recurso de revista excecional, nos termos e para os efeitos do Artigo 672, n.º 1, alínea c), do CPC. C. Além disso, a decisão ínsita no Acórdão recorrido assenta numa questão, qual seja a não equiparação da negligência ao dolo para efeitos de aplicação do n.º 1 do artigo 29.º da CRM, cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, se mostra claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, o que justifica a admissibilidade do presente recurso nos termos e para os efeitos do Artigo 672, n.º 1, alínea a), do CPC. D. Por fim, o Acórdão recorrido encontra-se ferido de nulidade, porquanto o Tribunal a quo não fundamentou a sua decisão de não classificar como dolosa a conduta da Recorrida no caso dos autos, o que determinou a não aplicação do n.º 1 do artigo 29.º da CRM e a consequente improcedência do pedido formulado pela Recorrente, o que fundamenta a apresentação do presente recurso, nos termos e para os efeitos do Artigo 615, n.º 4, do CPC. E. O Acórdão recorrido julgou improcedente o recurso de apelação apresentado pela Recorrente, mantendo a decisão recorrida e proferida em 1ª Instância, a qual absolveu a Recorrida do pedido, nos seguintes termos: "A) Absolvo a ré, ALFA LISBON - GESTÃO DE PROCESSOS DE EXPEDIÇÃO, LDA., do pedido; B) Condeno a autora, GENERIS - FARMACÊUTICA, S.A., no pagamento das custas do processo". F. Para apoiar a sua decisão, no que ao Direito respeita, o Tribunal a quo transcreve todo o “processo de raciocínio” no qual assenta a sentença de 1.ª Instância, que se resume ao seguinte: “No caso dos autos, estamos perante um contrato de transporte de mercadorias internacional multimodal, uma vez que o mesmo foi realizado através da utilização de 2 meios de transporte distintos (aéreo e rodoviário) e teve por objeto o transporte de mercadorias de Portugal até Malta; Considerando que não existe um regime jurídico que regule este tipo de contratos, existindo apenas convenções internacionais que regulam individualmente os diferentes meios de transporte individualmente considerados, a melhor solução para o regime aplicável a este tipo de contratos é encará-los como contratos mistos e recorrer à teoria da combinação para aplicar o regime próprio unimodal de transporte a cada um dos meios de transporte utilizados, designadamente nas situações em que se verifica um incumprimento contratual. Concluindo que a responsabilidade pelo incumprimento deve ser determinada segundo as regras do regime do meio de transporte onde ocorreu o incumprimento; No âmbito da relação contratual mantida entre as Partes foi acordado um prazo estimado de entrega de 3 dias úteis, pelo que sendo a data de envio da mercadoria a 21.12.2020, o prazo estimado de entrega terminaria a 24.12.2020. Considerando que a entrega apenas foi concretizada a 04.01.2021, verificou-se um atraso nesta; Considerando que a mercadoria chegou por via aérea a Malta a 23.12.2024 e que apenas foi entregue por via rodoviária no destino (também em Malta) a 04.01.2021, o atraso verificado na entrega da mercadoria ocorreu no transporte rodoviário a realizar em Malta e não no transporte aéreo, pelo que são aplicáveis a esse atraso as regras previstas para o transporte internacional de mercadorias rodoviário, previstas na Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (doravante "CMR"), aprovada em Genebra, a 19.05.1956; Nos termos do Artigo 17º, n.º 1, da CMR, o transportador é responsável pela demora da entrega (quando esse atraso se verifica no transporte rodoviário realizado por si ou através de outrem), sendo que estamos perante uma presunção de responsabilidade e não perante uma mera presunção de culpa, não sendo necessária a prova de qualquer um dos requisitos da responsabilidade contratual do transportador pela demora na execução da prestação; No caso dos autos, verificou-se uma situação de demora no cumprimento da obrigação de entrega da mercadoria, nos termos do Artigo 19º da CMR, uma vez que foi largamente ultrapassado o prazo que era razoável atribuir ao transporte diligente contratado; A Recorrida não logrou provar que o atraso verificado foi devido a circunstâncias que consubstanciam causas de exclusão da responsabilidade presumida do transportador, nos termos conjugados dos Artigos 17º, n.º 2 e 18º, n.º 1, da CMR, pelo que se encontra apurada a responsabilidade da Recorrida pela demora no cumprimento da prestação por si assumida. Atenta a factualidade provada, demonstrou-se que a Recorrente sofreu um prejuízo no exercício de 2020, de €46.865,58, relativo à perda da margem de lucro perdida por referência às encomendas não realizadas do Medicamento nesse ano, em virtude do atraso ocorrido na entrega das respetivas amostras no laboratório em Malta onde a sua conformidade, necessária ao fornecimento do mesmo, ia ser certificada. Relativamente ao atraso na entrega da mercadoria, o Artigo 23º, n.º 5, da CMR estabelece um limite indemnizatório que corresponde ao preço do transporte, equivalente ao preço total pago pelo carregador/expedidor ao transportador em virtude do contrato de transporte celebrado. O Artigo 29.º, n.º 1, da CMR prevê uma exceção à aplicação dos limites indemnizatórios estabelecidos no Artigo 23º, n.º 5, do mesmo diploma, estabelecendo que "O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.". Para efeitos de interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, a negligência (incluindo a grosseira) não é equiparada ao dolo, pelo que apenas uma atuação dolosa do transportador implica que o mesmo não se possa prevalecer das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade; Atenta a factualidade provada nos autos, da mesma não resulta qualquer ocorrência de onde resulte uma conduta dolosa por parte da Recorrida que tenha provocado a demora na entrega da encomenda; Pelo que não se encontra verificada a exceção a que alude o Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, devendo, por isso, ser aplicado o limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º n.º 5, da CMR, que no caso vertente corresponde a €181,68; Considerando que a Recorrida emitiu a favor da Recorrente uma nota de crédito no valor de €181,68, a obrigação de indemnização constituída na esfera da Recorrida encontra-se voluntariamente cumprida, nada mais tendo aquela a pagar a esta, pelo que deve a ação ser julgada improcedente”. G. Em seguida, o Tribunal da Relação de Lisboa tece diversas considerações sobre a fundamentação de direito da sentença recorrida, apresentando a seguinte fundamentação de direito para sustentar a decisão ínsita no Acórdão recorrido: “A fundamentação de Direito acabada em análise tem-se como exemplar, em termos de clareza e linearidade de raciocínio, bem assim como pela sua sustentação e fundamentação jurídicas. (…) A Recorrente, aliás, assume todo o percurso argumentativo da Sentença no que concerne à caracterização e qualificação do contrato, bem como à aplicação e funcionamento dos artigos 17.º, 18.º e 19.º da CMR, apenas divergindo no momento da apreciação da responsabilidade da Ré (ou da sua exclusão). (…) Mesmo no que concerne ao limite indemnizatório estabelecido no n.º 5 do artigo 23.º da CMR a Recorrente aceita o decidido, apenas entendendo que se verifica a excepção prevista no artigo 29.º, n.º 1, da CMR, considerando a negligência grosseira como equiparada ao dolo, mas, mais ainda, que "resulta demostrado" que existiu "uma conduta dolosa por parte da Recorrida" (carecendo em absoluto de sentido a transcrição de depoimentos testemunhais nas Alegações para defender este entendimento, como a Recorrente faz). E é este o cerne da divergência, sendo certo que não cremos assistir razão à Recorrente. De facto, temos por assente e assumida a existência de uma situação de negligência por parte da Recorrida, uma vez que permitiu que uma situação que em regra se estima ter uma duração de 3 dias úteis, acabou por durar nove dias úteis, sem que aquela (transportadora), tenha logrado provar - como refere o n.º 2 do artigo 17º da CMR qualquer circunstância que a isentasse da responsabilidade presumida. Isso leva-nos ao n.º 5 do artigo 23.º da CMR ("No caso de demora, se o interessado provar que disso resultou prejuízo, o transportador terá de pagar por esse prejuízo uma indemnização que não poderá ultrapassar o preço do transporte") - que cria um limite indemnizatório correspondente ao preço do transporte - sendo que a Ré assumiu a sua responsabilidade pela demora da sua prestação. Ora, a Ré só não beneficiaria deste regime e deste limite, se tivesse aplicação o n.º 1 do artigo 29.º da CRM, ou seja, se "o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo". Sucede que não só os factos não permitem concluir que a Ré actuou dolosamente, como o regime jurídico aplicável (o do direito nacional), não equipara a negligência leve à grosseira: o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro (que estabelece o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias), estabelece com clareza meridiana que sempre "que a perda, avaria ou demora resultem de actuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade", assim afastando a possibilidade de situações de negligência terem efeitos no afastamento dos limites da responsabilidade (ou seja, para efeitos deste tipo de contrato, não releva considerar que a "culpa" abrange dolo e negligência). (…) De assinalar que as correntes jurisprudenciais a que a Sentença recorrida faz menção estão correctamente descritas, não se vislumbrando motivos para discordar da orientação seguida. Continuam absolutamente válidas e pertinentes as considerações que ficaram expostas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Julho de 2006 (Processo n.º06B1679-Oliveira Barros) (….). A este propósito, vale a pena recuperar o que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2018 (Processo n.º 4051/10.9TBPTM.E1.S1-António Joaquim Piçarra) assinalou ao dizer que "nada justifica que se estabeleça uma equiparação geral do ilícito negligente com culpa grave ou lata ao ilícito doloso, uma vez que o brocardo latino "culpa lata dolo aequiparatur" não se mantém vigente no direito actual". E - principalmente - não pode em caso algum esquecer-se as palavras certeiras e críticas que Manuel Januário da Costa Gomes escreveu a propósito do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2017 (Processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S1 - Olindo Geraldes), onde se defendeu que no regime jurídico português, se "equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da responsabilidade civil prevista na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)" (…). Neste contexto, só pode afirmar-se a correcção do decidido em 1.ª Instância, acrescentando-se apenas que não há com isso qualquer desprotecção da Autora enquanto contratadora, uma vez que conhecendo esta o regime legal e sabendo que apenas o dolo do transportador relevaria para afastar a indemnização prevista no artigo 23.º da CMR, sempre poderia não apenas ter utilizado os outros serviços personalizados que a Ré disponibilizava (mais caros, mas mais seguros), como poderia ter feito a declaração a que se refere o artigo 26.º da CMR, como poderia também ter celebrado um contrato de seguro para prevenir que o contrato não corresse bem. Contratar é sempre assumir riscos. É confiar. Participar em relações contratuais complexas, com vários intervenientes, deveres e direitos cruzados e distintas responsabilidades e regimes jurídicos aplicáveis, é assumir riscos ainda maiores, é confiar em excesso e sem rede. Mas essa é natureza do comércio e o que dele faz o motor do crescimento económico das sociedades. Em concreto, as partes assumiram os seus riscos e, pelos imponderáveis que sucederam, esses riscos acabaram por se concretizar, levando a que os objectivos de cada um dos envolvidos se não concretizassem como previsto. O que correu mal foi o que resultou expresso na factualidade apurada no processo - a verdade judiciária - e esta é a que releva (não a que estava na percepção de cada um dos intervenientes processuais). Em consequência do exposto, a bem e consistentemente elaborada Sentença merece ser confirmada na íntegra, assim improcedendo o recurso. (…).". H. Resulta do exposto, que o Acórdão reclamado optou por seguir a orientação jurisprudencial que considera que, para efeitos de aplicação o n.º 1 do artigo 29.º da CRM, o ordenamento jurídico nacional não equipara a negligência ao dolo. I. Resulta igualmente do exposto que o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que a atuação da Recorrida no caso dos autos não consubstanciou uma atuação dolosa, não sendo, por isso, aplicável o n.º 1 do artigo 29.º da CRM, o que foi determinante na absolvição da Ré da instância. J. Indubitavelmente, in casu, encontram-se preenchidos todos os pressupostos que determinam a admissão do recurso de Revista excecional, nos termos das alíneas c) e a), do n.º 2 do artigo 672.º do CPC. K. Desde logo, e no que se refere à alínea c), n.º 2 do artigo 672.º do CPC, cumpre salientar que o Acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2017 (Processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S1-Olindo Geraldes), e cuja cópia se junta ao presente Recurso, como Acórdão-Fundamento (Doc. n.º 1). L. Aqui, existe contradição entre o Acórdão Recorrido - nos segmentos que se recorre - e o Acórdão Fundamento acima identificado, pois que, perante a mesma questão fundamental de direito [saber se o Artigo 29.º, n.º 1, da CRM, deve ser aplicado a casos de negligência do transportador ou se apenas deve ser aplicado a casos de dolo do transportador], no domínio da mesma legislação [CRM], o Acórdão recorrido e os Acórdãos-fundamento decidiram em sentido divergente. M. A par da necessária identidade e contradição de Acórdãos, encontram-se também verificados os demais pressupostos de admissão do presente Recurso: a) Quadro normativo: a divergência entre os referidos Acórdãos verifica-se num quadro normativo igual; b) Requerimento de interposição: a contradição jurisprudencial motivadora do presente Recurso é invocada nas presentes alegações, onde se junta cópia do Acórdão-Fundamento; c) Requisito negativo: o Acórdão recorrido não atacou qualquer solução adotada em Acórdão(s) de Uniformização de Jurisprudência. N. Concretamente no que respeita à identidade do Acórdão-Fundamento com o Acórdão recorrido que determinam a alegada contradição: O. Quer no Acórdão-Fundamento, quer no Acórdão recorrido, o núcleo central da situação de facto é idêntico: (i) No Acórdão-Fundamento estava em causa a execução de um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, o qual foi incumprido pelo transportador, uma vez que este não realizou integralmente a prestação a que se vinculara, tendo desse incumprimento resultado danos na esfera do expedidor. (ii) No Acórdão-Fundamento concluiu-se que o transportador não logrou provar que o incumprimento contratual verificado foi devido a circunstâncias que consubstanciam causas de exclusão da responsabilidade presumida do transportador, nos termos conjugados dos Artigos 17º, n.º 2 e 18º, n.º 1, da CMR, concluindo pelo apuramento da responsabilidade do transportador. (iii)Por outro lado, no âmbito do Acórdão-Fundamento não se deu como provado que o transportador houvesse atuado com dolo, mas apenas com mera negligência. (iv)De igual modo, no Acórdão recorrido, também está em causa a execução de um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, o qual foi incumprido pelo transportador, uma vez que este não realizou tempestivamente a prestação a que se vinculara, tendo desse incumprimento resultado danos na esfera da Recorrente (expedidor). (v) No Acórdão recorrido também se concluiu que o transportador não logrou provar que o incumprimento contratual verificado foi devido a circunstâncias que consubstanciam causas de exclusão da responsabilidade presumida do transportador, nos termos conjugados dos Artigos 17º, n.º 2 e 18º, n.