Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2455/13.4YYLSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: DECISÃO ARBITRAL
IMPUGNAÇÃO
FUNDAMENTOS
ENUMERAÇÃO TAXATIVA
PRESCRIÇÃO
PRINCÍPIOS DE ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
REGIME APLICÁVEL
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
AÇÃO DE ANULAÇÃO
RECURSO DA ARBITRAGEM
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ERRO DE JULGAMENTO
RENÚNCIA
EQUIDADE
CONHECIMENTO DO MÉRITO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO ARBITRAL - ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA / DECISÃO ARBITRAL / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, «A ordem pública nas arbitragens: as últimas tendências», VII Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial, Almedina, Coimbra, Julho de 2014, 73 a 103.
- António Pedro Pinto Monteiro, «Da ordem pública no processo arbitral», Estudos em homenagem ao Prof. Dr. José Lebre de Freitas, Coimbra Editora, Coimbra, Julho de 2013, 589 a 673.
- António Sampaio Caramelo, «Anulação de sentença arbitral contrária à ordem pública», R.M.P., 126, ano 32, Abril-Junho 2011, 155-198.
- Armindo Ribeiro Mendes e Outros, Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, 2012, Almedina, 12.
- Assunção Cristas e Mariana França Gouveia, «A violação da ordem pública como fundamento de anulação de sentenças arbitrais», Cadernos de Direito Privado, n.º 29, Janeiro/Março 2010, 41 a 56.
- Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, 557 e 558.
- Dário Moura Vicente, “Lei da Arbitragem Voluntária” Anotada, 2.ª edição revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 2015, 120 a 138; «Impugnação da sentença arbitral e ordem pública», Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. II, Almedina, Coimbra, Outubro de 2012, 327 e ss..
- Luís de Lima Pinheiro, «Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral», 2007, disponível em https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2007/ano-67-vol-iii-dez-2007/doutrina/luis-de-lima-pinheiro-apontamento-sobre-a-impugnacao-da-decisao-arbitral .
- Manuel Pereira Barrocas, «A ordem pública na arbitragem», R.O.A., Ano 74, Jan./Mar. 2014, Lisboa, 35 a 139; «Contribuição para a reforma da lei de arbitragem voluntária», R.O.A., disponível em
- Mariana França Gouveia, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, 2011, 210 a 230, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/mfg_ma_11846.doc .
- Mário Esteves de Oliveira e Outros, “Lei da Arbitragem Voluntária” Comentada, 2014, Almedina, 20 e 21.
- Mário Raposo, «Os árbitros», R.O.A., Ano 72, Abr./Set. 2012, Lisboa, 495 a 511.
- Paula Costa e Silva, «Anulação e recursos da decisão arbitral», R.O.A., 1992 (ano 52), 921.
- Pedro Siza Vieira, «A execução de decisões arbitrais proferidas em arbitragens domésticas», Estudos de Direito da Arbitragem em homenagem a Mário Raposo, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, 223 e ss..
- Robin de Andrade, «Decisão arbitral e ordem pública» (intervenção no Colóquio “A arbitragem em movimento”, realizado no Porto, em 27-09-2010), disponível em http://arbitragem.pt/noticias/2010/2010-09-27--ordem-publica.pdf .
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=1&idsc=59032&ida=59038 ; «Impugnação da Decisão Arbitral», apresentação em Colóquio organizado pela A.P.A., no dia 12 de Março de 2010, na Faculdade de Direito de Lisboa sobre uma Nova Lei da Arbitragem, disponível em http://arbitragem.pt/noticias/2010/2010-03-12-coloquio-apa/intervencao-dr-manuel-barrocas.pdf .
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º, N.º 1 E 2, 281.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 635.º, N.º 4, 639.º, N.º 1, 682.º, N.º 3.
LEI N.º 31/86, DE 29 DE AGOSTO (LAV), LEI DA ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA: - ARTIGOS 6.º, 27.º, 28.º, 29.º, N.ºS 1 E 2, 31.º E SS..
LEI N.º 63/2011, DE 14 DE DEZEMBRO (LAV), LEI DA ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA: - ARTIGOS 4.º, N.º 1, 33.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 24.10.2006, PROCESSO 06B2366, DE 11.02.2010, PROCESSO N.º 209/07.6TBPCV-A.C1.S1, E DE 07.06.2011, PROCESSO N.º 3442/07.7TBVLG.P1.S1, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 10.07.2008, PROCESSO N.º 08A1698, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 11.02.2010, PROCESSO N.º 209/07.6TBPCV-A.C1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I – Não obstante a sentença arbitral ter sido proferida em 02.12.2012, já depois da entrada em vigor da Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro (LAV), a sua (in)validade terá de ser analisada à luz da anterior LAV, a Lei nº 31/86, de 29 de Agosto.

II – De acordo com a disposição transitória do artº 4º, nº 1, da actual LAV (Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro), conjugada ainda com os artºs 6º desse diploma legal e 33º da actual LAV, o seu regime aplica-se apenas aos processos arbitrais cujo pedido de submissão a árbitros haja chegado ao conhecimento do demandado após 14 de Março de 2012.

III – O marco temporal determinante da aplicação desse regime é, pois, o do inicio do processo arbitral que abrange tanto a fase constitutiva da arbitragem quanto a sua fase processual, irrelevando, para esse efeito, quer a data da sentença exequenda, quer a da instauração da execução.

IV – A anterior LAV (Lei nº 31/86, de 29 de Agosto) contempla os seguintes meios impugnatórios da decisão arbitral):
a) A acção de anulação da decisão dos árbitros (no prazo de um mês a contar da notificação da decisão arbitral);
b) O recurso para o Tribunal da Relação (caso a ele as partes não tiverem renunciado); e
c) A oposição à execução da decisão arbitral.

V – A diferença entre as duas figuras referenciadas em a) e b) não se cinge apenas à circunstância de a primeira configurar uma acção e a segunda configurar uma acção e a segunda ser um recurso, estendendo-se a um conjunto de outros aspectos relevantes.

