Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22/22.0T8AGH.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: USUCAPIÃO
NULIDADES
FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 06/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I. Os vícios de fundamentação a que se referem as nulidades decisórias previstas nas als. b) e c) do art. 615º, 1, do CPC não se verificam se a Relação, actuando como verdadeiro tribunal de instância na reapreciação da matéria de facto, exibe fundamentação assente no princípio da livre apreciação da prova e não exibe fundamentação que se julgue contraditória, obscura ou ininteligível, antes uma fundamentação que exibe um exercício crítico e racional da prova produzida nos autos sobre o objecto da impugnação e retira da materialidade conceitos que escapam ao apuramento factual sujeito ao regime jurídico aplicável.

II. Não se pode aproveitar a invocação de tais nulidades para superar ou contornar o princípio-regra de irrecorribilidade da decisão proferida em 2.ª instância sobre a matéria de facto, de acordo com o art. 662º, 4 (em articulação com os arts. 674º, 3, e 682º, 1 e 2), nem configurá-la como invocação de erro em matéria de direito, nos termos dos arts. 674º, 1, a), e 682º, 1 e 2, do CPC, ou erro de facto por contradição relevante, nos termos do art. 682º, 3, in fine, do CPC.

III. A omissão de pronúncia relativa a uma das questões recursivas, prevista na al. d) do art. 615º, 1, do CPC, não se verifica quando a questão, independentemente do argumentário, é tratada e resolvida expressamente, seja em sede factual, seja em sede de aplicação do direito, independentemente do inconformismo do recorrente quanto ao resultado decisório obtido.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 22/22.0T8AGH.L1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 6.ª Secção



Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. AA e cônjuge BB intentaram acção declarativa de apreciação positiva sob a forma de processo comum contra «C..., Lda» e «Oitante, S. A.», pedindo que se declare que os Autores são os proprietários e possuidores do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial e, subsequentemente, se ordene a inscrição deste facto nos respectivos registos.


Em síntese, alegaram que são os proprietários e legítimos possuidores do referido prédio misto (...), que adquiriram em 1974 por compra, tendo na altura registado a respectiva aquisição. Em 23/10/1986 foi registada uma “dação pro solvendo” desse imóvel a favor do «Banco Comercial dos Açores» (BCA), tendo por base acordo verbal com os gestores do BCA .... Os Autores continuaram a agir e a considerar-se donos tal como fora convencionado com o Banco, que apenas queria a aduzida “dação” como garantia de que o imóvel não seria penhorado por mais ninguém em face da mora dos Autores. O prédio foi sucessivamente inscrito em nome do BCA, CC e mulher, Banco Comercial dos Açores novamente, depois BANIF, mais recentemente «Oitante» e agora no nome do 1.º Réu. Em 1992 CC e mulher intentaram contra os Autores uma acção de posse judicial avulsa que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da ..., processo n.º ..., da qual vieram os agora Autores a ser absolvidos da instância. Nesse momento, deu-se a inversão do título da posse, que foi determinante para a convicção da sua propriedade plena desde aquela data. Em 14/7/2003, DD e EE, filhas dos Autores, intentaram por elas próprias uma acção de condenação na qual pediram a declaração de nulidade por simulação da dação em pagamento do BCA ao Sr. FF e mulher; ficaram entretanto a saber por GG que teria adquirido o prédio à «Oitante», ficaram depois a saber que, em 9/9/2021, o prédio foi registado a favor do 1º Réu.


2. Ambos os Réus apresentaram Contestação.


3. Após sucessiva tramitação decorrente de despacho proferido em 27/7/2022, foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, relegando tudo o mais para ser decidido a final, designadamente, a posse para efeitos de usucapião e a interrupção do prazo da usucapião alegada pela Ré «Oitante», aquando da prolação da sentença.


Foi fixado o valor da causa em € 51.555,00.


4. Após realização da audiência final de julgamento, o Juiz ... do Juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo, após identificar as questões a decidir – a saber:


“- São os autores os proprietários e possuidores do prédio misto sito em ..., freguesia da ... e concelho de ..., composto por uma fábrica no rés-do-chão e primeiro andar destinada a recolha e desidratação de forragem e uma báscula, com área descoberta, um escritório no rés-do-chão com reduto e uma casa com balança destinada a pesagem de gado e produtos agrícolas descrito na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz sob o artigo rústico ..93, com valor patrimonial tributário de 648,60€, nos artigos urbanos 601 e 608 de natureza urbana, com valores patrimoniais tributários de €49.540,13 e 1.366,27€, descritos na conservatória do registo predial da ... sob o n.º .28, por o terem adquirido por usucapião?