º 1, da CMR, concluindo pelo apuramento da responsabilidade do transportador. (vi)Por fim, no âmbito do Acórdão recorrido também não se deu como provado que o transportador houvesse atuado com dolo, mas apenas com mera negligência. P. Quer o Acórdão-Fundamento, quer o Acórdão recorrido, versam sobre a mesma questão fundamental de direito, qual seja a questão de saber se o Artigo 29.º, n.º 1, da CRM, deve ser aplicado a casos de negligência do transportador ou se apenas deve ser aplicado a casos de dolo do transportador. Q. Com efeito, em ambos os Acórdãos, assente que estava a responsabilidade do transportador pelos danos causados ao expedidor, concluiu-se que (i) no âmbito da CMR está previsto um regime especial de indemnização, limitando o seu valor, como decorre expressamente do disposto nos seus Artigos 23.º e 25.º, sendo que (ii) essa limitação da indemnização não ocorre se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, nomeadamente segundo a lei portuguesa, seja considerada equivalente ao dolo, atento o disposto no Artigo 29.º, n.º 1, da CMR. R. Porém, no que concerne à interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR a uma factualidade em tudo semelhante, a divergência entre o Acórdão-Fundamento e o Acórdão recorrido é insanável. S. Nesta matéria, no Acórdão-Fundamento, concluiu-se e decidiu-se o seguinte: “Do enunciado decorre que, no âmbito da responsabilidade civil contratual, não há limitação à indemnização por efeito da mera culpa, por não ser compatível, no geral, com as legítimas expetativas do contraente lesado. Assim, tanto o dolo como a mera culpa podem consubstanciar a culpa para efeitos de responsabilidade civil contratual, sendo indiferente a modalidade assumida pela culpa do devedor. Face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR, estando obrigado a reparar integralmente os danos sofridos pelo expedidor. Nesta conformidade, a Recorrente, ainda que possa não ter agido com dolo, não pode aproveitar-se da limitação da indemnização prevista nos arts. 23.º e 24.º da CMR, pois que, sendo o incumprimento do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada imputável, a título de culpa, à Recorrente, dado não ter ilidido a presunção de culpa, responde pelos prejuízos causados ao expedidor, nomeadamente nos termos previstos no art. 17.º, n.º 1, da CMR. Este entendimento encontra-se sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente nos acórdãos de 15 de maio de 2013 (9268/07.0TBMAI.P1.S1), 5 de junho de 2012 (3303/05.4TBVIS.C2.S1) e 14 de junho de 2011 (437/05.9TBANG.C1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.”. T. Por seu turno, sobre a mesma matéria, no Acórdão recorrido-Fundamento concluiu-se e decidiu-se o seguinte: “Ora, a Ré só não beneficiaria deste regime e deste limite, se tivesse aplicação o n.º 1 do artigo 29.º da CRM, ou seja, se "o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo". Sucede que não só os factos não permitem concluir que a Ré actuou dolosamente, como o regime jurídico aplicável (o do direito nacional), não equipara a negligência leve à grosseira: o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro (que estabelece o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias), estabelece com clareza meridiana que sempre "que a perda, avaria ou demora resultem de actuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade", assim afastando a possibilidade de situações de negligência terem efeitos no afastamento dos limites da responsabilidade (ou seja, para efeitos deste tipo de contrato, não releva considerar que a "culpa" abrange dolo e negligência). (…) Continuam absolutamente válidas e pertinentes as considerações que ficaram expostas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Julho de 2006 (Processo n.º06B1679-Oliveira Barros) (….). A este propósito, vale a pena recuperar o que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2018 (Processo n.º 4051/10.9TBPTM.E1.S1-António Joaquim Piçarra) assinalou ao dizer que "nada justifica que se estabeleça uma equiparação geral do ilícito negligente com culpa grave ou lata ao ilícito doloso, uma vez que o brocardo latino "culpa lata dolo aequiparatur" não se mantém vigente no direito actual". E - principalmente - não pode em caso algum esquecer-se as palavras certeiras e críticas que Manuel Januário da Costa Gomes escreveu a propósito do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2017 (Processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S1- Olindo Geraldes), onde se defendeu que no regime jurídico português, se "equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da responsabilidade civil prevista na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)" (…). U. Do exposto resulta que no Acórdão-Fundamento se entendeu que a negligência do transportador afasta o limite de indemnização previsto no Artigo 23.º da CRM, por aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, do referido Diploma Legal, enquanto que no Acórdão recorrido se sustentou tese diametralmente oposta, no sentido de que a negligência do transportador não afasta aquele limite de indemnização, apenas o dolo poderá ter esse efeito por aplicação do referido Artigo 29.º, n.º 1, do referido Diploma Legal. V. Quer o Acórdão-fundamento, quer o Acórdão recorrido, aplicam as mesmas regras de direito (o Artigo 29.º, n.º 1, da CRM). Contudo, e não obstante a referida identidade, quer da questão de direito, quer do núcleo factual subjacente, ambos os Acórdãos decidiram em sentido contrário. W. Além disso, a questão de direito sob controvérsia revelou-se absolutamente essencial para o resultado das decisões ínsitas em ambos os Acórdãos, não constituindo em ambos os casos um mero argumento suplementar. X. Com efeito, quer o Acórdão-Fundamento, quer o Acórdão recorrido, a posição sustentada por cada um dos Tribunais foi determinante para a decisão proferida: No Acórdão-Fundamento entendeu-se que o transportador não podia aproveitar-se da limitação da indemnização prevista no Artigo 23.º da CMR, tendo este sido condenado a pagar os prejuízos causados ao expedidor; Enquanto que no Acórdão recorrido entendeu-se que o transportador podia aproveitar-se da limitação da indemnização prevista nos Artigos 23.º e 24.º da CMR, tendo este sido absolvido do pedido de condenação no pagamento dos prejuízos causados à Recorrente (expedidor). Y. De todo o exposto e, de acordo com o disposto no artigo 672º, n.º 1, alínea c), do CPC, sempre deverá o presente Recurso de Revista Excecional ser admitido, seguindo-se os demais termos da lei, julgando o Recurso cujas alegações seguem adiante. Z. Admitindo-se o presente recurso de Revista, o que se requer, deve o Acórdão recorrido ser revogado por contradição com o Acórdão-Fundamento, no que à questão da interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR diz respeito. AA. No que a esta matéria diz respeito, grande parte da jurisprudência nacional, a cuja doutrina a Recorrente adere, tem entendido que o transportador não pode aproveitar-se da limitação da indemnização prevista no Artigo 23.º da CMR nas situações de negligência, por aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR. BB. É o caso dos seguintes Acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt, esclarecendo-se que muito embora os Acórdãos a seguir citados se reportem, na sua maioria, à responsabilidade do transportador por furto/perda da coisa transportada, a doutrina neles ínsita não deixa, naturalmente, de ser aplicada ao caso dos autos, onde se discute a responsabilidade da Recorrida transportadora por conta do atraso na entrega da mercadoria transportada: (i) Acórdão do STJ de 14.06.2011, proferido no âmbito do processo 437/05.9TBANG.C1.S1; (ii) Acórdão do STJ de 05.06.2012, proferido no âmbito do processo 3303/05.4TBVIS.C2.S1; (iii)Acórdão do STJ de 15.05.2013, proferido no âmbito do processo 9268/07.0TBMAI.P1.S1; (iv) Acórdão-Fundamento do STJ de 12.10.2017, acima já citado e proferido no âmbito do processo 4858/12.2TBMAI.P1.S11; (v) Acórdão da Relação do Porto de 26.06.2014, proferido no âmbito do processo 5403/11.2TBMAI.P1; (vi)Acórdão da Relação de Coimbra de 14.04.2015, proferido no âmbito do processo 266/11.0TBLMG.C1; (vii) Acórdão da Relação de Lisboa de 27.06.2019, proferido no âmbito do processo 311/13.5TBTVD.L1-2; (viii) Acórdão da Relação de Guimarães de 14.11.2019, proferido no âmbito do processo 6471/17.9T8BRG.G1; (ix)Acórdão da Relação de Guimarães de 10.03.2022, proferido no âmbito do processo 568/19.8T8PFR.G1; (x) Acórdão da Relação do Porto de 22.02.2022, proferido no âmbito do processo 2462/16.5T8MTS.P1; CC. Da exaustiva lista de arestos elencados resulta que, para efeitos de interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, a negligência (leve ou grosseira) é, para parte significativa da jurisprudência Portuguesa, equiparada ao dolo, tese a que a Recorrente adere. DD. E não se diga, como sugere o Tribunal a quo, que o Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, deve ser interpretado à luz do Artigo 21º do DL n.º 239/2003, que rege os transportes nacionais. EE. Sobre esta matéria já se havia pronunciado o Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 27.10.2022, proferido no âmbito do processo 5366/21.6T8LSB.L1-2 e disponível em www.dgsi.pt, onde se decidiu o seguinte (tese a que a Recorrente adere): "O regime jurídico português do transporte nacional, do DL 293/2003, de 04/10, que apenas prevê, no art.º 21, a exclusão da limitação em caso do dolo, não impede a equiparação da culpa grave ao dolo para efeitos do art.º 29 da CMR porque esta "não manda, em nenhum momento, considerar especificamente o regime do contrato de transporte rodoviário interno de mercadorias: a remissão para a lex fori deve entender-se em termos amplos, como sendo uma remissão para os diversos sistemas jurídicos nacionais no seu conjunto" […]e "em matéria de Direito dos transportes […] a equiparação a culpa grave surgirá como princípio dominante no nosso regime sobre as cláusulas de limitação e de exclusão de responsabilidade." Para além de que, como diz Castello-Branco Bastos (obra já citada, página 115), se pode entender que a norma do art.º 21 do DL 293/2003 leva pressuposta a equiparação da culpa grave ao dolo que "em direito comum soi fazer-se.". FF. Deste modo, não merece qualquer acolhimento o entendimento arquitetado pelo Tribunal a quo. GG. Considerando que a conduta da Recorrida foi classificada como negligente, conclui-se, assim, que devia a Recorrida não pode beneficiar do limite de indemnização consagrado no Artigo 23.º da CRM, por aplicação do Artigo 29.º, n.º 1 também da CRM – circunstância que deveria ter determinado a revogação da sentença recorrida, pelo Tribunal a quo, condenando, consequentemente, a Recorrida no pedido. HH. Termos em que deve ser revogado o Acórdão recorrido, decidindo-se pela condenação da Recorrida no pedido. II. Sem prejuízo de tudo quanto se expôs, in casu, encontra-se igualmente preenchida a alínea a), do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, que determina que “excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando: a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação de que, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”. JJ. Como decorre da Lei, o recurso de revista previsto no Artigo 672.º, n.º 1, alínea a), do CPC, ainda que a título excecional, pretende possibilitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça naquelas situações em que a questão a apreciar assume importância para tal devido à sua relevância jurídica, sendo claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. KK. E esta é, sem dúvida alguma, a situação do presente Recurso. LL. É entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência portuguesas que o requisito da relevância jurídica incorpora a ideia de a análise do recurso ser "necessária para uma melhor aplicação do direito", sendo notório que este requisito tem um caráter marcadamente jurídico e relacionado com a concreta aplicação das normas aos factos ocorridos, procurando melhorar a aplicação do Direito, seja reparando decisões ou opiniões erradas do passado, seja procurando prevenir decisões contrárias no futuro, definindo uma interpretação a seguir para dada questão. MM. Este requisito permite o recurso de todas aquelas questões que necessitam de uma resposta por parte do Supremo Tribunal de Justiça com vista à definição futura dos corretos caminhos de aplicação do Direito, sendo que abarca: (i) “situações em que a questão jurídica suscitada apresente um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação aos interesses das partes envolvidas”; (ii)Além disso, no escopo da alínea a), n.º 1 do artigo 672.º do CPC, cabem ainda: “Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção). (iii) Quando "existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade" (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2). (iv) "Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito." (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2). (v)"Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais." (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2)". NN. In casu, além de a solução preconizada pelo Tribunal a quo (qual seja a de concluir que para efeitos da aplicação da exceção prevista no n.º 1do artigo 29.º da CMR, à luz do ordenamento jurídico Português, a negligência não é equiparável ao dolo) ter sido alvo de ampla discussão jurisprudencial e doutrinária, existindo uma clara divisão nacional entre duas posições divergentes, é também um tema que exige a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por revestir uma grande importância no plano do transporte internacional de mercadorias. OO. No que se refere à divergência doutrinária e jurisprudencial, no que respeita à interpretação e subsequente aplicação do n.º 1 do artigo 29.º da CMR, existem duas orientações, a saber: (i) Uma que equipara a negligência ao dolo12, conclusão que se alcança porquanto tanto o dolo como a negligência, ao abrigo da Lei Portuguesa, integram o conceito de culpa latu sensu, constituindo ambas atuações culposas ainda que com intensidades diferentes (dividindo-se, por sua vez, numa subposição que apenas equipara a negligência grosseira ao dolo13 - sendo que nesta se admite que a lei portuguesa não equipara genericamente o dolo à negligência, para efeitos de cálculo de indemnização, mas, uma vez que só nos casos de mera culpa é que existe possibilidade de redução da indemnização (artigo 494.º do Código Civil), ocorre, de certa forma, uma equiparação relativa ao grau de culpabilidade do agente do dolo à negligência grosseira); e (ii)Outra que distingue os dois conceitos e apenas considera a existência de dolo por parte do transportador, como pressuposto necessário para excluir a aplicação das causas de exclusão gerais e especiais da responsabilidade do transportador, os limites máximos de indemnização e o sistema de inversão dos ónus de prova14. PP. Indubitavelmente, a questão em apreço motiva um debate doutrinário e jurisprudencial que tem uma dimensão paradigmática para casos futuros e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça pode ser utilizada como um referente. QQ. Sendo que tal questão é objeto de clara divergência na doutrina e na jurisprudência, pode conduzir a decisões contraditórias, obsta à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais, podendo a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça contribuir para a segurança e certeza do direito sobre a questão em causa. RR. Ora, admitir duas interpretações tão divergentes quanto à equiparação (ou não) da negligência ao dolo, à luz do ordenamento jurídico português, para efeitos da aplicação da exceção ao limite indemnizatório previsto para os casos de incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte da transportadora, exceção essa plasmada no artigo 29.º, n.