VI – Assim, no caso de recurso é o próprio mérito da sentença arbitral, o seu sentido ou efeito, que é questionado, por os árbitros terem cometido um error in judicando, erro de julgamento de facto ou de direito, independentemente de respeitar ao fundo da causa, às leis substantivas aí (des)apilicadas ou, antes, aos respectivos pressupostos processuais (às leis adjectivas).

VII – Na impugnação, pelo contrário, não se discute (senão indirectamente) o sentido da sentença arbitral (se a condenação ou a absolvição são devidas), discutem-se, sim, os vícios do percurso processual que levou os árbitros até à sentença. Nela, está em causa o chamado erro in procedendo, reportado à relação processual de arbitragem (e não à relação substantiva aí pleiteada) podendo, nessa medida e de acordo com o artº 27º da LAV (Lei nº 31/86 de 29 de Agosto), ter somente os fundamentos aí enunciados.

VIII – No caso, tendo as partes renunciado ao recurso, autorizando o julgamento segundo a equidade (artº 29º, nºs 1 e 2, da LAV (Lei nº 31/86 de 29 de Agosto), e não tendo sido instaurada a acção de anulação, no mês subsequente à sentença arbitral, ficou disponível apenas a oposição à execução.

IX – As decisões dos árbitros só podem ser atacadas, seja em acção de anulação, seja em embargos (oposição) à execução com fundamento em alguns dos vícios taxativamente indicados no artigo 27º, nº 1, da LAV (Lei nº 31/86, de 29 de Agosto), não sendo permitido censurar ou sindicar a legalidade ou mérito da decisão arbitral, já que a ter ocorrido ilegalidade, isso constituiria fundamento de recurso, se admissível.

X – O eventual erro resultante da interpretação e aplicação de normas sobre a contagem e interrupção do prazo prescricional não integra o núcleo basilar de princípios e normas fundamentais do ordenamento jurídico, encerrando tão só contrariedade à lei que, em si mesma, não envolve qualquer ofensa da ordem pública.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA - Sociedade Industrial de Carvões, Lda., com sede em …, instaurou execução comum para pagamento de quantia certa contra EDP – Gestão da Produção de Energia, SA, com sede em Lisboa, tendo por base sentença arbitral datada de 02.12.2012.

A executada deduziu oposição à execução, em 11.03.2013, alegando, em síntese, que:

Apesar da sentença arbitral dada à execução ter sido proferida já depois da Lei n.º 63/2011, de 14.12 (NLAV), é aplicável ao caso a Lei n.º 31/86, de 29.08, sendo a mesma passível de impugnação com fundamento na sua anulabilidade, nos termos e para os efeitos do artigo 27º daquele diploma.

Foram cumulados ilegalmente juros de mora com a actualização da quantia indemnizatória fixada na decisão arbitral, pretendendo-se, dessa forma, obter um benefício ilegítimo no valor de €4.776.248,14, a título de juros de mora vencidos desde 2005, para o qual inexiste título executivo.

Existe erro de cálculo aritmético da quantia exequenda, quer no que respeita ao cálculo da actualização das dívidas, quer no que respeita ao início da contagem dos juros de mora, bem como no que concerne à taxa de juros de mora aplicada.

A sentença exequenda ofende a ordem pública interna, na medida em que viola o regime jurídico da prescrição, cujas normas são parte da ordem pública do ordenamento jurídico português, condenando a ora opoente no pagamento de dívidas prescritas, quando a prescrição tinha sido expressamente invocada.

Enferma ainda a sentença de falta ou insuficiência de fundamentação porque não esclarece a razão pela qual entendeu que nas compras de carvão de 1985 e 1986 havia liberdade de negociação de preço, diversamente do que entendeu suceder nas compras de 1987.

Viola também a sentença o princípio do dispositivo relativamente a uma componente do montante indemnizatório.

A peticionada sanção pecuniária compulsória não é devida e, para o caso de assim não se entender, deverá ser reduzido o seu valor diário para €182,04.

Com tais fundamentos, concluiu pela extinção da instância executiva e pela improcedência do pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória.

A exequente apresentou contestação a reconhecer a inexistência de título executivo quanto aos juros moratórios, que apenas são devidos a partir da decisão actualizadora, refutando, no mais, os fundamentos da oposição, os quais apenas poderiam ter sido invocados em acção de anulação da sentença arbitral, ou no prazo de propositura da mesma.

Teve lugar a audiência preliminar, no âmbito da qual foi facultado o exercício do contraditório no que respeita às questões suscitadas na contestação, após o que, conhecendo de mérito, foi proferida decisão, datada de 27/05/2015, a julgar procedente a oposição e a extinguir a execução, quanto aos pedidos de juros e de fixação de sanção pecuniária compulsória, e, no mais, improcedente.

Inconformadas, apelaram a executada e a exequente, esta subordinadamente, tendo a Relação de Lisboa, na improcedência do recurso da primeira e procedência do interposto pela última, revogado a decisão no tocante à sanção pecuniária compulsória prevista no nº 4 do artigo 829º-A do Código Civil, que entendeu ser devida, confirmando-a, no mais.

Persistindo inconformada, interpôs a executada recurso de revista excepcional, admitido pela formação prevista no art.º 672º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, confinando-o à «anulação da sentença arbitral envolvendo a aplicação da lei no tempo, a possível ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português e a prescrição vista nessa envolvência» (cfr. fls. 1840 e 1841).

Finalizou a sua alegação, com as seguintes conclusões[1]:

1. Um dos equívocos em que se incorreu no acórdão recorrido residiu na suposição de que a Recorrente impugnara a sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância, com fundamento em deficiente fundamentação da mesma (v. pág. 36 do acórdão recorrido), quando em nenhum ponto da Apelação da Recorrente foi tal fundamento invocado e, menos ainda, substanciado.

