Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
596/02.2PBVIS.C1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
IRRECORRIBILIDADE
REJEIÇÃO PARCIAL
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO AO PROCESSO
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 11/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A circunstância de a decisão do recurso intercalar integrar o acórdão da relação que conheceu do recurso interposto da decisão final – como acontece com os recursos interlocutórios, admitidos para subiram a final – não lhe retira a qualidade de decisão intermédia e, portanto, a qualidade de decisão que não conhece, a final, do objecto do processo, razão pela qual, dela não é admissível, nos termos do disposto na alínea c) do nº 1 do art. 400º do C. Processo Penal, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

II. Assim, não pode o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça incluir questões decididas no recurso intercalar, por, nesta parte, não ter a relação conhecido, a final, do objecto do processo.

III. O mesmo princípio de irrecorribilidade de acórdão da relação para o Supremo Tribunal de Justiça deve vigorar quando, não existindo, formalmente, recurso intercalar, o acórdão da relação que tem por objecto decisão final da 1ª instância, decide também questão interlocutória.
Decisão Texto Integral:
RECURSO Nº 596/02.2PBVIS.C1.S1

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Criminal de ... – Juiz 1, mediante despacho de pronúncia, foi o arguido AA, com os demais sinais nos autos, submetido a julgamento em processo comum com intervenção do tribunal de júri, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131º do C., Penal e de dois crimes de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º e 131º do C. Penal.

Na audiência de julgamento de 11 de Janeiro de 2024, o arguido interpôs recurso [com apresentação posterior da motivação] do despacho da Mma. Juíza presidente, que indeferiu a irregularidade por aquele invocada, de não lhe ter sido concedido tempo para conferenciar com o seu mandatário, antes de responder a perguntas sobre o relatório social, junto na mesma diligência.

Por acórdão de 12 de Janeiro de 2024, foi o arguido condenado, pela prática dos imputados crimes, nas penas de 10 anos de prisão, 3 anos de prisão e 3 anos de prisão, respectivamente e, em cúmulo jurídico, na pena única de 12 anos de prisão.

Mais foi o arguido condenado, nos termos do disposto nos arts. 16º da Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro e 67º-A e 82º-A, do C. Processo Penal, no pagamento da quantia de € 60000 a BB, no pagamento da quantia de € 15000 a CC e no pagamento de € 20000 a DD, a título de indemnização.

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Inconformado com a decisão, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 28 de Junho de 2024, negou provimento a ambos os recursos.

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Novamente inconformado, recorre o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1ª. O presente recurso pretendia-se sobre a matéria de Direito e sobre a matéria de facto, porquanto a matéria de facto representa, também, uma tremenda parcialidade do tribunal de primeira instância que foi, incompreensivelmente, premiada pelo TRC. No entanto, atento ao disposto no art.º 434 do Código de Processo Penal, alega-se sobre o direito, o que, de toda a forma, deverá conduzir à libertação imediata do arguido com a respetiva absolvição.

2ª. O tribunal não procedeu convenientemente à gravação da audiência de julgamento do dia 31.10.2023, e tal omissão, só por si, gera a nulidade da audiência de julgamento e de todos os atos subsequentes.

3ª. Tal omissão da gravação foi percecionada quando os mandatários do arguido se preparavam para analisar o despacho proferido em tal dia, durante a audiência, e, portanto, uma vez que não conseguiam perceber potencial gravação, requereram a transcrição, também essa impossível – o que apenas serviu para provar que o problema não era dos mandatários do arguido, mas sim da gravação em si.

4ª. Pelo disposto no art.º 364 (n.º 1 e 2) a audiência de julgamento é sempre gravada sob pena de nulidade, devendo constar dessa gravação os despachos. A gravação feita da audiência do dia 31.10.2023 não cumpre com a previsão da norma, pelo que deverá ser decretada a sua nulidade, assim como dos atos subsequentes.

5ª. Ao agir da forma alegada pelo recorrente, o que foi confirmado e censurado – apesar de que sem efeitos jurídicos –, pelo TRC, o tribunal de primeira instância agiu como se o defensor não estivesse presente na audiência de julgamento, ao não o deixar conferenciar com o arguido num momento em que lhe estavam a ser feitas perguntas sobre um documento novo no processo.

6ª. A presença do defensor é obrigatória na audiência de julgamento e o defensor tem direitos próprios no processo, não sendo a desconsideração da presença do defensor legal.

7ª. O corpo presente do defensor não é suficiente para preencher a previsão da norma do art.º 64 do C.P.P., tendo este sido ignorado da forma que foi o ato está ferido de nulidade pelo disposto no art.º 119, alínea c), do C.P.P.

8ª. O procedimento criminal está prescrito.

9ª. Admite, o TRC, que “o envio de um despacho a designar data de julgamento, não traduzido para a língua dominada pelo arguido, pudesse constituir uma relevante omissão de um procedimento

legal”, no entanto, em completo branqueamento do procedimento ilegal, não atribuiu nenhuma ineficácia aos atos praticados ao arrepio da lei, porque alegadamente o arguido não recebeu tal notificação. Tal raciocínio padece de duas falácias estruturais:

10ª. A primeira falácia é que a carta com a notificação, aparentemente, ao que nunca se tinha dado importância durante o processo (por motivo da explicação da segunda falácia), foi recebida pelo arguido, que não conseguiu, como seria previsível, entender a notificação que se lhe dirigia.

11ª. A segunda falácia é que, ao contrário do que o TRC parece querer defender, os direitos dos arguido, quer porque são protegidos pela CRP como pela CEDH, não são direitos efetivos, que são concretamente aplicáveis e garantidos na prática, em oposição a direitos que existem apenas formalmente ou no papel; uma vez que se suportam no facto de o arguido não ter recebido a notificação para esta não ter de ser traduzida.

12ª. Ainda assim, o Estado Português não realizou as diligências necessárias à notificação a que se refere o n.º 1 e primeira parte do n.º 4 do artigo 311.º-A, ou à notificação a que se refere o n.º 1 do artigo 313.º, pelo que não o podia ter notificado por editais, e muito menos declará-lo contumaz.

13ª. Com a invalidade (nulidade) da declaração de contumácia os prazos de prescrição não poderiam ser suspensos ou interrompidos, pelo que o procedimento criminal está prescrito.