º 1 da CMR, sempre resultará em soluções aleatórias, geradoras, em alguns casos, de graves iniquidades. SS. Ademais, a adoção aleatória de qualquer uma destas soluções gera uma enorme e intolerável incerteza relativamente à aplicação do Direito, com impacto direto e relevante na gestão da contratação do transporte internacional de mercadorias por estrada. TT. O esclarecimento em apreço impõe-se por razões de relevância jurídica substancial, contrariedade jurisprudencial e insegurança doutrinária, com consequências práticas significativas no domínio do transporte internacional de mercadorias. UU. O artigo 29.º, n.º 1 da CMR constitui uma exceção ao regime regra de limitação da responsabilidade do transportador. Dispõe que este não pode beneficiar das limitações de responsabilidade previstas na Convenção se o dano tiver resultado de ato ou omissão dolosa ou provier de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.". VV. No contexto do ordenamento jurídico português, subsiste a dúvida sobre se o dolo, por se tratar de uma forma mais intensa de culpa, deverá ser automaticamente equiparado, para efeitos da CMR, à negligência. Tal incerteza afeta a uniformidade da aplicação da Convenção e compromete a previsibilidade da responsabilidade em sede de transporte internacional. WW. Com efeito, um qualquer agente económico deve poder ter a certeza se pode ou não obter o total ressarcimento de prejuízos decorrentes do incumprimento contratual do transportador contratado nos casos de negligência deste, ou se pelo contrário deverá assumir, precavendo-se por outras vias, que o referido transportador pode dar-se ao luxo de negligenciar o cumprimento do serviço contratado, pois só no caso extremo e raro de atuação dolosa será penalizado com a obrigação de assegurar aquele ressarcimento. XX. Na certeza de que a questão jurídica suscitada é, por maioria de razão, transponível para qualquer relação contratual, sendo assim absolutamente autónoma e independente em relação aos interesses de Recorrente e Recorrida. YY. Assim sendo, mostra-se necessária uma intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, atenta a relevância jurídica da questão suscitada, em nome de uma melhor aplicação do Direito, pelo que deverá ser admitido o presente Recurso Excecional de Revista, à luz do Artigo 672.º, n.º 1, alínea a). do CPC. ZZ. Demonstrada a verificação dos pressupostos para a admissão da presente revista, passa-se a demonstrar os erros de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo e que necessariamente determinam a revogação do Acórdão recorrido. AAA. A CMR endossou à ordem jurídica nacional a definição do nexo de imputação ao transportador da responsabilidade efectivamente apurada; como para onosso ordenamento o nexo de imputação é estabelecido tanto no caso de comportamento doloso como no de comportamento negligente, a falta em que este se traduz é equivalente àquele no quadro do artigo 29º da CMR. BBB. Para efeitos de definição da responsabilidade contratual, é indiferente que a falta de cumprimento ou a execução defeituosa da prestação se fique a dever a dolo ou a negligência do obrigado. O direito nacional equipara a negligência ao dolo no âmbito da responsabilidade contratual, enquanto pressuposto desta. CCC. A culpa em sentido lato abrange tanto o dolo como a negligência, pelo que, uma vez definida a culpa do transportador, este responde pela totalidade do prejuízo. DDD. No caso dos autos, está demostrada a culpa da Recorrida no incumprimento do contrato de transporte objeto dos autos. EEE. Está igualmente demostrada a verificação de prejuízos na esfera da Recorrente, bem como o nexo de causalidade entre aquele incumprimento e tais prejuízos. FFF. Considerando que a conduta da Recorrida foi classificada como negligente, conclui-se, assim, que a Recorrida não pode beneficiar do limite de indemnização previsto no Artigo 23.º da CRM, por aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, do referido Diploma Legal. GGG. Pelo que devia o Tribunal a quo ter revogado a sentença recorrida, condenando a Recorrida no pedido. HHH. Termos em que deve ser revogado o Acórdão recorrido, decidindo-se pela condenação da recorrida no pedido. III. Por fim, também aqui se verifica a nulidade do Acórdão recorrido. JJJ. O Tribunal a quo entendeu que a atuação da Recorrida, no caso dos autos, não consubstanciou uma atuação dolosa, não sendo, por isso, aplicável o n.º 1 do artigo 29.º da CRM, o que foi determinante na absolvição da Recorrida da instância. KKK. Porém, nesta última matéria, o Acórdão recorrido padece de nulidade, o que justifica a sua alteração, nos termos que se passarão a expor. LLL. Em matéria de atuação dolosa e/ou grosseiramente negligente no caso dos autos por parte da Recorrida, a Recorrente alegou nas suas alegações de recurso o seguinte: “Foi dado como provado que a mercadoria chegou ao aeroporto de Malta, por via aérea, no dia 23.12.2020, às 08.37h, onde devia ter sido transportada entre o aeroporto e o destinatário através de transporte rodoviário (Cfr. Factos provados 11, 24 e 26). Foi dado como provado que desde o dia 23.12.2020, às 08.37h, até ao dia 04.01.2021, às 12.20h (momento em que a mercadoria saiu do aeroporto para ser entregue ao destinatário cerca concretizar o transporte da mercadoria até ao seu destinatário, inexistindo qualquer registo de uma tal tentativa ou diligência (Cfr. Fato provado 26 e facto não provado d)). A Recorrida sabia que a entrega da mercadoria transportada devia ser feita em 2 dias úteis a contar do seu envio e que, para concretizar a entrega contratada, teria de tomar medidas para o efeito, designadamente assegurar a disponibilização de um veículo e de um motorista para o transporte rodoviário da mercadoria do aeroporto de Malta até ao destinatário (Cfr. Fato provado 11). Considerando que a entrega da mercadoria transportada constituía, justamente, a obrigação principal da Recorrida no âmbito do contrato objeto dos autos e, bem assim, que, por definição, sem a tomada das necessárias medidas para o efeito a entrega contratada nunca poderia ser realizada e muito menos no prazo acordado, resulta do princípio da normalidade e da regra geral da experiência, que a Recorrida tinha conhecimento de que a sua omissão era ilícita e que determinaria o não cumprimento da obrigação de entrega no prazo acordado, o que nos convoca para a figura do dolo necessário, o qual deveria ter sido dado como verificado, por presunção judicial, nos termos do Artigo 349º do Código Civil. Na certeza de que o dolo pode ser provado por presunção judicial. Veja-se, nesse sentido, o Acórdão da Relação de Évora, de 27-09-2011, proferido no processo 761/10.9PAOLH.E1 e disponível em www.dgsi.pt. Conclui-se, assim, contrariamente ao sustentado pelo Tribunal recorrido, que resulta inequivocamente dos autos a verificação de uma conduta dolosa por parte da Recorrida que provocou a demora na entrega da encomenda. O que acima se disse é suficiente para determinar a aplicação ao caso vertente da exceção prevista no Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, afastando-se a o limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º n.º 5, da CMR. Pelo que devia a Recorrida ter sido condenada no pedido. Mas mesmo que assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se admite, a conduta da Recorrida teria sempre de ser classificada como grosseiramente negligente. Como é bom de ver, estar 9 dias úteis sem tomar uma qualquer medida para concretizar o transporte contratado, determinando o atraso verificado, consubstancia uma conduta absolutamente intolerável, inenarrável e certamente censurável, que qualquer profissional de transportes, colocado na concreta situação em que a Recorrida se encontrava, jamais cometeria. A negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, ou seja, à chamada culpa grave que consiste na omissão dos deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de observar, o que se verificou no caso vertente. Pelo que, contrariamente ao sustentado pelo Tribunal recorrido na sentença em crise, ficou inquestionavelmente demostrado nos autos um "elevado grau de negligência" por parte da Recorrida, sendo extravagante admitir-se que, com tal conduta, a Recorrida possa beneficiar do limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º n.º 5, da CMR. Acresce que não foi apresentada qualquer justificação para a omissão verificada. Mais: A Recorrida nem sequer sabe explicar porque razão o transporte da mercadoria em apreço 9 dias úteis a ser concretizado, quando ficou demostrado que bastariam cerca de 40 minutos para o fazer (Cfr. Factos provados 26, 29, 31, 32, 34 e facto não provado d)) [isto é corroborado pelo depoimento das testemunhas AA e BB]. Note-se que, nestes casos, a total ausência de explicação quanto ao atraso verificado deve ser equiparada a negligência indesculpável ou grosseira. A este respeito, veja-se o já citado Acórdão da Relação de Lisboa de 27.10.2022, proferido no âmbito do processo 5366/21.6T8LSB.L1-2 e disponível em www.dgsi.pt, onde se decidiu deforma lapidar o seguinte (esclarecendo-se que muito embora o Acórdão em apreço se reporte à responsabilidade do transportador por furto/perda da coisa transportada, a doutrina nele ínsita não deixa, naturalmente, de ser aplicada ao caso dos autos): "O dever de esclarecimento do transportador O Prof. Januário da Costa Gomes, no já citado comentário ao acórdão do STJ de 12/10/2017, páginas 609-620, especificamente pág. 613, nota 9 e texto correspondente, lembra que: "Naturalmente […] a prova exigida [ao interessado, ou seja, a prova de factos que demonstrem não ser o transportador merecedor da limitação] não pode ser diabólica, estando o transportador em melhores condições para esclarecer os factos, razão pela qual sustenta Jesser-Huss, in Münchener Kommentar zum Handelsgesetzbuch, 7, cit., p. 1140 e ss., impender sobre o transportador um dever de esclarecimento […]. João Ricardo Branco, no estudo citado, depois de nas páginas 376 a 380 desenvolver a questão, conclui na pág. 380:"[…] a solução quanto à repartição do ónus da prova não deve ser desligada da defesa de uma apreciação abstracta da conduta do transportador. Assim se equilibram minimamente os interesses em presença: de um lado, as dificuldades de prova do lesado são atenuadas por um julgamento tendencialmente objectivo da conduta do transportador; do outro, para se fazer valer dos tectos indemnizatórios estabelecidos na lei bastará ao transportador invocar as respectivas normas, nada mais tendo de provar." E quanto à apreciação objectiva da conduta tinha dito nas páginas 373 a 375: "[…] na apreciação in abstracto a conduta do transportador deve ser apreciada em termos objectivos, apelando ao grau de diligência de um bom transportador e lançando mão da lógica dos normais padrões profissionais. A apreciação in abstracto tem por efeito, como facilmente se percebe, alargar o sistema de preclusão da limitação da responsabilidade, pois bastará provar que o transportador não cumpriu os graus mínimos e exigíveis de diligência e que um transportador minimamente atento teria verificado que a sua actuação se apresentava vedada pelo ordenamento jurídico. A justificação deste tipo de concepção ancora-se, por um lado, no exponencial avanço e desenvolvimento do ramo dos transportes, com uma redução significativa dos perigos associados e com o elevado grau de profissionalização do sector. Deste modo, o transportador apenas deverá poder limitar a sua responsabilidade se ficar demonstrado que cumpriu os parâmetros de diligência exigíveis. Sustenta-se, inclusivamente, a este respeito que a possibilidade do transportador limitar a sua responsabilidade se apresenta como uma hipótese excepcional, que só deverá beneficiar o transportador bom e diligente. Por outra banda, faz-se notar que a prova do animus do transportador se afigura extremamente difícil." E adopta, na pág. 376, a seguinte posição: "[…] o certo é que se impõe hoje uma apreciação de tipo tendencialmente abstracto, apelando à diligência profissional. Nos casos em que estiver em causa uma conduta temerária do transportador, impõe-se, com especial intensidade, fixar o carácter censurável dessa conduta à luz de critérios normativos, dados os valores em presença. De facto, seria manifestamente chocante e disforme com o sistema de responsabilidade do transportador que este se pudesse fazer valer dos limites de responsabilidade naquelas situações em que a sua conduta objectivamente apreciada não condiz com os patamares de diligência que passageiros e carregadores podem normalmente esperar." Em suma: O transportador tem, pelo menos, de alegar o que é que se passou com a mercadoria. Ao fazê-lo, dá ao expedidor as bases necessárias para que possa fazer a investigação dos factos que lhe permitam alegar que o transportador agiu com culpa grave, sem adoptar os cuidados precisos para evitar a perda/destruição, total ou parcial, da mercadoria. Se não o fizer, isto é, se o transportador não cumprir aquele dever de esclarecimento mínimo, tem de se concluir, por presunção judicial (art.º 349 do CC), que ele não actuou de forma minimamente diligente. Pois só um transportador completamente despreocupado comas mercadorias, isto é, comos interesses das suas contra-partes, é que nem sequer é capaz de dizer o que é que se passou com as mercadorias; se não fosse assim, teria organizado a sua empresa e o transporte de mercadorias de modo a ter o mínimo de conhecimento do que é que se passava com elas. O sistema de responsabilidade do transportador não está pensado para proteger este tipo de transportador que não cumpre minimamente com os padrões de diligência exigíveis. Os expedidores, quando contratam o transporte da mercadoria, estão à espera que os transportadores tenham a sua empresa organizada de tal modo que possam, pelo menos, ter conhecimento do que é que se passa com as mercadorias. Conclui-se, assim, que no caso a ré não deve poder beneficiar do limite à sua responsabilidade porque, face à ausência de qualquer explicação para o desaparecimento da mercadoria (factos H, J e J), demonstra que não tem a sua empresa organizada de modo a cumprir os parâmetros de diligência exigíveis, nem os cumpriu no caso dos autos." Do citado arresto resulta que se o transportador não cumprir o dever de esclarecimento mínimo sobre o que se passou com a mercadoria, leia-se, quanto ao caso vertente, sobre o que se passou para que a entrega contratada tenha sido promovida 9 dias úteis após o prazo acordado, tem de se concluir, por presunção judicial, que a Recorrida não cumpriu minimamente os padrões de exigência exigíveis, não podendo beneficiar do limite à sua responsabilidade.". MMM. Analisado o Acórdão ora recorrido, constata-se que o Tribunal da Relação de Lisboa se limitou, no que concerne à análise da invocada conduta dolosa e/ou grosseiramente negligente no caso dos autos por parte da Recorrida, a apresentar meras conclusões sem a explicação dos motivos que as sustentam. NNN. Com efeito, nesta matéria, o Tribunal da Relação de Lisboa limitou-se a referir o seguinte: "Mesmo no que concerne ao limite indemnizatório estabelecido no n.º 5 do artigo 23.º da CMR a Recorrente aceita o decidido, apenas entendendo que se verifica a excepção prevista no artigo 29.º, n.º 1, da CMR, considerando a negligência grosseira como equiparada ao dolo, mas, mais ainda, que "resulta demostrado" que existiu "uma conduta dolosa por parte da Recorrida" (carecendo em absoluto de sentido a transcrição de depoimentos testemunhais nas Alegações para defender este entendimento, como a Recorrente faz). "não só os factos não permitem concluir que a Ré atuou dolosamente, como o regime jurídico aplicável (o do direito nacional), não equipara a negligência leve à grosseira". OOO. Sendo que quanto à alegada conduta dolosa da Recorrida, na nota de rodapé n.