2. O que a Recorrente procurou fazer nas suas alegações de apelação foi realçar por que é que o modo errado como o tribunal arbitral havia qualificado os ilícitos imputados à EDP conduzira a um resultado manifestamente iníquo, por a haver condenado a indemnizar por práticas negociais ocorridas 26 anos atrás, sendo que, dada a natureza dos ditos ilícitos, a possibilidade da prova da justeza da atuação negocial da mesma EDP se havia tornado, ao fim de tanto tempo, impossível ou ficara, na prática, muito dificultada.

3. Às consequências deste erro de julgamento cometido pelo tribunal arbitral veio somar-se, agravando-as calamitosamente, outro erro gritante por aquele tribunal cometido e adiante referido nestas conclusões.

4. Mas, ao procurar evidenciar as consequências gritantemente iníquas de um e de outro erro que o tribunal arbitral cometeu, a Recorrente esteve sempre e só a substanciar o único fundamento que na apelação invocara em apoio do pedido de anulação da sentença arbitral, a saber, a sua contrariedade à ordem pública do sistema jurídico português.

5. Na sua fundamentação, o tribunal de 1ª instância considerou provados, com interesse para a boa decisão da causa, os seguintes factos: (i) “A Exequente deu à execução sentença arbitral proferida em 02.12.2012 da qual foi junta certidão a folhas 8 e seguintes da execução, que se dá por integralmente reproduzida;” (ii) “Tal decisão foi proferida no âmbito da arbitragem registada com o n.º 1…/2010/AHC/AVS, de que foi junta certidão ao requerimento de oposição, que se dá por integralmente reproduzida.”.

6. Faz parte integrante da certidão da arbitragem (junta aos presente autos), dada por integralmente reproduzida na ‘fundamentação de facto’ das respetivas decisões, tanto pelo tribunal de 1.ª instância como pelo Tribunal da Relação, a certidão emitida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do …, Unidade Orgânica 01, junta ao processo arbitral pela AA em 19.01.2011, em que a Escrivã Adjunta certificou que a Chamada “BB – Companhia Portuguesa de Produção de Electricidade, SA foi citada em 29/08/2006.

7. Atestou-se, por outro lado, no processo arbitral (como prova a respetiva certidão integral que foi junta aos presentes autos) que a EDP – Gestão de Produção de Energia, SA sucedeu à BB – Companhia Portuguesa de Produção de Electricidade, SA, que subscreveu os contratos em questão no processo.

8. Na sentença arbitral, dada por integralmente reproduzida nas fundamentações de facto das decisões das instâncias, referiu-se, contudo, que “a certidão extraída da ação nº 1538/05.9BE – que correu termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do … – certifica que essa ação foi instaurada em 5 de Julho de 2005 e que a Demandada (EDP) foi citada em 8 de Julho de 2005.”

9. Ora, esta asserção não tem a menor correspondência no teor da referida certidão: nela não se certifica que a acção foi intentada em 5 de Julho de 2005, nem que a Demandada (EDP) foi citada em 8 de Julho de 2005, mas apenas que a Chamada BB – Companhia Portuguesa de Produção de Electricidade, SA (a que sucedeu a, de facto, Demandada e ora Executada EDP – Gestão de Produção de Energia, SA) foi citada em 29 de Agosto de 2006.

10. Tendo considerado, contra o teor expresso do documento autêntico junto aos autos, que a Demandada EDP – Gestão de Produção de Energia, SA foi citada em 8 de Julho de 2005, o tribunal arbitral considerou que “o novo prazo prescricional de vinte anos começou a correr logo após o ato interruptivo (art.326º,nº1, e art.327º, nº2, do Código Civil), ou seja, a partir da citação da EDP em 8 de Julho de 2005.”, julgando, por isso, improcedente a excepção de prescrição deduzida pela Demandada EDP – Gestão de Produção de Energia, SA.

11. Este erro clamoroso do tribunal arbitral, quanto à data de citação da Demandada EDP – Gestão de Produção de Energia, SA (BB – Companhia Portuguesa de Produção de Electricidade, SA), teve como resultado a condenação da Demandada EDP – Gestão de Produção de Energia, SA no pagamento de todos os valores peticionados pela Demandante relativos ao ano de 1985 e aos meses de Janeiro a Agosto de 1986, o que representa mais de 90 % do pedido exequendo, não obstante tais valores não serem juridicamente exigíveis à Demandada por, quanto aos mesmos, ter decorrido o prazo de prescrição de 20 anos, sem que se tenha verificado a interrupção ficcionada pelo tribunal arbitral.

12. Na sentença proferida nos presentes autos, o tribunal de 1ª instância identificou os erros imputados pela Executada ao tribunal arbitral, entre os quais “a indevida consideração de que a prescrição teve lugar em 9 de Julho de 2005” mas não se pronunciou em concreto sobre os mesmos, por ter considerado que os fundamentos não integram a “violação da ordem pública (interna ou internacional) do Estado Português”.

13. Também o Tribunal da Relação de ... ― que na ‘fundamentação de facto’ do seu acórdão se reportou aos factos dados como provados na sentença proferida em 1ª instância (p. 21 do Acórdão) ― entendeu que o “alegado erro de julgamento quanto à data em que ocorreu o facto interruptivo da prescrição, por força do processo que correu termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do … (certidão de fls. 1250) não [pode] ser aqui reapreciado”.

14. Foi, porém, este Tribunal mais longe do que a 1.ª instância, quanto a este ponto, afirmando não vislumbrar “que a menção da, porventura, errada data concreta em que ocorreu a citação da ré, na acção que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do …, tenha influenciado decisivamente a resolução do litígio pelo Tribunal Arbitral, inexistindo qualquer violação de princípios fundamentais susceptíveis de justificar a anulação da decisão arbitral que serve de título executivo”.

