Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELENA MONIZ | ||
Descritores: | ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA INSOLVÊNCIA INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL PRINCÍPIO DA ADESÃO PROCESSO PENAL | ||
Data do Acordão: | 09/26/2018 | ||
Votação: | MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC | ||
Referência de Publicação: | DR, I SÉRIE, 209, 30.10.2018, P. 5116-5127 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Decisão: | FIXADA JURISPRUDÊNCIA | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL – INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS POR CRIME / RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME. DIREITO PROCESSUAL PENAL – SUJEITOS DO PROCESSO / PARTES CIVIS – JULGAMENTO / SENTENÇA / DECISÃO SOBRE O PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL. | ||
Doutrina: | - Alexandre Soveral Martins, Um curso de direito da insolvência, 2.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2016, p. 151 a 153; - António Pereira de Almeida, Efeitos do processo de insolvência nas ações declarativas, Revista de Direito Comercial, 2017, in www.revistadedireitocomercial.com, p. 137 e ss. e 149; - Artur Dionísio de Oliveira, Os efeitos externos da insolvência, in https://elearning.cej.mj.pt/mod/resource/view.php?id=3624, p. 13, Julgar, n.º 9; - Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2018, p. 196, 198 a 201, 575 e 576; - Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, t. I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2/§ 10 e ss e 14/ § 14 e ss, p. 15 e ss e 387 e ss.; - Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. I, Lisboa: UCP, 2017, p. 139-140; - Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., 2010, Coimbra: Coimbra Editora, p. 256-7; - Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª Edição, Lisboa: Quid Juris, 2013, p. 919; - Maria José Capelo e Nuno Brandão, A eficácia probatória das sentenças penais e das decisões finais contra-ordenacionais no âmbito do processo civil, RLJ, n.º 4006, p. 35 e 37; - Paula Ribeiro de Faria, Algumas considerações sobre a reparação do dano em processo de adesão, Direito e Justiça, vol. XIX, 2005, Tomo I, p. 15 e ss.; - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição, Lisboa: UCP, 2011, art. 74.º/nm. 7, p. 236 ; art.377.º/ nm. 2, p. 980; - Ribeiro de Faria, Indemnização por perdas e danos arbitrada em processo penal — o chamado processo de adesão, 1978, Coimbra: Almedina, p. 121, 130 e 131. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 129.º. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 71.º, 72.º, 84.º E 377.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 3/2002, IN DR, 1.ª SÉRIE-A, DE 05-03-2002, P. 1829 E SS.; - ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 1/2014, IN DR, 1.ª SÉRIE-A, DE 25-02-2014, P. 1642 E SS.. -*- ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: - ACÓRDÃO N.º 269/97, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 320/2001, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 324/2013. | ||
Sumário : |
«A insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal». | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 100/12.4EALSB.G1-A.S1
Recurso extraordinário de fixação de jurisprudência Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
I 1. No âmbito do processo comum singular n.º 100/12.4EALSB, que correu os seus termos nos Tribunal Judicial da Comarca de ... (..., Instância Local, secção criminal, Juiz 2), a demandante civil AA (melhor identificada nos autos) veio interpor o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos arts. 437.º, n.º 2 e 438.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP), com fundamento em oposição entre o acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 09.01.2017, proferido no âmbito do processo acima referido, e o acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 30.09.2014, prolatado no âmbito do processo n.º 344/08.3GAOLH.E1. Em síntese, alega que os acórdãos em confronto estão em oposição sobre a mesma questão de direito relativa à extinção (ou não) por inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil enxertado em um processo penal quando tenha ocorrido a declaração de insolvência da demandada. 2. Em conferência, por acórdão de 17.05.2017, foi decidido que o recurso devia prosseguir por se verificar oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, em situações factuais idênticas, e no domínio da mesma legislação. 3. Após o cumprimento do disposto no art. 442.º, n.º 1, do CPP, o recorrente e o Ministério Público apresentaram as alegações. 3.1. O recorrente concluiu as suas alegações nos seguintes termos: «A. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, não se aplica ao pedido de indemnização civil enxertado no processo penal. B. Efetivamente, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014 apenas se aplica às ações que se destinem ao reconhecimento de um crédito derivado de uma relação pré-existente, sendo que, no âmbito de pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, o que está em causa é o apuramento de responsabilidade civil fundada na prática de crime. C. Pelo que, até que haja uma sentença transitada em julgado que assim o determine, não tem o demandante qualquer crédito sobre o demandado insolvente, pois a responsabilidade civil ainda não foi apurada, nascendo apenas o crédito com o trânsito em julgado da decisão judicial condenatória. D. Ademais, o artigo 71.