Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
Descritores: | POSSE ADMINISTRATIVA DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA CADUCIDADE RESTITUIÇÃO DA POSSE RECUSA AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO EXPROPRIAÇÃO PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DA OBRA PÚBLICA INTERESSE PÚBLICO PREJUÍZO CONSIDERÁVEL INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA LEI DIREITO À INDEMNIZAÇÃO OCUPAÇÃO CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR | ||
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Data do Acordão: | 06/17/2025 | ||
Nº Único do Processo: | | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA | ||
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Sumário : | I - No âmbito de uma acção de reivindicação de uma parcela que foi obecto de posse administrativa, mas cuja declaração de utilidade pública caducou, o excepcional prejuízo para o interesse público constitui fundamento para recusar a restituição da posse da parcela ao seu proprietário. II - Assiste, no entanto, ao particular o direito de ser indemnizado pela ocupação da posse da parcela. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça Turismadeira – Construção Civil, Promoção, Exploração de Empreendimentos Turísticos, SA, com sede na Rua Sousa Lopes, Lote PQ – Apt.º 107, Lisboa, propôs a presente ação declarativa contra ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, SA (tendo-lhe sucedido ANA – Aeroportos de Portugal SA), com sede no Aeroporto da Madeira, Santa Cruz, pedindo: 1. Se reconhecesse a ela, autora, o direito de propriedade do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial: prédio rústico situado na freguesia do ... (B.....), descrito no registo Predial sob a ficha n.º ...24, inscrito na matriz rústica da freguesia do ..., sob o artigo 18, Secção “M”; 2. Se condenasse a ré no pagamento a ela, autora, do valor da quantia de € 40.000, como indemnização, pela ocupação, sem título, da parcela reivindicada, desde 2003 até à presente data; 3. Se condenasse a ré no pagamento da quantia mensal de 2000 euros por cada mês ou fração desde a data da citação até à efetiva entrega da parcela. Para o efeito alegou em síntese: • Que é proprietária do prédio rústico situado na freguesia do ... (......), descrito no registo Predial sob a ficha n.º ...24, inscrito na matriz rústica da freguesia do ..., sob o artigo 18, Secção “M”; • Que parte deste prédio, correspondente a 13 025 m2, foi ocupada pela ré com base em declaração de utilidade pública e de posse administrativa, para nela ser instalado um rádio/farol de apoio à navegação aérea; • Que o processo expropriativo não foi concluído, tendo caducado; • Que a ré ocupa a parcela de terreno abusivamente, sem título; • Que ela, autora, está impedida de usar e fruir da parcela de terreno ocupada; • Que caso tivesse tal parcela de terreno arrendada, designadamente para fins turísticos, obteria um rendimento mensal no mínimo de dois mil euros. A ré contestou, pedindo se considerasse o tribunal absolutamente incompetente para a acão. Subsidiariamente, pediu: a. Se chamassem à acção a Região Autónoma da Madeira e a NAV, EP; b. Se considerasse parcialmente prescrito o pedido de indemnização formulado pela autora; c. Se considerassem improcedentes os demais pedidos formulados pela autora. Para o efeito alegou em síntese: • Que a competência para a lide cabe aos tribunais administrativos, pois o imóvel foi expropriado e está integrado no domínio público e afecto directamente a uma finalidade de interesse público (finalidade aeronáutica); • Que empresa Ana EP tomou posse administrativa do imóvel em 6-6-1980 e que depois dessa data, primeiro a ANA, depois a RAM e finalmente a ANAM e agora a NAV estiveram na posse pacífica e pública do imóvel, o que significa que já houve usucapião; • Que ainda que assim não fosse, sempre se deveria julgar improcedente o pedido por efeito da afectação do imóvel à satisfação da necessidade colectiva aeroportuária; • Que ainda que assim não fosse sempre haveria acessão industrial imobiliária; • Que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil; • Que mesmo que se verificassem tais pressupostos, o direito de indemnização estaria prescrito. A autora respondeu, alegando, em síntese: que não se verificava nem a incompetência do tribunal nem a prescrição do direito de indemnização; que não estavam preenchidos os pressupostos da usucapião, pediu se considerasse que a ré, ao invocar a aquisição por usucapião, estava a agir com manifesto abuso de direito; que o pedido de acessão, além de inepto, era improcedente. Em relação à intervenção da RAM e da NAV, declarou que não se opunha. Modificações subjectivas da instância: A Região Autónoma da Madeira e NAV - Navegação Aérea de Portugal, EPE, foram admitidas a intervir nos autos, como partes principais, ao lado da ré. Citada, a interveniente Navegação Aérea de Portugal – NAV Portugal E.P.E. contestou. Na sua defesa começou por invocar a incompetência dos tribunais judiciais para o conhecimento da acção. Mais alegou: que no terreno estão instalados equipamentos que são essenciais ao serviço público de navegação aérea, sem os quais não é possível a operação no Aeroporto da Madeira; que o terreno onde estão instalados os equipamentos são propriedade da Região Autónoma da Madeira; que desde 1980 que o imóvel está na pose, primeiro da ANA EP, depois da RAM, o que significa que já se deu a aquisição por usucapião; que, ainda que assim não fosse, o pedido de restituição devia ser julgado improcedente por efeito da afectação do imóvel à satisfação de necessidade colectiva aeroportuária; que haveria acessão industrial imobiliária; que o pedido de indemnização não era fundado ; que não se verificavam os pressupostos da responsabilidade civil; que o direito que a autora reclamava já se encontrava prescrito. Findos os articulados, a autora, mediante convite do tribunal, apresentou nova petição, na qual reformulou o pedido nos seguintes termos: 1. Condenação da ré a reconhecer à autora o direito de propriedade do prédio reivindicado e bem assim no pagamento a ela, autora, do valor da quantia de 40.000,00€, como indemnização pela ocupação, sem título, da parcela reivindicada desde 2003 até à presente data; 2. Condenação da ré a entregar à autora a parcela reivindicada e no pagamento da quantia de 2.000,00€ por cada mês ou fracção desde a data da citação para a acção e até efectiva entrega da parcela reivindicada. A Região Autónoma da Madeira contestou e deduziu reconvenção, pedindo: • Se declarasse que a RAM era proprietária do prédio por usucapião; • Sem prescindir, se declarasse que ocorreu acessão industrial imobiliária, indemnizando-se a autora nos termos legais. Navegação Aérea de Portugal – NAV Portugal, E.P.E também contestou. Por despacho proferido em 30-11-2018 foi determinado o desentranhamento da contestação-reconvenção apresentada pela Região Autónoma da Madeira. No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção de incompetência dos tribunais judiciais. O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu: a. Reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio rústico denominado “B.....”, situado na “Ponta de S. Lourenço”, a confinar a norte com AA, sul com BB, este com CC e oeste com DD, inscrito na matriz sob parte do artigo 10 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...24/250292 da freguesia do ...; b. Absolver as rés do demais peticionado. Apelação: A autora não se conformou e interpôs recurso de apelação, pedindo se revogasse a sentença e se substituísse a mesma por decisão que julgasse a acção totalmente procedente. A ré Ana – Aeroportos de Portugal S.A. requereu a ampliação do objecto do recurso, pedindo a sua absolvição dos pedidos com fundamento em ilegitimidade substantiva e se declarasse a prescrição da obrigação de indemnização. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 30 de Março, com um voto de vencido, decidiu: a. Reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio rústico denominado “B.....”, situado na Ponta de S. Lourenço, inscrito na matriz sob parte do artigo 10 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...24/250292 da freguesia do ..., com excepção da parcela com a área de 15.831 m2 a que foi objecto do auto de posse administrativa, mencionada no ponto 10.º dos factos provados; b. Condenar o Governo Regional da Madeira a pagar à autora a indemnização que se viesse a liquidar, nos termos do art.º 609.º n.