- Ou pelo contrário, são meros detentores e possuidores em nome alheio, sem título válido para tal, nunca tendo chegado a inverter o título de posse em seu favor, face ao proprietário inscrito na ficha registral desse prédio acabada de citar, até porque foi interrompido o prazo de usucapião alegado?” –,


proferiu sentença em que se decidiu:


“a) Declarar que os autores AA e mulher BB, são os legítimos possuidores de proprietários do prédio misto sito em ..., freguesia da ... e concelho de ..., composto por uma fábrica no rés-do-chão e primeiro andar destinada a recolha e desidratação de forragem e uma báscula, com área descoberta, um escritório no rés-do-chão com reduto e uma casa com balança destinada a pesagem de gado e produtos agrícolas, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º .28, e mostra-se inscrito na matriz sob o artigo rústico ..93º, com valor patrimonial tributário de 648,60 €, nos artigos urbanos 601 e 608 de natureza urbana, com valores patrimoniais tributários de € 49.540,13 e 1.366,27 €, tudo descrito na conservatória do registo predial da ..., o que adquiriram por usucapião.


b) Ordeno o imediato cancelamento de todos os actos de registo levados a efeito pelos RR, na ficha registral nº .28 da Conservatória do Registo Predial ..., e que constem em seu nome, designadamente, a partir de 28 de Janeiro de 2000, em diante.


c) Absolvo os AA, do pedido de condenação como litigantes de má fé.”


5. Inconformada, as Rés interpuseram recursos de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão, no qual se julgou procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, considerando-se ficar não provada a matéria indicada nos pontos 8., 14., 15. e 16. dos factos provados, e, quanto às questões relativas à “verificação da alegada posse dos autores como proprietários com vista à aquisição do direito por usucapião” e à “inversão do título”, julgou procedente a apelação, revogando a sentença e absolvendo os Réus dos pedidos formulados pelos Autores.


6. Agora inconformados, vieram os Autores interpor recurso de revista para o STJ, pedindo a final a revogação do acórdão recorrido e finalizando com as seguintes Conclusões:


“1. O Recorrente não se conforma com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que deu provimento aos recursos de apelação interpostos pelos RR. Oitante SA e C..., Lda que julgou procedente a apelação, revogando a sentença e absolvendo os réus dos pedidos formulados pelos autores que decidiu que os AA. fossem declarados legítimos possuidores e proprietários do prédio misto identificado em 1.º da Petição Inicial.


2. O douto acordão ora em crise decidiu eliminar do elenco dos factos provados 4 factos provados – 8, 14, 15 e 16 – mantendo os restantes factos provados e não provados, centrando assim, conforme explanam os Venerandos Juizes Desembargadores, a questão a decidir nos actos de posse que os AA. invocaram para serem reconhecidos como proprietários do prédio.


3. Porém, ao contrário do expendido não foi dada qualquer centralidade aos actos de posse. Aqueles 4 factos foram simplesmente obliterados com o argumento de que a referência a posse era conclusiva.


4. Acontece que do supra referido corte a direito, operado no elenco dos factos provados, sobreveio uma contradição entre a decisão e os factos, no caso, e mais especificadamente, com os factos dados como não provados, porquanto ficou assente como facto não provado 6 que “Os autores não adquiriram a posse efectiva e, não passaram de possuidores precários logo não podem adquirir por usucapião”.


5. Tendo ficado não provado o que ante se citou e não restando qualquer facto provado que contradite a posse dos AA. enferma o douto acordão da nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615º do Código de Processo Civil.


6. O fundamento para o referido corte a direito é o do que todas as referências que aludem à “posse” naqueles factos se revelam conclusivas, “porque contêm já e antecipam a solução de direito”. Ora, tal afirmação não tem qualquer adesão à realidade uma vez que o sentido de posse conferido naqueles segmentos da sentença recorrida é o de uma relação factual entre uma pessoa e uma coisa e não a posição jurídica correspondente, constituída por direitos, poderes.


7. Naqueles factos provados o termo “posse" foi sempre acompanhado de elementos caracterizadores do estado de coisas, facto 8 “(…) convictos desde então, que exerciam um direito próprio e de propriedade plena sobre aquele prédio.”, facto 14 “(…) como donos, na posse e fruição do mencionado prédio em 1, utilizando-o, fazendo nele diversas obras, quer para habitação quer para a actividade agrícola”, facto 15 “(…) de forma ostensiva, à vista de toda a gente e sem violência, de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, que todos respeitavam”, facto 16 “(…) pública, pacífica, contínua e em nome próprio do citado imóvel desde pelo menos, o referido ano de 2000”.


8. Como está bom de ver, não foi dado como provado qualquer conceito de direito desacompanhado dos factos suscetíveis de o integrarem. Em todos eles é manifesto uma realidade efectivamente factual e a sua correspondência na respectiva previsão normativa ou vice-versa.


9. A questão ante expendida é uma questão de direito e, por conseguinte, no âmbito do poder de sindicância do Supremo Tribunal de Justiça. A este propósito cita-se, por todos, o sumário do Acordão do STJ de 30-11-2023 processo n.º10967/17.4T8PRT.P1.S1, “ II. Há que considerar no âmbito da competência do Supremo Tribunal de Justiça apreciar se determinada afirmação inserida na decisão sobre a factualidade provada consubstancia ou não conclusão jurídica, por estar em causa o conhecimento de um erro de direito (considerar como provado o correspondente conceito jurídico, desacompanhado dos factos suscetíveis de o integrarem), sublinhado nosso (…)”.