º do Código de Processo Penal consagra o princípio da adesão, que obriga, salvo nos casos em que expressamente o admita, à dedução do pedido de indemnização civil fundado em crime no próprio processo-crime. E. Tal deve-se porque revela-se fundamental para o apuramento de responsabilidade civil o aproveitamento da prova produzida no âmbito do crime, pois os factos que fundamentos o pedido de indemnização civil e o crime são os mesmos. F. Igualmente razões de economia e celeridade processual fundamentam esta decisão. G. Bem como a necessidade de garantir a aplicabilidade de todo o regime tendente ao apuramento da responsabilidade criminal, bem como da responsabilidade civil conexa com a mesma. H. Assim, temos que concluir que o pedido de indemnização civil fundado na prática de crime deve ser deduzido no processo penal respetivo. I. Apenas após sentença transitada em julgado que decida, não só a responsabilidade criminal, mas também a responsabilidade civil é que passará a demandante a ter um crédito sobre a demandada / insolvente. J. E aí, querendo reclamar o seu crédito, passar-se-á a aplicar o artigo 90.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, e, terá que o fazer na pendência do processo de insolvência, na pendência deste. K. Pelo que razão nenhuma haverá para, nestes casos, decretar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, o que impediria o conhecimento do pedido de indemnização civil. L. Pedido de indemnização cujo crédito que daí resulte poderá ser reclamado no processo de insolvência, e mesmo após este ser encerrado. M. Pois, mesmo no caso da exoneração do passivo restante, este crédito não se extingue, ao abrigo do artigo 245.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas. N. E, nos restantes regimes de insolvência, pode o demandante, mesmo após o encerramento, e dentro do prazo prescricional, fazer valer o seu direito reconhecimento pela sentença judicial condenatória. O. Pelo que aqui não se pode considerar existir uma situação de inutilidade superveniente da lide. P. Assim, por tudo o exposto, o conceito de ação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014 é a ação declarativa em que o autor pretende ver o reconhecimento de determinado crédito fundado em relação pré-existente, não aplicando ao pedido de indemnização civil enxertado no processo penal, por se fundar na prática de crime. Q. Termos em que, salvo melhor opinião, deve ser fixada jurisprudência nos seguintes termos: 1 - O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014 não tem aplicabilidade no pedido de indemnização civil fundado na prática de crime deduzido no processo penal, ao abrigo do artigo 71.º do Código de Processo Penal. 2 - O pedido de indemnização civil deduzido no processo penal visa o apuramento de eventual responsabilidade civil, pelo que, apenas existirá um crédito após o trânsito em julgado de sentença judicial condenatória. 3 - Não se tratando de um crédito, mas sim de apuramento de eventual responsabilidade civil, mesmo em caso de insolvência do arguido/demandado, continua a ser o processo penal o processo próprio para conhecer do pedido de indemnização civil, não havendo lugar à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide. 4 - Sendo o arguido/demandado condenado no pedido de indemnização civil formulado no processo penal, e estando o arguido/demandado insolvente, então aí deverá o demandante exercer o seu direito no processo de insolvência, não ficando assim prejudicado o princípio da igualdade de credores, pelo qual o mesmo se rege.» 3.2. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta veio igualmente apresentar alegações que sintetizou do seguinte modo: « - Embora o AUJ n.º 1/2014 tenha versado sobre situação diferente da que está em causa no presente recurso, e reconheçamos a justeza e as vantagens do processo de adesão, radicado no interesse processual (interesse em agir) do demandante no âmbito do processo penal, entendemos que a jurisprudência uniformizada no AUJ n.º 1/2014 tem aplicação ao pedido cível deduzido no processo penal. - Conforme resulta do artigo 1.º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista no plano de insolvência, baseado na liquidação do património do devedor insolvente e na repartição pelos credores do produto obtido. - Em conformidade com a natureza e finalidade do processo de insolvência, nos termos do artigo 90.º do CIRE os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos de acordo com os preceitos do mesmo código durante a pendência do processo de insolvência. - O carácter universal e pleno da reclamação de créditos determina uma extensão da competência material do Tribunal da insolvência. - A decisão respeitante ao pedido de indemnização cível no processo penal apenas produz efeitos interpartes; não exclui a necessidade de o demandante ter de reclamar o seu crédito no processo de insolvência e sujeitar‑se à possibilidade deste vir a ser impugnado no processo de insolvência, e de aí ter de fazer toda a prova respeitante à sua existência e conteúdo. - Destas circunstâncias resulta a inexistência da continuidade de interesse processual (interesse em agir) do demandante da acção cível no processo de adesão, pela falta de necessidade justificada, razoável e fundada de lançar mão do processo ou de fazê‑lo prosseguir. - Ou seja, a verificação, na pendência do processo de adesão, de uma decisão, transitada em julgado, que tenha declarado a insolvência do demandado, determina a perda do interesse processual (interesse em agir) do demandante na acção cível, uma vez que este pode obter, no processo de insolvência o mesmo efeito pretendido, e sem a inconsistência de uma decisão apenas válida interpartes. Desta circunstância resulta a inutilidade superveniente da lide, causa determinante da extinção da instância [em nota no original — nota 17: Cf. o artigo 277.º, alínea e) do CPC.]. - No caso em apreço, estão presentes as mesmas razões que, na sua essência, fundamentaram o sentido da jurisprudência uniformizada pelo acórdão n.º 1/2014, nada impedindo a sua aplicação no âmbito do processo penal.»