14ª. Ao requerimento do arguido, em audiência de julgamento, para que se lessem as DMF, o tribunal indeferiu tal pedido por “A leitura das DMF não ser obrigatória”. Ora, tal constituiu um

contrassenso, e acaba por ser uma resposta de bolso, uma vez que o que se arguiu não foi, nem de perto nem de longe, o que foi arguido no processo onde foi proferido o Ac. uniformizador de jurisprudência n.º 8/2017, de 11-10- 2017. Ao indeferir as pretensões com tal fundamentação, que em nada responde ao que foi pedido, o tribunal imiscuiu-se nos direitos de defesa do arguido, limitando-os, o que terá de ser vetado por Vossas Excelências.

15ª. Sempre terá de se considerar que tal decisão, que indeferiu a pretensão do arguido, é nula por falta de fundamentação; e dever-se-á fundamentar tal decisão de modo que possa ser recorrível; ou, na melhor das hipóteses, ser o pedido concedido.

16ª. O procedimento criminal está prescrito nos termos do art.º 118 do Código Penal, uma vez que não ocorreu (legalmente) nenhuma causa de interrupção ou suspensão.

17ª. O arguido foi declarado contumaz, no entanto tal declaração de contumácia não foi precedida do procedimento legal obrigatório, uma vez que não se realizaram as diligências necessárias à notificação do arguido nos termos do art.º 355; isto porque:

18ª. As notificações dirigidas ao arguido teriam, sempre, de ser traduzidas para uma língua que ele entendesse, de forma a garantir efetivamente os seus direitos linguísticos, e a cumprir a Lei nacional e convenções internacionais.

19ª. Pouco importa, se o arguido, recebeu, ou não, a notificação em Português do prazo para apresentação da contestação ou abertura da instrução, uma vez que esta notificação não seguiu traduzida, e, portanto, o arguido, mesmo recebendo, não a entenderia, pelo que não se poderia considerar notificado.

20ª. Ainda assim, dada a importância que o TRC admite ter, caso o arguido tenha recebido a notificação, requer-se a tradução do A/R constante do processo.

21ª. Mesmo quanto à notificação do dia de julgamento, o tribunal não realizou as diligencias necessárias para notificar o arguido, uma vez que foi emitido um pedido ao comando da PSP de... para notificar o arguido na morada dos factos, quando se sabia, perfeitamente, que o arguido já não se encontrava em Portugal, muito menos em ..., tanto que lhe dirigiu a notificação anterior para a sua morada na Ucrânia.

22ª. Dever-se-ia ter procedido conforme entendeu já, em outras ocasiões, o TRC, o que, incompreensivelmente esta vez não aconteceu, quando escreveu que “Residindo o arguido no estrangeiro e sendo a respectiva localização conhecida nos autos, a forma de assegurar a regularidade da notificação do despacho que designa dia para a audiência de discussão e julgamento quando por outro meio não tenha sido possível notificá-lo, passa necessariamente pela expedição de carta rogatória com accionamento dos mecanismos de cooperação judiciária internacional.” E que “Não tendo a notificação sido efectuada por essa forma, não estão reunidos os pressupostos para a declaração de contumácia do arguido.”

23.ª Estando, como está, o procedimento criminal prescrito, deverá ser ordenada a libertação imediata do arguido.

24.ª Ainda que assim não se entenda deverão os autos regressar à primeira instância para que se leiam e audiência de julgamento as Declarações para Memória Futura, uma vez que o despacho que indeferiu quando o mesmo se requereu é infundamentado, ou fundamentado com uma fundamentação que não se aplicou ao caso, e, portanto, nulo.

25ª. O TRC acabou por aplicar normas com interpretações que deixam as mesmas em plena contradição com princípios constitucionais, pelo que desrespeitou a obrigação de não aplicar normas infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

26ª. O arguido nunca teve intenção de matar seja quem for, tendo apenas sido influenciado por circunstancias externas que lhe fugiram ao controle. Assim não se decidiu antes por mero erro notório na apreciação da prova.

27ª. A qualificação jurídica atribuída aos atos do arguido desconsideram a situação real, uma vez que os atos foram praticados (o que o arguido nunca negou tê-los praticado) sob compreensiva emoção violenta, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, pelo que a qualificação jurídica atribuída mais justa seria o Homicídio privilegiado do art.º 133 do Código Penal.

28ª. Motivos pelos quais o Acórdão recorrido violou as normas constantes dos art.º 60, 61, 64, 119, 127, 313, 345, 355, 364/4 do Código de Processo Penal; assim como os art.º 131 e 133 do Código Penal; bem como os art.º 8/2, 32/3, e 204 da Constituição de República Portuguesa; e ainda o art.º 6 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Nestes termos e sempre com o Douto Suprimento de VsE.xas se espera e requer que seja julgado procedente por provado o presente Recurso, decretando tudo o que se requereu nos termos invocados, para que seja, a final, o arguido restituído à liberdade e assim bom serviço se preste À ACOSTUMADA JUSTIÇA.

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O recurso foi admitido por despacho de 8 de Agosto de 2024.

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Respondeu ao recurso o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Coimbra, alegando, em síntese, não se verificar a nulidade da audiência de julgamento, pelas razões apontadas no acórdão recorrido, ter este acórdão encontrado solução ponderada para a irregularidade integrante do recurso intercalar, não se verificar a prescrição do procedimento criminal, tal como decidido pelo acórdão recorrido, pelo acórdão da 1ª instância e pelo juiz de instrução, estar correcta a decisão do acórdão recorrido quanto à obrigatoriedade ou não da leitura em audiência das declarações para memória futura, sendo certo, que face ao despacho de indeferimento da Mma. Juíza presidente do tribunal de júri, deveria o arguido ter reagido atempadamente, o que não fez, que a inconstitucionalidade invocada foi devidamente afastada pelo acórdão recorrido, que os poderes de cognição do Supremo tribunal de Justiça quanto à matéria de facto se restringem aos vícios da decisão, que não se detectam, designadamente, o erro notório na apreciação da prova, que não existem factos provados que sustentem a pretendida alteração da forma do dolo e da qualificação jurídica para crime de homicídio privilegiado, e concluiu pela rejeição das pretensões do recorrente com a consequente manutenção do acórdão recorrido.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, assim finalizado:

IV Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

- Deverá o presente recurso ser rejeitado quanto ao invocado erro-vício e à parte da decisão que recaiu sobre o recurso interlocutório;

- No restante, deverá o recurso ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência.

Cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados

A matéria de facto provada que provém das instâncias é a seguinte:

“(…).

1- No dia 5 de Maio de 2002, cerca das 16h00, EE, nascido a ... de ... de 1983, na Federação Russa, na companhia de FF, CC e DD, estes de nacionalidade ucraniana, deslocou-se até à residência de outros cidadãos de Leste, sita na Rua ... em ..., ..., a fim de comemorarem juntos a Páscoa ortodoxa, sendo que desde as 12h00 que bebiam cerveja, apresentando-se embriagados.

2- Assim que chegaram à referida residência, EE iniciou uma discussão com o arguido AA, por motivo não totalmente apurado.

3- Posteriormente, EE deslocou-se até ao quarto situado no piso de cima, a fim de todos consumirem cervejas que ele havia trazido, pelo que para ali se deslocaram também, para além dos acompanhantes de EE atrás referidos, o GG e o HH (conhecido por "S..."), sendo que o arguido AA permaneceu de pé junto à porta do quarto e era o único que não bebia cerveja uma vez que não consumia qualquer tipo de bebidas alcoólicas.

4- A determinada altura, o arguido deslocou-se ao andar de baixo e passado pouco tempo apareceu no referido quarto, trazendo na mão um objeto de caraterísticas não totalmente apuradas de natureza corto-perfurante que apontou em direção a todos os presentes ao mesmo tempo que, em tom muito alterado e intimidativo questionou todos sobre quem lhe havia furtado o telemóvel do seu quarto.

5- De imediato, o arguido espetou o referido objeto no tórax de EE, que se encontrava sentado próximo da porta de entrada, tendo este de imediato começado a sangrar abundantemente, causando-lhe as lesões descritas e examinadas no relatório da autópsia, nomeadamente, a nível do abdómen: uma ferida perfurante na região epigástrica sobre o rebordo costal direito com cerca de 2 cm de diâmetro e cerca de 6 cm de profundidade, orientada de baixo para cima e da direita para a esquerda em profundidade, outra ferida superficial de forma oval, sensivelmente na região do apêndice xifóide, com cerca de 1 cm de diâmetro maior e 0,5 cm no menor; a nível do tórax: ferida perfurante acima referida que se estendia desde a pele até ao coração direito, perfurando a grelha costal na região da última cartilagem costo-esternal direita, o diagrama, a pleura, o lobo inferior do pulmão direito, o pericárdio e chegando à região superior do ventrículo direito, onde se encontrou uma perfuração completa com cerca de 1,5 cm.

6. EE faleceu em consequência direta, necessária e exclusiva da conduta do arguido que lhe provocou um traumatismo torácico, com laceração do pulmão direito e perfuração cardíaca.

7. Logo de seguida, o arguido atingiu com dois golpes debaixo do braço esquerdo CC, causando-lhe as lesões descritas e examinadas a fls. 313 a 316 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, que foram causa direta e necessária de 10 dias de doença com incapacidade para o trabalho em geral e profissional, bem como atingiu o DD com pelo menos três golpes / “facadas” na parte lateral esquerda do tronco, provocando-lhe as lesões descritas e examinadas a fls. 332 a 337 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, que foram causa direta e necessária de 60 dias de doença com incapacidade para o trabalho.

8. Perante tal violência, DD e CC fugiram do local saltando pela janela existente no quarto, tendo na queda o DD partido um pé.

9. O arguido ao atuar da forma acima descrita, agiu livre e conscientemente, com o propósito de tirar a vida a EE, CC e DD, o que conseguiu relativamente ao primeiro e só não conseguiu relativamente aos outros dois porque os mesmos fugiram do local e foram medicamente assistidos.

10- O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

[Da contestação:]

11- Em 2002 o arguido AA veio para Portugal com o propósito de arranjar trabalho, tendo para o efeito pago a terceiros a quantia de € 700 USD (i.é € 1.084,00) para que diligenciassem pela angariação de trabalho em Portugal e como garantia de alojamento, comida, pelo menos até estabilizar sua vida neste país.

12- Ao chegar a Lisboa, o arguido contactou EE que o mandou vir até ....

13- Uma vez chegado a ..., o arguido foi colocado na casa sita em ..., (indicada em 1- dos factos provados) que já acomodava cerca de sete pessoas e onde o mandaram ficar à espera.

14- O arguido ficou à espera que fosse o EE a arranjar-lhe trabalho, nomeadamente, por não falar português, nem dominar outras línguas.

15- Passadas duas semanas, estando II e JJ na mesma situação que o arguido, sem trabalho e sem dinheiro, inconformados, decidiram os três, pela voz do primeiro, telefonar a EE para reclamar da situação em que se encontravam.

16- Já antes desse telefonema, em data não concretamente apurada, EE tinha mandado aos três apanhar um autocarro para a zona da Serra ... para aí ficar à espera, até que os fossem buscar à paragem, com a promessa de que iriam começar a trabalhar.

17- Porém, ninguém apareceu e após vários telefonemas feitos a EE que os foi mandando esperar até desligar o seu telemóvel, os três acabaram por ter de ali pernoitar, ao relento, por não terem como voltar.

18- Depois desse dia, o arguido, o II e o JJ, muito chateados, telefonaram a EE a exigir uma solução.

19- Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas em 1- dos factos provados, EE, acompanhado de FF, CC e de DD, estavam todos já “ligeiramente embriagados” ao chegaram à casa de ..., vindos de ... onde tinham estado a beber.

20- EE ao chegar à casa, deu as chaves do carro ao arguido para que este lá fosse buscar cervejas que aquele tinha trazido e, ao regressar do carro, o arguido apercebeu-se que o II estava na cozinha com o EE e os outros indivíduos e que decorria uma discussão.

21- Na sequência disso, II saiu da cozinha, curvado, com a testa vermelha e sinais de ter sido agredido.

22- O arguido tinha deixado o seu telemóvel no quarto onde dormia, a carregar, mas quando o procurou não o encontrou.

23- Ao aperceber-se da falta do seu telemóvel, o arguido subiu para o andar superior onde estavam EE, FF, CC, DD, HH e GG, no quarto do andar, a ouvir música e a beber cerveja.

24- EE estava sentado na cama situada à esquerda de quem entra pela porta, quando alguém atirou o telemóvel para cima da cama que estava à direita da porta.