º 2 do CPC, considerando os parâmetros referidos no ponto 6 do acórdão; c. Declarar que, após o pagamento da referida indemnização, a Região Autónoma da Madeira será a titular do direito de propriedade sobre a parcela mencionada em a). Revista A autora não se conformou com o acórdão e interpôs recurso de revista, pedindo se julgasse procedente o recurso e, em consequência, se revogasse o acórdão recorrido e se substituísse o mesmo por decisão a julgar totalmente procedente a acção. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: 1. A decisão recorrida, na alínea a) do seu dispositivo, viola o caso julgado formado na primeira instância, uma vez que revoga decisão de que não foi interposto recurso por qualquer das partes e como tal é inexistente nos termos dos artigos 625.º nº 1 e 635.º, n.º 5 e do CPC. 2. A mesma alínea a) da parte dispositiva da decisão recorrida viola o disposto nos artigos 3.º, n.º 1. e 635.º nºs 2 a 4 al. d) do CPC, sendo nula nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), do mesmo Código. 3. As alíneas b) e c) do dispositivo da decisão recorrida contém uma condenação e uma declaração nos termos das quais a ré Região Autónoma deveria adquirir uma parcela do prédio da autora e esta teria de alienar essa mesma parcela – uma vez que nenhuma das partes formulou tais pedidos para os quais inexiste qualquer fundamento legal também os ditos segmento das alíneas b) e c) do dispositivo do Acórdão recorrido violam o disposto no artigo 3.º do CPC e são, por isso, nulos nos termos da al. d) do nº 1 do art.º 615.º do mesmo Código. 4. Estando assente que a DUP com base no qual a ANA (à qual sucedeu a Ré ANAM) tomou posse administrativa do prédio caducou e não havendo alegação nem prova de que tal DUP tenha sido renovada no prazo legal, não pode o Tribunal invocar a chamada “intangibilidade da obra pública” para negar a restituição do prédio reivindicado. 5. A norma aplicada pela decisão recorrida, segundo a qual o princípio da intangibilidade da obra pública prevaleceria sobre a caducidade definitiva da declaração de utilidade pública, anulando os seus efeitos práticos, é manifestamente inconstitucional por violação flagrante e directa do princípio do Estado de Direito democrático e do art.º 62.º da Constituição. 6. Tal norma seria também violadora do princípio da separação de poderes – art.º 111.º da CRP – uma vez que não pode caber aos Tribunais declarar a utilidade pública de uma obra ou expropriação. 7. E muito menos ainda cabe aos Tribunais declarar uma utilidade pública que a administração deixou caducar e não quis renovar. 8. Deve, portanto, proceder o pedido de restituição do prédio formulado pela Autora. 9. Acresce que a matéria factual apurada evidencia por parte das Rés ANAM e RAM (sendo certo que a NAV, actual ocupante do prédio, é um mero “desdobramento” da ANA resultante de cisão da mesma ocorrida já posteriormente à caducidade da DUP e portanto sucessora desta nos direitos e obrigações aqui em causa) uma actuação dolosa caracterizada pelo desrespeito grosseiro pelos direitos da Autora a cujas justas reclamações, as Rés ANA e RAM responderam, ao longo de quase 20 anos, com silêncio, com evasivas e mesmo com pura desonestidade! (Factos 3, 5, 6, 7, 20, 23, 37 e 38 da matéria provada). 10. Está provado nos autos que foram instalados no prédio da autora e mantêm-se em funcionamento no mesmo um conjunto de equipamentos essenciais para a operação do Aeroporto da Madeira (Factos 22, 25, 26 e 34) e ainda, para além dos equipamentos referidos, cuja necessidade de instalação justificou a declaração de utilidade pública há muito caducada, a detentora do prédio da autora autorizou a instalação no mesmo de uma estação meteorológica do IPMA – Instituto Português do Ar e da Atmosfera e de um repetidor da Vodafone (Facto 23). 11. Assim, para além das evidentes e valiosíssimas vantagens económicas decorrentes da ocupação do prédio para instalação dos equipamentos necessários à operação do Aeroporto da Madeira, as RR. extraem ainda outras vantagens económicas decorrentes da cedência do prédio ocupado para instalação de equipamentos de terceiros. 12. É facto notório – no sentido de que é uma inferência a que inevitavelmente chega um qualquer cidadão médio normalmente educado – e, portanto, de que o tribunal está obrigado a conhecer nos termos da al. c) do nº 2 do art.º 3º do CPC, que o benefício que as rés extraíram e extraem da ocupação do prédio da autora é de valor económico muitíssimo superior a € 2.000 (dois mil euros) por mês, quantia peticionada pela autora a título de indemnização pela privação do uso do seu prédio. 13. Seguindo o ensinamento do Acórdão do STJ de 03.10.2013 acima citado, deve-se concluir que a ocupação do prédio pelas rés, beneficiando das vantagens de utilização de um bem alheio, sem qualquer título que o legitimasse, confere à autora um crédito com fundamento no enriquecimento sem causa, de que são pressupostos em causa: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento. 14. Sendo tal enriquecimento um facto continuado – que cessará com a restituição do prédio – e estando reclamada a restituição correspondente à utilização que se iniciou três anos antes da entrada em juízo da presente acção é óbvio que quanto à reclamação do correspondente crédito não o correu qualquer prescrição. 15. Sendo por demais evidente que a quantia peticionada de € 2.000 por mês, é claramente inferior ao valor do enriquecimento das rés e que o valor locativo do bem em causa, mercê designadamente da sua localização privilegiada a diversos títulos (Factos 21, 24, 33, 34 e 36) é muitíssimo elevado, devem as rés ser condenadas pagar à Autora a quantia peticionada, como é aliás, até intuitivamente, de plena justiça. 16. A decisão recorrida viola todas as disposições legais referidas nas conclusões supra. A ré e as chamadas não responderam ao recurso. * ANA – Aeroportos de Portugal, S.A. (“ANA”) requereu a rectificação do acórdão no sentido de ser inserido no seu dispositivo a seguinte decisão que consta da sua página 25: “Julga-se procedente a exceção perentória de ilegitimidade substantiva da interveniente ANA, com a consequente absolvição dos pedidos contra a mesma formulados”. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 4-07-2024, rectificou o acórdão nos exactos termos do requerimento de rectificação. * Por sua vez, por acórdão proferido em conferência, no dia 23-01-2025, o Tribunal da Relação de Lisboa, em cumprimento do artigo 617.º, n.º 1, do CPC, aplicável por remissão do n.º 1 do artigo 666.º do CPC, apreciou as nulidades do acórdão arguidas na revista, indeferindo a arguição das nulidades. * Questões suscitadas pelo recurso: • Saber se a alínea a) da parte dispositiva do acórdão, na parte em que não reconheceu à autora, ora recorrente, o direito de propriedade sobre a parcela com a área de 15.831 m2, que foi objecto do auto de posse administrativa, mencionada no ponto 10.º dos factos provados, viola o caso julgado formado pela decisão proferida em 1.ª instância de reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio rústico denominado “B.....”, situado na “...”, a confinar a norte com AA, sul com BB, este com CC e oeste com DD, inscrito na matriz sob parte do artigo 10 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...24/250292 da freguesia do ...; • Saber, no caso de se entender que não houve violação do caso julgado, se a alínea a) da parte dispositiva do acórdão, na parte acima referida, viola o disposto nos artigos 3.º n.º 1 e 635º nºs 2 a 4, CPC, sendo nula nos termos do art.º 615º nº 1 al. d) do mesmo Código (nulidade por excesso de pronúncia); • Saber se a alíneas b) e c) da parte dispositiva do acórdão violam o disposto no artigo 3.º do CPC, sendo nulas nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (nulidade por excesso de pronúncia); • Saber se deve proceder o pedido de restituição da parcela por a prevalência que o acórdão recorrido deu ao princípio da intangibilidade da obra pública sobre a caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação da parcela violar o princípio do Estado de Direito democrático, o artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o princípio da separação de poderes (artigo 111.º da CRP). • Saber se a ocupação do prédio pelas rés confere à autora um crédito com fundamento no enriquecimento sem causa, no montante peticionado. * Factos considerados provados e não provados pelo acórdão recorrido: 1. Na Conservatória do Registo Predial de ..., encontra-se descrito, sob o n.