15. O Tribunal da Relação apenas atendeu ao teor da sentença arbitral ― dada por reproduzida na ‘fundamentação de facto’ do acórdão que proferiu ― mas já não ao teor da certidão emitida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do … – dada por reproduzida na ‘fundamentação de facto’ do acórdão proferido, como parte integrante que é da certidão do processo arbitral.

16. Se o Tribunal da Relação tivesse tido em consideração o teor da certidão emitida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do …, teria necessariamente concluído que o tribunal arbitral errara clamorosamente quanto à data em que a Demandada, ora Executada, BB – Companhia Portuguesa de Produção de Electricidade, SA (EDP – Gestão de Produção de Energia, SA) foi, na qualidade de Chamada, citada para a acção que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do …: tal citação teve lugar em 29 de Agosto de 2006 e não na data considerada pelo tribunal arbitral, de 8 de Julho de 2005.

17. Ora, este clamoroso erro influenciou de forma absolutamente decisiva, em mais de 9 % do pedido exequendo, a resolução do litígio pelo tribunal arbitral.

18. Face ao exposto, atendendo à factualidade acolhida pelas instâncias em sede fundamentação de facto das respetivas decisões, entende a Recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça tem todos os elementos de facto necessários à verificação e correção do colossal erro cometido pelo tribunal arbitral cujo resultado é ostensivamente contrário às regras e princípios da ordem pública do sistema jurídico português.

19. No entanto, caso se entenda que a matéria de facto fixada nas decisões da instâncias é insuficiente para uma boa decisão do presente recurso, reconhecendo-se ademais que, os documentos autênticos fazem prova plena dos factos neles atestados com base nas perceções da entidade documentadora, pelo que deveriam tanto a 1.ª instância como a Relação de Lisboa ter feito menção expressa ao teor deste documento, entre os factos que tinham de considerar-se como provados nos presentes autos, deverá então esse Supremo Tribunal determinar que a ‘matéria de facto’ fixada pelas instâncias seja ampliada, no termos do disposto no art. art. 682.º n.ºs 2 e 3, e art. 674, n.º 3, do CPC.

20. Tal deverá ser determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça, porquanto, ao omitir essa menção expressa no acórdão sob recurso, o Tribunal da Relação incorreu no erro previsto no art 674.º, n.º 3 (in fine) do CPC – “erro na fixação dos factos materiais da causa, com ofensa de disposição legal que fixa a força probatória de documento autêntico” – erro este de que o Supremo Tribunal de Justiça pode e deve conhecer, em sede de decisão sobre o presente recurso de revista, conforme permite essa disposição legal.

21. Mais requer a Recorrente que esse Alto Tribunal, reconhecendo a existência de tal erro e usando o poder cassatório que lei lhe confere, reenvie o processo, no termos do art. 682.º n.º 2, do CPC, ao Tribunal da Relação de …, para que integre o teor do sobredito documento autêntico na factualidade dada como provada neste processo.

22. Em consequência do exposto, deverá o Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que dispõe dos elementos de facto suficientes para o fazer, definir, desde já, nos termos do disposto no art 683.º, n.º 1, do CPC, o regime jurídico com o qual se deverá conformar o Tribunal da Relação na nova decisão a proferir com base na matéria de facto assim ampliada.

23. Dada a manifesta instrumentalidade desta questão jurídico-processual relativamente à decisão sobre as questões substantivas que constituem fundamentos principais desta revista excecional, deve entender-se que aproveita à primeira o preenchimento dos requisitos específicos desta revista, que acima se demonstrou quanto às segundas.

24. É incorreta a asserção contida no acórdão recorrido, de que “as causas de anulação da decisão arbitral reportam-se à relação processual de arbitragem e não à relação substantiva pleiteada”, visto que, na apreciação, feita pelo juiz, do pedido de anulação da sentença arbitral com fundamento em ofensa à ordem pública existe, necessariamente, um limitado controlo do mérito da decisão impugnada.

25. Se se admite que a sentença arbitral possa ser impugnada com este fundamento, não pode recusar-se que o juiz deva aqui emitir um juízo de mérito, se não sobre o acerto factual e jurídico da decisão arbitral, pelo menos sobre o resultado por ela produzido (da situação da vida por ela criada).

26. Além daquela incorreta asserção, contém o acórdão recorrido diversas ambiguidades, traduzidas não só na falta de expresso reconhecimento da admissibilidade deste fundamento de impugnação de uma sentença arbitral proferida ao abrigo da LAV de 1986, mas também no facto de se ter aí entrado na irrelevante (para o caso sub judice) distinção entre “ordem pública interna” e “ordem pública internacional.

27. A esta inconsistência detetada no acórdão recorrido, acresceu a de nele se haver convocado o disposto no art. 46.º, n. º 3, b), ii) da LAV de 2011, apesar de, algumas páginas atrás, se haver aí confirmado o entendimento da 1.ª instância, de que não era sob a égide desta lei, mas sim da LAV de 1986, que deveriam obter resposta as questões debatidas nos autos.

28. A “ordem pública” consiste no conjunto de regras e princípios de um sistema jurídico, que sendo estabelecidos em função de interesses sentidos pela comunidade como fundamenais, são inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.

29. Sendo a ‘ordem pública’ um fator sistemático de limitação da autonomia privada, parece inquestionável que essa limitação se imponha tanto às partes, na sua atuação negocial, quanto aos árbitros (ou juízes), que tenham de julgar os litígios entre elas surgidos.

30. Em sede de anulabilidade de decisões arbitrais pelos tribunais estaduais, a noção de ‘ordem pública’ que interessa é a usualmente apelidada de ordem pública de direito material, a que se referem os arts. 81.º, n.º 1, 182.º, d), 192.º, n.º 2, d), 271.º, 280.º, n.º 2, 281.º, 345.º, 465.º, a), 800.º, n.º 2, 967.º, 1083.º, n.º 2, b), 2186.º, 2230.º, n.º 2, e 2245.º do Código Civil.