25- Na sequência dos factos supra descritos de 1- a 10- dos factos provados, o arguido correu pelas escadas, agarrou na sua mala de viagem e foi embora da casa, levando consigo o supra referido objeto de natureza corto-perfurante.

26- O arguido foi-se esconder no mato e no dia seguinte aos factos supra descritos, fez telefonemas para a família para sair do país, indo depois para Itália e posteriormente para a Alemanha, onde arranjou sempre trabalho.

27- Mais tarde regressou à Ucrânia onde conheceu a sua esposa, constituiu família e começou a trabalhar nas minas perto de ..., local onde vivia.

28- Após ter sofrido acidente de trabalho nas minas, ficou com uma invalidez e foi considerado inapto para combater.

29- Ao tentar juntar-se à sua família refugiada em Itália, foi intercetado na fronteira com a Polónia e detido em cumprimento de um Mandado de Detenção Europeu, pelos factos supra descritos.

[Das condições pessoais do arguido: Conforme resulta do teor do Relatório social:]

30- À data dos factos o arguido encontrava-se em Portugal, onde chegara alguns dias antes, proveniente da Ucrânia, de onde é natural, e onde, até então, sempre residira, na cidade de ..., no Oblast de Donetsk.

Na busca de melhores condições de vida e com o propósito de garantir aforros que lhe permitissem regressar, um dia mais tarde, à Ucrânia, contactara uma empresa especializada em mediar processos de integração nos países de destino, circunstância que o levou, depois de uma primeira paragem em Lisboa, a viajar até ..., onde a única referência que tinha era o contacto de uma pessoa que, para além do alojamento, seria responsável por lhe vir a garantir localmente trabalho.

Na Ucrânia deixara, os progenitores, o pai, mineiro, e a mãe, telefonista, bem como o irmão mais velho, operário da construção civil, e um percurso de vida até aí marcado pelas dificuldades económicas e pela falta de oportunidades de trabalho, pese embora, no seu caso, depois de ter concluído o ensino secundário, ter procurado garantir alguma especialização, através de um curso profissional na área da construção civil.

Apesar de não ter sido possível recolher qualquer tipo de informação concreta sobre o arguido, segundo o então presidente da Junta de Freguesia de ..., nessa época foram vários os cidadãos de origem ucraniana a radicarem-se na localidade de ..., os quais frequentavam os espaços de convívio locais, subsistindo sobre os mesmos uma imagem positiva, por serem tidos como elementos educados e que não causavam problemas.

Depois da ocorrência dos factos que constam da acusação, o arguido acabaria por viajar para Itália, onde permaneceu cerca de 2/3 anos e onde trabalhou sobretudo no setor da construção civil, e depois para a Alemanha, onde esteve sensivelmente o mesmo período de tempo, mas onde destacou o trabalho numa empresa de publicidade. No decorrer da permanência nestes países, foi mantendo contactos regulares com a Ucrânia, onde se foi deslocando com maior ou menor regularidade, utilizando para o efeito, quer transportes coletivos, quer veículo automóvel próprio.

Acabaria por regressar à Ucrânia em 2008, onde, chegou a constituir uma empresa de instalação de portas e onde, algum tempo depois, conheceu KK, com quem, em 2010, viria a casar.

No decorrer desta fase, chegou a frequentar em Kiev, o curso superior de economia, projeto que o nascimento das filhas LL em 2012 e MM em 2013, com todos os encargos a isso associados, acabaria por comprometer.

Apesar de ambos os elementos do casal trabalharem com regularidade, ela como técnica superior, com formação em economia, na empresa ..., e ele como operário da construção civil, o casal debatia-se com algumas dificuldades económicas, facto que terá levado o arguido a ir trabalhar para uma empresa mineira, ligada à extração de carvão, num setor em que estava exposto a elevado risco, mas que era bastante bem remunerado. Em 2018, na sequência de uma derrocada na mina onde se encontrava a trabalhar, sofreu um grave acidente de trabalho, em consequência do qual esteve hospitalizado cerca de sete meses e do qual resultaram algumas sequelas e limitações físicas, ao nível da coluna e de um dos membros inferiores, com perda de capacidade de mobilidade, na sequência do que viria a ser reformado por invalidez.

Assim, no período imediatamente anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022, o arguido vivia com o seu agregado familiar, numa habitação, correspondente a uma moradia em banda, que haviam adquirido, subsistindo com base no vencimento do seu cônjuge, funcionária da empresa ..., que rondava aproximadamente os € 250,00/mensais, da prestação de invalidez que lhe fora atribuída no valor de aproximadamente € 60,00, ao qual acrescia cerca de €270,00 relativos ao valor que mensalmente lhe era pago pelo seguro. Apesar deste conjunto de rendimentos, referiu que o agregado vivia com algumas dificuldades.

O profundo impacto que a invasão russa teve em toda a região do Oblast de Donetsk, a família ver-se-ia na contingência de abandonar a cidade de ..., tendo o seu cônjuge viajado em abril de 2022 para Itália, onde o arguido pretendia juntar-se-lhes em maio de 2022, quando foi detido na fronteira com a Polónia.

Na sequência da sua detenção e da subsequente aplicação da medida de coação de prisão preventiva, acabaria por dar entrada no Estabelecimento Prisional ... a 15 de julho de 2022, tendo sido transferido para o Estabelecimento Prisional de ... a 12 de agosto de 2022, onde, desde então, tem permanecido de forma ininterrupta.

– REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO

A detenção e a subsequente aplicação da medida de coação decorrentes do alegado envolvimento do arguido nos factos que estão na origem do presente processo, acabariam por determinar a interrupção do projeto de reunião familiar, que o arguido perspetivava concretizar.

A notícia da sua detenção e sujeição àquela medida de coação acabaria por ser acolhida com enorme surpresa pelo seu cônjuge, que alegou desconhecer o envolvimento do arguido nos factos que estão na origem do presente processo, e relativamente aos quais continua a manifestar incredulidade, por considerar que os mesmos não correspondem à imagem que foi construindo do arguido, quer enquanto pessoa quer enquanto pai e/ou cônjuge, e que se plasmou naquilo que até então, era uma família normal, sem problemas. Depois da detenção do arguido, os restantes elementos do seu núcleo acabariam por regressar à Ucrânia, onde, face à impossibilidade de regressar a ..., têm vindo a mudar frequentemente de residência, encontrando-se atualmente na cidade de Kremenchug. A situação de guerra em que o país se encontra, agravou significativamente as condições de vida deste agregado, o qual, apesar da estabilidade laboral que o cônjuge do arguido continua a registar, se debate com graves dificuldades económicas. O conhecimento desta realidade, a impossibilidade de através da sua colaboração e presença, poder eventualmente atenuar as dificuldades que atualmente a sua família vivencia, faz com que, a sua presente condição, esteja a ser vivida com grande sofrimento por parte do arguido, num processo que é reforçado pelo facto de, mesmo em contexto prisional, lhe serem garantidas melhores condições do que aquelas, com que o seu cônjuge e as suas filhas diariamente se debatem.