II 1. A decisão, tomada na secção criminal por acórdão de 17.05.2017, sobre a oposição de julgados, não vincula o pleno das secções criminais. Por isso devemos reapreciar a questão. 2.1. No presente caso, o acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Guimarães, foi proferido a 09.01.2017 e foi notificado ao Ministério Público, por termo nos autos, a 11.01.2017, e por carta registada aos restantes sujeitos processuais a 10.01.2017; o recurso foi interposto através de requerimento por carta registada a 22.02.2017. Entende-se, pois, que se encontra cumprido o prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido, conforme o disposto no art. 438.º, n.º 1, do CPP. O acórdão fundamento do Tribunal da Relação de Évora foi proferido a 30.09.2014. Considera-se tempestivo o recurso interposto. Ambos os acórdãos proferem decisões ao abrigo do disposto no Código de Processo Penal, maxime nos arts. 71.º e ss, no Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, em particular os arts. 1.º (na versão anterior ao Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30.06), 90.º, 128.º (na versão anterior ao Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30.06), 146.º e 245.º, e no Código de Processo Civil, no art. 277.º, al. e) (correspondente ao art. 287.º, al. e), na versão anterior a 2013). 2.2. Aquando da prolação do acórdão preliminar foi ainda suscitada a questão da competência do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça para apreciar o presente recurso. Ora, - sabendo que os acórdãos em confronto foram decisões integradas no âmbito de processo penal, - sabendo que os pedidos de indemnização civil foram apresentados com base em responsabilidade civil extracontratual baseada na prática de um crime, - sabendo que a questão em discussão é a relativa à problemática da análise da inutilidade superveniente da lide de pedido de indemnização civil enxertado no processo penal, - sabendo que constitui competência do plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria penal, uniformizar jurisprudência [cf. art. 11.º, n.º 3, al. c), do CPP], - sabendo que o recurso de fixação de jurisprudência (previsto nos arts. 437.º e ss, do CPP) deve ser interposto de decisões prolatadas no âmbito de um processo penal, isto é, decisões onde a partir da matéria de facto provada foi (ou não) aplicada uma pena ou uma medida de segurança (cf. art. 2.º, do CPP), - sabendo que, em princípio, no processo penal “se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa” (cf. art. 7.º, n.º 1, do CPP, - e sabendo que a uniformização de jurisprudência no âmbito do processo civil apenas pode ter lugar quando existam acórdãos contraditórios, prolatados no âmbito do processo civil, e relativos a uma questão fundamental de direito civil, consideramos ser este o Tribunal competente. Na verdade, não iremos analisar uma mera questão jurídico-processual quanto ao pedido de indemnização civil, ou quanto à inutilidade superveniente da lide civil, mas iremos proceder a uma análise da validade de uma inutilidade superveniente da lide decorrente das regras previstas no Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante CIRE) quanto a um caso muito particular: o pedido de indemnização civil decorrente da prática de um crime que correu os seus termos enxertado no processo penal, ou seja, de acordo com as regras deste último. 2.3. Resta ainda referir que o acórdão n.º 1/2014, deste Supremo Tribunal de Justiça, constitui um acórdão de uniformização de jurisprudência. Nos termos do art. 688.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante CPC), não se admite um recurso extraordinário para fixação de jurisprudência quando o acórdão recorrido seguiu a jurisprudência uniformizada. E também nos termos do art. 437.º, n.º 2, última parte, do CPP, o recurso de fixação de jurisprudência no âmbito do processo penal não é admissível se a decisão “estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça”. Porém, a jurisprudência fixada no acórdão citado refere-se a um caso de inutilidade superveniente da lide quanto a uma ação declarativa que visava o reconhecimento de direitos laborais (créditos salariais, direitos indemnizatórios do trabalhador) decorrentes do contrato de trabalho, após ter sido declarada a insolvência da entidade empregadora (devedor). Nunca naquela fixação foi referida a situação particular aqui em discussão relativa ao pedido civil deduzido em processo-crime, nem sequer foi analisada a problemática da possibilidade (ou não) de o juiz da insolvência poder analisar o crime e os seus elementos típicos, nem mesmo se analisou a possibilidade (ou não) de declaração da inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido civil, pese embora o processo penal tenha que prosseguir até final, ainda que tenha sido decretada a insolvência da demandada. A tentativa de aplicação da uniformização da jurisprudência referida a esta situação concreta constituiria uma adaptação a uma problemática muito específica como a debatida nos presentes autos, sem que esta mesma problemática sequer tivesse sido aflorada naquela decisão. Se é certo que a indemnização de perdas e danos emergentes do crime é regulada pela lei civil (cf. art. 129.º, do Código Penal), o mesmo não podemos dizer quanto às regras adjetivas, cujas especificidades estão consagradas no Código de Processo Penal, que desde logo impõem que as deduções em separado sejam apenas as que se encontram previstas no art. 72.