º/250292 da freguesia do ..., o prédio rústico denominado “B.....”, situado na ...”, a confinar a norte com AA, sul com BB, este com CC e oeste com DD, inscrito na matriz sob parte do artigo 10, e aí inscritas, com a Ap. 06/191168, aquisição a favor da Madeira – Sol – Sociedade Comercial e Industrial de Construção Civil, Lda. e, com a AP. 05/121297, aquisição a favor da autora por adjudicação em concordata suspensiva, homologada por sentença transitada em 20 de março de 1997, proferida em processo de falência. 2. O prédio referido em 1. encontra-se atualmente inscrito na matriz rústica da freguesia do ... sob o artigo 18 da secção M. 3. Em 05.05.2005 a “ANAN – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, SA, enviou telefax ao então mandatário da autora, o qual, com a epígrafe “Turismadeira S.A – Prédio no ...”, tinha o seguinte teor: “Em referência aos vossos faxes n.ºs 11914 e 12206, respetivamente de 6 de Outubro e 4 de Novembro de 2004, sob o assunto mencionado em epígrafe, os quais mereceram a nossa melhor atenção, vimos informar que a ocupação do terreno neles referenciados, teve por base uma declaração de utilidade pública, publicada no Diário da República n.º 102, de 9 de Maio de 1980, tendo sido elaborado o respetivo auto de posse administrativa, conforme cópias em anexo. Considerando que o processo administrativo foi iniciado pela empresa ANA EP, entidade que, à data, detinha a gestão e exploração dos aeroportos da Madeira e Porto Santo e, desconhecendo a ANAM o desenvolvimento do supracitado processo, nem dispondo de qualquer informação adicional sobre o mesmo, após a regionalização dos aeroportos em finais de 1980, julgamos que deverão solicitar informação junto das entidades que considerem pertinentes. 4. O que a ré pretendia fazer na parcela de 13.025m2 do prédio referido em 1. era a instalação de um rádio/farol de apoio à navegação aérea. 5. Mediante carta dirigida a mandatário da autora, com data de 05.12.2006, recebida em 12.01.2007, sob a epígrafe “Regularização da titularidade da parcela onde está instalado o rádio-farol VOR/DME na Ponta de S. Lourenço – ...”, a ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, SA comunicou o seguinte “Na sequência da exposição efetuada em nome da vossa representada “Turismadeira, SA”, serve a presente para solicitar a V. Exa. que envie certidão da Conservatória do Registo Predial competente, bem como certidão de teor da matriz predial da parcela de terreno em questão, de modo a que a ANAM, SA fique devidamente habilitada a proceder à correta apreciação jurídica da situação apresentada. Assim que as certidões em causa forem recebidas, o assunto será objeto de análise, finda a qual este conselho tomará uma posição sobre a solução que considere ir de encontro aos interesses de ambas as partes. 6. Os documentos solicitados foram remetidos através de carta datada de 11.01.2007. 7. Desde a data referida em 6., a ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, SA, nada mais referiu à autora sobre a parcela ocupada. 8. A dimensão dos equipamentos eletrónicos instalados na parcela referida em 4. impede a aproximação da autora ao local, bem como a sua aproximação ao local, o qual se encontra vedado com rede no seu perímetro. 9. Por despacho n.º 48/80 de 23 de Abril de 1980 do Ministro dos Transportes e Comunicações, publicado no Diário da República, II Série, n.º 107, de 09.05.1980, e na sequência da aprovação do plano de trabalhos designados por Projeto I ou Projeto de Segurança do Aeroporto do Funchal, para o que se tornava necessária a instalação de um radiofarol VOR/DME, nos terrenos situados da área da Ponta de S. Lourenço, na Ilha da Madeira, foi declarada de utilidade pública da expropriação da “parcela situada na Ponta de S. Lourenço, freguesia do ..., concelho de Machico, com área de 15.831, inscrito na matriz predial rústica do concelho de Machico sob o artigo 10º, bem como atribuído à expropriação carácter urgente e autorizada a Empresa Pública Aeroportos e Navegação Aérea a tomar posse administrativa dos terrenos indispensáveis ao início e prossecução dos trabalhos necessários à instalação do radiofarol. 10. Em 06.06.1980 foi lavrado “Auto de Posse Administrativa, do qual consta o seguinte: “1 – A declaração da utilidade pública da expropriação, o seu carácter urgente, bem como a autorização para a tomada de posse administrativa dos terrenos expropriados constam do despacho n.º 48/80de 23 de Abril do Senhor Ministro dos Transportes e Comunicações, publicado no Diário da República II Série, n.º 107, de 9 de Maio de 1980. 2 – A posse administrativa dos prédios abaixo identificados é indispensável para se dar início imediato às obras da sua adaptação para instalação de um radiofarol VOR/DME, equipamento cuja urgência de montagem não pode a consumação do processo expropriatório, nomeadamente a investidura judicial do expropriante na propriedade dos citados prédios. 3 – Os prédios expropriados, cuja posse se vai tomar, são os seguintes: (…) b) Parcela situada na Ponta de S. Lourenço, freguesia do ..., concelho de Machico, pertencente à Sociedade Comercial e Industrial de Construção Civil, Lda., Madeira – Sol, com sede na Rua Ivens, n.º 22, no Funchal, com área de 15.831, inscrito na matriz predial rústica do concelho de Machico sob o artigo 10º. (…) 4 – A vistoria “ad perpetuam rei memoriam” dos terrenos expropriados realizou-se em 28 de maio de 1980 pelo perito permanente Senhor Engenheiro EE, nomeado por despacho do senhor Presidente da Relação de Lisboa, não tendo comparecido ao ato nenhum dos proprietários devidamente notificados da sua realização, encontrando-se o relatório da vistoria arquivado no processo que corre os seus termos perante a entidade expropriante, a A.N.A., EP. Na sequência deste auto, ficam os agentes e representantes da entidade expropriante habilitados a tomar posse dos prédios referidos no n.º 3 e a praticar nele todos os atos e operações materiais necessários à realização do interesse público da expropriação. 11. Um radiofarol VOR/DME (Very High Frequency Omnidirecional Range/Distance Measuring Equipement) é um equipamento de apoio à navegação aérea que consiste, basicamente, numa ajuda em rota para a aproximação à pista. 12. A instalação deste equipamento na Madeira veio dar resposta a uma necessidade há muito reclamada pelas transportadoras aéreas nacionais e estrangeiras por questões de segurança e tornou-se urgente na sequência da sua previsão no Plano de Navegação Aérea para a Europa. 13. Mediante escrito datado de 9 de Julho de 1993, denominado de “Contrato de Concessão”, entre o Governo Regional da Madeira, como concedente, e ANAM, SA – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, SA, como concessionária, foi “celebrado contrato de concessão do direito de promover e executar as obras de Ampliação do Aeroporto de Santa Catarina e de desenvolvimento das infraestruturas aeroportuárias, bem como o planeamento e a exploração do serviço público de apoio à aviação civil na Região Autónoma da Madeira”. Da Cláusula 2ª deste contrato, sob a epígrafe “Objeto da Concessão”, consta que “O presente contrato tem por objeto a concessão do direito a promover e executar das obras de ampliação do aeroporto de Santa Catarina e de desenvolvimento das infraestruturas aeroportuárias, bem como o planeamento e a exploração do serviço público de apoio à aviação civil da Região Autónoma da Madeira, nos termos da lei e das cláusulas seguintes”. Da cláusula 3ª do mesmo contrato consta, além do mais, o seguinte: “3. O planeamento e exploração do serviço público de apoio à aviação civil, compreendem: b) A administração dos bens dominiais e patrimoniais afetos aos serviços concessionados, que constam do Anexo I (…) . 14. Do Anexo I referido em 13. consta o radiofarol instalado no prédio referido em 1. 15. Desde há mais de 31 anos que na parcela referida em 9. e 10. se encontra instalado o farol VOR/DME. 16. A remoção de tal radiofarol da parcela de tal terreno traria riscos à segurança aeronáutica do aeroporto da Madeira. 17. A ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, SA foi integrada na sociedade ANA – Aeroportos de Portugal, SA, por força de operação de fusão, na modalidade de transferência global de património da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, registada a 25 de Setembro de 2014. 18. Em 01.02.2016, a Direção Regional do Património e de Gestão dos Serviços Partilhados, da Secretaria Regional das Finanças e da Administração Pública, do Governo Regional, da Região Autónima da Madeira remeteu escrito ao mandatário da autora, mediante o qual, comunicou o seguinte: “- A Declaração de Utilidade Pública em preço foi publicada no Diário da República n.