10.À luz do ante referido, isto é, do corte a direito operado pelo Venerando Tribunal da Relação no elenco dos factos provados, nasce uma flagrante omissão de pronúncia. A quem se refere à inversão da posse. Pois foi essa alegada na petição inicial (8.º) e sustentada na motivação da sentença para dar como provado o malogrado facto 8, agora eliminado e nessa medida objeto do nosso inconformismo com o acordão ora recorrido.


11.E, salvo o devido respeito que é muito, não podia o Venerando Tribunal da Relação deixar de se pronunciar sobre esse facto porquanto é o próprio que no sumário da decisão refere que “Em princípio, como detentores ou possuidores precários, os autores não podem adquirir para si, por uso capião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse (…), sublinhado nosso;


12.Ora, trata-se de uma omissão de monta uma vez que a análise depurada da mesma conduziria a decisão diversa, isto é, à manutenção do decidido, e bem, refira-se, em primeira instância. Isto porque das declarações das testemunha HH, ao minuto 8:50, a instância do mandatário dos Autores refere um acto de oposição categórica conta aquele em cujo nome possuía.


13.Assim, é também pelo ante referido, nulo o acordão do Venerando Tribunal da Relação, nos termos da alínea d) do art. 615.º do Código de Processo Civil.


14.O Acordão, ora [em] recurso, violou, assim, de per si e/ou conjugadamente o disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea b), c) e d) do Código do Processo Civil.”





A Ré «GG» apresentou contra-alegações, pugnando pela não admissão do recurso (insusceptibilidade de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto) ou pela sua improcedência.


A Ré «Oitante» também apresentou contra-alegações, sustentando igualmente a admissibilidade do recurso e a rejeição da revista.





Colhidos os vistos nos termos legais, sendo regular a instância, cumpre apreciar e decidir nos limites do objecto delimitado pelos Autores Recorrentes.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objecto do recurso


Vistas as Conclusões dos Recorrentes, a revista estriba-se na al. c) do art. 674º, 1, em articulação com o art. 615º, 4, 2.ª parte, e 629º, 1, do CPC, sendo de admitir para este efeito de conhecimento das nulidades arguidas, como seu objecto exclusivo1.


A saber:


(i) nulidade por falta de fundamentação e contradição dos fundamentos com a decisão sobre a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto (als. b) e c) do art. 615º, 1, do CPC);


(ii) nulidade por “omissão de pronúncia” (al. d), 1.ª parte, do art. 615º, 1, do CPC).


2. Factualidade


Após a decisão aludida da Relação, foram dados como provados os seguintes factos:


1 – O prédio misto sito em ..., freguesia da ... e concelho de ..., composto por uma fábrica no rés-do-chão e primeiro andar destinada a recolha e desidratação de forragem e uma báscula, com área descoberta, um escritório no rés-do-chão com reduto e uma casa com balança destinada a pesagem de gado e produtos agrícolas, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º .28, e mostra-se inscrito na matriz sob o artigo rústico ..93º, com valor patrimonial tributário de 648,60 €, nos artigos urbanos 601 e 608 de natureza urbana, com valores patrimoniais tributários de € 49.540,13 e 1.366,27 €, tudo descrito na conservatória do registo predial da ...;


2 – O ante referido prédio foi adquirido pelos AA. no ano de 1974, por compra que dele fizeram a II e mulher JJ, tendo na altura registado a respectiva aquisição pela AP........74;


3 – Em 23 de outubro de 1986 foi registada uma “dação pro solvendo” desse imóvel a favor do Banco Comercial dos Açores, pela AP.01/231086;


4 – O prédio acabado de referir, foi sucessivamente formalmente inscrito em nome do Banco Comercial dos Açores, KK e mulher, Banco Comercial dos Açores novamente, depois BANIF – Banco Internacional ..., SA., mais recentemente Oitante e agora no nome do 1.º Réu, C..., Lda;


5 – Em 1992, KK e mulher intentaram contra os AA. uma ação de posse judicial avulsa, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da ..., processo n.º ..., da qual vieram os agora AA. a ser absolvidos da instância, mas unicamente no apenso nº ...;


6 – No concernente à acção principal nº ..., o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a sentença da primeira instância, que conferiu aos autores a posse efectiva de dez imóveis, onde se inclui o prédio referido no facto primeiro, considerando ainda a sua legitimidade para se manterem na acção acabada de citar, não obstante terem procedido à sua venda ao Banco Comercial dos Açores no decurso daquela acção, agindo como substitutos processuais do novo adquirente;


7 – Sentença essa que transitou em julgado em 27 de Janeiro de 2000;


8 – Eliminado pela Relação;


9 – A 14 de julho de 2003, DD e EE, filhas dos AA. intentaram, de modo próprio, ação de condenação onde pediram a nulidade por simulação da dação em pagamento do B.C.A (Banco Comercial dos Açores) ao Sr. FF e consorte (Processo n.º 316/03.4... no então Tribunal Judicial da Comarca da ...);


10 – Nessa acção decidiu-se “julgar as autoras partes ilegítimas relativamente aos pedidos deduzidos a título principal e considerar procedente a excepção inominada de caducidade da promessa unilateral de venda e, em conformidade absolver o Banco Comercial dos Açores, dos pedidos subsidiários, isto porque se considerou a dado trecho dessa sentença, que os pais das autoras estão vivos e portanto estas não são partes legítimas, desde logo porque não têm interesse em demandar (uma vez que não retiram qualquer utilidade da procedência da acção), o que foi confirmando pelo Tribunal da Relação de Lisboa;