º, daquele diploma. Ora, na situação resolvida na fixação de jurisprudência citada, uma vez decretada a inutilidade superveniente da lide ocorre uma extinção da instância e todo o processado termina, sem que permaneça uma outra parte cujo processado haja de prosseguir; contrariamente ao que sucede no caso agora em discussão em que, a considerarmos a possibilidade de extinção da instância quanto ao pedido de indemnização civil, sobraria ainda todo o processado penal relativo ao crime pelo que, a aplicar aquela uniformização ir-se-ia, necessariamente, determinar, em oposição ao legalmente estabelecido, uma separação numa estrutura processual montada sobre uma ideia de adesão. Assim, porque a problemática subjacente aos acórdãos agora em confronto nem sequer foi aflorada no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014, não está preenchido o requisito de inadmissibilidade deste recurso (previsto no art. 437.º, n.º 2, in fine, do CPP), pelo que consideramos não ter razão o Ministério Público do Tribunal da Relação de Guimarães quando considerou que o recurso não preenchia os requisitos para a sua admissibilidade[1]. Por fim, deve ainda referir-se que o acórdão de uniformização de jurisprudência prolatado ao abrigo do disposto nos arts. 688.º e ss, do CPC, não tem a mesma força vinculativa da decorrente de um acórdão de fixação de jurisprudência prolatado no âmbito do processo penal, caso em que “[a] decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão” [art. 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP) (itálico nosso) sem paralelo no CPC]. Precisemos, agora, qual a questão em discussão. 2.4. A questão de direito aqui relevante é a de saber se tendo sido a demandada, em pedido de indemnização civil fundado na prática do crime e enxertado na ação penal, declarada insolvente, por decisão transitada em julgado, deve (ou não) ser declarada a inutilidade superveniente da lide quanto àquele pedido enxertado naquela outra ação? Em situação aparentemente semelhante, o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014[2] deliberou: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.” 2.4.1. Perante a legislação vigente e este acórdão de uniformização de jurisprudência, o acórdão recorrido decidiu nos seguintes termos: «Vejamos, então, se a declaração de insolvência da arguida BB determina a extinção da instância civil por inutilidade superveniente da lide nos termos do artigo 287.º, e) do Código de Processo Civil, como decidido pelo tribunal a quo. A inutilidade superveniente da lide ocorre quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não pode ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o escopo visado com a ação foi atingido por outro meio. Ora, no caso sub judice, resulta dos autos que a arguida/demandada BB, por sentença transitada em julgado no dia 31 de Julho de 2013, na sequência de apresentação, foi declarada insolvente. Em causa está, então, o alcance dos efeitos externos da sentença, transitada em julgado, de declaração de insolvência da demandada BB nos pedidos de indemnização cível deduzidos nos presentes autos. Como decorre do art.1.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, dispondo o art.90º do mesmo Código que «os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código [o CIRE], durante a pendência do processo de insolvência». Sendo um processo de execução universal ou de liquidação total e coletiva (-Alberto dos Reis, Processos Especiais, Volume II, página 312.), a declaração de insolvência tem efeitos consideráveis sobre os créditos dado que a lei regula os prazos e a forma de todos os credores reclamarem neste processo os seus créditos — artigo 128.2 do citado código (- Sobre estes efeitos pode ver-se Gonçalo Andrade e Castro, Efeitos da Declaração de Insolvência sobre os Créditos, in Direito e Justiça, vol. XIX, tomo II, 2005, págs. 263 e seguintes.). A razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade, não tendo nenhum credor qualquer privilégio ou outras garantias que não aqueles que sejam reconhecido pelo direito da insolvência e nos precisos termos em que este o reconhece (- Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, página 167). Assim, durante a pendência do processo de insolvência, os credores apenas poderão exercer os seus direitos no âmbito do processo de insolvência e em conformidade com os preceitos do respetivo Código — artigo 90.º Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de nele exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo (...). Por conseguinte, a estatuição deste arts. 90.º enquadra um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores» (- Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, edição de 2008, página 364). Decorre do exposto que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores apenas poderão exercer os seus direitos no âmbito do mesmo, em conformidade como as normas do CIRE. Conclui-se, assim, que a declaração de insolvência da demandada BB, tornou, quanto mesma, as lides cíveis enxertadas neste processo supervenientemente inúteis, nos termos do disposto no artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força da norma do artigo 4.º do Código de Processo Penal. Assim, não havendo que conhecer do mérito dos pedidos de indemnização civil formulados contra a demandada BB, por, no decurso do presente processo, se ter verificado a declaração de insolvência da arguida/demandada, o que tornou a lide cível supervenientemente inútil nos termos supra expostos, não merece a decisão recorrida censura neste particular.» 