31. No interior do núcleo ou reduto constituído pelas regras ou princípios de ordem pública de direito material, há que distinguir, como faz a generalidade da doutrina da especialidade, entre a “ordem pública interna” e a “ordem pública internacional”.

32. O conceito de “ordem pública internacional” tem um conteúdo mais restrito do que o de “ordem pública interna”, porque as necessidades do comércio internacional impõem que, quando o objeto do litígio tem ligações com outras ordens jurídicas, o sistema jurídico do Estado da sede da arbitragem seja menos exigente no controlo da conformidade da sentença arbitral com os seus princípios basilares, do que o seria perante uma situação puramente interna.

33. Quando estão em causa relações jurídicas ou litígios puramente internos, isto é, situados inteiramente no âmbito de uma só ordem jurídica (no caso vertente, a ordem jurídica portuguesa) é a ‘ordem pública interna’ que pode ser chamada a intervir, para determinar a nulidade ou anulabilidade dos atos (incluindo decisões arbitrais) que a ofendam; e o que inquestionavelmente acontece no litígio a que diz respeito o presente recurso.

34. Embora a noção de ‘ordem pública’ que a LAV de 2011 consagrou como operativa no âmbito do controlo de validade de todas as decisões arbitrais proferidas em Portugal, mesmo as que tenham versado sobre litígios domésticos, haja sido a ‘ordem pública internacional’ (de direito material), essa incorreta opção do legislador não tem nenhuma relevância ou incidência para decisão dos presentes autos, visto que a nova LAV não é aplicável à matéria nestes versada.

35. Ainda menor justificação havia para se invocar, como fez o acórdão recorrido (cfr. pág. 33), o disposto no art. 46.º, n.º 3, b), ii) da atual LAV, por esta lei não ser aplicável ao caso, como, aliás, o acórdão reconhecera (cfr. págs. 23 a 25).

36. Mesmo que, porventura, se admitisse o recurso à noção de “ordem pública internacional” (contemplada no art. 46.º, n.º 3, b) ii) da LAV de 2011) para definir o âmbito da noção de ‘ordem pública’ que deve ter-se por operante na vigência da LAV de 1986, intervindo aquele conceito como elemento interpretativo desta noção, ainda então seria idêntica a solução a dar ao peticionado pela Recorrente nos presentes autos, por a ‘ordem publica internacional’ do nosso sistema jurídico não pode tolerar que se disponibilize o aparelho coercitivo do Estado para impor o cumprimento de uma obrigação que não é juridicamente exigível.

37. A asserção de que o juiz de anulação não pode proceder ao reexame do mérito da decisão arbitral impugnada, constitui é uma máxima simplista que não compatível com uma reflexão aprofundada e aturada sobre esta matéria.

38. Com efeito, reexame do mérito decidido pela sentença arbitral teria e terá sempre que fazer o juiz a quem é pedida a anulação desta, quer o fundamento de impugnação invocada seja o de aqui se trata, quer seja o previsto na alínea b) do n.º 1 do art 27.º da LAV de 1986 – correspondente ao fundamento da subalínea a) ii) do art 46.º, n.º 3, da LAV de 2011 – ou o previsto na alínea e) do n.º 1 do art 27.º [ao remeter para o art 23.º, n.º 3] da LAV de 1986 – correspondente ao art 46.º, n.º 3, a) vi) da LAV de 2011.

39. Por maioria de razão, esse reexame do fundo da causa decidido pelos árbitros terá de ter lugar no caso de sentença destes ser impugnada por ofensa à ordem pública, como reconhece a melhor doutrina da arbitragem, portuguesa e estrangeira.

40. Não pode deixar de ser assim, porque a simples leitura da parte dispositiva da sentença arbitral não permite, em regra, concluir o que quer que seja quanto à eventual violação da ordem pública por parte daquela; por conseguinte, recusar aquele reexame do mérito equivaleria a negar a possibilidade de a sentença arbitral ser apreciada e controlada à luz deste fundamento ou a reduzir esse controlo a uma “ficção”.

41. O que é correto defender é, isso sim, que o tribunal estadual não detém o poder de substituir a decisão do tribunal arbitral sobre o mérito da causa pela sua própria decisão, ainda que os árbitros tenham cometido um erro de facto ou de direito.

42. É nisto que consiste a proposição amiúde invocada, relativa à “proibição da revisão do mérito” da sentença arbitral pelo juiz, quer este intervenha em sede de ação de anulação proposta no país da sede da arbitragem, quer no âmbito da ação de reconhecimento de sentença arbitral proferida no estrangeiro.

43. De acordo com esta (correta) proposição, o juiz, ao apreciar a sentença arbitral submetida ao seu controlo, não tem o dever de julgar novamente o litígio decidido pelos árbitros para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que estes chegaram, subordinando a confirmação daquela sentença a essa identidade de resultado, mas unicamente o dever de verificar se tal sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro.

44. Ou seja, o que ao juiz compete controlar não é o acerto técnico-jurídico do raciocínio adotado pelos árbitros, mas sim o resultado produzido, isto é, a situação da vida criada pela decisão proferida por estes.

45. É o conteúdo da sentença arbitral que é controlado, mas é em função do seu resultado que ela será sancionada. Embora todo o raciocínio do árbitro deva poder ser examinado pelo juiz, o controlo deste deve incidir, não sobre esse raciocínio, mas sobre a solução dada ao litígio.

46. Louvando-se na caracterização feita pela 1.ª instância relativamente às normas reguladoras da prescrição extintiva violadas pela sentença arbitral, o acórdão recorrido viu nelas, unicamente, a tutela do interesse do devedor, considerando que nunca poderia a sua preterição configurar a violação de norma ou princípio de ordem pública.

47. A verdade é que a prescrição se carateriza, na sua história milenar e no regime que apresenta nos sistemas jurídicos desenvolvidos, por uma manifesta “ambivalência significativa”, em virtude de ser apontada, simultaneamente, à proteção do devedor e à prossecução de finalidades de índole geral, assegurando interesses de ordem pública.