11 – Acção esta que por sua vez transitou em julgado em 2 de Novembro de 2009;


12 – Em data não concretamente apurada de 2021, foram os AA. abordados pelo Sr. GG que disse ter adquirido o prédio à Oitante;


13 – Consultada então a certidão permanente do prédio, ficaram os AA., a saber que a 9 de setembro de 2021, o prédio foi registado a favor do 1.º Réu;


14 – Eliminado pela Relação;


15 – Eliminado pela Relação;


16 – Eliminado pela Relação;


17 – A dação pro solvendo referida em 3, foi feita pelos AA, ao Banco Comercial dos Açores, por causa de uma dívida de cerca de 140.741.238,80, escudos (ainda em moeda antiga), que aqueles mantinham com o banco;


18 – No ano de 1991, o prédio referido em 1., veio a ser adquirido por KK e esposa LL;


19 – Que em 1994, acabaram por dar em pagamento ao Banco Comercial dos Açores E. P. (juntamente com outros 9 prédios);


20 – Em data não concretamente apurada do ano de 2021, o Gerente da Ré, contactou os AA, advertindo-os de que comprou ao banco o imóvel em causa, e que em breve teriam que o desocupar;


21 – Nessa altura, o Autor disse ao Gerente da Ré que, ou aceitava receber de volta o valor que a Ré tinha pago pelo Imóvel, ou iria fazer escritura de usucapião;


22 – Foi nessa altura também que o gerente da Ré explicou aos Autores que tinha em estudo um Projeto de construção de um Hotel Rural para o Local, que pretendia que viesse a beneficiar de apoio do Governo Regional;


23 – Projeto que se encontra em vias de aprovação, representa um investimento superior a 2 milhões de euros, com apoio a fundo perdido de 980.000,00 €;


24 – Estruturado em nome de uma sociedade detida pelo mesmo Gerente da Ré e pela própria R;


25 – Na condição de ser concretizado até Junho de 2023;


26 – Sempre foi a Oitante, SA., que procedeu ao pagamento do IMI, relativo a este imóvel;


27 – Os AA, ao longo dos anos até à presente data, nunca procederam ao pagamento de um euro a título de renda ou pela utilização do imóvel referido em 1.


A 1.ª instância considerou os seguintes factos como não provados:


1 – Que na sequência do provado em 3, não se prova que por acordo verbal com os, na altura, gestores do BCA ..., então em crise interna, os AA. continuaram a agir e considerar-se como donos tal como fora convencionado com o Banco, que apenas queria a aduzida “dação” como garantia de que o imóvel, caso se mantivesse a mora dos AA., não seria penhorado por mais ninguém;


2 – Por referência ao ano de 1992, foi o último momento em que os AA. tiveram conhecimento de que a sua posse efectiva e direito de propriedade também sido postos em causa, e entretanto decorreram quase 30 anos;


3 – Sendo que a convicção de que a condição expressa, a da inalienabilidade da dação pro solvendo, tinha sido cumprida sempre se manteve. Tanto que na ação interposta pelos então alegados proprietários CC e mulher, resultou na sua absolvição (processo 112/92 já ante referido);


4 – Em resposta o Gerente da Ré, convidou o Autor, a oferecer à Oitante o preço que achasse justo, uma vez que a Oitante, como ele bem sabia, tinha o prédio em venda há vários anos;


5 – Acresce ainda que os AA ocupam ilicitamente dois artigos urbanos, que não têm quaisquer condições legais de habitabilidade. Não beneficiam de salubridade bastante para habitação humana;


6 – Os autores não adquiriram a posse efectiva e, não passaram de possuidores precários logo não podem adquirir por usucapião;


7 – Os autores usaram da boa fé da Ré, para ir vivendo sem que nunca tenham pago qualquer valor.


3. Fundamentação de direito


3.1. Nulidade relativa à fundamentação


3.1.1. Os Autores e aqui Recorrentes insurgem-se contra a decisão sobre a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, que conduziu à eliminação-exclusão dos factos provados 8., 14., 15. e 16., no exercício do poder-dever funcional atribuído pelo art. 662º, 1, do CPC.


Assim ditavam esses factos:


“8 – Data esta [27 de Janeiro de 2020, em referência ao facto provado 7.] em que os AA, se mantiveram na posse do prédio referido em 1, convictos desde então, que exerciam um direito próprio e de propriedade plena sobre aquele prédio.


14 – Os AA. sempre se mantiveram pelo menos, desde o trânsito em julgado da acção de posse judicial avulsa referida em 5, 6 e 7 supra, como donos, na posse e fruição do mencionado prédio em 1, utilizando-o, fazendo nele diversas obras, quer para habitação quer para a actividade agrícola.


15 – A posse ante referida tem sido exercida sem interrupção, de forma ostensiva, à vista de toda a gente e sem violência, de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, que todos respeitavam.


