Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
275/23.7T80ER-8.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO DOS SANTOS NASCIMENTO
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
PRESCRIÇÃO DE CRÉDITOS
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
INCUMPRIMENTO
VENCIMENTO ANTECIPADO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
AMORTIZAÇÃO
JUROS
Data do Acordão: 11/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Da interpretação conjugada da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 6/2022 com o disposto no art.º 637.º, do C. Civil, decorre que, em caso de vencimento antecipado das quotas de capital e juros no âmbito de um contrato de mútuo, devidas nos termos do disposto nos art.ºs 1142.º e 1145.º, do C. Civil, à obrigação do fiador é aplicável o prazo de prescrição de cinco anos, previsto no artigo 310.º alínea e) do Código Civil.

II. Para além do valor inerente à jurisprudência em geral, como conjunto das decisões dos Tribunais, ao nível da fundamentação das decisões judiciais imposta pelo n.º 1, do art.º 205.º, da Constituição da República Portuguesa e recebida pela lei ordinária, in casu, pelo n.º 3, do art.º 8.º, do C. Civil e pelo art.º 154.º, do C. P. Civil, na sua função de interpretação da lei, por aplicação dos critérios estabelecidos pelo art.º 9.º, do C. Civil, o acórdão uniformizador apresenta um valor próprio, que lhe advém do seu regime processual, estabelecido pelos art.ºs 688.º a 695.º, do C. P. Civil e da sua função de uniformização de decisões judiciais futuras, em nome dos valores da certeza e segurança jurídicas.

III. Não tendo ocorrido alteração ou evolução significativa ao nível das relações jurídicas inerentes à espécie contratual em causa e das obrigações por elas constituídas a interpretação consagrada pelo AUJ n.º 6/2022 não pode deixar de ser respeitada, sem prejuízo do eventual desenvolvimento doutrinal e jurisprudencial da matéria que suscite nova discussão e conduza à inflexão da orientação fixada no acórdão Uniformizador,

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. RELATÓRIO.

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhes foi instaurada por “Btl Ireland Acquisitions II Dac” tendo por título executivo duas escrituras públicas em que outorgaram como fiadores, os executados, AA e BB deduziram embargos de executado, pedindo a extinção da execução, além do mais, pela prescrição da obrigação exequenda, nos termos do disposto nas alíneas e) e d), do art.º 310.º, do Código Civil, uma vez que, tendo a exequente considerado vencida a quantia exequenda à data da sentença de declaração de insolvência da mutuária, a 18/11/ 2015, e tendo a execução foi instaurada em 12/01/2023, nesta data já tinha decorrido o respectivo prazo.

A exequente apresentou contestação, pedindo que os embargos fossem declarados improcedentes, além do mais, por ser aplicável à quantia exequenda o prazo de prescrição ordinária, de vinte anos, previsto no art.º 309.º, do C. Civil.

A 1ª instância julgou a exceção improcedente nos seguintes termos:

A embargada alega que, com a declaraçao de insolvência da mutuária (C.I.R.E. 91º), ocorreu o “vencimento imediato” (e perda do benefício do prazo) das obrigaçoes da mutuária – não sendo necessária, nem se encontrando prevista, interpelação dos fiadores (pois estes não se poderiam opôr a tal “vencimento imediato”); por outro lado, com o “vencimento imediato” passou a ser aplicável o prazo ordinário de prescrição, de vinte anos (CC 309º - não se aplicando a regra do A.U.J. 6/22 do S.T.J.) – motivo por que a excepção é julgada improcedente”.

No mais, julgou os embargos parcialmente procedentes, reduzindo a quantia exequenda.

Inconformados, os embargantes apelaram para o Tribunal da Relação, o qual considerando aplicável o prazo de prescrição de cinco anos, previsto na al. e), do art.º 310.º, do C. Civil, julgou procedente a exceção da prescrição e em consequência procedentes os embargos e extinta a execução.