No plano institucional e ao longo de todo este período de prisão preventiva, o arguido tem mantido um comportamento e uma postura adequados, conformes às normas e regras do Estabelecimento Prisional, não sendo de referir qualquer tipo de incidente na sua relação, quer com os outros reclusos, quer com os demais funcionários da instituição, pelo que, até ao momento, não foi alvo de qualquer procedimento disciplinar. Em termos ocupacionais, cumpre apenas referir que, desde há cerca de um ano que exerce as funções de faxina afeto à área prisional.”

31- O arguido não tem antecedentes criminais averbados ao seu CRC.

(…)”.

B) Factos não provados

“(…).

Com relevo para a decisão da causa, não se provou:

- que a discussão iniciada (nas circunstâncias indicadas em 1- dos factos provados) entre o arguido AA e a vítima EE tenha sido, em concreto, relativa ao facto de este último ainda não ter arranjado ao arguido qualquer trabalho em Portugal, conforme anteriormente tinham acordado;

- que o objeto empunhado pelo arguido (nas circunstâncias descritas em 4- dos factos provados) fosse uma faca de mato, vulgo "punhal";

- que o II na circunstância descrita em 21- dos factos provados, tenha saído da cozinha ensanguentado, cambaleante e a pedir ajuda;

- que o telemóvel do arguido fosse o seu único contacto com a família, com o seu país de origem e que para que pudesse sair dali e nunca mais voltar, o telemóvel fosse essencial para o arguido;

- que nas circunstâncias descritas em 4- a 7- e 23- e 24- dos factos provados, EE tivesse desferido ao arguido um murro na cara;

- que nas circunstâncias descritas em 4- a 7- e 23- e 24- dos factos provados, um dos indivíduos presentes se estivesse a dirigir para o arguido AA e que o objeto de natureza corto-perfurante que o arguido empunhava estivesse na cama para onde foi mandado o telemóvel e que o arguido, “sempre com o objetivo de se defender”, o tivesse agarrado daí para tentar evitar que qualquer um dos 6 indivíduos se aproximassem dele;

- que nas circunstancias descritas em 4- a 7- e 23- e 24- dos factos provados, para conseguir fugir desse quarto, o arguido tenha esperado por “uma abertura para andar para trás e abandonar o local”;

- que o objeto que o arguido levou consigo no momento descrito em 25- dos factos provados, fosse em concreto uma “faca” e que todos os outros que estavam no quarto de cima lá permaneceram;

- que o corpo da vitima EE apresentava esfacelos na mão esquerda;

- que tivesse sido descoberta a existência de uma organização criminosa que auxiliava à imigração clandestina e angariava mão de obra ilegal;

- que o arguido AA não tinha, nem nunca teve nenhuma intenção de produzir o resultado morte “até porque se assim fosse, provavelmente haveria mais vítimas mortais naquele quarto”.

- que no dia 05-05-2002, quando a Polícia se deslocou a ..., tenha feito uma perseguição ao NN.

(…)”.

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Âmbito do recurso

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.

Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.

Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões submetidas ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são, por ordem de precedência lógica:

- A nulidade prevista no art. 119º, c), do C. Processo Penal, por não ter o tribunal de 1ª instância permitido que, no decurso da audiência de julgamento, o arguido conferenciasse com o seu mandatário, quando, após leitura, com tradução, do relatório social acabado de juntar aos autos, lhe iriam ser feitas perguntas sobre este documento (conclusões 5ª a 7ª, referentes ao recurso interlocutório);

- A nulidade da audiência de julgamento de 31 de Outubro de 2023, por falta de documentação da mesma, e consequente nulidade de todos os actos subsequentes (conclusões 2ª a 4ª);

- A prescrição do procedimento criminal, pela ilegalidade da declaração de contumácia e consequente não interrupção, nem suspensão, do prazo de prescrição (conclusões 8ª a 13ª e 16ª a 23ª), e a aplicação pelo Tribunal da Relação de Coimbra de normas interpretadas em violação de princípios constitucionais (conclusão 25ª);

- A violação dos direitos de defesa pelo indeferimento da leitura das declarações para memória futura na audiência de julgamento e a nulidade do respectivo despacho, por falta de fundamentação (conclusões 14ª, 15ª e 24ª);

- A ausência de intenção de matar e a existência de erro notório na apreciação da prova (conclusão 26ª);

- A prática dos factos sob compreensível emoção violenta, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, e consequente qualificação do crime de homicídio como homicídio privilegiado (conclusão 27ª).

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Questão prévia

Da irrecorribilidade parcial do acórdão da Relação de Coimbra para o Supremo Tribunal de Justiça

Como decorre do disposto no nº 3 do art. 414º do C. Processo Penal, o despacho do Tribunal da Relação de Coimbra que admitiu, sem restrições, o recurso, não vincula este Supremo Tribunal, cumprindo assim, verificar se, in casu, existem limitações à recorribilidade do acórdão recorrido, como, aliás, é entendimento do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer emitido.

a. O princípio geral, afirmado no art. 399º do C. Processo Penal, é o da recorribilidade das decisões judiciais, sendo recorríveis os acórdãos, sentenças e despachos cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei.

Dispõe a alínea c) do nº 1 do art. 400º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Decisões que não admitem recurso» que, não é admissível recurso, [d]e acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo, excepto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coacção ou de garantia patrimonial, quando em 1ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196º.

Por sua vez, dispõe o art. 432º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça», na parte em que agora releva:

1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

(…).

Por outro lado, nos termos do disposto no art. 434º do C. Processo Penal, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo das situações previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do mesmo código.