16 – Posse pública, pacífica, contínua e em nome próprio do citado imóvel desde pelo menos, o referido ano de 2000.


Os Recorrentes não sindicam – o que seria legítimo – o uso (não uso; mau uso, deficiente ou patológico: errores in procedendo) desse normativo central da sindicação da decisão sobre a matéria de facto no exercício do art. 662º, 1, do CPC.


Muito menos os Recorrentes sindicam o uso ilegal assente em error in judicando nessa reapreciação (em rigor, sobre a legalidade do apuramento dos factos), tendo em conta o poder de reapreciação que ao STJ assistiria nos termos do art. 674º, 3, 2.ª parte, e 682º, 2, 2.ª parte, do CPC – «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».


Os Recorrentes atacam a decisão excludente de tais factos no contexto da fundamentação usada para atingir esse resultado e visando a nulidade do acórdão recorrido.


Vejamos.


3.1.2. Dispõe o artigo 615º, 1, al. c), do CPC que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão – isto é, se surpreenda uma fundamentação que aponta num sentido (oposto ou diverso) que contradiz formalmente o resultado final plasmado no segmento decisório – ou ocorra alguma ambiguidade – por ter motivação ou posição que se presta a interpretações diferentes – ou obscuridade que torne a decisão ininteligível – por ter um erro lógico na argumentação jurídica, dando conclusão inesperada e adversa ao fio condutor do raciocínio seguido até ao resultado decisório.


Por seu turno, a falta de fundamentação a que alude a al. b) do art. 615º, 1, do CPC remete para algo a montante, caracterizado pela decisão de um pedido sem especificar quaisquer fundamentos que foram relevantes para essa decisão, violando o dever de motivação das decisões judiciais por estar ausente qualquer fundamentação; logo, a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão à luz deste vício.


3.1.3. Quando se provoca a reapreciação da decisão tomada em 1.ª instância sobre a matéria de facto, o art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, conduz a que a Relação exerça os seus poderes como verdadeiro tribunal de instância, proporcionando a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Por isso a doutrina tem acentuado que, nesse segundo grau de jurisdição, se opera um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa (em especial os depoimentos gravados), que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica ou altera ou adita a decisão recorrida.2 Sempre – nunca é demais sublinhar – com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (é perfeitamente elucidativa a aludida remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância3.


Ora, agindo como verdadeiro tribunal de instância na reapreciação solicitada, o acórdão recorrido mobilizou a prova testemunhal e declarações de parte da Ré (através do seu representante) e qualificou como conclusivas as referências à “posse”, pois conteriam e antecipariam a solução de direito. Logo, exibe fundamentação assente no princípio da livre apreciação da prova (arts. 396º, 466º, 3, CCiv.; este com complemento dos arts. 352º, 357º, 1, 358º, 1, e 361º do CPC), por um lado, e não exibe fundamentação que, no que respeita ao conjunto da materialidade dada como provada, se julgue contraditória, obscura ou ininteligível para essa decisão excludente; antes uma fundamentação que exibe um exercício crítico e racional da prova produzida nos autos sobre o objecto da impugnação, com lógica e coerência, e retira da materialidade conceitos que escapam ao apuramento factual sujeito ao regime jurídico aplicável e são pertinentes à valoração jurídica.


Em particular:


“Não há referência convincente à realização de obras, quer para habitação, quer para a actividade agrícola. Os autores também aludem à “utilização” do prédio, mas tal configura um termo tão vago, genérico ou conclusivo como “a posse”. Dizer que alguém utiliza ou tem a posse de um prédio nas evidenciadas circunstâncias é conclusivo, particularmente quando os autores referem que deram o imóvel em cumprimento e que este foi sucessivamente transmitido por compra. Por conseguinte, o que interessa são os factos concretamente exercidos pelos autores sobre o prédio. E só depois haverá que indagar se tais factos se reconduzem à “posse” ou à “mera detenção ou posse precária””.


Assim sendo.


Podemos entender que a fundamentação usada pode consubstanciar “erro de julgamento” na perspectiva dos Recorrentes, por ser desacertada e inadequada, e até poder estar omissa na repercussão a ter na factualidade não provada (ainda abrangida no poder geral do art. 662º, 1, do CPC), mas tal não se integra nem se reconduz às nulidades invocadas e susceptíveis de integrar a previsão da al. c), e muito menos a da al. b), do n.º 1 do art. 615º, 1, do CPC4.


Muito menos ainda se pode ver nesta arguição a possibilidade de invocação de “erro de direito” (ou erro de aplicação do direito), pois a revista não está de todo configurada nos termos do art. 674º, 1, a), do CPC, para ser sindicada a violação de lei substantiva, seja por erro de interpretação, erro de aplicação ou erro de determinação da norma aplicável. E, mesmo assim, nem de “erro de direito” sindicável pelo STJ se poderia tratar – ou, numa outra perspectiva, de “erro de facto” que pudesse conduzir à devolução dos autos à Relação nos termos de contradição relevante para a «decisão jurídica do pleito» (art. 682º, 3, in fine, CPC) – quando, na circunstância, foi a própria Relação que eliminou da própria factualidade tida por assente em 1.ª instância os factos aludidos tendo por argumento (não exclusivo) que as afirmações inseridas na factualidade em causa consubstanciavam conclusão jurídica (quanto à “utilização” e “posse”), de acordo com a interpretação ou a aplicação da lei do regime jurídico da usucapião para efeitos de aquisição originária, por conter e já antecipar a solução de direito (quando é a situação contrária que tem sido admitida como invocável nessa sede para o juízo de valoração jurídica de factos5, escapando-se à lógica restritiva do art. 682º, 2, do CPC em sede de sindicação da decisão da matéria de facto).