º 107, II Série, de 9 de maio de 1980. - De acordo com os elementos constantes nesta Direção Regional afigura-se que o bem móvel em causa corresponde ao artigo 18º, da secção M, da freguesia do ..., tendo-se requerido certidão matricial atualizada quanto ao mesmo (em anexo). - Contudo, no âmbito do processo judicial n.º 807/11.3TBSCR, o mandatário da sociedade “Turismadeira Construção Civil, Promoção e Exploração de Empreendimentos Turísticos, SA” juntou aos autos a descrição predial sob o n.º 124, da freguesia do ..., correspondente a parte do artigo cadastral 10º, da mesma freguesia. - Ora, por os artigos em causa serem distintos, suscitam-se dúvidas quanto à titularidade do bem imóvel em causa, cujos esclarecimentos se aguardam de modo a dar continuidade ao V/ processo. - Refira-se ainda que, por existir discrepância quanto à identificação das áreas efetivamente expropriadas, por parte de V. Exa e pelo dono da obra, cumpre-nos informar que a ANAM, SA – Aeroportos da Madeira efetuou um levantamento topográfico, tendo em vista aferir com a devida exatidão as áreas efetivamente ocupadas pelas obras. - Nessa sequência, clarifica-se que do levantamento topográfico resulta que apenas foi ocupado em obra uma área de 12.900m2, a qual será considerada no âmbito do processo e expropriação em curso. - Quanto à vossa proposta de 50,00€/m2, refira-se que não foi apresentada qualquer fundamentação para o mesmo, sendo que poderá, querendo, apresentar relatório elaborado por perito à V. escolha, para justificar a contraproposta apresentada - Clarifica-se que, em setembro de 1980 o montante indemnizatório por três peritos independentes designados pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi de 3.957,75€ (15.831,00m2), que ajustado à área efetivamente ocupada pela obra (12.900,00m2) corresponde ao montante indemnizatório de 3.225,00€. - No entanto, dado o tempo decorrido desde o início do processo (setembro de 1980), a RAM propõe a atualização do montante indemnizatório de 3.225,00€, segundo o índice de preços ao consumidor exceto habitação, com o fator de atualização de 10,53188047 (dezembro 2015), último índice disponível, à data. - Assim, propõe-se uma indemnização ajustada a esta nova área de 12.900,00m2, que resulta no montante total de 33.965,31€ (trinta e três mil novecentos e sessenta e cinco euros e trinta e um cêntimos). - Caso V. Exa. Venha a concordar com o referido montante indemnizatório deverá entregar declaração a aceitar o valor proposto e toda a documentação necessária para a realização da escritura de expropriação (vide: anexo). 19. A presente ação foi instaurada em 27.05.2011, tendo a ré Ana Aeroportos de Portugal, SA sido citada para a mesma em 07.06.2011. 20. A autora, através de mandatário, por cartas datadas de 01.04.2003, 12.05.2004 e 09.3.2006, notificou, respetivamente, o Diretor dos Aeroportos da Madeira, a ANAM – Direção de Aeroportos da Madeira, SA e ANA – Aeroportos de Portugal, SA, para resolver a questão pendente da ocupação sem título da parcela referida em 3., propondo que a ré procedesse à sua aquisição, se nisso tivesse interesse, tendo referido, na carta datada de 09.03.2006 que “Segundo informação, em tempo, terá sido iniciada expropriação por utilidade pública, que não foi concluída, pelo que caducou. 21. A vedação referida em 8. é para impedir o acesso ao local de turistas que ali se deslocam. 22. Na parcela referida em 9. e 10. estão instalados, não apenas um radiofarol, mas vários equipamentos ou sistemas da ré NAV Portugal EPE, quais sejam: - NDB (Non Directional Beacon), habitualmente designado por radiofarol: - VOR (VHF Omnidirectional Radio Range) e DME (Distance Measuring Equipement); - Estação RIMS (Rangins and Integrity Monitoring Station) do Sistema EGNOS (European Geostationary Navigation Overlay Service); - Estação de comunicações ar-terra-ar; - Estação VGS (VHF Ground Station); - Posto de Transformação de um Grupo de emergência que apoia todos os sistemas. 23. Foi autorizada a instalação nesse terreno, de uma estação meteorológica (afeta ao ex-Instituto de Meteorologia, atual IPMA – Instituto Português do Ar e da Atmosfera) e de um repetidor da Vodafone (ainda não instalado). 24. O terreno referido em 1. é um dos locais de preferência para a futura instalação de infraestruturas de apoio ao projeto WAM (Wide Area Multilateration), importante para assegurar a vigilância sobre o tráfego aéreo que demanda o Arquipélago da Madeira. 25. Os sistemas VOR/DME (que funcionam em conjunto) e o NDB são utilizados pelas aeronaves para fazerem a aproximação ao aeroporto da Madeira. 26. Equipamentos e sistemas que se encontram em utilização operacional 24 horas por dia, 365 dias por ano. 27. Os procedimentos de aproximação mais utilizados são baseados no VOR/DME. 28. Os procedimentos NDB são utilizados se houver falha dos equipamentos VOR/DME. 29. Com base nestas ajudas rádio estão definidos também os “Holdings” (esperas), os procedimentos de saída (SID) e chagadas (STAR), os procedimentos de falha de comunicações e de aproximação falhada. 30. A estação RIMS permite a monitorização da integridade do sinal do sistema EGNOS, sendo estratégica para a rede europeia por se encontrar já numa zona periférica do sistema, a fim de possibilitar a definição (e utilização) de procedimentos de navegação por satélite. 31. A estação de comunicações Ar-Terra-Ar suporta três frequências aeronáuticas (uma delas é a frequência de emergência), sendo o único local possível para assegurar a cobertura da costa norte da ilha, bem como para oeste, nomeadamente no que se refere ao tráfego proveniente da RIV de Santa Maria. 32. A estação VGS permite a transmissão de informação entre as companhias e as aeronaves, bem como a possibilidade de ser utilizada para a transmissão de dados relevantes ao serviço de tráfego aéreo (Datalink). 33. Todos os sistemas referidos em 22. são essenciais para assegurar as condições mínimas de voo e segurança das aeronaves. 34. Sem tais sistemas não é possível a operação no aeroporto da Madeira. 35. Os equipamentos referidos em 22) encontram-se instalados na parcela referida em 9. e 10 há mais de 34 anos. 36. Os estudos de localização dos sistemas instalados obedeceram a critérios técnicos para a operação no aeroporto da Madeira, não sendo viável a sua relocalização. 37. Mediante comunicação de 02.11.2017 a ANA transmitiu à Região Autónoma da Madeira, quanto ao processo expropriativo, o seguinte: “[…] vimos esclarecer primeiramente que, em 1980, na sequência do determinado no Decretos-Lei nºs. 294/80, de 16 de agosto, e 530/80 e 538/80, de 5 e 7 de novembro, as infraestruturas aeroportuárias existentes na Região, o serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil nelas desenvolvido e, inclusive, o pessoal da gestora aeroportuária afeto a tais atividades – à data, a Empresa Pública Aeroportos e Navegação Aérea (ANA E.P.) -, foram transferidos para a esfera jurídica do Governo Regional da Madeira. Mais se informa que, neste contexto particular, todo o processo aquisitivo das parcelas de terreno referenciadas foi igualmente remetido ao Governo Regional, mais concretamente à Secretaria Regional do Equipamento Social, entidade que tinha a responsabilidade das aquisições e expropriações. Face ao que antecede, e por não dispor de elementos relativos ao desenvolvimento deste processo após a sua transferência para a jurisdição do Governo Regional, não é possível à ANA – Aeroportos de Portugal, SA, informar se existiu ou não adjudicação judicial ou qualquer pagamento indemnizatório neste processo”. 38. Desde pelo menos 2006, na sequência das cartas referidas em 20, que a ANAM reconheceu que a propriedade da parcela referida em 9 e 10 pertence à autora e que a ocupava sem que tivesse sido concluído o processo de expropriação referido em 3, 9 e 10 e sem que tivesse sido paga a respectiva indemnização à proprietária”. Factos não provados: a. Se a autora tivesse a parcela referida em 4. arrendada para fins turísticos, teria um rendimento mensal de, no mínimo, 2000 euros; b. O referido em 23. ocorreu após a coordenação com a ANAM; c. A instalação dos equipamentos referidos em 22. foi permitida à NAV pela ANAM. * Descritos os factos provados e não provados, passemos à resolução das questões acima enunciadas. Primeira questão: saber se a alínea a) da parte dispositiva do acórdão, na parte em que exclui do objecto do direito de propriedade da autora a parcela com a área de 15.831 m2 que foi objecto do auto de posse administrativa, mencionada no ponto 10.