Inconformada, a exequente apresentou recurso de Revista, admitido como Revista Ordinária, pedindo a revogação do acórdão recorrido, formulando para o efeito as seguintes conclusões:

I. O douto Acórdão recorrido revogou a sentença recorrida e substituiu-a por outra que julga os embargos procedentes e absolve os Executados da execução ao conceder provimento ao recurso interposto pelos Executados AA e BB, referindo que: “(…) por aplicação do referido Acórdão nº 6/22, considerando-se o prazo de prescrição de cinco anos, considerando-se a possibilidade da recorrida exigir dos fiadores a satisfação do crédito em 2015, ano em que ocorreu a declaração de insolvência da mutuária, a prescrição completou-se em 2020, já se mostrando prescrito o direito da exequente quando recorreu a juízo, procedendo assim integralmente os embargos e em consequência absolvendo-se os embargantes da execução.”

II. A Recorrente considera que o douto Acórdão proferido não configura uma solução justa e rigorosa na interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e princípios jurídicos competentes.

III. Os Executados AA e BB confessaram-se e constituíram-se fiadores e principais pagadores das dívidas contraídas pela Mutuária CC junto do Banco Mutuante – Caixa Económica Montepio Geral -, decorrentes dos contratos de mútuo com hipoteca fiança, outorgados nos dias 13/12/2004, nos quais lhe concedeu dois empréstimos, nos montantes de € 100.000,00 e € 25.000,00, que aquela se comprometeu a liquidar em 480 prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, pelo prazo de 50 anos.

IV. A declaração de insolvência da Mutuária, a 24/11/2015, determinou o vencimento imediato de todas as restantes prestações acordadas, tendo a Recorrente peticionado o montante da dívida global, em face a resolução dos contratos com base no incumprimento definitivo.

V. A referida resolução deu origem a uma "relação de liquidação" por força do princípio da retroatividade, que intervém em termos relativos (artigo 434.º do Cód. Civil).

VI. Deste modo, os créditos peticionados configuram-se como dívidas (globais) provenientes da "relação de liquidação", correspondente ao valor dos capitais em dívida, à data do incumprimento.

VII. Para Menezes Cordeiro, "a prescrição quinquenal apenas se irá aplicando escalonadamente, na medida do plano de pagamento inicial, pois é este o combinado e que as partes têm como referência; podemos acrescentar que na eventualidade do vencimento antecipado, já não se trata de quotas de amortização" (Cfr. Tratado de Direito Civil, V, pág. 175, 176).

VIII. Também Ana Filipa Antunes, em anotação ao art. 310.º, do Cód. Civil refere que o prazo curto de prescrição se justifica por estarem em causa prestações periódicas, mas "este prazo vale para cada uma das prestações que se vai vencendo e não para a obrigação no seu todo" (Prescrição e Caducidade, pág. 79).

IX. A ratio desta norma, precisamente por prever um prazo curto de prescrição e, nessa medida, compreender as designadas prestações periodicamente renováveis, assenta na circunstância de, através dela, se obviar a que o credor, adiando a exigência do pagamento de prestações de abreviado quantitativo, acumule excessivamente o seu crédito, a tal ponto que torne demasiado onerosa a prestação do devedor.

X. Acontece que, ao contrário das prestações periódicas, às prestações fracionadas aplica-se o disposto no artigo 781.º do Código Civil, isto é, o não pagamento de uma prestação implica o vencimento de todas.

XI. Assim, in casu, em virtude de a Mutuária ter sido declarada insolvente, deu-se o vencimento antecipado das prestações vincendas, podendo, em qualquer momento, o Credor exigir a totalidade da dívida, isto é, tanto as prestações vencidas e não pagas como as prestações vincendas.

XII. Verificado o incumprimento e dando-se o vencimento antecipado das prestações vincendas, o capital em dívida, quer decorram 5 anos (por hipotética aplicação do artigo 310.º do CC), quer decorram 20 anos (por aplicação, como entendemos dever ser, do artigo 309.º do CC), é sempre o mesmo!

XIII. Apenas variam os juros devidos, que, saliente-se, mesmo em caso de eventual acionamento judicial, continuam a vencer-se até efetivo e integral pagamento da dívida.