Muito menos ainda se pode aproveitar a invocação de tais nulidades para superar ou contornar o princípio-regra de irrecorribilidade da decisão proferida em 2.ª instância sobre a matéria de facto, de acordo com o art. 662º, 4, que não pode deixar de ser interpretada em articulação com os arts. 674º, 3, e 682º, 1 e 2), do CPC (“A norma atualmente no art. 662-4 (…) acentua a definitividade do julgamento sobre a matéria de facto no tribunal recorrido, apenas se ressalvando o caso excecional previsto na última parte do art. 674-3”6).


Improcedem, assim, as conclusões 1. a 10. e 14. da revista.


3.2. Nulidade por omissão de pronúncia


3.2.1. O art. 615º, 1, d), do CPC sanciona com nulidade as sentenças e acórdãos em que o julgador «deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

A omissão e o excesso de pronúncia são o verso e o reverso do mesmo poder-dever do julgador que, concretamente em sede de recursos, deve cingir-se ao objecto recursivo mas deve sempre julgar esse mesmo objecto recursivo, tal como delimitado na pretensão recursiva, prolongando-se para as instâncias recursivas o princípio reitor do art. 608º, 2, 1ª parte, do CPC, nos termos do qual «[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”. Este ónus processual implica, como corolário do “princípio da disponibilidade objectiva” (traduzido no art. 5º do CPC/2013), que “o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões” 7, assim como deve abster-se de conhecer de matéria ou pedido em condições em que está impedido de o fazer8.


Em particular, sabemos que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e que possam ser apreciadas na instância recursiva em causa, assim como as questões de conhecimento oficioso, mas não obriga a que se discutam todos os argumentos e posições revelados na pretensão do recorrente. O ónus processual de decisão, em sede de recurso, fica cumprido se ficarem apreciadas a questão ou questões delimitadas em concreto nas Conclusões das alegações recursivas (arts. 635º, 3 e 4, 639º, 1 e 2, e 640º do CPC) e no próprio requerimento de interposição do recurso (art. 635º, 2, CPC); não se encontra violado se não são apreciados e/ou discutidos todos os argumentos, considerações, motivos, pressupostos, juízos de valor(es) ou raciocínios utilizados pelas partes e/ou tribunal recorrido para a resolução da questão ou questões que efectivamente se delimitam e cumpre apreciar (tanto mais que o art. 5º, 3, do CPC estatui que «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”). Não se impõe, por isso, que o tribunal decisor aprecie ou responda ponto por ponto a todos os argumentos e razões invocados para sustentação (“‘Argumentos’ não são ‘questões’”), exigindo-se antes que indique e desenvolva a fundamentação atinente às questões que integram o objecto do recurso e que constituem o propósito legal da actividade judicativa do tribunal “ad quem”9. Só a ausência de apreciação dessas questões é determinante da nulidade em referência.


Em suma: “não constitui nulidade da sentença [ou acórdão], por omissão de pronúncia, a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocaram tendo em vista obter a (im)procedência da ação. Questões e argumentos não se confundem, sendo que o dever de decisão é circunscrito à apreciação daquelas, tanto mais que, com muita frequência, as partes são prolíficas num argumentário cuja medida é inversamente proporcional à pertinência das questões”10.11


3.2.2. Neste contexto, os Recorrentes consideram que o acórdão recorrido, uma vez eliminados os factos já referidos da materialidade provada, não considerou factualmente nem tratou da questão relativa à “inversão da posse”.


Vista a delimitação das questões pelo acórdão recorrido, vemos que uma delas é justamente a “inversão do título” [de posse].


Ora.


Vista a fundamentação na matéria de facto tratada em 2.ª instância, novamente se confronta, no que releva para a eliminação do facto provado 8.:


“o que interessa são os factos concretamente exercidos pelos autores sobre o prédio. E só depois haverá que indagar se tais factos se reconduzem à “posse” ou à “mera detenção ou posse precária””.


Vista a fundamentação na matéria de direito tratada em 2.ª instância, confrontamo-nos com o seguinte trecho, nevrálgico para o resultado decisório:


“(…) o direito de propriedade sobre o imóvel foi sucessivamente transmitido da esfera dos autores até à esfera da C..., Lda. E, como a sentença reconhece à luz do disposto no artigo 7.º do Código de Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.


Porém, não foi só o direito de propriedade que foi transferido. Por força do disposto no artigo 1264.º, n.º 1, do Código Civil, a posse também se transferiu para os adquirentes, independentemente de ter havido ou não a tradição da coisa: se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de conside-rar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa.