º 31, pág. 39 do Acórdão Reclamado, o Tribunal da Relação de Lisboa limitou-se a afirmar o seguinte: "Desde logo porque o contexto factual com que aqui trabalhamos não só nos mostra a leveza e facilidade com que a Autora tratou uma situação em que teria de tudo fazer para não correr riscos desnecessários (e tinha modalidades de serviços da Ré - personalizadas e com acompanhamento - que lhe davam essas garantias, mas que eram mais caras), como nem sequer atentou que estávamos em situação pandémica, na altura do Natal e que havia que contar com os fins de semana, preferindo confiar na sorte, ou na… normalidade. Em caso algum a conduta da Recorrida poderia ser sequer considerada grave, consciente ou indesculpável, e susceptível de ser enquadrada como negligência grosseira (assim ficando também afastada essa possibilidade para ao caso de se adoptar esse entendimento jurisprudencial." PPP. Ora, como é bom de ver, a Recorrente não consegue alcançar, uma vez que o Tribunal da Relação de Lisboa não explicou, a razão pela qual carecem "em absoluto de sentido a transcrição de depoimentos testemunhais nas Alegações para defender este entendimento, como a Recorrente faz". QQQ. Sendo que também não se consegue alcançar, uma vez que o Tribunal da Relação de Lisboa também não explicou, a razão pela qual a alegada conduta dolosa da Recorrida é liminarmente afastada pela alegada conduta da Recorrente, por não ter contratado outros serviços disponibilizados pela Recorrida e/ou por o serviço contratado ter sido efetuado em contexto pandémico, sobretudo se não ficou provada a ocorrência de quaisquer constrangimentos na prestação dos serviços contratado decorrentes desse contexto pandémico. RRR. Parece que o Tribunal da Relação de Lisboa pretendeu "desculpar" o gravíssimo incumprimento contratual imputável à Recorrida com a decisão da Recorrente contratar o serviço incumprido…. SSS. Para além de, salvo o devido respeito, ser absolutamente ininteligível um tal raciocínio, a verdade é que o Tribunal da Relação de Lisboa não explica a razão pela qual conclui que a atuação da Recorrida não é dolosa ou gravemente negligente. TTT. Isto quando nem a Recorrida sabe explicar a razão pela qual esteve 9 dias úteis sem tomar uma qualquer medida para concretizar o transporte contratado. UUU. Ou seja, o Tribunal da Relação de Lisboa limitou-se a apresentar uma conclusão sem a explicação dos motivos que a sustentam. VVV. Ora, como é entendimento unânime da Jurisprudência Portuguesa, o dever de fundamentação das decisões judiciais resulta, desde logo, de imposição constitucional, nos quadros do n.º 1 do Artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, densificando-se legalmente, desde logo, no prescrito no Artigo 154º do CPC. WWW. Tal dever constitucional e legal tem por objetivo a explicitação por parte do julgador acerca dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido, dirimindo determinado litígio que lhe foi colocado, de forma a que os destinatários possam entender as razões da decisão proferida e, caso o entendam, sindicá-la e reagir contra a mesma. XXX. Este dever constitucional e legal visa ainda garantir a transparência e a legitimidade das decisões judiciais, devendo ser escrupulosamente respeitado, em especial nas decisões que não admitem recurso ordinário. YYY.A fundamentação das decisões judiciais deve, assim, apresentar uma densidade suficiente para que se possam dar por satisfeitos os objetivos constitucionais: permitir aos destinatários exercitar com eficácia os meios legais de reação ao seu dispor e assegurar a transparência e a reflexão decisória, convencendo, e não apenas impondo. ZZZ. Conforme ensinou Alberto dos Reis (in Comentário, 2º -172 e Anotado, 1º -172) "O dever de fundamento de todas as decisões judiciais, mesmo daquelas de que não cabe recurso, assenta na necessidade de as partes serem não só esclarecidas, mas também convencidas do seu acerto", uma vez que o seu valor extrínseco, independentemente da decisão se impor por si mesma, flui da sua motivação, cuja função pedagógica-social se não pode subestimar. AAAA. Ora, afigurando-se pacífico que só existe fundamentação quando há um conteúdo que exprima a justificação do que é afirmado, não faltando qualquer elemento que o deva constituir, facilmente se concluiu que a apresentação de meras conclusões sem a explicação dos motivos que as sustentam, como se verificou na elaboração do Acórdão recorrido, não constitui fundamentação da decisão, nos termos e para os efeitos do Artigos 205º da Constituição da República Portuguesa e do Artigo 154º do CPC. BBBB. Assim, ao limitar-se, no Acórdão recorrido e nos segmentos acima indicados e decisivos para a decisão proferida, a apresentar meras conclusões sem a explicação dos motivos que as sustentam, o Tribunal da Relação de Lisboa violou os Artigos 154º, n.º 1, 607º, n.º 3, e 663º, n.º 2, do CPC, o que determina a nulidade do Acórdão recorrido, nos termos dos Artigos 615º, n.º 1, alínea b) e 666º, n.º 1, e 679º, todos do CPC. CCCC. Por mera cautela de patrocínio, invoca-se ainda a inconstitucionalidade da interpretação dos Artigos 154º, n.º 1, e 607º, n.º 3 do CPC (este último por remissão do Artigo 663.º, n.º 2, do CPC) segundo a qual é possível ao Tribunal de recurso fundamentar a sua decisão com base em conclusões sem apresentar e/ou explicar as razões e os motivos que sustentam tais conclusões, por violação do dever de fundamentação das decisões judiciais constante do artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, não apenas perante este Tribunal, mas também para efeito de invocação prévia da questão de constitucionalidade tendo em vista possível recurso para o Tribunal Constitucional. DDDD. Nestes termos e nos mais do Direito aplicável, deverá ser declarada a nulidade do Acórdão Reclamado”. 5. A ré apresentou contra-alegações que, não obstante não terminarem, formalmente, com conclusões, dada a sua (comparativamente menor) extensão, não se vê inconveniente em reproduzir também: “A recorrente estriba a admissibilidade da revista extraordinária ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alínea c) do CPC, designadamente numa alegada contradição entre o aresto recorrido e a decisão proferida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Outubro de 2017, Processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S1, relator Senhor Juiz Conselheiro Olindo Geraldes, já transitado em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito. O thema decidendum não é novo. É conhecida a coexistência de duas linhas jurisprudenciais relacionadas com a interpretação do artigo 29.º, n.º 1 da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, aprovada em Genebra, em 19 de Maio de 1956 – em diante CRM - em termos da equiparação, ou não, da negligência ao dolo para efeitos da aplicação dos limites indemnizatórios ali estabelecidos. Porém, tendo em consideração a tendência jurisprudencial mais recente, quer dos Tribunais da Relação, quer desse venerando Supremo Tribunal de Justiça, a questão não se coloca perante a mera dicotomia invocada pela recorrente, no sentido de a negligência ser, ou não, equiparada ao dolo para efeitos de aplicação da dita norma. Senão vejamos, A recorrida não desconhece a tese explanada no acórdão-fundamento trazido à colação pela recorrida, no sentido de equiparar o dolo e a mera culpa para efeitos de responsabilidade civil contratual do transportador com comportamento meramente negligente, para efeitos do benefício da exclusão ou da limitação da responsabilidade civil prevista na CMR. Porém, com o devido e merecido respeito, essa tese encontra-se ultrapassada por uma outra tese que dela deriva, no sentido de apenas a negligência grosseira / culpa grave – também designada por culpa grave consciente ou por falta indesculpável – ser considerada equivalente ao dolo para efeito do afastamento da limitação da responsabilidade do transportador estabelecida no artigo 29.º da CRM, cfr., entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/10/2022, Processo 5366/21.6T8LSB.L1-2, relator Senhor Desembargador Pedro Martins e o recentíssimo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/07/2025, Processo 365/23.6T8PMS.C1.S1, relator Senhor Juiz Conselheiro Henrique Antunes. Ou seja, no panorama actual, admite-se que possam coexistir duas orientações jurisprudenciais sobre a matéria. Uma que equipara a negligência grosseira – ou consciente – ao dolo. E outra – seguida pelo D. Acórdão recorrido e, de resto, pela D. sentença de 1.ª instância que o D. Acórdão recorrido confirmou – que distingue claramente o dolo e a negligência, tal como entendidos na nossa tradicional doutrina civilística dita tradicional. A tese segundo a qual a mera culpa – aliás presumida – é equiparada ao dolo, para efeitos da interpretação da norma do artigo 29.º, n.º 1 da CRM, não tem vindo a ser acolhida pela mais recente jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Por um lado, pela circunstância de assentar numa espécie de erro sobre os fundamentos de direitos, a saber, a desconsideração absoluta da norma do artigo 21.º do Decreto-Lei º 239/2003, de 4 de Outubro, que rege os contratos de transporte nacionais: “Sempre que a perda, avaria ou demora resultem de atuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade.” Daqui resultando que nosso ordenamento jurídico e, concretamente, no âmbito do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, não existe, de facto, equiparação da negligência – leve ou grosseira, diga-se – ao dolo. E, por outro, porque “… se toda e qualquer negligência fosse equiparada ao dolo, nos termos do artigo 29.º da CMR, nunca seriam aplicáveis ao transportador todas as disposições da CMR que excluem ou limitam a sua responsabilidade, o que levaria a um total esvaziamento de conteúdo de quase todas as disposições previstas no Capítulo IV da CMR, nomeadamente em matéria relativa à limitação das indemnizações por responsabilidade do transportador.” 3 Ou seja, a duas orientações jurisprudenciais que, presentemente, se encontram em confronto, já nem sequer têm em consideração a tese sustentada no Acórdão-Fundamento. É hoje pacífico que a negligência simples ou inconsciente correspondente à wilful misconduct do sistema de common law que orientou a formulação original da CRM. A questão actual é diferente: O transportador perde o direito à limitação da responsabilidade só quando tenha atuado com dolo? Ou quando, nos termos do seu direito interno, a falta cometida seja consciente e assente em culpa grave – negligência grosseira? Aqui chegados, pode-se desde já adiantar que, tendo em consideração as características do caso concreto dos autos e a matéria de facto assente, a discussão revela-se inócua. Pois dessa factualidade não resulta a existência de qualquer culpa grave e/ou consciente e/ou indesculpável, ou, no léxico do nosso direito civil de natureza romano-germânica, de negligência grosseira. Ora, conforme foi lembrado pela recorrente nas suas alegações, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que a contradição de julgados impõe o preenchimento de três requisitos: “(i) identidade da questão de direito sobre que incidiram os acórdãos em confronto, a qual tem pressuposta a identidade dos respetivos pressupostos de facto; (ii) oposição emergente de decisões expressas e não apenas implícitas; e, (iii) oposição com reflexos no sentido da decisão tomada.” Repete-se, verificando-se in casu tão-só uma situação de mera culpa – aliás presumida – as teses presentemente em confronto não revelam para uma solução distinta daquela que foi adoptada na D. sentença de Primeira Instância de fls.., no D. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls.. que julgou a apelação e no D. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls.. que julgou a reclamação para a conferência. Não temos, pois, por verificados nem o primeiro nem o terceiro dos requisitos de admissibilidade da revista extraordinária assente em oposição de julgados. Devendo, pois, ser o recurso ser rejeitado em apreciação preliminar sumária, cfr. artigo 672.º, n.º 3 do CPC. sem conceder, Conforme tem vindo a sustentar ao longo dos presentes, a recorrida adere à interpretação da norma do artigo 29.º, n.º 1 da CRM adoptada pelas decisões que antecedem, sendo escusado – até para evitar indesejável prolixidade – aqui discorrer a fundamentação melhor expressa nessas decisões, que naturalmente subscreve. Porém – repete-se – ainda que o recurso viesse a ser admitido e viesse a vingar a tese segundo a qual a verificação de negligência grosseira seria bastante para afastar os limites estabelecidos no artigo 29.º. n.º 1 da CRM, tal decisão não alteraria o sentido da D. decisão recorrida. Importando relembrar que: 4 “12. Os serviços Air Standard prestados pela ré têm um nível de eficácia elevado, sendo que, para o destino em apreço, Malta, por referência aos vários envios realizados pela autora através deste serviço, praticamente todos eles foram entregues dentro do prazo de entrega estimado; 13. À data da contratação do referido serviço, a autora sabia que a ré disponibilizava outras modalidades de transporte e entrega, designadamente, os serviços denominados foguetes ou os courrier-on-board com a possibilidade de acompanhamento permanente do transporte por profissional dedicado; 14. Os serviços referidos em 13., têm preços superiores aos praticados nos transportes standard, sendo também os mais adequados para os envios mais críticos, em termos da importância da mercadoria transportada e da urgência pretendida, tendo a autora, adjudicado à ré, noutras ocasiões os referidos serviços, para o mesmo destino em Malta;” Sejamos claros. A recorrente tinha um serviço crítico. Os tempos relativos ao transporte da amostragem do medicamento para o laboratório em Malta e para a emissão do certificado eram curtíssimos, à pele… nada podia correr mal. Acresce que estávamos em Dezembro de 2020, no decorrer da pandemia Covid19 e em época natalícia. Os dias 25/12/2020e 01/01/2021 coincidiram com duas sextas-feiras. Resulta das regras da experiência comum que se tratam de alturas do ano altamente susceptíveis à existência de constrangimentos funcionais em muitos sectores e, particularmente, nos transportes. Ora, perante este circunstancialismo, os prazos apertados e a responsabilidade inerente, cumpre questionar, com todo o respeito, quem não actuou com o devido cuidado. A recorrente, ao invés de optar por adjudicar um serviço de transporte dedicado, adjudicou um serviço standard. É certo que o serviço standard tem um nível de eficácia elevado para o destino Malta (cfr. ponto 12 dos factos provados). Porém, a recorrida disponibilizava outras modalidades de transporte e entrega, com acompanhamento permanente do transporte por profissional dedicado (cfr. ponto 13 dos factos provados). O que era conhecido pela recorrente (cfr. ponto 13 dos factos provados). É certo que tais serviços dedicados têm preços superiores aos praticados nos transportes standard (cfr. ponto 14 dos factos provados). Porém são também os mais adequados para os envios mais críticos, em termos da importância da mercadoria transportada e da urgência pretendida (cfr. ponto 14 dos factos provados). Serviços esses que, aliás, a recorrente já havia adjudicado à recorrida noutras ocasiões para o mesmo destino em Malta (cfr. ponto 14 dos factos provados). Em termos práticos, o que de diferente teria ocorrido num transporte dedicado? No caso ora em apreço, tudo teria corrido de outra forma. Tivesse o transporte um profissional dedicado em exclusivo a este transporte, perante qualquer tipo de dificuldade no momento da entrega da mercadoria, teria contactado telefonicamente a pessoa responsável pela recepção indicada pelo cliente ou promovido o que de necessário se apresentasse para o efeito. O que não sucede, evidentemente, no circuito standard. Diga-se, aliás, que caso a Recorrente tivesse adjudicado um serviço dedicado e ocorresse um atraso como o que ocorreu, sem que tivessem sido tomadas as medidas de recurso com vista à efectiva entrega atempada da mercadoria, então sim, não haveria como justificar o afastamento da culpa grosseira do transportador. mais, Alega a Recorrente ter ficado demonstrado um prejuízo de € 46865,58, em virtude do atraso ocorrido na entrega da mercadoria no laboratório em Malta. Cumpre salientar que não foi isto que ficou provado. O que ficou provado foi: “A margem de lucro que a autora obteria, em 2020, pelo fornecimento do Medicamento ao abrigo dos contratos de fornecimento celebrados era de 46 865,58 €”, cfr. ponto 43. Dos factos provados. Ora, isto não corresponde a um efectivo prejuízo, pois a Recorrente ficou com o lote de medicamentos em causa na sua posse. Certamente que não os inutilizou. De resto, o silêncio da Recorrente a este respeito é bem evidenciador que – com o devido respeito – esconde algo. Num juízo logico-racional, não haveria razões para não trazer aos autos a evidência do prejuízo efectivo – fosse esse o caso – resultante da destruição dos medicamentos sem terem sido comercializados. Note-se, aliás, o cuidado com a Recorrente demonstrou a sua margem neste mesmo medicamento. Porque não demonstrou igual cuidado para demonstrar a perda definitiva de chance de negócio relativamente a este lote de medicamentos? É que, se porventuraa Recorrente comercializou estes medicamentos no exercício de 2021, então a pretensão indemnizatória resultaria num intolerável aproveitamento da situação para gerar, de facto, um enriquecimento sem causa. Sobre a recorrente recais o ónus da prova relativamente ao prejuízo e ao nexo de causalidade adequada entre o facto gerador da responsabilidade e o prejuízo. Porém, a recorrente reservou-se ao silêncio. A margem esperada no negócio em apreço não constitui um prejuízo efectivo, porquanto a Recorrente não ficou impedida de comercializar aqueles medicamentos ao mesmo ou a outros clientes. Em suma, a recorrente não provou – e em rigor nem alegou – o dano. Aliás, como a própria D. sentença de fls.. e o D. Acórdão bem sublinharam, ao lembrar e esclarecer que os lucros perdidos no exercício de 2020 não correspondem necessariamente a perda de possibilidade de comercialização da mercadoria noutro exercício. por último, Ainda que a revista viesse a ser admitida, afigura-se como evidente que os poderes de cognição desse venerando Tribunal sempre ficariam restringidos à questão relacionada com a oposição de julgados, ficando afastada a apreciação das nulidades do D. Acórdão recorrido arguidas nas alegações da recorrente”. 6. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu Acórdão em Conferência rejeitando a arguição de nulidade. 7. O Exmo. Desembargador Relator determinou a subida do recurso a este Supremo Tribunal. 8. Tendo em conta que se verificava dupla conforme mas o recurso ter sido interposto como revista excepcional, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 2, als. a) e c), do CPC, a presente Relatora proferiu despacho remetendo os autos à Formação nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 672.º do CPC. 9. O recurso foi admitido por Acórdão da Formação com fundamento na relevância jurídica da questão em análise nos autos e concluído à presente Relatora para decisão. * Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber: 1.ª) se o Acórdão recorrido é nulo; e 2.ª) se a mera negligência pode ser considerada equivalente ao dolo, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), designadamente para o efeito de excluir a aplicabilidade do direito à limitação da responsabilidade previsto no artigo 23.º da mesma Convenção. * II. FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido: 1. A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto o exercício, entre outras, da actividade de fabrico, comercialização, importação e exportação de medicamentos. 2. A Autora e as sociedades que operam sob a designação comercial Alfaloc mantêm, pelo menos, desde 2010, uma relação contratual, através da qual a Ré se constitui, entre outras, na obrigação de assegurar o transporte e a entrega de amostras de medicamentos da Autora até aos locais de destino por esta indicados, em Portugal e/ou no estrangeiro no prazo estimado de 3 dias úteis. 3. No contexto da referida relação contratual, a Ré enviou, em 21 de Dezembro de 2020, a pedido da Autora, um lote do medicamento “Valganciclovir Aurovitas 450 mg comprimidos revistos por película” (doravante “Medicamento”), com vista à sua entrega nas instalações do laboratório da “Aurobindo APL Swift Services (Malta) Ltd.”, localizado em Malta. 4. Para o serviço de transporte e entrega mencionado em 3., a Autora contratou o serviço oferecido pela Ré, denominado de Air Standard, ou AIR STD que é caracterizado por um transporte aéreo de mercadoria. 5. Concretamente, a mercadoria é recolhida pela Ré no expedidor do cliente. 6. É transportada através de transporte terrestre rodoviário para um armazém da Ré. 7. No qual é medida e pesada (auditada); 8. Sendo depois transportada para o aeroporto onde é carregada em contentores e embarcada em avião. 9. A mercadoria é transportada por via aérea para Colónia, na Alemanha, onde é efectuada a separação de todas as cargas provenientes da Europa e resto do mundo, 10. Seguindo posteriormente para os respectivos destinos através de transporte aéreo. 11. No destino final, a mercadoria é transportada entre o aeroporto e o destinatário através de transporte rodoviário. 12. Os serviços Air Standard prestados pela Ré têm um nível de eficácia elevado, sendo que, para o destino em apreço, Malta, por referência aos vários envios realizados pela Autora através deste serviço, praticamente todos eles foram entregues dentro do prazo de entrega estimado. 13. À data da contratação do referido serviço, a Autora sabia que a Ré disponibilizava outras modalidades de transporte e entrega, designadamente, os serviços denominados foguetes ou os courrier-on-board, com a possibilidade de acompanhamento permanente do transporte por profissional dedicado. 14. Os serviços referidos em 13., têm preços superiores aos praticados nos transportes standard, sendo também os mais adequados para os envios mais críticos, em termos da importância da mercadoria transportada e da urgência pretendida, tendo a Autora, adjudicado à Ré, noutras ocasiões os referidos serviços, para o mesmo destino em Malta. 15. A Ré, para a execução do contrato referido em 3., recorreu aos serviços da empresa UPS – United Parcel Services, que incluía o transporte aéreo da encomenda até Malta e o transporte terrestre da mesma, em Malta, com entrega nas instalações da destinatária. 16. A encomenda foi recolhida no expedidor da Autora, ID LOGISTICS, na Azambuja, pelas 15:00h do dia 21.12.2021. 17. Pelas 17h a mercadoria chegou ao armazém da Ré, onde foi auditada. 18. Tendo sido de seguida transportada, por via terrestre, para o Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. 19. Seguiu através de transporte aéreo, pelas 19h15m para o aeroporto Francisco Sá Carneiro no Porto. 20. E, após, para Colónia, na Alemanha, através de transporte aéreo, onde chegou pelas 00h20m. 21. Em Colónia foi efectuada a separação das cargas. 22. Seguindo a mercadoria, através de transporte aéreo, para Merignac, em França. 23. Nesse dia, 22.12.2021, o avião não seguiu para o seu destino, em Malta. 24. A saída só ocorreu em 23.12.2021, onde chegou no mesmo dia 23.12.2021. 25. A mercadoria foi entregue, por via terrestre, através de transporte rodoviário, nas instalações da “Aurobindo APL Swift Services (Malta) Ltd.”, no dia 04.01.2022; 26. Relativamente aos pormenores e timings respeitantes à execução do transporte e entrega do Medicamento, consta a seguinte informação do Rastreamento do Envio (tracking):
27. Assim que tomou conhecimento da informação constante do tracking a 24.12.2024, a Autora entrou em contacto com a destinatária do envio do Medicamento (“Aurobindo APL Swift Services (Malta) Ltd.”), tendo esta transmitido à autora que as instalações do seu laboratório (local de entrega) encontravam-se abertas no dia 24 de Dezembro de 2020 e que não tinha conhecimento de qualquer tentativa de entrega do Medicamento nessa data; 28. A Autora enviou à Ré, em 30.12.2020, um e-mail, com o seguinte teor: “(…) Boa tarde, Preciso saber com urgência o ponto de situação do envio ES93482OE.
Sei que houve uma tentativa de entrega no dia 24/12 sem sucesso mas já passaram 3 dias úteis e ainda não entregaram a encomenda. É urgente e precisamos que seja entregue ainda hoje. Podem verificar pf? Obrigada Com os Melhores Cumprimentos With my Best Regards CC Administrative Assistant | Technical, Quality & Regulatory Affairs Department (…)” 29. Em resposta ao email referido em 28., a Ré enviou à Autora, a 31.12.2020, um e-mail com o seguinte teor: “(…) Bom dia CC, No dia de hoje falei com um colega seu sobre o envio em assunto, a quem transmitimos a informação de que até ao momento não dispomos de feedback dos nossos parceiros, no entanto, estamos a tomar todas as diligencias necessárias para que o envio seja entregue o mais breve possível. Mais uma vez, as nossas desculpas pelos transtornos causados. (…) DD Serviço Apoio ao Cliente (…)” 30. No dia 31.12.2020, a Autora enviou um e-mail à ré, com o seguinte teor: “(…) Exmos. Senhores, A Generis Farmacêutica S.A. vem por este meio participar a seguinte ocorrência com os vossos serviços. No passado dia 21/12 foi enviado um pacote com carta de porte 6072W14408 para Malta. Até ao dia de hoje (31/12) a encomenda não foi rececionada no destino. Incluímos em baixo o registo do tracking existente no vosso site:
Apesar dos constrangimentos sentidos no dia 22/12 com condições atmosféricas severas, a entrega não concluída no dia 24 suscitou dúvidas junto do nosso parceiro, que nos garantiu que as suas instalações estariam abertas para rececionar a encomenda. Adicionalmente a este ponto, constatamos que passaram 3 dias úteis após a primeira tentativa de entrega desta encomenda sem que tenha sido tentada outra entrega. Ao longo desta semana foi impossível obter justificações aceitáveis da vossa parte para o atraso deste envio. Tendo isto em conta, requeremos a abertura de um processo de investigação para averiguar os motivos que levaram a este atraso. Pedimos também que partilhem um relatório de investigação com as respetivas medidas corretivas e preventivas aplicáveis. Finalmente, reforçamos que a Generis Farmacêutica S.A., titular de autorizações de comercialização de medicamentos, tem no seu portfolio medicamentos fulcrais para o funcionamento do Sistema Nacional de Saúde (SNS), pelo que estas ocorrências põem em risco a Saúde Pública e o acesso atempado à população de medicamentos essenciais. Agradecemos uma resposta da vossa parte com comentários assim que possível. Muito obrigado Com os Melhores Cumprimentos Kind Regards AA Technical & Quality Affairs Junior Officer | Technical, Quality & Regulatory Affairs Department”. 31. Em resposta ao email mencionado em 30., a Ré enviou, em 04.01.2021, um e-mail à Autora com o seguinte teor: “(…) Bom dia Sr. AA, Desde já as nossas desculpas por esta situação, no entanto devido à época festiva e alterações nas medidas de prevenção à pandemia, existiu bastantes atrasos que poderá ter prejudicado esta entrega. Vamos questionar os nossos parceiros de destino qual o ponto de situação do seu envio e daremos feedback no imediato. ES93482OE Muito obrigada! Com os melhores cumprimentos (…) EE Supervisora Serviço Apoio ao Cliente (…)” 32. Em 06.01.2021, a Ré enviou novo email à Autora, com o seguinte teor: “(…) Boa tarde AA, Espero que se encontre bem. Antes de mais lamentar todo o incómodo causado neste transporte. Agradecer também a sua colaboração em todo este processo, que nos permitirá certamente melhorar de futuro. Colaboramos e realizamos várias vezes este serviço, com um grau de eficácia muito elevado cumprindo na sua maioria os timings a que nos propomos. No entanto, não escondemos que pela altura do ano a que foi realizado o serviço, o mesmo pode sofrer alguns impactos pelos mais diversos motivos (meteorológicos, excesso de carga, mecânicos, etc..) condicionando a respetiva entrega. Apesar de até à data termos tido uma intervenção bem sucedida deste serviço com a Generis nas mais diversas alturas do ano. Em suma, a mercadoria saiu de Portugal no dia 21/12. O atraso verificado pelo que podemos apurar, constatou-se em alguns momentos desta operação. Numa primeira fase a mercadoria teve de ficar retida em França, por condições climatéricas adversas e o avião não poder circular. Adicionalmente, a falta de ligações e o excesso de carga verificado que é muito propicio nesta altura do ano, promovido também pela pandemia em vigor originou um ligeiro atraso na chegada da mercadoria a Malta impossibilitando que a mesma fosse para distribuição logo no dia 23/12. No dia 24/12 pela informação transmitida do nosso parceiro, obtivemos a informação que a empresa de destino estaria fechada nesta altura devido à época festiva. No entanto também nos foi esclarecido por vós que o mesmo não se verificava, no entanto a empresa aberta 24h. Por via de alguma comunicação menos elaborada entre agente e destinatário local, compreendeu-se que a entrega só deveria ser retomada no primeiro dia útil do ano onde supostamente a empresa estaria em funcionamento. Conforme o indicado anteriormente, estamos conscientes da importância de fazer chegar ao destino a vossa mercadoria com a maior brevidade possível. Reforço que colaboramos convosco e com várias entidades em que o seu conteúdo é imprescindível que assim o seja. Mais uma vez lamentamos esta situação e iremos tomar medidas internamente que procurem minimizar estes impactos. Agradecer novamente toda a colaboração demonstrada neste processo. Muito obrigada! Com os melhores cumprimentos, (…) EE Supervisora Serviço Apoio ao Cliente (…)”. 