O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça tem por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que decidiu o recurso interposto do acórdão condenatório proferido pelo tribunal de júri do Juízo Central Criminal de ..., que decretou ao arguido três penas parcelares de 10 anos de prisão, 3 anos de prisão e 3 anos de prisão e, em cúmulo, a pena única de 12 anos de prisão.

Estamos pois, no âmbito da previsão da alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal.

b. Face ao disposto na alínea c) do nº 1 do art. 400º do C. Processo Penal, salvo nos casos subsumíveis à previsão da sua 2ª parte, não é admissível recurso dos acórdãos da relação, proferidos em recurso, que não conhecem, a final, do objecto do processo portanto, que não julgam o mérito da causa. Deste modo, salvo nos casos subsumíveis à previsão da 2ª parte da norma, não é admissível recurso dos acórdãos da Relação, proferidos em recurso, que não conhecem, a final, do objecto do processo.

O objecto do processo é integrado pelos factos narrados na acusação e/ou na pronúncia, pelos factos alegados pela defesa e ainda, pelos factos resultantes da discussão da causa, desde que relevantes para as questões elencadas nº 2 do art. 368º do C. Processo Penal (art. 339º, nº 4 do mesmo código). Conhecer do objecto do processo é, portanto, conhecer da viabilidade da acusação e/ou da pronúncia, em ordem ao seu desfecho, seja de condenação, seja de absolvição, consoante o caso (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1251).

Para Simas Santos e Leal Henriques (Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 38) este fundamento de irrecorribilidade pretende acautelar a necessidade de defender o Supremo tribunal de Justiça da intervenção em questões de menor importância que assim se querem ver decididas definitivamente pela Relações, quando forem objecto de recurso intercalar autónomo.

A circunstância de a decisão do recurso intercalar integrar o acórdão da relação que conheceu do recurso interposto da decisão final – como acontece com os recursos interlocutórios, admitidos para subiram a final e nos próprios autos, com o recurso interposto da decisão que viesse a por termo à causa, nos termos do nº 3 do art. 407º do C. Processo Penal – não a faz perder, nessa parte, a qualidade de decisão que não conhece, a final, do objecto do processo, razão pela qual, nessa mesma parte, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, apesar de ser conhecido no mesmo acórdão [final] da relação, é autónomo e independente, o conhecimento de um recurso intercalar, do conhecimento do recurso interposto da decisão final.

Nesta decorrência, não pode o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça incluir questões decididas no recurso intercalar, por, nesta parte, não ter a relação conhecido, a final, do objecto do processo (António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, obra colectiva, 2024, Almedina, pág. 60 e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 2023, processo nº 813/22.2JABRG.G1.S1, de 19 de Junho de 2019, processo nº 881/16.6JAPRT-A.P1.S1 e de 18 de Abril de 2013, processo nº 180/05.9JACBR.C1.S1, in www.dgsi.pt).

O mesmo princípio de irrecorribilidade de acórdão da relação para o Supremo Tribunal de Justiça deve vigorar quando, não existindo, formalmente, recurso intercalar, o acórdão da relação que tem por objecto decisão final da 1ª instância, decide questão interlocutória, portanto, questão intermédia, que antecede a decisão que conhece, a final, do objecto do processo, pois não existe razão, formal ou substancial, para distinguir, sendo a questão interlocutória suscitada em recurso intercalar [decidido no mesmo acórdão da relação que decide o recurso interposto da decisão final da 1ª instância], ou sendo suscitada no recurso interposto da decisão final da 1ª instância (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2020, processo nº 195/18.7GDMTJ.L1.S1, de 2 de Março de 2017, processo nº 126/15.6PBSTB.E1.S1 e de 29 de Outubro de 2015, processo nº 1584/13.9JAPRT.C1.S1, in www.dgsi.pt).

Dito isto.

c. O arguido, no recurso que interpôs para a Relação de Coimbra do acórdão condenatório do tribunal de júri, submeteu ao conhecimento do tribunal ad quem as seguintes questões:

“(…).

- se se verifica a nulidade da audiência de julgamento, por falta da documentação da mesma audiência de julgamento, o que afectaria todos os actos subsequentes;

- se a decisão do tribunal a quo, no sentido de recusar que o arguido e o seu defensor se reunissem após a leitura e tradução do relatório social violou os seus direitos de defesa;

- se se verifica a prescrição do procedimento criminal, em virtude de os editais e a notificação para julgamento não terem sido traduzidos para a língua ucraniana, não podendo assim a contumácia ter sido declarada;

- se o tribunal estava obrigado a ler no decurso da audiência as declarações para memória futura uma vez que tal foi solicitado pelo arguido;

- se factos provados indicados pelo recorrente devem ser considerados como não provados, e se os factos não provados identificados pelo mesmo deveriam ter sido julgados como provados (impugnação da matéria de facto).

(…)”. [transcrição do acórdão recorrido].

i) A questão submetida pelo arguido a este Supremo Tribunal, do cometimento da nulidade insanável prevista na alínea c) do art. 119º do C. Processo Penal, por no decurso da audiência de julgamento de 11 de Janeiro de 2024, na sequência da junção do relatório social, não lhe ter sido permitido, antes de instado sobre o conteúdo de documento, conferenciar com o Ilustre Mandatário, constitui o objecto do recurso interlocutório – interposto em acta e motivado, posteriormente, na motivação do recurso interposto do acórdão do tribunal de júri –, submetido ao conhecimento da Relação de Coimbra e por esta indeferida no acórdão recorrido.

A parte do acórdão da Relação, que conheceu desta questão, pelas razões sobreditas, traduz-se numa decisão que não conhece, a final, do objecto do processo, razão pela qual, nessa mesma parte, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

ii) A questão submetida pelo arguido a este Supremo Tribunal, do cometimento da nulidade da audiência de julgamento de 31 de Outubro de 2023, por falta de documentação da mesma, e consequente nulidade de todos os actos subsequentes por, segundo depreendemos da argumentação apresentada, não se encontrar gravado um despacho proferido pela Mma. Juíza presidente, deferindo a pretensão do arguido de que fosse nomeado um intérprete que dominasse a língua ucraniana, foi submetida ao conhecimento Relação de Coimbra e por esta indeferida no acórdão recorrido.