48. É, portanto, muito redutor olhar só para a renunciabilidade prevista no art. 302.º, n.º 1, do Código Civil (como se fez no acórdão recorrido), esquecendo as finalidades de interesse público que justificam a injuntividade do regime da prescrição afirmada no art. 300.º, n.º 1, do mesmo Código.

49. Ainda mais nefasto do que ter caracterizado deficientemente o regime legal da prescrição, foi o facto de, no acórdão recorrido, não se haver atendido devidamente ao resultado que a desaplicação ou errada aplicação daquele regime teve no modo como o tribunal arbitral decidiu o caso que lhe foi submetido.

50. Esse resultado consistiu, como se realçou na oposição à execução deduzida na 1.ª instância e nas alegações da apelação, em ter a EDP sido condenada a pagar uma indemnização decorridos mais de 6 anos após o momento em que tal obrigação se tornara inexigível, por decurso do prazo de 20 anos da prescrição, sendo que a prescrição dessa obrigação fora atempadamente invocada pela ora recorrente durante o processo arbitral.

51. Vale isso por dizer que o tribunal arbitral condenou a ora recorrente a cumprir uma obrigação natural, o que constitui um resultado de tal modo chocante, que os tribunais estaduais competentes para o controlo das decisões arbitrais não podem deixar de impedir que se materialize, anulando a decisão que o determinou.

52. É totalmente desprovida de razão a observação constante do acórdão recorrido, de que a interrupção de prescrição resultante da instauração da ação proposta no TAF do ..., em 5 de Julho de 2005, deveria considerar-se estendida por mais 5 dias, por força do disposto no art. 323.º, n.º 2 do CC, pelo que nada se teria passado que pudesse ter ofendido princípios fundamentais do sistema jurídico português!

53. É igualmente errado o entendimento acolhido no acórdão recorrido, segundo o qual, não obstante se encontrar plenamente provada por documento autêntico junto aos presentes autos, que a data real (29.08.2006) do suposto facto interruptivo difere, em um ano e quase dois meses daquela que foi erradamente considerada pelo tribunal arbitral, isso em nada possa relevar par decisão da presente causa.

54. Ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido condescendeu censuravelmente com a gritante violação de princípios e regras jurídicas que integram a “ordem pública” (interna e de direito material) do sistema jurídico português, que foi perpetrada pela sentença arbitral impugnada, ofendendo também, por isso, tal acórdão esse inderrogável reduto axiológico-normativo a que se reporta o art. 280.º, n.º 2, do Código Civil, assim como os demais artigos deste Código, antes citados.

55. É essa grave violação do nosso direito constituído que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça poderá e deverá agora remediar, julgando procedente o presente recurso e anulando, subsequentemente, a sentença arbitral impugnada, ou, se entender que a factualidade fixada na sentença de 1ª instância, para qual remete o Acórdão recorrido, é insuficiente para uma boa decisão do presente recurso, mandar baixar o processo ao Tribunal da Relação, para que este proceda à ampliação da matéria de facto dada por provada nestes autos e, subsequentemente, julgue novamente a presente causa de acordo com o correto entendimento do direito aplicável, nos termos acima defendidos, e em conformidade com este anule a sentença arbitral impugnada.

A exequente ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso da revista.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, com relevância, é a seguinte:

1. A Exequente deu à execução sentença arbitral proferida em 02.12.2012 da qual foi junta certidão a folhas 8 e seguintes da execução, que se dá por integralmente reproduzida;

2. Tal decisão foi proferida no âmbito da arbitragem requerida pela ora exequente, registada com o n.º 1…/2010/AHC/AVS, de que foi junta certidão ao requerimento de oposição, que se dá por integralmente reproduzida.

3. Dos contratos sujeitos à arbitragem consta cláusula compromissória a autorizar os árbitros a julgar segundo a equidade.

4. As partes obrigaram-se ao cumprimento pontual das decisões da arbitragem, renunciando ao recurso.  


III – Fundamentação de direito

Cumpre, agora, perante essa escassa factualidade, apreciar e decidir sobre quanto vem pedido no âmbito do presente recurso de revista, delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente (art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), e que se resume a dilucidar se a sentença arbitral que serve de título à execução deve ser anulada e, subsidiariamente, se deve ordenar-se que o processo baixe à Relação, para que este proceda à ampliação da matéria de facto dada por provada e julgue novamente a causa.

No tocante à anulação do título dado à execução, importa sublinhar, antes de mais, que não obstante a sentença arbitral ter sido proferida em 02.12.2012, já depois da entrada em vigor da Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro (LAV), a sua (in)validade terá de ser analisada à luz da anterior LAV, a Lei nº 31/86, de 29 de Agosto.

Com efeito, de acordo com a disposição transitória do art.º 4º, n.º 1, da actual LAV (Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro), conjugada ainda com os art.ºs 6º desse diploma legal e 33º da actual LAV, o seu regime aplica-se apenas aos processos arbitrais cujo pedido de submissão a árbitros haja chegado ao conhecimento do demandado após 14 de Março de 2012. O marco temporal determinante da aplicação desse regime é, pois, o do inicio do processo arbitral que, assinale-se, abrange tanto a fase constitutiva da arbitragem quanto a sua fase processual e que, por outro lado, o pedido de submissão corresponde ao pedido do demandante para que a parte demandada proceda à designação do seu árbitro ou, então, ao pedido para que procedam ambos, consoante os casos, à designação dos árbitros ou do árbitro único[2].

Atenta a data da correspondência trocada entre as partes, com vista à constituição do tribunal arbitral, e a apresentação, em 14.06.2010, do requerimento de arbitragem no Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio de Lisboa, o processo arbitral em que foi prolatada a sentença exequenda já estava pendente, há muito, quando, em 14.03.2012, entrou em vigor a nova LAV (Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro). Logo e na ausência do acordo das partes, previsto na disposição transitória constante do art.º 4º, n.º 2, da Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro, é-lhe aplicável a anterior LAV (Lei nº 31/86, de 29 de Agosto)[3], sendo irrelevante, para este efeito, a data da instauração da execução (12.02.2013).