33. Por carta datada de 21 de Janeiro de 2021, a Autora comunicou à Alfaloc – Transportes, Lda. o seguinte: “(…) Carta Registada.com A/R (enviada antecipadamente por e-mail Assunto: Cumprimento defeituoso na entrega do lote do medicamento "Volganciclovir Aurevitas 450 mg comprimidos revestidos por pelicula"/ Envio N. 6072W14408 Exmos. Senhores, Na sequência do atraso na entrega do lote do medicamento "Valganciclovir Aurovitas 450 mg comprimidos revestidos por película" no local de destino indicado pela Generis (Envio N.0 6072W14408), vimos pela presente informar V. Exas. do seguinte: Entre a Generis e a Alfaloc encontra-se estabelecida uma relação contratual, nos termos da qual V. Exas. têm assegurado o transporte e a entrega de medicamentos enviados pela Generis até ao local de destino, no prazo máximo de 3 (três) dias úteis após a sua receção pela Alfaloc. Tal como é do V/ conhecimento, o prazo supra indicado para a entrega dos referidos produtos consubstancia uma condição essencial para a prestação dos serviços em causa, atenta a natureza da atividade profissional exercida pela Generis, designadamente de fabrico, comercialização, importação e exportação de medicamentos. Em particular, e tal como tivemos oportunidade de frisar a V. Exas. através da reclamação apresentada por e-mail em 31 de dezembro de 2020, a Generis, enquanto titular de autorizações de comercialização de medicamentos, tem no seu portfolio medicamentos fulcrais para o funcionamento do Sistema Nacional de Saúde — tal como é o caso do medicamento "Valganciclovir Aurovitas 450 mg comprimidos revestidos por película cujo atraso no transporte e na entrega no local de destino coloca, desde logo, em risco a saúde pública e o acesso atempado à população de medicamentos essenciais, para além dos avultados prejuízos monetários que causa diretamente à Generis, os quais cuidaremos de referir infra. No caso ora em crise, a Alfaloc rececionou o lote do medicamento remetido pela Generis em 21 de dezembro de 2020, tendo aquele sido entregue no local de destino, em Malta, apenas no dia 4 de janeiro de 2021, ou seja, 9 (nove) dias úteis após a rececão do lote do medicamento pela Alfaloc em vez dos referidos 3 dias úteis contratualmente estabelecidos (Cfr. Tracking do Envio N.0 6072W14408, disponível em www.alfaloc.pt. que se junta em Anexo). De acordo com a resposta de V. Exas. à N/ reclamação, de 6 de janeiro de 2021, na qual a Alfaloc assumiu o não cumprimento do timing proposto para a entrega da encomenda (3 dias úteis após a sua receção), o atraso terá ocorrido, num primeiro momento, em virtude das "condições climatéricas adversas 'i que se verificavam em França e "pela pandemia" que terá causado um "ligeiro atraso na chegada da mercadoria a Malta impossibilitando que a mesma fosse para distribuição logo no dia 23/12. " Sem prejuízo, certo é que o lote do medicamento apenas foi entregue no seu local de destino em 4 de janeiro de 2021, sendo certo que, tal como demonstra o Tracking do Envio N.0 6072 W 14408, nenhuma outra tentativa de entrega foi realizada após 24 de dezembro de 2020 até à data da efetiva entrega, apesar de resultar do próprio Tracking, em 24.12,2020, que "The receiving business was closed and delivery has been rescheduled for the next business day", ou seja, que iria ser promovida uma nova tentativa de entrega no dia útil seguinte (28 de dezembro 2020), o que não se verificou, A propósito da omissão de uma nova tentativa de entrega no período acima indicado, a Alfaloc refere na resposta à N/ reclamação apresentada em 31 de dezembro de 2020 que, “Por via de alguma comunicação menos elaborada entre agente e destinatário local, compreendeu-se que a entrega só deveria ser retomada no primeiro dia útil do ano onde supostamente a empresa estaria em funcionamento.” Cumpre-nos, em primeiro lugar, salientar a este respeito, que a informação prestada pelo V/ subcontratante local acerca do funcionamento do destinatário da entrega é falsa, na medida em que este garantiu a presença permanente de, pelo menos, 1 (um) funcionário no local de destino durante o período compreendido entre 24 de dezembro de 2020 e a data da efetiva entrega, o qual se encontrava habilitado para receber o lote do medicamento. Em qualquer caso, tal como V. Exas compreenderão, a eventual responsabilidade do V/ subcontratante local pelo atraso na entrega não consubstancia uma causa de exclusão da responsabilidade direta da Alfaloc perante a Generis, por referência ao referido facto — leia-se, o atraso na entrega — que constitui, nos termos da Lei, um cumprimento defeituoso imputável à Alfaloc no âmbito da relação contratual firmada entre as Partes, Por fim, salientamos que, na mesma reclamação apresentada pela Generis a V. Exas, foi por aquela requerido um relatório de investigação com as respetivas medidas corretivas e preventivas aplicadas pela Alfaloc perante o incumprimento ora em apreço, o qual, até à presente data, não foi remetido à Generis. Tal como supra adiantado, o atraso na entrega do lote do medicamento em causa acarretou avultados prejuízos monetários à Generis, os quais ascendem ao montante de € 57.774,67 (cinquenta e sete mil, setecentos e setenta e quatro euros e sessenta e sete cêntimos), que corresponde à soma: i. (i) Do valor da margem perdida pela Generis por referência aos medicamentos objeto de encomendas que haviam sido promovidas junto desta até 21 de dezembro de 2020 e que foram canceladas em virtude do cumprimento defeituoso verificado elou da caducidade dos contratos celebrados pela Generis nos termos da legislação aplicável à contratação pública, ao abrigo do qual foram os medicamentos encomendados; e ii. (ii) Do valor que a Generis pagou à Alfaloc pelo serviço de transporte e entrega em causa (€ 181,68). Assim sendo, solicitamos que V, Exas. procedam ao pagamento do montante indicado no parágrafo anterior, a título de prejuízos diretos decorrentes do cumprimento defeituoso verificado, através de transferência bancária para a conta da Generis junto do Banco Português de Investimento, com o IBAN PT50 .... ........ .... ... . 7, no prazo máximo de 30 (trinta) dias a contar da receção da presente carta. Caso V. Exas, não procedam ao pagamento do valor em dívida no prazo acima indicado, sentir-nos-emos livres para desenvolver, de imediato, todas as diligências necessárias å salvaguarda dos nossos legítimos interesses e direitos. Sem outro assunto de momento, apresentamos os N/melhores cumprimentos, Atentamente, (FF, CEO) Anexo 2 (dois) documentos.” 34. Em 15.04.2021, a Alfaloc enviou um e-mail à autora com o seguinte conteúdo: “(…) Exmos. Senhores Na sequência do vosso email, que agradecemos, comunicamos ter procedido à reabertura do processo de reclamação com vista ao apuramento de mais informações sobre o atraso verificado na entrega da vossa encomenda enviada sob a carta de porte 6072W14408. Do novo inquérito realizado aos serviços responsáveis pela entrega em Malta recebemos as informações que, em síntese, confirmam o que já fora transmitido. Ou seja, o envio sofreu duas paragens: 1. O atraso de um dia, a 22 dezembro, na escala no aeroporto de Paris, por motivos meteorológicos – o avião não foi autorizado a descolar; 2. Na manhã do dia seguinte, já com o envio em Malta, os serviços responsáveis pela entrega (UPS Malta) confirmam terem obtido a informação às 9:55 que o destinatário estaria encerrado, devendo a encomenda ficar em armazém para ser entregue no primeiro dia útil de janeiro. O que foi cumprido, às 13:03 de segunda-feira, dia 4/1. Apesar dos nossos serviços air standard terem um nível de eficácia elevado, superior a 97%, os tempos de trânsito são estimados. Para este destino em concreto, dos vários envios realizados pela GENERIS através deste nosso serviço, confirma-se a eficácia do serviço, com praticamente todos os envios a serem entregues dentro do prazo de entrega estimado. Ainda assim, a ALFALOC disponibiliza outros serviços com maior fiabilidade, e até com possibilidade de acompanhamento permanente por profissional dedicado. Os Foguetes, para os envios por via terrestre em carrinhas dedicadas, e, os Courier-On-Board, por via aérea, são dois tipos de serviço que correspondem a essa tipologia de transportes mais fiáveis e com possibilidade de monitorização permanente, porventura mais adequados aos vossos envios mais críticos. Este último tipo de serviço (COB), de resto, já foi utilizado pela GENERIS para o mesmo destino em Malta, no mês passado. Gostaríamos de salientar que, atendendo à criticidade dos envios em causa, será recomendável a contratação autónoma de seguros que assegurem os riscos que não são cobertos pelos transportes e até porventura riscos de prejuízos decorrentes. Queremos ainda comunicar-vos que, compreendemos e lamentamos a situação relatada, e, apesar do atraso verificado não configurar por lei a obrigatoriedade da devolução do preço do transporte, vamos creditar o montante total do transporte à Generis. Ficamos ao dispor, Muito obrigada! Com os melhores cumprimentos (…) GG Director Serviço Apoio ao Cliente(…)”. 35. A Ré emitiu a favor da Autora a nota de crédito n.º 32110073 de 16.04.2021, no valor de 181,68 € com a descrição “carga de porte E934820E” “data 2020-12-21” “Expedidor ID Logistics 2050-544 Azambuja, PT” “Destinatário APL Swift Services (Malta) Ltd 3000 Malta, Malta” “Qtd 1” “Vol Peso 5 vols 13.776 Kg (v)” “Serviço Export Air Door-to-Door”. 36. A Autora, enquanto titular de autorizações de comercialização de medicamentos, tem no seu portfólio medicamentos fulcrais para o funcionamento do Sistema Nacional de Saúde – tal como é o caso do Medicamento dos autos. 37. Foram adjudicadas à Autora diversas propostas por si apresentadas para o fornecimento do Medicamento a vários hospitais do Sistema Nacional de Saúde durante o ano de 2020. 38. Nomeadamente, à Autora foi adjudicada a proposta para o fornecimento de 41.280 (quarenta e uma mil e duzentas e oitenta) unidades do Medicamento aos “SPMS – Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE” durante o ano de 2020 no âmbito do procedimento n.º P259-2020-019. 39. Os fornecimentos dos medicamentos adjudicados a que se refere 37., foram sendo realizados pela Autora durante o ano de 2020, em função das encomendas promovidas pelas respectivas entidades adjudicantes. 40. O pedido de envio do lote do Medicamento efetuado pela Autora junto da Ré, em 21 de Dezembro de 2020, teve por base a necessidade de aquela obter o certificado de conformidade legalmente exigível à comercialização do novo lote do Medicamento em Portugal e assim realizar as últimas encomendas promovidas pelas respectivas entidades adjudicantes dentro do prazo previsto, ou seja, até 31 de Dezembro de 2020; 41. A destinatária do envio do lote do Medicamento, responsável pela análise e emissão do referido certificado de conformidade, comprometeu-se perante a autora a emiti-lo no prazo de sete dias a contar da recepção do Medicamento. 42. Na sequência da entrega a que se reporta 25. dos factos provados, o certificado de conformidade veio a ser emitido pela destinatária do envio do Medicamento a 12.01.2021. 43. A margem de lucro que a Autora obteria, em 2020, pelo fornecimento do Medicamento ao abrigo dos contratos de fornecimento celebrados era de 46 865,58 €. 44. Os contratos celebrados pela Autora referidos em 37. e 38. não previam o fornecimento do Medicamento após o dia 31 de Dezembro de 2020, pelo que a Autora não efectuou os fornecimentos do Medicamento, por falta de certificado de conformidade nessa data. E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido: a) No âmbito das relações contratuais entre as partes, melhor identificada em 2. dos factos provados, a Ré obrigou-se a prestar os referidos serviços, no prazo máximo de 3 dias úteis. b) No âmbito da relação contratual referida em 3., foi acordado entre as partes um prazo máximo de entrega de 3 dias úteis; c) No dia 22.11.2020, na escala no aeroporto em Paris, por motivos meteorológicos, o avião não foi autorizado a descolar; d) No dia 24.12.2021 foi efectuada uma tentativa de entrega da mercadoria, por via terrestre, encontrando-se a empresa de destino encerrada para férias de Natal e Ano Novo, pelo que a encomenda só podia ser entregue no primeiro dia útil de janeiro; e) A destinatária do envio do lote do Medicamento, responsável pela análise e emissão do referido certificado de conformidade, comprometeu-se perante a Autora a emiti-lo até ao dia 31 de dezembro de 2020, sob condição de o Medicamento lhe ser entregue no dia 24 de dezembro de 2020; f) Parte da margem de lucro perdida pela Autora (11.635,46 € dos 46.865,58 €) poderia eventualmente ser recuperada pela autora, caso a ré tivesse procedido à entrega do Medicamento na data que a própria veio a agendar para a segunda tentativa (28.12.2020). O DIREITO Das alegadas nulidade e inconstitucionalidade A autora / recorrente refere-se, a certa altura, à nulidade do Acórdão recorrido (cfr., expressis verbis, conclusões D, III, KKK, BBBB e DDDD das alegações de revista). Lendo as conclusões das alegações de revista relevantes, conclui-se que esta arguição de nulidade não é senão a expressão do inconformismo da recorrente com a decisão, mais precisamente, com a circunstância de o Tribunal a quo não ter classificado a conduta da transportadora como dolosa ou grosseiramente negligente. Vejam-se as conclusões mais ilustrativas. Diz a recorrente, por exemplo, na conclusão D: “Por fim, o Acórdão recorrido encontra-se ferido de nulidade, porquanto o Tribunal a quo não fundamentou a sua decisão de não classificar como dolosa a conduta da Recorrida no caso dos autos, o que determinou a não aplicação do n.º 1 do artigo 29.º da CRM e a consequente improcedência do pedido formulado pela Recorrente, o que fundamenta a apresentação do presente recurso, nos termos e para os efeitos do Artigo 615, n.º 4, do CPC”. Diz a recorrente nas conclusões JJJ, KKK e MMM: “O Tribunal a quo entendeu que a atuação da Recorrida, no caso dos autos, não consubstanciou uma atuação dolosa, não sendo, por isso, aplicável o n.º 1 do artigo 29.º da CRM, o que foi determinante na absolvição da Recorrida da instância. Porém, nesta última matéria, o Acórdão recorrido padece de nulidade, o que justifica a sua alteração, nos termos que se passarão a expor (…). Analisado o Acórdão ora recorrido, constata-se que o Tribunal da Relação de Lisboa se limitou, no que concerne à análise da invocada conduta dolosa e/ou grosseiramente negligente no caso dos autos por parte da Recorrida, a apresentar meras conclusões sem a explicação dos motivos que as sustentam”. Diz a recorrente nas conclusões PPP, QQQ, RRR, SSS, TTT e UUU: “Ora, como é bom de ver, a Recorrente não consegue alcançar, uma vez que o Tribunal da Relação de Lisboa não explicou, a razão pela qual carecem "em absoluto de sentido a transcrição de depoimentos testemunhais nas Alegações para defender este entendimento, como a Recorrente faz". Sendo que também não se consegue alcançar, uma vez que o Tribunal da Relação de Lisboa também não explicou, a razão pela qual a alegada conduta dolosa da Recorrida é liminarmente afastada pela alegada conduta da Recorrente, por não ter contratado outros serviços disponibilizados pela Recorrida e/ou por o serviço contratado ter sido efetuado em contexto pandémico, sobretudo se não ficou provada a ocorrência de quaisquer constrangimentos na prestação dos serviços contratado decorrentes desse contexto pandémico. Parece que o Tribunal da Relação de Lisboa pretendeu "desculpar" o gravíssimo incumprimento contratual imputável à Recorrida com a decisão da Recorrente contratar o serviço incumprido…. Para além de, salvo o devido respeito, ser absolutamente ininteligível um tal raciocínio, a verdade é que o Tribunal da Relação de Lisboa não explica a razão pela qual conclui que a atuação da Recorrida não é dolosa ou gravemente negligente. Isto quando nem a Recorrida sabe explicar a razão pela qual esteve 9 dias úteis sem tomar uma qualquer medida para concretizar o transporte contratado. Ou seja, o Tribunal da Relação de Lisboa limitou-se a apresentar uma conclusão sem a explicação dos motivos que a sustentam”1. Alega a recorrente, fundamentalmente, que o Tribunal a quo se limitou a apresentar conclusões sem explicar os motivos que a sustentam, o que, no seu entender, configura o vício de falta de fundamentação, previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC. Não é possível, porém, dar razão à recorrente. Antes de mais, esclareça-se que é consensual na jurisprudência – desde logo, na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça2 – que o vício de falta de fundamentação, previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, apenas ocorre quando a decisão é absolutamente desprovida de fundamentação, isto é, quando não existe de todo em todo fundamentação. Seja como for, não é sequer possível dizer-se que o Acórdão recorrido padece de escassez ou insuficiência de fundamentação quanto ao ponto em causa. Pode ler-se, designadamente, no Acórdão recorrido: “De facto, temos por assente e assumida a existência de uma situação de negligência por parte da Recorrida, uma vez que permitiu que uma situação que em regra se estima ter uma duração de 3 dias úteis, acabou por durar nove dias úteis, sem que aquela (transportadora), tenha logrado provar – como refere o n.