2.4.2. Em situação idêntica, o acórdão fundamento considerou que: «[C]onclui-se no acórdão que a lide seria agora inútil pois o reconhecimento do crédito do demandante sempre haveria que ter (obrigatoriamente) lugar no âmbito do processo de insolvência – artigo 128.º, n.º 3. O reconhecimento do crédito nasce com a condenação, mas um crédito já reconhecido sempre poderá vir a ser reclamado no processo de insolvência mesmo que o tenha sido fora dele, nos termos do art. 146º, nº2, alínea b) do CIRE, que trata da verificação ulterior de créditos ou de outros direitos. Esta reclamação do crédito (mesmo do reconhecido fora do processo de insolvência, mais concretamente no processo-crime, possibilidade de que se tratará de seguida) teria sempre que processar-se no processo de insolvência, o que acautelaria, então, o princípio da igualdade dos credores. Dito de outro modo, na posição que defendemos, a igualdade de todos os credores mantém-se acautelada, independentemente do reconhecimento do crédito se processar no âmbito do processo de insolvência ou em processo de natureza penal. Cumpre então saber se o pedido cível em processo penal é absolutamente equiparável a uma acção declarativa, o que, a verificar-se, envolveria a obrigatoriedade do reconhecimento do crédito se processar no processo de insolvência. No caso, a parte demandante civil surge no processo penal por força do princípio da adesão (art. 71º do Código de Processo Penal), uma vez que o lesado só pode fazer valer os seus direitos, em separado perante o tribunal civil, nas situações – excepcionais – previstas no art. 72º nº 1 do Código de Processo Penal. No caso de indemnização fundada na prática de crime, o lesado não é livre de optar pela jurisdição e processo civis, mesmo que considere serem os que melhor servem o seu direito. Acha-se obrigado à disciplina do processo penal e a aceitar o desvio às regras gerais da competência do juiz penal, que pode, então, conhecer também da causa cível. A causa crime e a causa cível mantêm alguma autonomia material, que não se elimina por terem de ser conhecidas e tratadas num mesmo processo. Este tratamento formal unitário deve-se a razões de economia de meios e de esforços, e serve ainda a uniformização de decisões sobre uma mesma questão de facto. Mas justifica-se também pela especial conexão, ou precisando, pela peculiar conjugação da matéria penal com a matéria cível, que leva a parte penal a influir na decisão cível. Pense-se, por exemplo, na determinação da matéria de facto que realiza o “facto (penalmente) ilícito” (no processo penal, obtida à luz de princípios de prova que inexistem no processo civil), na relevância de determinados elementos penalmente típicos (como o dolo penal e o seu grau de intensidade) na quantificação da indemnização, entre outros. Tudo itens a apurar em processo-crime, de acordo com as regras e princípios do processo penal, e que vão integrar também a decisão em matéria cível. De tudo resulta que a conexão obrigatória não tem um fundamento exclusivamente formal, antes se justificando, igualmente, por razões materiais. As regras processuais penais impõem-se então na tramitação do processo conjunto – sendo a acção cível que é recebida no processo penal e não o inverso –, o que sucede por razões decorrentes do estatuto de demandado/arguido, do exercício e reconhecimento das garantias de defesa, das diferenças existentes nos direitos probatórios penal e civil, particularmente nos princípios de prova na vertente da apreciação (in dúbio pro reo, presunção de inocência, inexistência de repartição de ónus de prova). Assim, as nuances processuais no conhecimento da causa cível enxertada justificam-se na medida em que a forma civil se deve compatibilizar, respeitando-o, com o estatuto do demandado que é também arguido. Simultaneamente, cumpre garantir ao lesado a tutela dos seus direitos–tutela que obteria através do recurso ao processo civil – pois o art. 20º, nº1 da Constituição da República Portuguesa assegura a todos o acesso ao direito e garante-lhes o recurso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos. O objecto da causa cível fundada na prática do crime é, desde logo, o facto ilícito (ao lado do dano, do nexo causal e da imputação daquele ao agente). A responsabilidade civil por facto ilícito não pode deixar de incluir o conhecimento – de facto e de direito – de todos os pressupostos da responsabilidade civil, o que implica o conhecimento do facto ilícito que constitui, aqui, também um crime. O lesado civil tem direito – constitucionalmente assegurado, repete-se –, a ver a sua pretensão apreciada por um tribunal – a totalidade da sua pretensão e não apenas parte dela. A decisão sobre a responsabilidade civil não assenta somente no reconhecimento da existência de danos e do seu quantum. Ao lesado civil tem de ser processualmente assegurada a ampla discussão de toda a matéria (factual e jurídica) relevante para decisão cível, particularmente a causa de pedir do pedido que formula. Sendo ainda certo que, no processo penal e na maioria dos casos, lhe bastará alegar e provar os danos, o que se deve à possibilidade de aproveitamento de uma actividade probatória desenvolvida pelo Ministério Público, justificativa da própria figura da adesão obrigatória. Existem, pois, razões de ordem material que fundamentam a conexão e a adesão obrigatória, não