Contempla essa LAV (Lei nº 31/86, de 29 de Agosto), nos seus art.ºs 28º, 29º, nº 1, e 31º, os seguintes meios impugnatórios da decisão arbitral:

a) A acção de anulação da decisão dos árbitros (no prazo de um mês a contar da notificação da decisão arbitral);

b) O recurso para o Tribunal da Relação (caso a ele as partes não tiverem renunciado); e

c) A oposição à execução da decisão arbitral.

A diferença entre as duas figuras referenciadas em a) e b) não se cinge apenas à circunstância de a primeira configurar uma acção e a segunda ser um recurso, estendendo-se a um conjunto de outros aspectos relevantes que importa clarificar, para melhor compreensão da solução a dar ao presente recurso de revista.

Assim, no caso de recurso é o próprio mérito da sentença arbitral, o seu sentido ou efeito, que é questionado, por os árbitros terem cometido um error in judicando, erro de julgamento de facto ou de direito, independentemente de respeitar ao fundo da causa, às leis substantivas aí (des)aplicadas ou, antes, aos respectivos pressupostos processuais (às leis adjectivas). Na impugnação, pelo contrário, não se discute (senão indirectamente) o sentido da sentença arbitral (se a condenação ou a absolvição são devidas), discutem-se, sim, os vícios do percurso processual que levou os árbitros até à sentença. Nela, está em causa o chamado erro in procedendo, reportado à relação processual de arbitragem (e não à relação substantiva aí pleiteada) podendo, nessa medida e de acordo com o art.° 27° da LAV (Lei n.° 31/86 de 29 de Agosto), ter somente os fundamentos seguintes:

a) Não ser o litígio susceptível de resolução por via arbitral;

b) Ter sido proferida por tribunal incompetente ou irregularmente constituído;

c) Ter havido no processo violação dos princípios do direito de defesa de audiência, igualdade e contraditório, com influência decisiva na resolução do litígio;

d) Faltar a assinatura dos árbitros ou a fundamentação da decisão; e

e) Ter havido o conhecimento, pelo tribunal arbitral, de questões que não podia tomar conhecimento, ou ter deixado de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.

No caso, tendo as partes renunciado ao recurso, autorizando o julgamento segundo a equidade (art.º 29º, n.ºs 1 e 2, da LAV (Lei n.° 31/86 de 29 de Agosto), e não tendo sido instaurada a acção de anulação, no mês subsequente à sentença arbitral, ficou disponível apenas a oposição à execução, no âmbito da qual, podem ser invocados, nos termos do art.º 31º da LAV (Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto), os fundamentos da acção de anulação que antes foram referenciados e que respeitam a questões formais (error in procedendo) e não de mérito (error in judicando), as últimas reservadas para o recurso.

Deste modo, como bem equacionou o acórdão da Relação, sufragando, aliás, o que a 1ª instância já decidira, sendo a sentença arbitral exequível nos mesmos termos em que o são as decisões dos tribunais judiciais e não constituindo o error in judicando fundamento válido de oposição a execução fundada numa sentença proferida por um tribunal judicial também não o é relativamente a execução de sentença arbitral.

As decisões dos árbitros só podem ser atacadas, seja em acção de anulação, seja em embargos (oposição) à execução com fundamento em algum dos vícios taxativamente indicados no artigo 27º, nº 1, da LAV (Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto), não sendo permitido censurar ou sindicar a legalidade ou mérito da decisão arbitral, já que a ter ocorrido ilegalidade, isso constituiria fundamento de recurso, se admissível[4].

Perfilhando este entendimento, em que as instâncias também enfileiraram, é óbvio que à executada (a recorrente) não assiste o direito de questionar, na oposição que deduziu à execução, o mérito da condenação constante da sentença arbitral que lhe serve de título[5]. E, não podendo aí fazê-lo, também aqui, em sede recursória tendo por objecto decisões ali proferidas, não poderá conhecer-se de toda a problemática que a recorrente suscitou referente à prescrição, seja a relativa à determinação da data interruptiva, resultante do erro de facto incidente sobre o dia da citação em anterior processo, seja a da fixação do prazo prescricional aplicável, derivado de eventual erro de direito sobre a qualificação jurídica dos factos objecto da arbitragem.

Tal impossibilidade implicaria, sem mais, o naufrágio imediato do presente recurso, não fora a circunstância de a recorrente, óbvia conhecedora da mesma e no intuito de a superar, ter ensaiado enquadrar os aludidos aspectos relativos ao mérito (a prescrição e a data tida em consideração para efeitos interruptivos desta respectivamente, erro de direito e de facto) na ofensa à ordem pública interna, erigindo esta como fundamento da oposição à execução e, agora, do recurso de revista.

Inexistindo na LAV (Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto), como antes se explicitou na enumeração dos fundamentos de anulação da decisão arbitral e também por remissão da oposição à execução, qualquer referência à ordem pública, a doutrina dividiu-se sobre a admissibilidade desse fundamento. Em sentido afirmativo, temos, por exemplo, os seguintes autores:

- António Pedro Pinto Monteiro – “Da ordem pública no processo arbitral”, Estudos em homenagem ao Prof. Dr. José Lebre de Freitas, Coimbra Editora, Coimbra, Julho de 2013, págs. 589 a 673, onde é feito o cotejo entre a LAV antiga e a LAV actual, com enunciação das várias posições acerca da matéria em questão;

- Assunção Cristas e Mariana França Gouveia, “A violação da ordem pública como fundamento de anulação de sentenças arbitrais, Cadernos de Direito Privado, n.º 29, Janeiro/Março 2010, págs. 41 a 56;

- António Sampaio Caramelo – “Anulação de sentença arbitral contrária à ordem pública”, R.M.P., 126, ano 32, Abril-Junho 2011, págs. 155-198, contendo uma boa resenha acerca das várias posições acerca desta temática;

- Mariana França Gouveia, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, 2011, págs. 210 a 230, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/mfg_ma_11846.doc;

- Mário Raposo, “Os árbitros”, R.O.A., Ano 72, Abr./Set. 2012, Lisboa, págs. 495 a 511; e

- Paula Costa e Silva, “Anulação e recursos da decisão arbitral”, ROA, 1992 (ano 52), pág. 921.