º 2 do artigo 17º da CMR qualquer circunstância que a isentasse da responsabilidade presumida (…). Sucede que não só os factos não permitem concluir que a Ré actuou dolosamente, como o regime jurídico aplicável (o do direito nacional), não equipara a negligência leve à grosseira: o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro (que estabelece o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias), estabelece com clareza meridiana que sempre “que a perda, avaria ou demora resultem de actuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade”, assim afastando a possibilidade de situações de negligência terem efeitos no afastamento dos limites da responsabilidade (ou seja, para efeitos deste tipo de contrato, não releva considerar que a “culpa” abrange dolo e negligência)”3. Saliente-se ainda, em conjugação com este trecho, o que se diz em nota de rodapé: “(…) Em caso algum a conduta da Recorrida poderia ser sequer considerada grave, consciente ou indesculpável, e susceptível de ser enquadrada como negligência grosseira (assim ficando também afastada essa possibilidade para ao caso de se adoptar esse entendimento jurisprudencial”. De tudo isto resulta, em suma, que o Tribunal considerou que a responsabilidade da recorrida derivava de uma presunção de responsabilidade não ilidida, o que envolvia uma presunção de (mera) negligência, e que não existiam factos que permitissem qualificar de outra forma a conduta da transportadora. Além de falta de fundamentação, a recorrente parece arguir, na conclusão SSS, o vício gerador da nulidade da decisão previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC (ambiguidade ou obscuridade que tornam a decisão ininteligível). No entanto, olhando para as circunstâncias que a recorrente diz não conseguir “alcançar”, verifica-se, mais uma vez, que o que está em causa é, não a compreensibilidade objectiva do raciocínio do Tribunal a quo, mas sim a compreensibilidade no plano subjectivo, volitivo ou emocional. Por outras palavras: aquilo que a recorrente não consegue não é “alcançar” ou compreender intelectualmente a decisão do Tribunal a quo de não classificar a conduta da transportadora como dolosa ou grosseiramente negligente; o que a recorrente não consegue é aceitar que tenha sido aquela a decisão do Tribunal a quo. Em suma, a globalidade das alegações parece constituir, fundamentalmente, a expressão do inconformismo da recorrente com a decisão recorrida e, mais precisamente, com a circunstância de não de ter sido dado como verificada uma condição de aplicação do artigo 29.º, n.º 1, da CMR (a actuação com dolo ou negligência grosseira da transportadora), única solução que satisfaria as pretensões da recorrente. Sucede que a arguição de nulidade não é a via própria para a recorrente obter uma reapreciação da decisão nem, muito menos, para obter uma decisão diferente daquela com que não se consegue conformar. Em conclusão, não existe, visivelmente, qualquer nulidade e por isso improcede a pretensão da recorrente. Pela sua proximidade com a arguição de nulidade, a alegação de inconstitucionalidade (cfr. conclusões VVV a AAAA e CCCC) é tratada aqui. É alegada, fundamentalmente, a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 154.º, n.º 1, e 607.º, n.º 3, CPC por desconformidade com o artigo 205.º, n.º 1, da CRP. O artigo 205.º, n.º 1, da CRP impõe o dever de fundamentação das decisões judiciais. Não se tendo dado por verificada a alegada falta de fundamentação do Acórdão recorrido, logicamente não pode dar-se por verificada a alegada inconstitucionalidade. E mesmo se diga a propósito da alegada violação dos artigos 154.º, n.º 1, 607.º, n.º 3, e 663.º, n.º 2 (cfr. conclusão BBBB), todos respeitantes ao dever de fundamentação – em vez de violados, foram observados. Da alegada exclusão da limitação da responsabilidade prevista no artigo 23.º da CMR O Acórdão recorrido absolveu a ré / ora recorrida, entendendo que não estava em causa a hipótese prevista no artigo 29.º, n.º 1, da CMR e, portanto, era aplicável o regime de limitação da responsabilidade previsto no artigo 23.º da CMR. Foi a seguinte, mais precisamente, a sua fundamentação: “temos por assente e assumida a existência de uma situação de negligência por parte da Recorrida, uma vez que permitiu que uma situação que em regra se estima ter uma duração de 3 dias úteis, acabou por durar nove dias úteis, sem que aquela (transportadora), tenha logrado provar – como refere o n.º 2 do artigo 17º da CMR qualquer circunstância que a isentasse da responsabilidade presumida. Isso leva-nos ao n.º 5 do artigo 23.º da CMR (“No caso de demora, se o interessado provar que disso resultou prejuízo, o transportador terá de pagar por esse prejuízo uma indemnização que não poderá ultrapassar o preço do transporte”) - que cria um limite indemnizatório correspondente ao preço do transporte - sendo que a Ré assumiu a sua responsabilidade pela demora da sua prestação. Ora, a Ré só não beneficiaria deste regime e deste limite, se tivesse aplicação o n.º 1 do artigo 29.º da CRM, ou seja, se “o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”. Sucede que não só os factos não permitem concluir que a Ré actuou dolosamente, como o regime jurídico aplicável (o do direito nacional), não equipara a negligência leve à grosseira: o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro (que estabelece o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias), estabelece com clareza meridiana que sempre “que a perda, avaria ou demora resultem de actuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade”, assim afastando a possibilidade de situações de negligência terem efeitos no afastamento dos limites da responsabilidade (ou seja, para efeitos deste tipo de contrato, não releva considerar que a “culpa” abrange dolo e negligência). Como assinala Mónica Soares Pereira, o que se constata é que “a C.M.R. estabelece um regime mais alargado para a exclusão da responsabilidade nos termos enunciados, na medida em que estatui a exclusão em caso de dolo e nos casos em que a lei do foro equipare o comportamento a um comportamento doloso, enquanto a lei portuguesa apenas fala em actuação dolosa sem fazer qualquer menção de um comportamento equiparável ao dolo”. Trata-se de uma opção legislativa, que aqui não cabe sindicar. De assinalar que as correntes jurisprudenciais a que a Sentença recorrida faz menção estão correctamente descritas, não se vislumbrando motivos para discordar da orientação seguida. Continuam absolutamente válidas e pertinentes as considerações que ficaram expostas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Julho de 2006 (Processo n.º 06B1679-Oliveira Barros), no sentido de que: - o artigo “13º CMR confere ao destinatário tanto o direito de, em caso de demora, exigir ao transportador a entrega da mercadoria não entregue, como o de indemnização fundada na responsabilidade civil emergente do incumprimento ( ou do cumprimento defeituoso ) desse contrato, no caso de perda (total ou parcial, ou, ainda, de avaria) da mercadoria transportada”; - na CMR “a responsabilidade pelo incumprimento, ou pelo cumprimento defeituoso, do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada encontra-se regulada, por forma especial ou particular, estabelecendo o seu art. 23º desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos”; - “as regras gerais a que obedece o ónus da prova estabelecidas no art. 342º C.Civ. assentam na denominada teoria das normas (Normentheorie), de Rosenberg, baseada na relação entre regra e excepção, de que resulta que cada uma das partes terá de alegar e provar os pressupostos da norma que lhe é favorável”; - “De harmonia com esse critério, em vista do art. 29º CMR, e no âmbito especial do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, em que, consoante arts. 17º e 23º CMR, vigora a regra da limitação da responsabilidade do transportador, o dolo deste ou do pessoal respectivo é facto constitutivo do direito à indemnização plena que a lei geral assegura em sede de responsabilidade civil contratual ( como decorre dos arts.494º, a contrario sensu, e 562º C.Civ.); - “Para obter indemnização não sujeita aos limites estabelecidos no art. 23º CMR, é, por conseguinte, o destinatário que, conforme art.342º, nº1º, C.Civ., terá que provar que a perda ou desaparecimento de mercadoria transportada se deveu a acto voluntário do transportador ou do pessoal ao seu serviço”; - “No nosso ordenamento jurídico, a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu, pontualmente, como novidade, com a reforma processual civil operada em 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé - cfr. art.456º CPC”. Este é também o entendimento de José Luís Saragoça, quando assinala que no “nosso ordenamento jurídico, a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu, inovadoramente, com a reforma processual civil de 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé, no artº 456º do C.P.C, presentemente artº 542º do CPC de 2013”. A este propósito, vale a pena recuperar o que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2018 (Processo n.º 4051/10.9TBPTM.E1.S1-António Joaquim Piçarra) assinalou ao dizer que “nada justifica que se estabeleça uma equiparação geral do ilícito negligente com culpa grave ou lata ao ilícito doloso, uma vez que o brocardo latino “culpa lata dolo aequiparatur” não se mantém vigente no direito actual”. E – principalmente – não pode em caso algum esquecer-se as palavras certeiras e críticas que Manuel Januário da Costa Gomes escreveu a propósito do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2017 (Processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S1-Olindo Geraldes), onde se defendeu que no regime jurídico português, se “equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da responsabilidade civil prevista na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)”: A interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça faz do artigo 29.º da CMR “não pode ser acompanhada, não só porque não demonstra conhecer a excecionalidade das situações de perda do direito à limitação, como também porque transpõe para o domínio de interpretação de uma convenção internacional, como é a CMR, as, digamos, especificidades do regime interno português em sede de responsabilidade civil. Para o STJ, o facto de o transportador ter atuado com “mera culpa” ou “comportamento meramente negligente” é equivalente ao dolo para efeitos de perda do direito à limitação de responsabilidade, nos termos do artigo 29.º da CMR, uma vez que, sustenta, no regime português, “o conceito de culpa, exprimindo um juízo de reprovação pessoal da conduta do agente, baseado, nomeadamente, no nexo existente entre o facto e a vontade do agente, pode apresentar-se sob duas formas diferenciadas, como sejam o dolo e a negligência ou mera culpa”. É uma posição que vem na linha da sustentada, v. g., no Acórdão do STJ de 05.06.2012, em cujo sumário (ponto VI) se lê o seguinte: “Uma falta que, segundo a lei portuguesa, seja considerada equivalente ao dolo, para efeito do artigo 29, n.º 1, da CMR, não pode deixar de ser, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa em sentido lato”. Refere, é certo, o STJ, no acórdão em comentário, o regime do artigo 494.º do Código Civil, mas reputa-o não aplicável à responsabilidade contratual. E remata: “Face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR, estando obrigado a repor integralmente os danos sofridos pelo expedidor”. A posição do STJ, neste particular, não pode ser acompanhada. Na verdade, tendo o STJ concluído que o transportador teve um “comportamento meramente negligente”, não podia considerar tal comportamento equivalente ao dolo – grosso modo correspondente à wilful misconduct do sistema de common law – para efeitos de preclusão da limitação de responsabilidade ou perda do direito à limitação, já que, manifestamente, estamos perante um grau de culpa não equivalente. O equívoco do STJ está em ter transposto para a matéria específica da perda do direito à limitação nos termos do artigo 29.º da CMR o facto de entender que, no direito português, a circunstância de o devedor ter um comportamento meramente negligente não lhe permitir limitar a responsabilidade. Neste juízo relativo ao direito interno português, ainda que se admita como bom – o que não é seguro, uma vez que não faltam autorizados autores que sustentam a aplicação do artigo 494.º do Código Civil à responsabilidade obrigacional – o STJ, pura e simplesmente, desconsiderou o regime específico interno do transporte rodoviário de mercadorias, no qual (artigo 21.º do DL 239/2003) não se levantam dúvidas sobre a não perda do direito à limitação pelo transportador quando o seu comportamento tenha sido “meramente negligente”. Ademais, como é lógico, a remissão feita no artigo 29.º da CMR não é para os regimes internos no que tange à admissibilidade de limitação: se assim fosse, a própria uniformização que é pretendida pela CMR sofreria um rude golpe, para mais numa das matérias mais sensíveis como é a da perda do direito à limitação. O artigo 29.º não abre mão da nevrálgica definição das situações em que o transportador “perde o direito de aproveitar-se” da limitação e não as remete para a lex fori, diversamente do que parece sustentar o STJ: essa perda só acontece no caso de dolo ou, então, de uma “falta” que, no direito interno, esteja ao nível do dolo em termos de gravidade – uma falta que, como refere Rolf Herber, conquanto com referência ao § 435 do HGB, constitua uma “culpa especialmente qualificada” (“ein besonderes qualifi ziertes Verschulden”), ou, como referem Zunarelli/Comenale Pinto, desde que existam “condotte suscettibili di un giudizio di particolare disvalore”. De resto, a interpretação do STJ teria, a vingar, um efeito absurdo no sistema da CMR: o de, praticamente, anular ou esvaziar a possibilidade de o transportador poder limitar a sua responsabilidade, possibilidade essa que, frisa-se de novo, faz naturalmente parte do sistema próprio de responsabilidade do transportador de mercadorias. Tal possibilidade tem, aliás, resistido às tentativas, sobretudo tendo por objeto normas internas, de “inconstitucionalização” do direito de limitação de responsabilidade. A lógica do artigo 29.º da CMR é, antes, que o transportador só perca o direito à limitação da responsabilidade quando tenha atuado com dolo ou quando, nos termos do direito interno, a “falta” cometida seja, como se disse, equivalente ao dolo, em termos de gravidade. Por esta razão, Alain Sériaux – invertendo, de algum modo, os termos da questão – coloca o enfoque nas situações em que a gravidade da falta do transportador é “source d’augmentation de la réparation”. Na doutrina portuguesa, este tema tem sido tratado em termos que, sem serem coincidentes, se apartam da posição tomada pelo STJ no acórdão em comentário” (assim, Castello-Branco Bastos, Direito dos Transportes, Almedina, 2004, páginas 111 e seguintes; Adriano Marteleto Godinho, A Responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias, in “Temas de Direito dos Transportes”, I, Almedina, 2010, páginas 137 e seguintes; José Luís Saragoça, A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias e o dolo ou falta equivalente ao dolo, in “Temas de Direito dos Transportes” III, Almedina, Coimbra, 2015, páginas 425-447; João Ricardo Branco, A conduta antijurídica do transportador e a preclusão da limitação de responsabilidade, in “Temas de Direito dos Transportes” I, Almedina, Coimbra, 2010, páginas 293-384; Ricardo Bernardes, A conduta do transportador impeditiva da limitação de responsabilidade no Direito Marítimo, in “Temas de Direito dos Transportes” II, Almedina, Coimbra, 2013, páginas 443-501). Neste contexto, só pode afirmar-se a correcção do decidido em 1.ª Instância, acrescentando-se apenas que não há com isso qualquer desprotecção da Autora enquanto contratadora, uma vez que conhecendo esta o regime legal e sabendo que apenas o dolo do transportador relevaria para afastar a indemnização prevista no artigo 23.º da CMR, sempre poderia não apenas ter utilizado os outros serviços personalizados que a Ré disponibilizava (mais caros, mas mais seguros), como poderia ter feito a declaração a que se refere o artigo 26.º da CMR, como poderia também ter celebrado um contrato de seguro para prevenir que o contrato não corresse bem. Contratar é sempre assumir riscos. É confiar. Participar em relações contratuais complexas, com vários intervenientes, deveres e direitos cruzados e distintas responsabilidades e regimes jurídicos aplicáveis, é assumir riscos ainda maiores, é confiar em excesso e sem rede. Mas essa é natureza do comércio e o que dele faz o motor do crescimento económico das sociedades. Em concreto, as partes assumiram os seus riscos e, pelos imponderáveis que sucederam, esses riscos acabaram por se concretizar, levando a que os objectivos de cada um dos envolvidos se não concretizassem como previsto. O que correu mal foi o que resultou expresso na factualidade apurada no processo -a verdade judiciária - e esta é a que releva (não a que estava na percepção de cada um dos intervenientes processuais). Em consequência do exposto, a bem e consistentemente elaborada Sentença merece ser confirmada na íntegra, assim improcedendo o recurso”. Ao invés, a autora / recorrente entende que, para se configurar a hipótese prevista no artigo 29.