XIV. Portanto, não faz qualquer sentido, que nesta alínea d) e e) do artigo 310.º do Cód. Civil se incluam as prestações pagas pela Mutuária, cuja obrigação é uma única: o ressarcimento do capital mutuado, acrescido dos respetivos juros.

XV. No caso dos presentes autos, ainda que se considerasse, hipoteticamente, que às prestações se aplicaria a alínea e) do artigo 310.º do Cód. Civil, o que não se concede, com o vencimento antecipado das prestações vincendas, deixamos de ter várias prestações e passamos a ter uma prestação global em dívida.

XVI. Assim, também por esta razão, bem se vê que as alíneas d), e e) do artigo 310.º do Cód. Civil, não podem ser aplicadas ao crédito exequendo.

XVII. É que, no caso, não estamos perante “quotas de amortização do capital pagáveis com os juros” nem “quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”. - Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26/04/2016 (Proc. n.º 525/14.0TBMGR-A.C1), o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 16/03/2017 (Proc. n.º 589/15.0T8VNF-A.G) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10/05/2018 (Proc. n.º 627/16.9T8ABT-A.E1) e os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 08/06/2022 (Proc. n.º 2326/20.8T8LOU-A.P1) e de 24/01/2022 (Proc. n.º 22815/19.6T8PRT-A.P1), todos eles disponíveis em www.dgsi.pt .

XVIII. O Banco Mutuante reclamou créditos, no valor global de € 124.088,25, no âmbito do processo de insolvência da Mutuária, que correu termos no processo melhor identificado supra.

XIX. No âmbito do referido processo foi apreendido o imóvel sobre o qual incidia a garantia de hipoteca, foi o mesmo vendido e o Banco Mutuante pago pelo valor da venda do referido imóvel.

XX. Foram os autos encerrados, após o rateio final, por sentença transitada em julgado em 18 de julho de 2022.

XXI. A Recorrida deu entrada da execução em 12 de janeiro de 2023.

XXII. Entre 18 de julho de 2022 e 12 de janeiro de 2023 não decorreram 5 anos.

XXIII. Dispõe o artigo 323.º do Código Civil que “(…) A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.”

XXIV. Tendo a Recorrente intentado o presente requerimento executivo ainda antes do decurso do prazo de 5 anos, considera-se interrompida a prescrição - Veja-se a este título o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 26 de novembro de 2020 (Proc. n.º 3325/19.8T8LSB-A.L1-8), disponível em www.dgsi.pt .

XXV. Por tudo quanto foi exposto, bem andou o Tribunal da Primeira Instância ao afastar a aplicação da regra do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/22 do Supremo Tribunal de Justiça ao caso sub judice.

XXVI. Face a toda a factualidade exposta, está a Recorrente convicta de que Vossas Excelências, subsumindo a matéria vertida nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de dar provimento ao recurso apresentado e negar o douto Acórdão em crise.

XXVII. Razão pela qual deverá o Acórdão ser revogado e substituído por outro que faça correta interpretação e aplicação do direito.


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Os Recorridos contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão Recorrido.

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2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.

As instâncias julgaram provados os seguintes factos:

1 - Em 13-XII-04 CC, “C.E.M.G.” e embargantes outorgaram a escritura pública de “Compra e Venda, Mutuo com Hipoteca e Fiança” junta a fls 45 a 52 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).

2 - Em 13-XII-04 CC, “C.E.M.G.” e embargantes outorgaram a escritura pública de “Mútuo com Hipoteca e Fiança” junta a fls 58v a 64 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).

3 - Em 29-XII-10 CC, “C.E.M.G.” e embargantes outorgaram o “ADICIONAL” junto a fls 53-54 (cujo teor se dá aqui por reproduzido), e o “ACORDO” junto a fls 65-66 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).

4 - Em 26-III-11 CC, “C.E.M.G.” e embargantes outorgaram o “ADICIONAL” junto a fls 66v-67 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).

5 - Em 26-III-12 CC, “C.E.M.G.” e embargantes outorgaram o “ADICIONAL” junto a fls 55-56 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).