Como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA: “O constituto possessório é uma forma de aquisição solo consensu de posse, isto é, uma aquisição sem necessidade de um acto material ou simbólico que a revele. (…) O alienante, que tinha em relação à coisa uma causa possessionis, passa a deter a coisa em virtude em virtude de uma causa detentionis (…). O anterior possuidor passa a ter, depois do negócio, o animus alieno nomine detinendi” – in Código Civil Anotado, 2.ª Edição, pág. 29.


Logo, a primeira conclusão que se impõe é, precisamente, que os autores abriram mão do direito de propriedade sobre o prédio e igualmente da posse sobre o mesmo. Todo e qualquer acto praticado pelos autores após a transmissão do direito de propriedade considera-se praticado em nome dos adquirentes ou tolerado por estes e não como uma posse em nome próprio.


A presunção estabelecida no n.º 2, do art. 1252.º, do Código Civil, segundo a qual presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, só funciona nos casos de dúvida – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2020, disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 439/18.5T8FAF. Tendo ocorrido a transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel, não há dúvida quanto ao afastamento da posse. Ou seja, em princípio, como detentores ou possuidores precários, os autores não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título – cfr. artigo 1290.º, do Código Civil.


Este é o ponto de partida para a versão apresentada pelos próprios autores na petição inicial: tendo ocorrido a transmissão do direito de propriedade sobre o prédio, toda e qualquer actuação dos mesmos presume-se que resultará simplesmente do aproveitamento da tolerância do titular do direito – cfr. citado art. 1253.º, do Código Civil. Até que os autores demonstrem uma relevante e categórica alteração dessa evidência.”;


“Os próprios autores reconheceram esta realidade e tiveram que invocar a inversão do título de posse – cfr. arts. 5.º, 7.º e 8.º, da douta petição inicial. Como é evidente, se os autores entendiam ser os proprietários e legítimos possuidores do prédio, não precisavam de invocar a inversão do título de posse.


A importância da questão foi salientada aos autores que foram expressamente alertados para a excepcionada falta de factos sobre a inversão da posse por meio do douto despacho proferido no dia 27/7/2022, mas sem grande sucesso.


Como está preceituado no artigo 1265.º, do Código Civil, a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.


Relativamente ao modo como se realiza a inversão do título, OLIVEIRA ASCENSÃO refere que poderá realizar-se por “oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía. A oposição tem de ser categórica, de modo a sobrepor-se à aparência que era representada pelo título. Por exemplo, o usufrutuário declara perentoriamente que ele é o proprietário, que só por engano agira a título de usufrutuário, e faz saber ao proprietário a sua oposição” – in Direito Civil. Reais, Coimbra, 4.ª Edição, pág. 98. Por conseguinte, há que perguntar se houve inversão do título? Nos referidos artigos 5.º, 7.º e 8.º, da douta petição inicial, os autores pugnam pela resposta afirmativa e referem que:


1) Em 1992 CC e mulher intentaram contra os AA. uma ação de posse judicial avulsa que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da ..., pro-cesso n.º ..., da qual vieram os agora AA. a ser absolvidos da instância;


2) Na ação interposta pelos então alegados proprietários CC e mulher, resultou na sua absolvição (processo 112/92 já ante referido); e,


3) Nesse momento, deu-se a inversão do título da posse, que foi determinante para a convicção da sua propriedade plena desde aquela data.


Porém, os autores nem sequer apresentaram cópia do aludido processo n.º ....


A R. GG, Lda., é que juntou, no dia 20/9/2022, cópia certificada do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/1/2000, que negou a revista, confirmando as anteriores decisões que conferiram aos aí autores KK e mulher, LL, a posse dos dez prédios e que os mesmos peticionaram contra os aí réus AA [certamente por lapso, escreveu-se MM] e mulher, BB.


Impõe-se concluir que as afirmações dos autores são completamente falsas. Ou, como os autores referiram no requerimento apresentado no dia 28/10/22: no que concerne à ação judicial de posse avulsa, o citado processo ..., reconhecem os AA. o lapso ao indicarem a absolvição da instância nesta ao invés de na ...-A (habilitação), lapso pelo qual se penitenciam, mas que radica no facto desta espécie de ação respeitar à lei processual civil de tempos relativamente longínquos e, saliente-se, do efeito ser precisamente o mesmo (os AA. mantiveram-se na posse do prédio) razão pela qual não se consegue descortinar qualquer má-fé dos AA.. E ainda acrescentaram, para que não houvesse dúvida sobre o animus do “lapso”: Mesmo assim, sempre se dirá, e para o que aqui importa, que a ação ...-A terminou com a absolvição da instância, facto aliás reconhecido pelos RR..


Como é fácil de ver, a sorte do incidente de habilitação nada importa para o caso. A ação judicial de posse avulsa terminou num desaire para os aqui autores AA e mulher, BB. E, para o que importa verdadeiramente, a mera existência de uma acção ou o trânsito em julgado da decisão na qual os aqui autores saíram vencidos não consubstancia a inversão do título. Quando muito, a circunstância de ter sido intentada uma acção poderia consubstanciar o ensejo ou oportunidade para tal, mas nada foi alegado de concreto em como tenha ocorrido a oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía.