º, n.º 1, da CMR e, consequentemente, ficar afastada a limitação da indemnização prevista no artigo 23.º da CRM, é suficiente que a transportadora tenha adoptado uma conduta negligente (cfr., no essencial, alegações AAA. a HHH. das alegações de revista). Aprecie-se. O artigo 23.º da CMR tem o seguinte teor: “1. Quando for debitada ao transportador uma indemnização por perda total ou parcial da mercadoria, em virtude das disposições da presente Convenção, essa indemnização será calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que for aceite para transporte. 2. O valor da mercadoria será determinado pela cotação na bolsa, ou, na falta desta, pelo preço corrente no mercado, ou, na falta de ambas, pelo valor usual das mercadorias da mesma natureza e qualidade. 3. No entanto, a indemnização não poderá ultrapassar 25 francos por quilograma do peso bruto em falta. Por franco entende-se franco-ouro, com o peso de 10/31 de grama com o título de 0,900. 4. Além disso, serão reembolsados o preço do transporte, os direitos aduaneiros e as outras despesas provenientes do transporte da mercadoria, na totalidade no caso do perda total e em proporção no caso de perda parcial; não serão devidas outras indemnizações de perdas e danos. 5. No caso de demora, se o interessado provar que disso resultou prejuízo, o transportador terá de pagar por esse prejuízo uma indemnização que não poderá ultrapassar o preço do transporte. 6. Só poderão exigir-se indemnizações mais elevadas no caso de declaração do valor da mercadoria ou de declaração de juro especial na entrega, em conformidade com os artigos 24 e 26”. Deve dar-se especial atenção, in casu, ao disposto no n.º 5, que fixa um limite máximo para a indemnização pelos danos decorrentes do atraso no transporte. É a aplicabilidade desta regra que é discutida no presente recurso, localizando-se o problema na identificação dos casos em que ela é excluída, nos termos do n.º 1 do artigo 29.º da CMR. Dispõe-se neste último preceito: “O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”. Não estando demonstrado que o dano do atraso no transporte provém de dolo da transportadora, cumpre indagar se, ainda assim, o dano provém de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lex fori concursus (in casu: a lei portuguesa), seja considerada equivalente ao dolo, conforme previsto no artigo 29.º. n.º 1, da CMR. A questão não é estranha à jurisprudência portuguesa, existindo já um número considerável de decisões nesta matéria, não obstante nem sempre em sentidos convergentes ou, pelo menos, considerados convergentes. A recorrente invoca como Acórdão-fundamento o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.10.2017 (Proc. 4858/12.2TBMAI.P1.S1); este seria, portanto, segundo a recorrente, um acórdão que militaria a favor da equiparação da mera negligência ao dolo. Diz-se no sumário deste Acórdão, numa fórmula aparentemente lapidar, que “[f]ace ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da responsabilidade civil prevista na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)”. Explica-se na fundamentação do Acórdão que: “no âmbito da responsabilidade civil contratual, não há limitação à indemnização por efeito da mera culpa, por não ser compatível, no geral, com as legítimas expetativas do contraente lesado. Assim, tanto o dolo como a mera culpa podem consubstanciar a culpa para efeitos de responsabilidade civil contratual, sendo indiferente a modalidade assumida pela culpa do devedor. Face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR, estando obrigado a reparar integralmente os danos sofridos pelo expedidor. Nesta conformidade, a Recorrente, ainda que possa não ter agido com dolo, não pode aproveitar-se da limitação da indemnização prevista nos arts. 23.º e 24.º da CMR, pois que, sendo o incumprimento do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada imputável, a título de culpa, à Recorrente, dado não ter ilidido a presunção de culpa, responde pelos prejuízos causados ao expedidor, nomeadamente nos termos previstos no art. 17.º, n.º 1, da CMR”. Seja como for, a maioria dos arestos parece ir em sentido diferente4, admitindo-se a aplicação do artigo 29.º da CRM em casos que são, em regra, de culpa qualificada. Integram-se, ainda que com nuances, nesta linha: - o Acórdão de 5.06.2012 (Proc. 3303/05.4TBVIS.C2.S1), em que se decidiu afastar o regime de limitação da responsabilidade num caso em que “[à] luz dos factos provados, é manifesto que o réu, pelo menos, agiu com negligência consciente”. - o Acórdão de 15.05.2013 (Proc. 9268/07.0TBMAI.P1.S1), em que se decidiu também afastar o regime de limitação da responsabilidade num caso em que “[à] luz dos factos provados é manifesto que a ré, pelo menos, agiu com negligência grosseira”. - o Acórdão de 30.04.2019 (Proc. 613/13.0TVPRT.P1.S1), em que se decidiu equiparar ao dolo a “conduta grosseiramente negligente ou temerária” por parte do transportador, com a justificação de que “o seu carácter “grosseiramente (…) temerário” sempre impediria a sua distinção do dolo, mesmo considerando que a lei portuguesa não equipara necessariamente o dolo e a negligência para efeitos de cálculo da indemnização, em caso de responsabilidade contratual”. Escreveu-se neste aresto: “O nº 1 do artigo 29º da CMR dispõe que o transportador não pode beneficiar das limitações de responsabilidade “se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”. De forma expressa e genérica – artigo 494º do Código Civil –, a lei portuguesa apenas prevê no âmbito da responsabilidade extra-contratual que o julgador possa fixar uma indemnização em montante inferior aos danos causados, segundo a equidade e atendendo a certos critérios que enumera – entre os quais se encontra o grau de culpabilidade do lesante –, quando a responsabilidade se fundar em mera culpa; mas não se pode ignorar que o mesmo Código Civil considera relevante a distinção entre dolo e negligência em outros casos de responsabilidade contratual (cfr. os exemplos indicados por Antunes Varela, op. e vol. cits.,pág. 99: “artigos 814º e 815º (mora do credor); 835º, 1, al. a) (exclusão da compensação); 956º e 957º(responsabilidade do doador); 1134º (responsabilidade do comodante); 1151º (responsabilidade do mutuante), sendo naturalmente de responsabilidade contratual que estamos a falar, no caso; nem que o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado por diversas vezes que a possibilidade de redução da indemnização, prevista no artigo 494º do Código Civil, é também aplicável no domínio da responsabilidade contratual. No entanto, e a propósito do nº 1 do artigo 29º da CMR, escreveu-se, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Junho de 2011, www.dsgi.pt, proc. nº 437/05.9TBANG.C1.S1, que “uma falta que segundo a lei da jurisdição que julgar o caso seja considerada equivalente ao dolo, como acontece com a jurisdição nacional, não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu”. No mesmo sentido, decidiu-se nos acórdãos de 5 de Junho de 2012,www.dgsi.pt, proc. nº 3303/05.4TBVIS,C2.S1, ou nos acórdãos desta secção de 15 de Maio de 2013,www.dgsi.pt, proc. nº 9268/07.0TBMAI.P1.S1 e de 12/10/2017, www.dgsi.pt, proc. nº4858/12.2TBMAI.P1.S1 e Mónica Alexandra Soares Pereira, O Contrato de Transporte de Mercadorias Rodoviário, A Responsabilidade do Transportador,http://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/63916/2/TESE%20%20MESTRADO%20EM%20DIREITO). Entende-se que, no caso, é inaplicável a limitação de responsabilidade constante do nº 3 do artigo 23º da CMR. E chega-se a esta conclusão, quer seguindo a doutrina dos acórdãos acabados de citar, quer analisando os factos que vêm provados e que configuram da parte do motorista/transportador “uma conduta grosseiramente negligente ou temerária” (acórdão recorrido). Concorda-se assim com o acórdão recorrido na apreciação da culpa; mas discorda-se da possibilidade de, com esta apreciação, se reduzir a indemnização, uma vez que o seu carácter “grosseiramente (…) temerário” sempre impediria a sua distinção do dolo, mesmo aplicando o disposto no artigo 494º do Código Civil; ou seja, mesmo considerando que a lei portuguesa não equipara necessariamente o dolo e a negligência para efeitos de cálculo da indemnização, em caso de responsabilidade contratual”. Note-se que, em Acórdão mais recente, de 13.03.2025 (Proc. 1822/22.7T8GRD.C1.S1), se sintetiza a decisão deste último Acórdão nos seguintes termos: “Considerou-se nesse acórdão de 30 de Abril de 2019 que tinham sido provados factos que configuravam uma conduta grosseiramente negligente por parte do motorista que conduzia o camião que tinha sido furtado com a mercadoria transportada e, por esse motivo, entendeu-se que era inaplicável a limitação de responsabilidade prevista no n.º 3 do artigo 23.º da CMR e que se chegava a essa conclusão, quer seguindo a doutrina dos acórdãos acabados de citar, quer aplicando o disposto no artigo 494.º do Código Civil: ‘ou seja, mesmo considerando que a lei portuguesa não equipara necessariamente o dolo e a negligência para efeitos de cálculo da indemnização, em caso de responsabilidade contratual’”. Veja-se, por fim, o Acórdão de 29.04.2025 (Proc. 365/23.6T8PMS.C1.S1), em que se afirma, numa fórmula mais geral, que “[a] violação meramente negligente do dever contratual do transportador, por não equivaler, nos termos do art. 29.º, n.º 1, da CMR, ao dolo, não o impede de se prevalecer do direito à limitação da sua responsabilidade por perda do bem a transportar”. Do raciocínio acabado de descrever resulta, pela negativa, que a negligência não é, em princípio, equiparável ao dolo nos termos e para os efeitos do disposto conjuntamente nos artigos 29.º, n.º 1, e 23.º da CMR e, pela positiva, que (apenas) é equiparável ao dolo a negligência que seja passível de idêntica censurabilidade – a negligência grave ou grosseira (“grobe Fährlässigkeit”). Mas há ainda um argumento avançado na sentença e reiterado no Acórdão recorrido que é favorável a este entendimento. Prende-se ele com o preceituado no regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, estabelecido no DL n.º 239/2003, de 4 de Outubro. No preâmbulo deste diploma faz-se referência à CMR, dizendo-se que se justifica proceder à harmonização do normativo regulador do contrato de transporte de mercadorias “com o regime da Convenção, não só por este se revelar mais adequado às modernas condições de exploração dos transportes de mercadorias como para promover a uniformização da disciplina jurídica dos contratos de transporte por estrada”. Adiante, afirma-se ainda: “No prosseguimento do objectivo de uniformização dos regimes aplicáveis ao contrato de transporte foram adoptadas regras de limitação de responsabilidade e estabelecido um regime de prazos para efeitos de mora ou de resolução do contrato, o qual, não reproduzindo exactamente o constante da CMR, atento o espaço geográfico em que se realizam os transportes a que se aplica o presente diploma, segue, no entanto, os mesmos princípios orientadores”. O regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias constitui, assim, um importante elemento de interpretação da CMR, na medida em que, com dele, o legislador português teve, assumidamente, em vista acomodar no Direito nacional os princípios e as regras plasmadas nesta convenção. O certo é que no artigo 21.º do regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias se dispõe, sob o título “Responsabilidade do transportador em caso de dolo”: “Sempre que a perda, avaria ou demora resultem de actuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade”. É significativo que apenas se refira a “actuação dolosa” e não haja – nem expressa nem implicitamente – qualquer referência à negligência. Januário da Costa Gomes acrescenta, por fim, um argumento contra a equiparação – contra uma equiparação generalizada – da negligência ao dolo para os efeitos em causa. Diz o autor que tal solução “teria, a vingar, um efeito absurdo no sistema da CMR: o de, praticamente, anular ou esvaziar a possibilidade de o transportador poder limitar a sua responsabilidade, possibilidade essa que, frisa-se de novo, faz naturalmente parte do sistema próprio de responsabilidade do transportador de mercadorias (…). A lógica do artigo 29.º da CMR é, antes, que o transportador só perca o direito à limitação da responsabilidade quando tenha atuado com dolo ou quando, nos termos do direito interno, a “falta” cometida seja, como se disse, equivalente ao dolo, em termos de gravidade”5. Coligidas estas orientações, resta aplicá-las ao caso dos autos, o que conduz ao seguinte resultado: não estando demonstrado que a transportadora agiu com dolo ou culpa de gravidade equiparada (uma vez que a culpa não foi, em rigor, apreciada, derivando de uma presunção de responsabilidade), não se verifica uma situação que seja reconduzível à hipótese prevista no artigo 29.º, n.º 1, da CMR, ficando precludido o afastamento, por essa via, do regime de limitação da responsabilidade previsto no artigo 23.º da CMR. Em conclusão, não é possível, in casu, afastar o regime de limitação da responsabilidade porque não há prova que permita sustentar a aplicação do disposto no artigo 29.º, n.º 1, da CMR. Quer dizer: não é possível, in casu, afastar o regime de limitação da responsabilidade não exactamente porque esteja demonstrado, pela positiva, que a transportadora agiu com mera culpa, mas porque não está demonstrado que a transportadora agiu com dolo ou com uma culpa que, segundo a lei aplicável (a lei portuguesa), seja merecedora de idêntico (elevado) grau de censurabilidade. O caso dos autos é, na realidade, muito próximo do decidido no Acórdão, já referido, de 13.03.2025 (Proc. 1822/22.7T8GRD.C1.S1), em que se afirmou: “(…) entende-se que não se encontram provados factos que permitam fundamentar positivamente a negligência do transportador material (recorde-se que a ré será responsável se os pressupostos da responsabilidade civil se verificarem relativamente a este transportador material) – ou, dito por outra forma, a mera culpa, o que implicaria saber se o condutor usou da diligência que lhe era exigível. Para o efeito, cumpriria confrontar o cuidado e a diligência exigíveis para evitar o desaparecimento de parte da mercadoria transportada efectivamente adoptados pelo condutor com o que teria um profissional medianamente cuidadoso e diligente, em face das circunstâncias do caso (nº 2 do artigo 487º do Código Civil, expressamente aplicável à responsabilidade contratual, por remissão do n.º 2 do artigo 799.º do Código Civil). Ora nada na prova permite fazer este confronto e, assim, concluir pela culpa do motorista, da transportadora de facto e, sucessivamente, da ré. Entende-se que a presunção de culpa não pode transmutar-se numa presunção de dolo – e, por essa via, justificar o afastamento dos limites à indemnização constantes dos artigos 23.º e segs. da CMR que devem assim valer, nos termos decididos em 1.ª Instância. Como, aliás, se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Março de 1999, www.dgsi,pt,proc. n.º 99B097, também relativo à aplicação do regime da CMR e à aplicação do seu n.º 3 do artigo 23.º ao cálculo da indemnização por perda de mercadoria, todavia recorrendo ao n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, a culpa presume-se, mas não o dolo”. * III. DECISÃO Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido. * Custas pela recorrente. * Lisboa, 24 de Outubro de 2025 Catarina Serra Ana Paula Lobo Emídio Santos ___________
1. Sublinhados nossos.↩︎ |