existindo outras que, no reverso, impeçam a dedução do pedido cível contra arguido insolvente, em processo penal. Esta solução também em nada colide com a natureza e o fundamento do próprio processo de insolvência, como processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. Na verdade, o demandante-credor sempre terá de vir a reclamar o seu crédito no processo de insolvência, o que garantirá a salvaguarda da igualdade de oportunidade de todos os credores perante uma insuficiência de património do devedor. Assim, identificam-se na causa penal razões materiais que justificam a conexão obrigatória – que a justificam materialmente, não apenas formalmente, insiste-se – e o consequente conhecimento da causa cível no processo penal, nos casos de responsabilidade civil emergente de crime. A única questão sobrante é a de saber se esta posição, que se adopta, contraria o AUJ nº 1/2014, que fixou a jurisprudência seguinte: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.” (D.R. n.º 39, Série I de 2014-02-25). Este Acórdão mereceu já juízo de constitucionalidade (Ac. Tribunal Constitucional nº 42/2014, DR 11.02.2014). Estava ali em causa o prosseguimento de acção declarativa tendente ao reconhecimento de direitos laborais (créditos salariais e direitos indemnizatórios do trabalhador). A questão decidenda foi equacionada como sendo a de saber se a sentença transitada, que declara a insolvência da ré-empregadora, determina, ou não, a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, de acção declarativa pendente contra a insolvente. O Acórdão não tratou, não aflorou, não analisou e não se pronunciou sobre o pedido cível deduzido em processo-crime, sendo certo que não são identificáveis aqui certas homologias que ali (nos direitos processuais civil e laboral) se reconhecem. Também materialmente as duas situações são distinguíveis, não sendo o mesmo considerar-se que o juiz da insolvência pode reconhecer os créditos de trabalhadores e o decidir-se que este pode conhecer também do crime e dos seus elementos típicos. Por último, a instância laboral, todo o processo laboral, se extinguiria por força da inutilidade superveniente da lide, já o mesmo não sucedendo com a acção penal que acolheu o pedido cível, a qual teria sempre de prosseguir para conhecimento do crime e dos seus autores. Pelas razões desenvolvidas, considera-se que o “pedido cível deduzido em processo penal” não corresponde a uma “acção declarativa” no sentido e para os efeitos constantes do AUJ nº 1/2014. Razão pela qual, no caso sub judice, o Acórdão não obsta à improcedência da excepção invocada em recurso, inexistindo uma inutilidade superveniente da lide.» 2.5. Tendo em conta o exposto, entende-se que quer os requisitos formais, quer os requisitos substanciais de admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência estão preenchidos, nomeadamente, a necessária oposição de julgados dado que têm soluções contrárias para a mesma questão de direito: tendo sido a demandada, em pedido de indemnização civil fundado na prática do crime e enxertado na ação penal, declarada insolvente, por decisão transitada em julgado, deve (ou não) ser declarada a inutilidade superveniente da lide quanto àquele pedido enxertado naquela outra ação? Analisemos o problema. 3.1. O pedido de indemnização civil enxertado no processo penal constitui um pedido de reparação de todos os danos emergentes da prática do facto criminoso. Se, por um lado, os pressupostos e os prazos de prescrição do direito à indemnização civil são os determinados pela lei civil (tal como estabelece o art. 129.º, do CP, e com isto o legislador acabou com a polémica ocorrida no âmbito do anterior CP, sobre a natureza da indemnização civil arbitrada em processo penal), assim se estabelecendo que a indemnização deverá ser atribuída de acordo com os critérios substantivos jurídico-civilísticos, por outro lado, sob o ponto de vista adjetivo, negou-se, regra geral, esta autonomia e consagrou-se um sistema de adesão obrigatória. Ou seja, o pedido de indemnização civil apenas pode ser apresentado em separado nos casos excecionais consagrados na lei — art. 72.º, do CPP. E tem sido entendido que aquela adesão se mantém mesmo que ocorra uma extinção do procedimento criminal — “uma vez conhecida a causa de pedir, não será a extinção do procedimento criminal que impedirá o prosseguimento do respectivo processo para julgamento do pedido cível correspondente” [3]. Assim, se do disposto no art. 71.º, do CPP, podemos considerar que a ação cível enxertada no processo penal se restringe ao pedido de indemnização civil por perdas e danos “fundado na prática de um crime”, vemos, porém, que o legislador foi mais longe quando nos arts. 84.º e 377.