A parte do acórdão da Relação, que conheceu desta questão, pelas razões sobreditas, traduz-se numa decisão que não conhece, a final, do objecto do processo, razão pela qual, nessa mesma parte, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

iii) A questão submetida pelo arguido a este Supremo Tribunal, da violação dos direitos de defesa pelo indeferimento, na audiência de julgamento de 21 de Novembro de 2023, da leitura das declarações para memória futura existentes nos autos, e da nulidade do respectivo despacho de indeferimento, por falta de fundamentação, foi submetida ao conhecimento Relação de Coimbra e por esta indeferida no acórdão recorrido.

A parte do acórdão da Relação, que conheceu desta questão, pelas razões sobreditas, traduz-se numa decisão que não conhece, a final, do objecto do processo, razão pela qual, nessa mesma parte, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

iv) A questão submetida pelo arguido a este Supremo Tribunal, da prescrição do procedimento criminal, pela ilegalidade da declaração de contumácia e consequente não interrupção, nem suspensão, do prazo de prescrição, foi submetida ao conhecimento do tribunal de júri e por este indeferida no acórdão condenatório e, nesta decorrência, foi submetida ao conhecimento Relação de Coimbra e por esta indeferida no acórdão recorrido.

O segmento do acórdão da Relação, que conheceu da questão da prescrição do procedimento criminal, pelas razões sobreditas, traduz-se numa decisão que não conhece, a final, do objecto do processo, razão pela qual, nessa mesma parte, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Na sequência da questão da prescrição do procedimento criminal, fundada na ilegal declaração de contumácia e consequente inexistência de causa de suspensão e interrupção do prazo respectivo, invoca o arguido a aplicação pelo Tribunal da Relação de Coimbra de normas interpretadas e aplicadas em violação de princípios constitucionais (conclusão 25ª), quais sejam, as dos arts. 92º, 119º, 120º e 335º do C. Processo Penal, violadoras dos arts. 8º, nº 2 e 32º da Constituição da República Portuguesa.

No corpo da motivação do recurso interposto do acórdão recorrido, alega o arguido, em síntese, que nos termos do disposto no art. 8º, nºs 2 e 4 da Lei Fundamental, conjugado com o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – em especial, o direito do acusado em ser informado, no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, a natureza e a causa da acusação formulada – as especificadas normas do compêndio adjectivo referido, ao não respeitarem o mencionado direito do acusado, desrespeitam o art. 32º da Constituição da República Portuguesa devendo, consequentemente, ser desaplicadas.

No recurso interposto do acórdão do tribunal de júri para o Tribunal da Relação de Coimbra, a propósito da mesma questão – prescrição do procedimento criminal e respctivos fundamentos – formulou o arguido as seguintes conclusões, alusivas à inconstitucionalidade dos arts. 92º, 119º, 120º e 335º do C. Processo Penal:

(…).

31º. O procedimento criminal encontra-se prescrito.

32º. Apesar de se ter mobilizado em contestação a inaplicabilidade das normas dispostas sob os art.º 92, 119, 120, 335 do Código de Processo Penal, por não estarem conformes à Constituição da República Portuguesa, o tribunal nada disse sobre a sua aplicabilidade, pelo que o Acórdão recorrido omite a pronúncia de questão que lhe foi colocada, estando, por isso, o Acórdão recorrido ferido de nulidade, o que expressamente se invoca.

33º. Assim como também não poderá este Venerando Tribunal aplicar tais artigos, pelo menos na interpretação que vem a ser dada nos autos, sob pena de incorrer, também, na violação do art.º 204 da Constituição da República.

(…).

O acórdão do tribunal de júri, a quem a questão havia sido colocada, decidiu-a no sentido da inexistência da prescrição do procedimento criminal estar conforme à Constituição da República Portuguesa, acompanhando a argumentação do acórdão do Tribunal Constitucional nº 547/98, no sentido de que, o art. 92.º, n.º 2, do CPP, em conjugação com o disposto no art. 111.º, n.º 1, al. c), do mesmo Código, interpretado no sentido de que a notificação da acusação deduzida contra o arguido que desconhece a língua portuguesa não carece de tradução escrita pelo intérprete nomeado, não lesa as suas garantias de defesa, constitucionalmente estabelecidas nos arts. 32.º, n.º 1, e 6.º, n.º 3, al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) no Caso Kamasinski (Acórdão de 19-12-89, série A, n.º 168).

Nesta parte, o acórdão recorrido afirmou concordar com a decisão do tribunal de júri, acrescentado outros argumentos, resultantes do art. 3º da Directiva 2010/64/EU. E quanto às conclusões 32º e 33º, reafirmando que o tribunal de júri se havia pronunciado quanto à questão da conformidade constitucional das normas processuais em causa nas conclusões, indeferiu a invocada nulidade por omissão de pronúncia.

Em suma, tendo a questão da inconstitucionalidade das normas dos arts. 92º, 119º, 120º e 335º do C. Processo Penal sido colocada ao tribunal de júri e ao Tribunal da Relação, e desatendida pelas instâncias, porque dependente da questão da prescrição do procedimento criminal, igualmente conhecida e desatendida por estas, a irrecorribilidade desta última questão para o Supremo Tribunal de Justiça, determinada pelas razões supra expostas, prejudica o conhecimento da questão da inconstitucionalidade das referidas normas (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2020, acima identificado).

v) Em conclusão, sendo todas estas questões irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto nos arts. 414º, nº 2 e 420º, nº 1, b), do C. Processo Penal, impõe-se a rejeição do recurso, quanto a elas.

d. Dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça

O arguido submeteu ao conhecimento deste Supremo Tribunal, no recurso interposto, a questão da ausência de intenção de matar e da existência de erro notório na apreciação da prova, ao dar-se como provada aquela intenção (conclusão 26ª).

Já sabemos que, nos termos do disposto no art. 434º do C. Processo Penal, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça se limitam ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo das situações previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do mesmo código.

O presente recurso, como também já vimos, não se enquadra na previsão das alíneas a) e c), referidas, mas na previsão da alínea b) do mesmo número e artigo.

Assim, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão da Relação de Coimbra, só pode visar o reexame da matéria de direito, não podendo ter por fundamento os vícios da decisão, previstos no nº 2 do art. 410º do mesmo código (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Abril de 2024, processo nº 2634/17.5T9LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 9153/21.3T8LSB.L1.S1, de 7 de Dezembro de 2023, processo nº 356/20.9PHLRS.L1.S1, de 8 de Novembro de 2023, processo nº 651/18.7PAMGR.C3.S1, de 1 de Março de 2023, processo nº 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 23 de Março de 2022, processo nº 4/17.4SFPRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt). Isto, naturalmente, sem prejuízo do conhecimento oficioso de tais vícios, quando a correcta decisão de direito a proferir possa ser afectada pela sua existência.