6 - Em 18-XI-15 foi declarada a insolvência de CC (fls 36) – tendo a “CEMG” reclamado créditos no valor total de 124.088,25€ (fls 40 a 43), graduados por sentença de 20-I-18 (fls 72).

7 - A “CEMG” recebeu 75.656,00€ do produto da venda do imóvel (fls 76v-77), e 7.281,11€ no rateio final (fls 72v).

8 – Em 29-III-22 ‘CEMG’ e exequente celebraram a “CESSÃO DE CRÉDITOS” junta com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – em cujo anexo se indicam os montantes de “35.504” e “25.928”.

9 - Em 29-III-22 os embargantes receberam as cartas juntas a fls 10 a 13 (cujos teores se dão aqui por reproduzidos).

10 - Em 21-X-22 o Advogado da exequente enviou aos embargantes as cartas juntas a fls 14 a 16, e 30 a 35 (cujos teores se dão aqui por reproduzidos) – referindo um valor em dívida de 37.487,86€ (sendo 24.589,11€ de capital), e 35.744,51€ (sendo 34.763,59€ de capital).

B) O DIREITO APLICÁVEL.

O conhecimento deste Supremo Tribunal, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto da revista, é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2, 639.º 1 e 2, do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso), observando, em especial, o estabelecido nos art.ºs 682.º a 684.º, do C. P. Civil.

Atentas as conclusões da revista, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Supremo Tribunal pela Recorrente consiste, tão só, em saber se é aplicável às obrigações exequendas o prazo de prescrição de cinco anos, estabelecido pela al. e), do art.º 310.º, do C. Civil, como decidiu o Acórdão da Relação, ou se lhes é aplicável o prazo ordinário de prescrição, de vinte anos, estabelecido no art.º 309.º, do C. Civil, como pretende a Recorrente.

Conhecendo,

Na apreciação desta questão única da Revista importa, antes de mais, notar que, ao contrário do expendido nas conclusões da Recorrente, como resulta do relatório supra e como o Acórdão recorrido também salientou ao referir que “A sentença recorrida não se pronunciou, juridicamente, sobre a questão da prescrição, limitando-se a reproduzir a alegação da embargante, sem sequer mencionar que concordava com ela e porquê.”, a 1ª instância não declarou inaplicável às obrigações exequendas o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2022 deste Supremo Tribunal de Justiça, limitando-se a relatar os termos da contestação da embargada, sob a expressão “A embargada alega que”, à qual acrescentou a expressão “motivo por que a excepção é julgada improcedente”.

Assim delimitado o objeto da Revista e os termos em que a questão que o integra foi decidida pelas instâncias, importa agora aquilatar dos concretos termos em que o objeto da Revista deve ser decidido relativamente ao prazo de prescrição aplicável às obrigações exequendas.

Como é pacífico nos autos, as obrigações exequendas correspondem, grosso modo, às prestações periódicas de restituição e remuneração de capital no âmbito de um contrato de mútuo, devidas nos termos do disposto nos art.ºs 1142.º e 1145.º, do C. Civil, pelas quais os embargantes Recorridos respondem por via de prestação de fiança, nos termos do disposto no art.º 634.º, do C. Civil.

Como determina o art.º 637.º, do C. Civil, sob a epígrafe “Meios de defesa do fiador “, em geral, para “Além dos meios de defesa que lhe são próprios, o fiador tem o direito de opor ao credor aqueles que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador”.

Em especial, no que respeita dedução da exceção perentória da prescrição a defesa do fiador sofre apenas as derrogações previstas no art.º 636.º, do C. Civil, inaplicáveis ao caso sub judice.

Os Embargantes Recorridos podiam, pois, deduzir a exceção da prescrição das obrigações exequendas nos termos em que o fizeram, não lhe sendo oponível qualquer limitação em relação aos meios de defesa dos devedores afiançados.