Por conseguinte, não se acompanha a sentença quando afirma que “em 1992, o dito CC e mulher intentaram contra os AA, uma acção de posse judicial avulsa que correu termos no tribunal da ..., processo nº ... da qual os AA vieram a ser absolvidos da instância; e foi nesta data o último momento em que os AA, tiveram conhecimento de que a posse efectiva e direito de propriedade tinham sido postos em causa, entretanto já decorreram quase 30 anos, sendo que a convicção de que o prédio não seria alienado se manteve e até foram absolvidos da acção, sendo que é aqui que se dá a inversão do titulo da posse que foi determinante para a convicção da sua propriedade plena desde aquela data” – nosso sublinhado.


É que tais afirmações estão contrariadas pelos factos dados como provados na própria sentença, a saber:


5 – Em 1992, KK e mulher intentaram contra os AA. uma ação de posse judicial avulsa, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da ..., processo n.º ..., da qual vieram os agora AA. a ser absolvidos da instância, mas unicamente no apenso nº ...;


6 – No concernente à acção principal nº ..., o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a sentença da primeira instância, que conferiu aos autores a posse efectiva de dez imóveis, onde se inclui o prédio referido no facto primeiro, considerando ainda a sua legitimidade para se manterem na acção acabada de citar, não obstante terem procedido à sua venda ao Banco Comercial dos Açores no decurso daquela acção, agindo como substitutos processuais do novo adquirente; [os autores aqui referidos são os ali requerentes KK e mulher – vd., por todos, a aludida cópia certificada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/1/2000, que a R. C..., Lda, juntou aos autos no dia 20/9/2022].

Por conseguinte, não se tem por verificada qualquer inversão do título.”

Julgamos que a transcrição é o bastante para vermos que não é susceptível de lograr sucesso o vício invocado pelos Recorrentes, seja em sede factual, seja em sede de aplicação do direito, mesmo que seja manifesto o inconformismo perante a decisão recebida da Relação; sendo absolutamente legítimo que a Relação assuma um entendimento factual e jurídico diverso do incorporado na materialidade provada e na subsunção jurídica do tribunal “a quo”.


Falecem, assim e também, as conclusões 10. a 13. e 14. da revista.


III) DECISÃO


Em conformidade, julga-se improcedente a revista.


Custas nesta instância pelos Recorrentes.


STJ/Lisboa, 11 de Junho de 2024


Ricardo Costa (Relator)


Luís Correia de Mendonça


Luís Espírito Santo


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

____________________________________________

1. ABRANTES GERALDES, “Artigo 674º”, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 404-405.↩︎

2. V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A impugnação das decisões judiciais”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 395-396, 399-400, 400, 402-403.↩︎

3. V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.9.2013”, CDP n.º 44, 2013, págs. 33-34, 36, ABRANTES GERALDES, “Artigo 662º”, Recursos… cit., págs. 287 e ss, 290 e ss.↩︎

4. V. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 615º, págs. 737-738. Na jurisprudência do STJ, v., elucidativamente, o Ac. de 22/2/2022, processo n.º 3282/17, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt.↩︎

5. V., em esp., o Ac. do STJ de 22/2/2022, processo n.º 5688/17, Rel. GRAÇA AMARAL, in www.dgsi.pt.↩︎

6. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 682º”, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pág. 254.↩︎

7. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “As formas de composição da acção”, Estudos sobre o novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 219-220.↩︎

8. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “As formas de composição da acção”, loc. cit., pág. 222.↩︎

9. V., entre os mais significativos, ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, 1952, 3.ª ed., reimp. 2012, Coimbra Editora, Coimbra, sub art. 668º, pág. 143; ANTUNES VARELA, “Acórdão do STJ de 25 de Maio de 1985 – Anotação”, RLJ, ano 122º, 1989, n.º 3781, pág. 112; MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “As formas de composição da acção”, loc. cit., págs. 220-221 (“O tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa”: sublinhado nosso); RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, Volume III (Arts. 467.º a 800.º), 3.ª ed., do Autor, Lisboa, 2001, sub art. 660º, págs. 180-181; ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 635º, pág. 116, a quem pertence a transcrição; ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I cit., sub art. 615º, pág. 738.↩︎

10. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado cit., sub art. 608º, pág. 727, sublinhado da nossa responsabilidade.↩︎

11. Na jurisprudência do STJ, v., para exemplo do amplo consenso obtido, os Acs. de 1/3/2012, processo n.º 353/2000.E1.S1, Rel. MARIA DOS PRAZERES BELEZA, 27/3/2014, processo n.º 555/2002.E2.S1, Rel. ÁLVARO RODRIGUES, ("Para efeitos de nulidade de sentença/acórdão há que não confundir «questões» com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes nos seus articulados, e aos quais o tribunal não tem obrigação de dar resposta especificada ou individualizada, sem como isso incorrer em omissão de pronúncia.” – ponto I. do Sumário), e 27/6/2019, processo n.º 1346/15.9T8CHV.G2.S1, Rel. FERNANDO SAMÕES (“(…) a nulidade da sentença com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras)”); sempre in www.dgsi.pt.↩︎