º dos factos provados, violou o caso julgado formado pela decisão proferida em 1.ª instância de reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio rústico denominado “...”, situado na “...”, a confinar a norte com AA, sul com BB, este com CC e oeste com DD, inscrito na matriz sob parte do artigo 10 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...24/250292 da freguesia do .... A resposta a esta questão é afirmativa. Como bem afirma a recorrente, a decisão da 1.ª instância de reconhecer a favor dela, recorrente, o direito de propriedade sobre a totalidade do prédio rústico atrás descrito não foi impugnada por quem tinha legitimidade para tanto, a ré e as intervenientes. Conjugando este facto com o disposto no artigo 628.º do Código de Processo Civil (CPC) sobre a noção de trânsito em julgado é de concluir que tal segmento da decisão transitou em julgado. Assim sendo, agora por aplicação do n.º 5 do artigo 635.º do CPC, essa parte da sentença proferida em 1.ª instância que transitou em julgado não podia ser prejudicada pela decisão do recurso de apelação. Tal significava, socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis a propósito do parágrafo único do artigo 685.º do CPC de 1939 com redacção igual à do n.º 5 do artigo 635.º, que o “o julgamento do recurso não pode agravar a posição do recorrente, tornando-a pior do que seria se ele não tivesse recorrido” (Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra 1981, página 305). Foi, no entanto, o que fez a parte dispositiva do acórdão ora em apreciação ao não reconhecer à autora o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno que a sentença proferida na 1.ª instância havia reconhecido. Colocou a autora numa situação pior do que estaria se não tivesse recorrido. Em consequência, há fundamento para revogar o acórdão recorrido na parte em que exclui do objecto do direito de propriedade da autora a parcela acima descrita e para repristinar a sentença proferida em 1.ª instância, ou seja, reconhecer o direito de propriedade da autora sobre a totalidade da parcela. * A segunda questão suscitada pelo recurso foi deduzida a título subsidiário. Para a hipótese de não proceder a alegação de violação do caso julgado, a recorrente pediu se declarasse a nulidade da alínea a) da parte dispositiva do acórdão com fundamento em excesso de pronúncia. Considerando que a pretensão deduzida a título principal – ofensa do caso julgado – foi julgada procedente, fica prejudicado o conhecimento da arguição da nulidade por excesso de pronúncia, deduzida a título subsidiário. * Terceira questão: saber se as alíneas b) e c) da parte dispositiva do acórdão recorrida são nulas por excesso de pronúncia. É de responder afirmativamente a esta questão. Sob a alínea b), o acórdão da Relação condenou o Governo Regional da Madeira a pagar à autora a indemnização que se viesse a liquidar, nos termos do art.º 609.º, n.º 2, do CPC, considerando os parâmetros referidos no ponto 6 do acórdão. Sob a alínea c) declarou que, após o pagamento da referida indemnização, a Região Autónoma da Madeira seria a titular do direito de propriedade sobre a parcela mencionada em a). Nos termos da segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – aplicável aos acórdãos da Relação por remissão do n.º 1 do artigo 666.º do mesmo diploma – é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Esta nulidade está directamente relacionada com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC – também ele aplicável ao acórdão proferido em sede de apelação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do mesmo diploma -, na parte em que dispõe que o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Uma vez que era de considerar transitada em julgado a decisão que reconheceu à autora, ora recorrente, o direito de propriedade sobre a totalidade do terreno, as questões suscitadas na apelação respeitavam à decisão da 1.ª instância de recusar a restituição da parcela que foi objecto de posse administrativa com fundamento no princípio da intangibilidade da obra pública e à decisão de julgar improcedente o pedido de indemnização por ocupação da parcela. A apelante pedia a revogação desses dois segmentos da sentença e a substituição deles por decisão que condenasse as rés a restituir a parcela de terreno e que as condenasse no pagamento de indemnização, a título de enriquecimento sem causa. Apesar de o acórdão recorrido ter declarado que julgava parcialmente procedente o recurso de apelação e que revogava parcialmente a sentença proferida na 1.ª instância, na realidade o acórdão julgou totalmente improcedentes as pretensões da apelante. Com efeito, não atendeu a nenhuma delas: condenação na restituição da parcela e no pagamento de indemnização a título de enriquecimento sem causa. É certo que, em relação à indemnização pedida pela apelante, o acórdão afirmou que ela (indemnização) ficava consumida por aquela que o Tribunal atribuía e que, nas suas palavras, visava “colocar a Autora na situação em que estaria caso o processo de expropriação tivesse sido concluído”, razão pela qual “perdia sentido fixar uma indemnização pela ocupação do imóvel”. Porém, o que esta fórmula exprime é a improcedência da pretensão de indemnização tal como ela foi deduzida pela apelante e a atribuição de uma indemnização não querida por ela, concretamente a indemnização como contrapartida pela transmissão à Região Autónoma da Madeira da propriedade da parcela com a área de 15.831 m2 que foi objecto do auto de posse administrativa, mencionada no ponto 10.º dos factos provados. Pode, assim, afirmar-se que, com a condenação proferida sob a alínea b) e com a declaração constante da alínea c), o que acórdão decidiu foi a adjudicação da propriedade da parcela à Região Autónoma da Madeira mediante o pagamento de indemnização. Em substância, o acórdão procedeu à expropriação judicial de tal parcela, o que está nos antípodas das pretensões deduzidas pela autora em sede de apelação. Com estas decisões, o acórdão pronunciou-se sobre duas questões que a apelante não havia suscitado no recurso e que também não eram de conhecimento oficioso, a saber: a adjudicação da propriedade da parcela à Região Autónoma da Madeira e o pagamento da indemnização devida por tal transmissão do direito de propriedade. Pelo exposto, é de julgar procedente a arguição de nulidade do acórdão por excesso de pronúncia. Segundo o n.º 1 do artigo 684.º do CPC, quando for julgada procedente a nulidade prevista na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (excesso de pronúncia), o Supremo Tribunal de Justiça supre a nulidade, declara em que sentido a decisão deve considerar-se modificada e conhece dos fundamentos do recurso. A nulidade por excesso de pronúncia supre-se dando-se sem efeito a decisão. No caso, dando-se sem efeito, as alíneas b) e c) da parte dispositiva do acórdão. Continuam válidas as seguintes palavras de Alberto dos Reias, em anotação ao artigo 669.º do CPC a propósito do suprimento das nulidades da sentença: “Pronúncia indevida: O juiz deve declarar sem efeito o que tenha escrito na sentença em relação à questão ou questões de que não podia tomar conhecimento” (Código de Processo Civil anotado, Volume V, Coimbra Editora, Coimbra – 1981, página 150). E sendo declarados sem efeito tais segmentos, o que subiste é a decisão de recusar a restituição da parcela e a de julgar improcedente o pedido de indemnização. * Quarta questão: saber se deve proceder o pedido de restituição da parcela por a prevalência que o acórdão recorrido deu ao princípio da intangibilidade da obra pública sobre a caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação da parcela violar o princípio do Estado de Direito democrático, o artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da separação de poderes (artigo 111.º da Constituição da República Portuguesa). É de responder negativamente à pretensão de restituição, embora por razões diferentes das do acórdão recorrido. Vejamos. O acórdão sob recurso entendeu que a declaração de utilidade pública da expropriação da parcela caducou em 9 de Maio de 1982 e que, com a caducidade, extinguiram-se os efeitos jurídicos de tal declaração, readquirindo a autora, ora recorrente, a plenitude dos seus poderes sobre o imóvel. Apesar de afirmar que, com a caducidade da declaração de expropriação, a autora readquiriu a plenitude dos seus poderes sobre o imóvel, o acórdão sob recurso recusou a restituição da parcela com a justificação de que a remoção do farol Vor/DME que se encontra instalado no prédio da autora traria graves danos ao interesse público, concretamente à segurança aeronáutica do aeroporto da Madeira. E, assim, à semelhança do que entendera a sentença da 1.