Relativamente ao prazo de prescrição aplicável às quotas de amortização de capital e pagamento de juros de capital mutuado, no seguimento do que já vinha sendo a sua jurisprudência uniforme - constituída, entre outros, pelos acórdãos de 18/10/20181 (no seguimento dos acórdãos de 4/5/1993, publicado na Coletânea de Jurisprudência (STJ), Ano I, tomo 2, pág. 82, de 29/9/2016, publicado na Coletânea de Jurisprudência (STJ), Ano XXIV, tomo 3, pág. 63) e de 27/3/2014, publicado em dgsi.pt) e decidiram mais recentemente, os acórdãos de 10/9/20202, 12/11/20203, 14/01/20214, de 26/01/20215, 9/02/20216, 28/04/20217, 6/07/20218 e de 14/0720219 (todos publicados em dgsi.pt.) - este Supremo Tribunal de Justiça, proferiu o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2022, publicado no Diário da República, I série, n.º 184, de 22/9/2022, fixando jurisprudência nos seguintes termos:

I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas”.

Pelos seus próprios termos, este acórdão uniformizador decide que (1) o prazo especial de prescrição, de cinco anos, é aplicável às quotas de amortização de capital e pagamento de juros e que (2) também é aplicável à totalidade da obrigação em caso de vencimento antecipado.

A ratio legis do assim decidido radica, essencialmente, na constatação de que o prazo mais curto estabelecido no art.º 310.º, do C. Civil, relativamente ao prazo ordinário da prescrição de vinte anos, estabelecido no art.º 309.º, do C. Civil, se situa genericamente na necessidade base de segurança e certeza do comércio jurídico - que urge garantir em face da sua celeridade, não deixando no limbo do esquecimento obrigações cujo cumprimento se pretende célere, sob pena de grave prejuízo para o interesse público do comércio em geral, o qual sai prejudicado pela inércia do credor em receber a sua prestação, que não acautela valor digno de proteção legal - e em especial na defesa do devedor cuja ruina se pretende evitar pela acumulação de dívidas10.

Ora, da interpretação harmonicamente conjugada da jurisprudência fixada pelo acórdão uniformizador n.º 6/2022 com o disposto no art.º 637.º, do C. Civil, decorre que em caso de vencimento antecipado das referidas quotas de capital e juros (3) à obrigação do fiador é aplicável idêntico prazo de prescrição, a saber, o prazo de prescrição de cinco anos.

Como decorre dos factos sob os n.ºs 6 a 10 da matéria de facto fixada pelas instâncias em conjugação com o disposto no art.º 91.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Dec. Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, com a declaração da insolvência da mutuária em 18/11/2015 venceram-se de imediato todas as quotas acordadas, valor que a embargada ora Recorrente reclamou no âmbito da insolvência e que, não tendo aí obtido pleno pagamento, determinou a presente execução contra os fiadores, para haver deles o remanescente desse mesmo valor.

Esta factualidade reúne em si mesma as três premissas acima referidas, afinal recondutiveis a duas, a saber, 1) o prazo de prescrição aplicável às quotas antecipadamente vencidas é de cinco anos, nos termos da al. e), do art.º 310.º, do C. Civil e 2) esse mesmo prazo de prescrição pode ser invocado pelo fiador contra o qual é requerida execução para obtenção de pagamento do remanescente dessa totalidade.

E tais premissas conduzem necessariamente à conclusão de que, por força da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 6/2022 e do disposto no n.º 1, do art.º 306.º, do C. Civil, tendo decorrido mais de cinco anos entre o vencimento antecipado em 18/11/2015 e a data de entrada do requerimento de execução em 12/01/2023, as obrigações exequendas se encontram extintas por prescrição, procedendo os embargos, com a consequente extinção da execução.

Acresce que, como também aduzido no acórdão recorrido, esta Revista não contém quaisquer especificidades que permitam a este Supremo Tribunal afastar a sua decisão da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 6/2022.

Em face do estado jurisprudencial desta questão após a prolação e publicação do Acórdão n.º 6/2022 não vislumbramos fundamento para a persistência e/ou renovação da questão da aplicação do prazo geral do art.º 309.º, do C. Civil, ao crédito exequendo, uma vez que a apelante não invoca argumentação nova, que cumpra conhecer e nesse conhecimento encerrasse a virtualidade de decisão que divergisse da Jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 6/2022.