No corpo da motivação do recurso interposto, o arguido densifica a alegação levada à conclusão 26ª, dizendo que as instâncias suportaram, probatoriamente, a intenção com que actuou – o propósito de tirar a vida –, quando entrou no compartimento onde ocorreram as agressões com uma faca com que atingiu duas ou três pessoas, na unanimidade das declarações para memória futura, das testemunhas que as prestaram, quando essa unanimidade não existe, daqui decorrendo a existência de erro notório na apreciação da prova. E continua, afirmando que nenhuma das testemunhas que prestou declarações para memória futura deu uma explicação para o sucedido, excepção feita à testemunha DD que disse que após o EE lhe ter entregue o telemóvel, o arguido deu facadas no CC e depois, no EE, o que demonstra que este lhe tinha subtraído o telemóvel, e corrobora a sua versão de que apenas pretendeu recuperar o telemóvel para poder afastar-se do grupo mafioso que o explorava, tendo perdido o controlo e esfaqueado indiscriminadamente várias pessoas sem intenção de atingir o resultado que se verificou, versão esta claramente mais verosímil do que a aceite pelo tribunal de júri, segundo a qual, teria decidido enfrentar ao acaso, seis indivíduos que conotava com uma máfia.

O erro notório na apreciação da prova (alínea c), do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal) que, como todos os vícios da decisão, só pode evidenciado pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ocorre quando o tribunal valorou a prova contra as regras da experiência comum, contra critérios legalmente fixados ou contra as leges artis, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao homem médio, ao cidadão comum, por ser evidente, grosseiro, ostensivo ou, dizendo de outro modo, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido, mediante a formulação de juízos ilógicos e/ou arbitrários (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 326 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 81).

Suportando-se a argumentação do arguido no valor que subjectivamente atribuí a determinados meios de prova, v.g., as suas declarações e o depoimento da testemunha DD, em divergência com a valoração probatória feita pelo tribunal de júri quanto a esses mesmos meios de prova e ainda a outros – as declarações para memória futura prestadas pelas outras testemunhas –, a questão situa-se, não no âmbito do invocado vício da decisão, mas no princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do C. Processo Penal), matéria subtraída ao conhecimento deste Supremo Tribunal.

Por outro lado, lido o acórdão do tribunal de júri, nele não se detecta a presença de vício decisório.

Em suma, não cabendo a questão suscitada no âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, deve o recurso, nesta parte, ser rejeitado, por não ser admissível.

e. Deste modo, resta conhecer da derradeira questão submetida pelo arguido, a da alteração da qualificação jurídica dos factos praticados.

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Da prática dos factos sob compreensível emoção violenta, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, e da consequente qualificação do crime de homicídio como homicídio privilegiado

1. Alega o arguido – conclusão 27ª – que, nunca tendo negado a prática dos factos, a qualificação jurídica que deles foi feita desconsidera o realmente acontecido, pois actuou sob compreensível emoção violenta, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, pelo que deveria ter sido condenado pela prática de homicídio privilegiado, p. e p. pelo art. 133º do C. Penal.

No corpo da motivação densifica a alegação, afirmando que, com alteração ou não dos factos, é inegável que agiu sob condições psicológicas merecedoras de diversa imputação pois as vítimas e restantes presentes no local dos factos não eram um grupo de amigos que fraternamente se ajudavam, mas elementos de uma rede de exploração de emigrantes de leste, para a construção civil, que os explorava e perseguia para pagarem as dívidas para com ela e por isso, o tribunal de júri, que não atribuiu qualquer credibilidade às suas [do arguido] declarações, sendo certo que afirmou o seu arrependimento, o estado emocional em que se encontrava, na data dos factos e nos dias anteriores, e o medo, passados que estão 20 anos, de que a rede ainda estivesse presente em Portugal, razões pelas quais, não tendo tido intenção de matar ninguém mas de, apenas, recuperar o telemóvel, antes se tendo visto diante de uma situação de vida ou de morte, agiu sob compreensiva emoção violenta, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, justificadora da pretendida alteração da qualificação jurídica.

Vejamos.

O art. 133º do C. Penal, prevendo o crime de homicídio privilegiado, dispõe que, quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam, sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

Trata-se de uma forma atenuada do crime de homicídio previsto no art. 131º do C. Penal, que dele diverge por um especial tipo de culpa, fundado na sensível diminuição da culpa, isto é, as quatro circunstâncias privilegiadoras – a compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero ou o motivo de relevante valor social ou moral – devem provocar, no caso concreto, uma diminuição da culpa do agente (Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 81 e Augusto Silva Dias, Crimes contra a Vida e a Integridade Física, 2ª Edição, revista e actualizada 2007, AAFDL, pág. 37).

Como notam Figueiredo Dias e Nuno Brandão (op. e loc., cit.), os estados de afecto em que se traduzem as circunstâncias privilegiadoras, sendo vividas pelo agente no plano interno, não deixam de radicar em situações exógenas que alteram de modo relevante as normais inibições em causar a morte de outra pessoa e que assim suavizam o desvalor de atitude do agente.

Sendo inquestionável que a verificação, no caso concreto, de qualquer uma das circunstâncias privilegiadoras, tem de estar demonstrada por factos provados, certo é que o arguido suporta a pretensão de ter praticado um crime de homicídio privilegiado, em factos que, visando, segundo cremos, evidenciar uma conduta causada por compreensível emoção violenta, não se mostram provados [antes constam dos factos não provados], independentemente da sua aptidão, ou falta dela, para preencherem a invocada circunstância privilegiadora.

Deste modo, evidente se torna a manifesta improcedência da pretensão deduzida, devendo o recurso, nesta parte, ser rejeitado (art. 420º, nº 1, a) do C. Processo Penal).

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em rejeitar o recurso (art. 420º, nº 1, a) e b) do C. Processo Penal).

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC ((art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa), indo ainda condenado na importância de 3 UC, nos termos do disposto no nº 3 do art. 420º do C. Processo Penal.

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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

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Lisboa, 14 de Novembro de 2024

Vasques Osório (Relator)

Jorge Bravo (1º Adjunto)

João Rato (2º Adjunto)