ª instância, ponderando os interesses em confronto, entendeu que devia prevalecer o princípio da intangibilidade da obra pública. Citando o acórdão do STJ proferido em 11-09-2018, no processo n.º 342/12.4TBFAF.G2.S2, publicado em www.dgsi.pt. a decisão recorrida afirmou que o princípio da intangibilidade da obra pública, era princípio geral do direito das expropriações, que se traduzia na manutenção da posse por parte da administração quando, apesar de a posse assentar num título ilegal, não representando um atentado grosseiro ao direito de propriedade, devia ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público. A recorrente censura o acórdão com a alegação de que o mencionado princípio não tem assento legal e que, tendo caducado a declaração de utilidade pública, estava vedado ao tribunal invocá-lo para recusar a restituição da parcela e que a prevalência dele sobre a caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação violava o princípio do Estado de Direito democrático, o artigo 62.º da CRP e o princípio da separação de poderes (artigo 111.º da CRP). No caso, sendo incontroversa a caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação, é de afirmar, em concordância com o acórdão recorrido, que a entidade expropriante e as entidades que lhe sucederam perderam o direito de continuar a ocupar a parcela com os títulos que justificaram a entrada na posse da parcela: a declaração de utilidade pública da expropriação e a autorização para tomar posse da parcela. E é de reconhecer razão à recorrente quando afirma que a “intangibilidade da obra pública” não é princípio que tenha assento na lei, designadamente na legislação sobre expropriações. Como dá conta Fernando Alves Correia, o princípio da intangibilidade da obra pública foi criado pela jurisprudência francesa e por aplicação dele “... nem o juiz do tribunal comum nem o juiz do tribunal administrativo, devido à importância que apresenta a obra pública para o interesse geral, podem ordenar a destruição de uma obra pública erigida por erro numa propriedade privada, mas apenas conceder ao proprietário uma indemnização”. Ainda de acordo com o mesmo autor, tal princípio “impede que o particular possa intentar uma acção de restituição da posse do seu bem, tendo de contentar-se com uma indemnização a arbitrar pelo tribunal” (As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, Coimbra 1982, página 176). Não se ignora que o Supremo Tribunal de Justiça já invocou o princípio da intangibilidade da obra pública para recusar o pedido de restituição de imóveis ocupados com obras públicas. Foi o que sucedeu com o acórdão do STJ proferido em 9-01-2003, no recurso n.º 02B3575, publicado em www.dgsi.pt. Decidiu-se em tal acórdão que, “... tratando-se de ilegalidade simples e leve, como o de obra pública construída por erro em propriedade privada, está-se ante «apropriação irregular». Nesta hipótese, de acordo com a "teoria da expropriação indirecta" e para salvaguarda do princípio da «intangibilidade da obra pública», o juiz não pode ordenar a destruição da obra pública erigida por erro numa propriedade privada, mas apenas conceder ao proprietário uma indemnização. Também o acórdão do STJ proferido em 29-04-2010, no processo n.º 1857/05.4TBMAI.S1, publicado em www.dgsi.pt., recusou o pedido de restituição de uma parcela com fundamento no princípio de intangibilidade da obra pública num caso em que houve um princípio de actuação legal expropriativa e ocorreu o reconhecimento da utilidade pública da expropriação e autorização de investidura na posse. Outros acórdãos, embora não tenham recusado a restituição da posse com fundamento em tal princípio, admitiram a sua invocação para recusar a restituição de terrenos ocupados com obras públicas. Foi o caso do acórdão do STJ proferido em 5-02-2015, no processo n.º 2125/10.5TBBRR.L1.S2, publicado em www.dgsi.pt., que admitiu a sua aplicação a casos que se caracterizem por comportamentos adoptados pela entidade a favor de quem foi declarada a utilidade pública expropriativa e que não ultrapassem subjectivamente os limites da culpa leve. E foi também o caso do acórdão do STJ proferido em 11-09-2018, processo n.º 342/12.4TBFAF.G2.S2, publicado em www.dgsi.pt. que recusou a aplicação do princípio ao caso sob julgamento “... ponderando a violação grosseira do direito dos AA. sem aparência sequer de procedimento expropriativo, por um lado, e o facto da obra executada pela Ré no terreno reivindicado não ser de grande magnitude, nem estar comprovado o dispêndio do erário público, por outro lado, em confirmação do Acórdão recorrido, decreta-se a restituição”. Apesar destas decisões, este tribunal entende que, não tendo o princípio da intangibilidade da obra pública assento na lei, não poderá o mesmo servir de fundamento à recusa de restituição da parcela em causa nos autos, pois segundo o n.º 2 do artigo 1311.º do Código Civil, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei. Mas se o princípio da intangibilidade da obra pública não pode servir de fundamento à recusa de restituição da posse, no caso, já pode e deve servir de fundamento o excepcional prejuízo que adviria para o interesse público caso fosse ordenada a restituição. Vejamos. O excepcional prejuízo para o interesse pública constitui causa legítima de inexecução das decisões administrativas, nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). Comentando este preceito, Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, escrevem, citando Freitas do Amaral, que as causas de inexecução “são situações excepcionais que tornam lícita, para todos os efeitos, a inexecução das sentenças dos tribunais administrativos, obrigando, no entanto, ao pagamento de uma indemnização compensatória ao titular do direito à execução” (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2021, 5.ª Edução, Almedina, página 1277). Pronunciando-se especificamente sobre o excepcional prejuízo para o interesse público, os mencionados autores escrevem que se trata de “... situações-limite, muito excepcionais, de claro desequilíbrio entre os interesses em presença, nas quais se possa realmente afirmar que os prejuízos que, para a comunidade, adviriam da realização da prestação devida são claramente superiores ao sacrifício que para o interessado representa a não satisfação do seu direito” (obra supracitada página 1278). A situação dos autos tem precisamente todos os contornos de uma situação-limite, de situação muito excepcional. Com efeito, está provado: • Que desde há mais de 31 anos que na parcela referida em 9. e 10. se encontra instalado o farol VOR/DME; • Que a remoção de tal radiofarol da parcela de tal terreno traria riscos à segurança aeronáutica do aeroporto da Madeira; • Na parcela referida em 9. e 10. estão instalados, não apenas um radiofarol, mas vários equipamentos ou sistemas da ré NAV Portugal EPE, quais sejam: - NDB (Non Directional Beacon), habitualmente designado por radiofarol: - VOR (VHF Omnidirectional Radio Range) e DME (Distance Measuring Equipement); - Estação RIMS (Rangins and Integrity Monitoring Station) do Sistema EGNOS (European Geostationary Navigation Overlay Service); - Estação de comunicações ar-terra-ar; - Estação VGS (VHF Ground Station); - Posto de Transformação de um Grupo de emergência que apoia todos os sistemas; • Que os sistemas VOR/DME (que funcionam em conjunto) e o NDB são utilizados pelas aeronaves para fazerem a aproximação ao aeroporto da Madeira; • Equipamentos e sistemas que se encontram em utilização operacional 24 horas por dia, 365 dias por ano; • Que os procedimentos de aproximação mais utilizados são baseados no VOR/DME; • Que os procedimentos NDB são utilizados se houver falha dos equipamentos VOR/DME; • Que todos os sistemas acima referidos são essenciais para assegurar as condições mínimas de voo e segurança das aeronaves; • Que sem tais sistemas não é possível a operação no aeroporto da Madeira; • Que os estudos de localização dos sistemas instalados obedeceram a critérios técnicos para a operação no aeroporto da Madeira, não sendo viável a sua relocalização. Decorre deste conjunto de factos que os equipamentos instalados na parcela em questão são absolutamente essenciais para a realização do tráfego aéreo de e para a ilha da Madeira e que, caso a posse da parcela fosse restituída à autora, ora recorrente, deixaria de haver condições para se fazer tal tráfego. A ilha embora não ficasse isolada do exterior, ficaria privada de um meio importantíssimo de ligação ao exterior. Ora é notório o interesse público na manutenção das ligações aéreas de e para a ilha da Madeira e é também notório que a cessação de tais ligações representa um prejuízo de excepcional gravidade para a vida e a economia da Madeira. A circunstância de o excepcional prejuízo para o interesse público estar previsto n.