Com efeito, para além do valor inerente à jurisprudência em geral, como conjunto das decisões dos Tribunais, ao nível da fundamentação das decisões judiciais imposta pelo n.º 1, do art.º 205.º, da Constituição da República Portuguesa e recebida pela lei ordinária, in casu, pelo n.º 3, do art.º 8.º, do C. Civil e pelo art.º 154.º, do C. P. Civil, na sua função de interpretação da lei, por aplicação dos critérios estabelecidos pelo art.º 9.º, do C. Civil, o acórdão uniformizador apresenta um valor próprio, que lhe advém do seu regime processual, estabelecido pelos art.ºs 688.º a 695.º, do C. P. Civil e da sua função de uniformização de decisões judiciais futuras, em nome dos valores da certeza e segurança jurídicas, necessários ao regular funcionamento do comércio jurídico.

Relativamente à primeira asserção, do valor interpretativo da jurisprudência, trata-se de uma função que pacificamente lhe é reconhecida pela doutrina e de que os tribunais fazem uso comum na formação das suas decisões e que, em conjunto com os desenvolvimentos doutrinais sobre a mesma matéria, fazem parte das legis artis das decisões judiciais, ainda que, nessa função interpretativa, lhe não seja reconhecida a natureza jurídica de fonte de direito.

Como lapidarmente escreve Baptista Machado11 “…na nossa ordem jurídica …as decisões dos tribunais só tem força vinculativa nos limites do “caso julgado” …Isto Não significa, porém, que entre nós as decisões dos tribunais, sobretudo os acórdãos dos tribunais superiores, não tenham um peso efetivo na atividade jurisdicional posterior”.

Reconhecendo esse mesmo valor interpretativo à jurisprudência também Meneses Cordeiro12, com o poder de análise que caracteriza as suas obras, a estratifica em ordem ascendente, como “Jurisprudência ilustrativa” “jurisprudência exemplar “ e “Jurisprudência constante”, concluindo até que esta última “…funciona de facto, como fonte de Direito”.

Quanto à segunda asserção, relativa à existência de acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) e ao seu valor para as decisões judicias posteriores, este Supremo Tribunal tem decidido uniformemente que a interpretação consagrada pelos AUJ não pode deixar de ser respeitada, sem prejuízo do eventual desenvolvimento doutrinal e jurisprudencial da matéria que suscite nova discussão e conduza à inflexão da orientação fixada nesses acórdãos Uniformizadores.

Esta é a valoração que vem sendo feita uniformemente por este Supremo Tribunal de Justiça, neste sentido se tendo pronunciado, entre outros, os acórdãos de11/09/201413, 12/05/201614 - em cujo sumário se exara que os AUJ “…criam um precedente qualificado de carácter persuasivo, a desconsiderar apenas com fundamento em fortes razões ou especiais circunstâncias que não tenham sido suficientemente ponderadas” – 24/05/201615, 04/02/2020, 10/11/202016 - que decidiu, além do mais que a figura processual dos AUJ “…não é violadora do princípio constitucional da separação de poderes…” - 31/01/202317, que lhes atribui “…uma força de persuasão qualificada” e de 14/03/202318, que os qualifica como “… precedente judiciário qualificado, dotado de especial força de persuasão…”.

Esta jurisprudência sobre o valor interpretativo qualificado dos AUJ corresponde, aliás, ao desenvolvimento da doutrina sobre a matéria, a qual, partindo da comparação com a força obrigatória geral que assistia aos Assentos, antes previstos no art.º 2.º, do C. Civil, para denegar aos AUJ essa mesma força, lhes reconhece, todavia, um valor acrescido para as decisões judiciais posteriores.

Para Meneses Cordeiro19, “A jurisprudência formalizada como “uniformizada” à formulação de normas jurídicas, ainda que processualmente enfraquecidas. Podemos considerá-la como fonte de Direito”.

Abrantes Geraldes20 depois de elencar as normas do C. P. Civil que conferem aos AUJ o valor de jurisprudência com força especial expende que “Mesmo sem valor vinculativo, a jurisprudência uniformizadora deve ser acatada pelos tribunais inferiores e até pelo próprio STJ em recursos posteriores, enquanto se mantiveram os pressupostos que a ela conduziram em determinado contexto histórico”.