º, do CPP, admitiu a condenação em indemnização civil (cujo pedido se encontrava enxertado na ação penal) ainda que tenha havido decisão de absolvição em matéria penal[4], na linha do princípio da unidade da ordem jurídica em sentido unilateral: nem tudo o que é ilícito para os outros ramos do direito é ilícito para o direito penal, mas tudo o que é lícito para os outros ramos do direito é também lícito para o direito penal[5]. Assim sendo, devemos entender que “o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. [Porém, a] autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo. A razão da condenação em indemnização civil mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal é ainda determinada por razões de economia processual”[6]. Pelo que, se outras razões não houvesse, as razões de economia processual e as razões em vista a obviar o aparecimento de julgados contraditórios seriam o bastante para se impor a necessária adesão entre a ação penal e o pedido de indemnização civil. Mas, outras razões acrescem. Seguindo Ribeiro de Faria “se todo o processo é ou constitui um mal tanto para o ofendido como para o autor e para o Estado, esse mal agudiza-se quando por via da mesma fonte (ainda que naturalisticamente entendida) são propostos ou têm lugar dois procedimentos judiciais”, pois “é exigido trabalho a mais juízes e escrivães, se aumentam consideravelmente as despesas, se abusa em desmedida forma do tempo e das disponibilidades não só do lesado como de outros eventuais intervenientes processuais”[7]. Na verdade, há também uma finalidade de natureza penal atribuída ao processo de adesão: sendo o ilícito penal e o ilícito civil praticado pela mesma pessoa, e sendo o lesado e o ofendido também o mesmo, pese embora a autonomia entre o ilícito penal e o ilícito civil, haverá uma outra consequência daquela unificação — aquela em que, “atenta a unidade física do autor de ambas as ilicitudes, (...) a reparação, embora de natureza civil, possa ser usada na potencialização das próprias finalidades penais”[8]. Acresce que anexando o pedido de indemnização civil à ação penal ocorre “uma especial protecção ao lesado-ofendido”[9]. Deve, no entanto, concluir-se que os fundamentos subjacentes a um processo de adesão obrigatória são o interesse de economia e celeridade processual, onde assume destaque a não prolação de decisões contraditórias (finalidade que se pretendeu assegurar através do disposto no art. 84.º, do CPP). Ou nas palavras do Tribunal Constitucional[10] “é a existência de uma profunda conexão entre os dois ilícitos resultante da unidade do facto gerador, tanto da responsabilidade civil como da criminal, que justifica a apreciação no mesmo processo da questão criminal e da questão civil. Assim, o julgamento em processo penal do pedido de indemnização civil tem de implicar que se apliquem a este pedido as regras do processo penal”. Além disto, não se deve olvidar que estabelecendo o art. 129.º, do CP, que a indemnização por perdas e danos emergentes do crime é regulada pela lei civil, o legislador pretendeu remeter para o disposto no art. 483.º, do Código Civil, onde se regula a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos[11]. Não se abrange, pois, a responsabilidade contratual, sabido é que “a responsabilidade por facto ilícito (extracontratual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual, são essencialmente diferentes, porquanto resulta da inexecução de uma determinada obrigação preexistente entre credor e devedor, enquanto a primeira deriva de um facto ilícito prejudicial a alguém independentemente de qualquer obrigação preexistente entre o lesante e o lesado. (...) O facto ilícito criminal, fundamento do pedido cível enxertado no processo penal, não é por si fonte geradora, nem pode ser, de responsabilidade contratual”[12]. Deve ainda referir-se que o simples facto de o demandado ver a ação civil enxertada no processo penal confere-lhe garantias idênticas às do arguido (cf. art. 74.º, n.º 3, do CPP[13]), conferindo-lhe uma posição processual idêntica à do arguido. Porém, ainda que se restrinja a apenas uma “«identidade» entre a posição processual do arguido e a do demandado civilmente quanto à sustentação e à prova das questões civis julgados no processo”[14], o certo é que, desde logo quanto a matérias relativas a proibições de prova, as regras do processo penal conferem, ao “demandado em adesão”[15], uma garantia superior à decorrente das regras processuais civis. O que permite considerar que as regras de adesão só excecionalmente devem ser alteradas. E sabendo que as exceções ao princípio da adesão se encontram legalmente consagradas no art. 72.º, do CPP, consideramos que uma qualquer admissibilidade em separado fora dos casos ali admitidos constitui uma violação da lei processual, isto é, uma decisão judicial a determinar a dedução em separado do pedido de indemnização civil constituiria a admissibilidade de uma exceção para lá das consagradas legalmente, e em clara violação da lei. Além disto, verifica-se que o legislador pretendeu levar longe este princípio de adesão obrigatória, tornando inadmissível a interposição de ação civil, para obtenção de indemnização civil decorrente para prática de um facto, típico, ilícito e culposo (um crime), quando tenha sido ultrapassado o prazo previsto no art. 77.º, n.º 2, do CPP, ainda que o prazo prescricional previsto na lei civil não tenha sido ultrapassado. 3.2. Vejamos agora em que medida os efeitos de um processo de insolvência devem (ou não) ser extensíveis aos casos em que o pedido de indemnização civil por causa de um crime é enxertado no processo penal. Os efeitos da insolvência “têm subjacente o princípio da par conditio creditorum, dirigindo-se, basicamente, a impedir que algum credor possa obter, por via distinta do processo de insolvência, uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores”[16]. E por isto se determina, no art. 85.º, n.º 1, do CIRE, sob a epígrafe “efeitos sobre as acções pendentes”, que “[d]eclarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo”. A este dispositivo acresce um outro — o art. 89.º, n.