º 1 do artigo 163.º do CPTA, como causa legítima de inexecução de decisões administrativas, não impede que se lance mão de tal figura jurídica para justificar a recusa de restituição ao abrigo do artigo 1311.º, n.º 2, do Código Civil. Vejamos. Na interpretação da lei, um dos factores a atender para fixar o sentido e o alcance dela é a unidade da ordem jurídica, ou seja, o elemento sistemático. Como escrevia Manuel de Andrade, é de presumir que o legislador “não tenha pensado a lei como puro acervo ocasional de normas, mas como um sistema devidamente articulado. Daí que cada texto legal deva ser relacionado com aqueles que lhes estão conexos por contiguidade ou por outra causa, tomando o seu lugar no encadeamento de que faz parte” (Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, página 28). Assim, quando o n.º 2 do artigo 1311.º dispõe que, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, é de entender que a lei que ele tem em vista não é apenas a lei civil; ela abarca a ordem jurídica considerada na sua totalidade. Daí que o n.º 2 deva ser interpretado no sentido de que, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição pode ser recusada quando for consentida pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. E, assim, apesar de o excepcional prejuízo para o interesse público estar previsto no n.º 1 do artigo 163.º do CPTA como causa legítima de inexecução das decisões administrativas, a solução nele prevista é, socorrendo-nos das palavras dos autores acima referidos (Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha) “... uma válvula de escape do sistema que, como tal, só deve ser chamada a funcionar em situações de emergência” (obra supra citada página 1278), que “...exprime uma opção política do legislador, que entendeu que o direito ao cumprimento das obrigações a cargo das entidades públicas devia poder ser sacrificado, instituindo o grave prejuízo para o interesse público como fundamento para a não realização da prestação..”. (obra supracitada página 1280). Pode, assim, dizer-se que a inexecução, por parte de uma entidade pública, de uma obrigação de prestação de facto ou de coisa (únicas obrigações a que se aplica o n.º 1 do artigo 163.º do CPTA) para evitar um excepcional prejuízo para o interesse público é um princípio da ordem jurídica, considerada na sua totalidade, e não apenas da ordem jurídica administrativa. Deste modo, tal princípio cabe dentro da lei a que se refere o n.º 2 do artigo 1311.º do Código Civil. Recusar a restituição com fundamento em tal princípio é recusar num caso previsto na lei. Precise-se, no entanto, que o excepcional prejuízo para o interesse público justifica, no caso, apenas a não restituição da posse da parcela à autora, ora recorrente, mas não a transmissão do direito de propriedade de tal parcela para a Região Autónoma da Madeira. Com efeito, se decorre do n.º 2 do artigo 62.º da CRP que o interesse público/utilidade pública justifica a expropriação, também decorre dele que a expropriação é feita exclusivamente com base na lei e mediante o pagamento de uma justa indemnização. E efectuar uma expropriação com base na lei implica a observância do que está prescrito no Código das Expropriações, designadamente que haja uma declaração de utilidade pública da expropriação por parte da entidade competente (que não são os tribunais) e que seja observado o processo previsto em tal diploma, condições que não se verificam no caso. Segue-se do exposto que o direito de propriedade sobre a parcela permanecerá na esfera jurídica da autora. Com esta solução fica prejudicada a resposta à questão de saber se a prevalência do princípio da intangibilidade da obra pública sobre a caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação da parcela viola o princípio do Estado de Direito democrático, o artigo 62.º da CRP e o princípio da separação de poderes (artigo 111.º da CRP). Pelo exposto, embora por razões não coincidentes com as do acórdão recorrido, mantem-se a decisão de recusar a restituição da posse da parcela à autora, ora recorrente. * Última questão: saber se a ocupação do prédio pelas rés confere à autora um crédito com fundamento no enriquecimento sem causa, no montante peticionado. É de responder afirmativamente à questão de saber se a autora tem direito a indemnização pela ocupação da parcela, embora o fundamento jurídico não seja o enriquecimento sem causa. Como decorre do acima exposto, este tribunal recusou a restituição da parcela reivindicada pela autora, que foi objecto de posse administrativa, com fundamento no prejuízo excepcional que daí adviria para o interesse público. Com esta decisão foi sacrificado um direito da autora para salvaguarda de um interesse público legítimo. Quando os direitos dos particulares são sacrificados em nome do interesse público, assiste-lhes o direito de serem indemnizados. É o que decorre do artigo 16.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas ao dispor que “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público indemnizam os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender-se, designadamente, ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado”. Pelo exposto, embora com fundamentação jurídica diferente da que servia de base à pretensão da autora, ora recorrente, é de lhe atribuir indemnização pela ocupação da parcela desde a data da caducidade da declaração de utilidade pública. Considerando que não há elementos para fixar o montante da indemnização, condena-se a interveniente Região Autónoma da Madeira na quantia que se vier a apurar em sede de liquidação (artigo 609.º, n.º 2, do CPC), com os seguintes limites, considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 609.º do CPC e o pedido da autora: • A indemnização pela ocupação da parcela desde a data da caducidade da declaração de utilidade pública – 9 de Maio de 1982 - até à propositura da acção não poderá exceder quarenta mil euros (€ 40 000); • A indemnização pela ocupação da parcela a partir da citação e enquanto ela durar com base no interesse público não poderá exceder dois mil euros (€ 2000) por mês. Decisão: Concede-se parcialmente a revista e, em consequência: 1. Revoga-se o acórdão recorrido na parte em que julgou improcedente o pedido de condenação da Região Autónoma da Madeira no pagamento de indemnização pela ocupação da parcela; 2. Substituiu-se essa parte do acórdão por decisão a condenar a Região Autónoma da Madeira no pagamento de indemnização à autora, a fixar em sede de liquidação, pela ocupação da parcela com os seguintes limites: • A indemnização pela ocupação desde a data da caducidade da declaração de utilidade pública até à propositura da acção não poderá exceder quarenta mil euros (€ 40 000); • A indemnização pela ocupação a partir da citação e enquanto ela durar com base no interesse público não poderá exceder dois mil euros (€ 2000) por mês. 3. Mantém-se o acórdão na parte em que confirmou a decisão da 1.ª instância de julgar improcedente o pedido de restituição à autora da parcela. * Responsabilidade quanto a custas: Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrente e a recorrida Região Autónoma da Madeira terem ficado vencidas no recurso, condenam-se as mesmas nas custas do recurso, na proporção de 50% para a recorrente e de 50% para a recorrida. Lisboa, 17 de Junho de 2025 Relator por vencimento: Emídio Santos 1.º Adjunto: Orlando Nascimento 2.ª Adjunta: Ana Paula Lobo