Também Lopes do Rego21, depois de se reportar ao valor da Jurisprudência em geral – “...temos como evidente que as correntes jurisprudenciais formadas no âmbito dos Tribunais Supremos valem por si próprias, pela própria natureza das coisas”, independentemente de um texto legal lhes conferir uma especifica e determinada força vinculativa em geral” – “por maioria de razão” reconhece força vinculativa especial às decisões que “…tenham precisamente como objetivo prevenir ou sanar conflitos de jurisprudência

Atentas, pois, a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no caso sub judice nem a decisão de primeira instância, que se limitou a acolher laconicamente a pretensão de inaplicabilidade do AUJ n.º 6/2022, nem a pretensão da Revista em si mesma, se estruturam em argumentação nova que nos permita reconsiderar a interpretação estabelecida por este AUJ n.º 6//2022 relativamente ao prazo de prescrição aplicável em caso de vencimento antecipada das quotas de restituição e remuneração de capital.

Não tendo ocorrido alteração ou evolução significativa ao nível das relações jurídicas inerentes à espécie contratual em causa e das obrigações por elas constituídas a interpretação consagrada pelo AUJ n.º 6/2022 não pode, pois, deixar de ser respeitada, sem prejuízo do eventual desenvolvimento doutrinal e jurisprudencial da matéria que suscite nova discussão e conduza à inflexão da orientação fixada no acórdão Uniformizador, como também decidido, entre outros, pelos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 28/09/202222,13/10/202223 29/11/2022 24, 29/2/202425 e de 29/5/202426.

A Revista não pode, pois, deixar de ser negada, subsistindo o acórdão recorrido.

3. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a Revista improcedente, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Orlando Santos Nascimento (relator)

Isabel Salgado

Emídio Francisco Santos

______

1. Relator: Olindo Geraldes.

2. Relator: Rijo Ferreira.

3. Relatora: Maria do Rosário Morgado.

4. Relator: Tibério Nunes da Silva.

5. Relatora: Maria João Vaz Tomé

6. Relator: Fernando Samões.

7. Relatora: Graça Amaral.

8. Relatora: Graça Amaral.

9. Relator: Ilídio Sacarrão Martins.

10. Cfr, v. g., Prof. Vaz Serra, BMJ 106, pág. 119; Prof. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1974, pág. 445; Júlio Gomes, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica, pág. 755; Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, pág.79.

11. “Introdução ao Direto e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1996, pág. 162.

12. “Tratado de Direito Civil”, Livro I, Almedina 2017, págs. 616-618.

13. P.º 3871/12.4TBVFR-A.P1.S1 (Relator: Bettencourt de Faria)

14. P.º 982/10.4TBPTL.G1-A.S1 (Relator: Abrantes Geraldes)

15. P.º 3374/07.9TBGMR-C.G2.S1 (Relator: Nuno Cameira)

16. Respetivamente, P.º 306/15.4T8AVR-A.P1.S1 (Relator: Acácio das Neves) e P.º 17264/15.8T8SNT-C.L2.S1 ( Relatora: Graça Amaral)

17. P.º 22640/18.1T8LSB.L1.S1-B (Relatora: Maria Clara Sottomayor)

18. P.º 291/17.8T8BGC.G2.S1 (Relatora: Maria João Vaz Tomé)

19. Ob. e loc. cit.

20. Recurso em Processo Civil, 1922, págs. 540-541

21. A Uniformização da Jurisprudência no Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 20.

22. P.º 627/20.4T8SNT-A.L1.S1 (Relator: Luís Espírito Santo)

23. P.º 2213/20.0T8STB-B.E1.S1 (Relator: Rijo Ferreira)

24. P.º 12754/19.6T8SNT-A.L1.S1 (Relatora: Maria dos Prazeres Beleza)

25. P.º 1315/21.0T8VIS-A.C2.S1 (Relatora: Ana Paula Lobo)

26. P.º 592/22.3T8PRT-A.P2.S1 (Relator: Ricardo Costa)