Em sentido negativo, destacam-se os seguintes:

- António Menezes Cordeiro – “A ordem pública nas arbitragens: as últimas tendências”, VII Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial, Almedina, Coimbra, Julho de 2014, págs. 73 a 103;

- Dário Moura Vicente – Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, 2.ª edição revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 2015, págs. 120 a 138; e Impugnação da sentença arbitral e ordem pública, Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. II, Almedina, Coimbra, Outubro de 2012, págs. 327 e ss.;

- Luís de Lima Pinheiro, “Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral”, 2007, disponível em https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2007/ano-67-vol-iii-dez-2007/doutrina/luis-de-lima-pinheiro-apontamento-sobre-a-impugnacao-da-decisao-arbitral;

- Manuel Pereira Barrocas, “A ordem pública na arbitragem”, R.O.A., Ano 74, Jan./Mar. 2014, Lisboa, págs. 35 a 139; “Contribuição para a reforma da lei de arbitragem voluntária”, ROA, disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=1&idsc=59032&ida=59038; “Impugnação da Decisão Arbitral”, apresentação em Colóquio organizado pela APA, no dia 12 de Março de 2010, na Faculdade de Direito de Lisboa sobre uma Nova Lei da Arbitragem, disponível em http://arbitragem.pt/noticias/2010/2010-03-12-coloquio-apa/intervencao-dr-manuel-barrocas.pdf;

- Pedro Siza Vieira – “A execução de decisões arbitrais proferidas em arbitragens domésticas”, Estudos de Direito da Arbitragem em homenagem a Mário Raposo, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 223 e ss.;

- Robin de Andrade, “Decisão arbitral e ordem pública” (intervenção no Colóquio “A arbitragem em movimento”, realizado no Porto, em 27-09-2010), disponível em http://arbitragem.pt/noticias/2010/2010-09-27--ordem-publica.pdf.

Sucede que, mesmo admitindo, como alguns dos apontados doutrinadores e o STJ no acórdão de 10/07/2008 (processo 08A1698)[6], a invocação da ofensa à ordem pública como fundamento invalidante de decisão arbitral, o destino do presente recurso, contrariamente ao sustentado pela recorrente, não será diferente.

Com efeito, sendo a ordem pública o “conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que tem uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas”[7], ou seja, a reunião daquilo que é considerado fundamental, num dado momento e lugar, para que se torne obrigatório, mesmo que se vá contra a vontade dos sujeitos jurídicos, o eventual erro resultante da interpretação e aplicação de normas sobre a contagem e interrupção do prazo prescricional não integra esse núcleo de princípios e normas fundamentais do ordenamento jurídico.

Aliás, como resulta dos art.ºs 280º, n.º 1 e 2, e 281º do Cód. Civil, a violação da ordem pública não se confunde com a contrariedade à lei que, em si mesma, pode não envolver, como acontece no caso, qualquer ofensa a ordem pública. Mais, como bem acentua o acórdão recorrido, a invocada ilegalidade não incide sobre princípios estruturantes fundamentais da sociedade, nem respeita a violação de norma que visa satisfazer um interesse geral da colectividade, mas casuisticamente apenas o interesse da recorrente, na qualidade de devedora.

Daí que a eventual ilegalidade de que padeça a decisão arbitral, no que concerne à contagem e interrupção da prescrição, só em sede de recurso (dessa decisão) poderia ser reapreciada. Não basta rotulá-la como ofensa à ordem pública, como fez a recorrente, para ver subvertidas as aludidas regras de impugnação das decisões arbitrais.

A recorrente (bem como a recorrida) teve inteira liberdade na escolha do tribunal para o julgamento do litígio e tendo optado pela via arbitral, em detrimento da estadual, confiando no julgamento por equidade e renunciando ao recurso, não pode posteriormente transferir o litígio para o tribunal estadual e questionar, na oposição à execução da sentença arbitral e nos subsequentes recursos aí interpostos, o mérito da decisão exequenda, ainda que, para esse efeito, se socorra da ordem pública, tentando enquadrar na ofensa desta os eventuais erros de julgamento de que aquela padeça.

Resta, por fim, assinalar que, contrariamente ao que sustenta subsidiariamente a recorrente, a situação em apreço não se enquadra no art.º 682º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, inexistindo qualquer fundamento para a pretendida baixa do processo em ordem à ampliação da base factual.

Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões da recorrente, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta, nem viola as disposições legais que indica.


IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar consequentemente o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 13 de Julho de 2017


António Piçarra (relator)

Olindo Geraldes

Nunes Ribeiro (dispensei o visto)

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[1] Omitem-se as primeiras 25, por relativas à admissibilidade do recurso de revista excepcional.
[2] Cfr. Mário Esteves de Oliveira e Outros, Lei da Arbitragem Voluntária Comentada, 2014, Almedina, págs. 20 e 21.
[3] Cfr., neste sentido, Armindo Ribeiro Mendes e Outros, Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, 2012, Almedina, pág. 12.
[4] Cfr., neste sentido acórdãos do STJ de 24.10.2006 (processo 06B2366), de 11.02.2010 (processo n.º 209/07.6TBPCV-A.C1.S1), e de 07.06.2011 (processo n.º 3442/07.7TBVLG.P1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 11.02.2010 (processo n.º 209/07.6TBPCV-A.C1.S1), acessível em www.dgsi.pt.
[6] Acessível em www.dgsi.pt.
[7]Vide Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 557 e 558.