Voto de vencida Não acompanho a decisão que logrou vencimento quanto à questão de • Saber se deve proceder o pedido de restituição da parcela por a prevalência que o acórdão recorrido deu ao princípio da intangibilidade da obra pública sobre a caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação da parcela violar o princípio do Estado de Direito democrático, o artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o princípio da separação de poderes (artigo 111.º da CRP), pelas razões que passo a indicar: Acompanhando a análise constante do acórdão de que: « Assim, quando o n.º 2 do artigo 1311.º dispõe que, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, é de entender que a lei que ele tem em vista não é apenas a lei civil; ela abarca a ordem jurídica considerada na sua totalidade. Daí que o n.º 2 deva ser interpretado no sentido de que, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição pode ser recusada quando for consentida pela ordem jurídica considerada na sua totalidade» entendo não ter sido isso que fez a decisão que logrou vencimento. O Código de Processo nos Tribunais Administrativos aprovado pela Lei n.º 15/2002 de 2002-02-22 consagra no seu art.º 165.º, sob a epígrafe oposição à execução, em termos relativamente similares ao regime anterior, a possibilidade de, nos casos nele mencionados, se obstar à execução de uma decisão jurisdicional com fundamento na invocação da existência de causa legítima de inexecução da sentença. Tal significa que um acto administrativo foi tido por ilegal numa acção declarativa e ordenada a sua remoção da ordem jurídica, estando a administração obrigada a executar essa decisão, e, não cumpriu voluntariamente a decisão. Em paralelo com esta situação, considerando a unidade do sistema jurídico tal corresponderia a ter sido ordenado na acção declarativa, a presente, a entrega do bem que, não cumprida voluntariamente daria lugar à fase executiva. Mas a questão não é meramente do tipo de acções em causa, mas dos direitos que o contencioso administrativo confere ao administrado em situações de inexecução do julgado que aqui são completamente retirados. Nos casos de inexecução de julgado com fundamento na existência de causa legítima de inexecução da sentença esta inexecução confere ao administrado o direito ao recebimento de uma indemnização pelos prejuízos que suporta com tal inexecução, aqui não contemplados, que se não confundem com os pedidos indemnizatórios que formulou na acção. Como se estabelece no art.º 166.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos «Quando o tribunal julgue procedente a oposição fundada na existência de causa legítima de inexecução, ordena a notificação da Administração e do exequente para, no prazo de 20 dias, acordarem no montante da indemnização devida pelo facto da inexecução». Idêntico procedimento decorre do art.º 45.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que permite na fase declarativa a antecipação desta mesma circunstância, operando-se, então uma modificação do objecto do processo «1 - Quando se verifique que a pretensão do autor é fundada, mas que à satisfação dos seus interesses obsta, no todo ou em parte, a existência de uma situação de impossibilidade absoluta, ou a entidade demandada demonstre que o cumprimento dos deveres a que seria condenada originaria um excecional prejuízo para o interesse público, o tribunal profere decisão na qual: a) Reconhece o bem fundado da pretensão do autor; b) Reconhece a existência da circunstância que obsta, no todo ou em parte, à emissão da pronúncia solicitada; c) Reconhece o direito do autor a ser indemnizado por esse facto; e d) Convida as partes a acordarem no montante da indemnização devida no prazo de 30 dias, que pode ser prorrogado até 60 dias, caso seja previsível que o acordo venha a concretizar-se dentro daquele prazo. 2 - Na falta do acordo a que se refere a alínea d) do número anterior, o autor pode requerer, no prazo de um mês, a fixação judicial da indemnização devida, mediante a apresentação de articulado devidamente fundamentado, devendo o tribunal, nesse caso, ouvir a outra parte pelo prazo de 10 dias e ordenar as diligências instrutórias que considere necessárias. 3 - Na hipótese prevista no número anterior, o autor pode optar por pedir a reparação de todos os danos resultantes da atuação ilegítima da entidade demandada». Como resulta de jurisprudência unânime do Supremo Tribunal Administrativo de que destacamos a título meramente exemplificativo o acórdão do Pleno da Secção Administrativa daquele Tribunal proferido em 26 de Outubro de 2023 no proc. n. 047693/01.8BALSB-A e acessível em www.dgsi.pt (…)VII - A execução do acórdão anulatório impõe à Administração a obrigação de repor a situação de facto de acordo com a situação de direito constituída pela decisão anulatória, tanto na vertente de respeitar o julgado, conformando-se com as limitações que dele resultam para o eventual exercício dos seus poderes (efeito preclusivo), como no dever de reconstituir a situação que existiria se não tivesse sido praticado o ato anulado (efeito conformativo), nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 173º do CPTA. VIII - Em consequência da verificação de causa legítima de inexecução de sentença anulatória de ato administrativo, fica o Executado obrigado ao pagamento de uma indemnização compensatória ao titular do direito à execução, segundo o disposto nos artigos 163.º, 166.º, 177.º e 178.º do CPTA, que consiste na “indemnização devida pelo facto da inexecução”, nos termos do n.º 1, do artigo 166.º, aplicável por força do n.º 3, do artigo 177.º, do CPTA. IX - Trata-se de uma indemnização que se destina a compensar o Exequente pelo facto de não ser possível executar a sentença a que teria direito, por não ser possível executar no plano dos factos a situação jurídica violada e de a finalidade do processo executivo se ter frustrado, não obtendo os efeitos jurídicos da execução do julgado. X - Esta indemnização cujo fundamento consiste numa inexecução lícita de um julgado, distingue-se quer da indemnização por inexecução ilícita, segundo o disposto no artigo 159.º do CPTA, quer da indemnização atribuída no âmbito da ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais poderes públicos, prevista para o ressarcimento dos danos causados por uma atuação ilícita da Administração, nos termos da atual Lei n.º 67/2007, de 31/12.». Assim, na possível adaptação do regime constante do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aos presentes autos sempre teria que ser julgado procedente o pedido de entrega da parcela, ainda que, em fase executiva, pudesse vir a suscitar-se se estávamos ou não em presença de uma situação em que, em obediência à unidade do sistema jurídico estaria suficientemente configurada uma causa legitima de inexecução, abrindo a possibilidade de formulação do pedido de indemnização pelos danos causados a tal inexecução. O art.º 1311.º como interpretado na decisão que logrou vencimento afronta, em meu entender, a tutela constitucional do direito de propriedade de que os cidadãos não podem ser privados sem justa indemnização e para realização de um interesse público relevante – art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa - por lançar mão de apenas parte do regime constante do Código de Processo nos Tribunais Administrativos para a verificação de causa legitima de inexecução, retirando à Autora, sem qualquer contraditório, uma indemnização que este regime do processo administrativo, que diz estar a aplicar, sempre garantiria à A.. Acresce que a recusa da entrega da parcela de terreno cujo direito de propriedade é incontestavelmente titulado pela A. está em desalinho com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em situações similares, nomeadamente o caso Papamichalopoulos and Others v. Greece, Application n.º 14556/89, acessível em https://hudoc.echr.coe.int/eng%22:[%22001-57961%22]}-, decidido em 24 de Junho de 1993, numa acção que tinha por objecto a ocupação de terreno pela Marinha grega desde 1967, em que o Estado Grego alegou razões de segurança nacional impeditivas da restituição da propriedade, definindo que as consequências pecuniárias de uma expropriação lícita, não podem ser equiparadas às de uma desapropriação ilícita e entendeu dever proceder-se à entrega e determinou que, “[i]f If the respondent State does not make such restitution within six months from the delivery of this judgment, the Court holds that it is to pay the applicants, for damage and loss of enjoyment since the authorities took possession of the land in 1967, the current value of the land, increased by the appreciation brought about by the existence of the buildings, and the construction costs of the latter.”, e nos casos Belvedere Alberghiera S.r.l. v. Italy , decidido em 30 de Outubro de 2003, e, Carbonara and Ventura v. Italy, decidido em 11 de Dezembro de 2003, acessível em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-58834%22]}. Em conclusão, julgaria procedente o pedido de entrega à A. da parcela reivindicada. Lisboa, 17 de Junho de 2025 Ana Paula Lobo |