º 2, do CIRE — que estabelece “As acções, incluindo as executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com excepção das execuções por dívidas de natureza tributária.” A partir destas normas tem a doutrina considerado que se devem apensar (ao processo de insolvência) as ações declarativas pendentes[17]. Quanto àquelas que não são apensadas entende-se que deve ser declarada a inutilidade superveniente da lide se já não for possível retirar da decisão que venha a ocorrer qualquer efeito útil “ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio”[18]. Porém, no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014[19] decidiu-se que “[t]ransitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º, do C.P.C.” (o atual art. 277.º al. e), na versão do CPC de 2013)[20]. Perante esta fixação surge a pergunta de saber se deve ser aplicada analogicamente (uma vez que o âmbito de decisão é distinto daquele outro que aqui discutimos e por isso naquela decisão não é feita qualquer alusão aos casos de pedido de indemnização civil, por perdas e dados decorrentes da prática de um crime, resultante de responsabilidade civil extracontratual) à questão agora em discussão. Os fundamentos que levaram àquela fixação resultam da perda do efeito útil da ação após a declaração da insolvência. Entendeu-se que, em estrita obediência ao princípio par conditio creditorum, e atento o escopo do art. 1.º, do CIRE, a declaração judicial de insolvência, por sentença transitada em julgado, é incompatível com a prossecução da ação declarativa proposta contra o empregador/devedor com o objetivo de ver reconhecido um crédito a favor do autor/trabalhador, decorrente de um contrato de trabalho celebrado entre ambos. Porém, pese embora as regras inscritas no processo de insolvência, não pode deixar de se considerar que “é (...) necessário ter em conta que o regime jurídico aplicável a essas outras ações e a esses outros processos pode impedir a apensação”[21]. E pensamos ser exatamente o que sucede com o problema que estamos a analisar, em que a especificidade inerente ao pedido de indemnização civil enxertado no processo penal impede uma apensação deste ao processo de insolvência, não devendo considerar-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, ainda que o demandado seja insolvente por decisão transitada em julgado. Assim, no que respeita ao pedido de indemnização civil enxertado no processo penal, e tendo em conta o princípio da adesão obrigatória, deve, em sede do processo penal, reconhecer-se a existência (ou não) da obrigação de indemnizar decorrente de responsabilidade civil extracontratual e definir-se o montante da indemnização devida — aqui residindo o efeito útil na manutenção do pedido na ação penal, assim se aproveitando as sinergias desenvolvidas no âmbito do processo penal, nomeadamente em matéria de prova, e em atenção a uma ideia de economia processual. Só após o reconhecimento deste direito à indemnização é que se deverá reclamar este crédito, o que deverá ser realizado no âmbito do processo de insolvência. E com isto consideramos que não se dá um tratamento desigual ao credor/lesado (relativamente aos outros credores) resultante do reconhecimento da devida indemnização[22], uma vez que uma coisa é a ação a reconhecer este direito (que por força do princípio da adesão tem que decorrer até ao fim ligada ao processo penal), e coisa distinta a ação de reclamação do crédito resultante daquele direito — devendo esta última ser apresentada no processo de insolvência, e nesta altura já sem qualquer “violação” do princípio da adesão. Se se admitisse, por absurdo, a possibilidade de aplicação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014 ao caso em apreço daí resultaria que, uma vez declarada a inutilidade superveniente da lide, o pedido de indemnização civil iria prosseguir os seus termos no âmbito da ação de insolvência, porém sem que ainda se soubesse se haveria ou não lugar à constituição da obrigação — desde logo, seria necessário que se provasse a prática do facto ilícito e típico, com todos os inconvenientes para a economia processual decorrentes, nomeadamente, de uma duplicação da prova (relativa ao facto fundador da responsabilidade penal e da responsabilidade civil). Por outro lado, a admitir a integração do pedido de indemnização civil decorrente da prática de um crime no processo de insolvência teria como consequência a aplicação de regras processuais distintas das regras processuais penais. Na verdade, tem sido considerado que “o processo de adesão não traduz a junção de processos puros”, pois “supõe uma distorção ou adaptação das regras de processo civil em função do processo penal em que se insere o pedido de indemnização civil”[23]. É disto exemplo a não atribuição de efeitos à falta de contestação do pedido de indemnização civil, uma vez que “a sua falta não implica confissão dos factos objecto da petição, em ordem a evitar que, através do pedido cível, se tenham confessados factos de natureza penal”[24]; é também exemplo a não possibilidade de contestação por reconvenção, pois “constituindo [esta] um novo pedido, ultrapassa os fins e os fundamentos da admissibilidade do pedido de indemnização cível em processo penal”[25]. E por isso se tem entendido que os princípios e características do processo penal permitem afirmar um princípio de preponderância do juízo penal sobre o civil, decorrente da “superior confiança de que a sentença penal é merecedora em razão de todas as exigências e garantias que precedem e envolvem a sua prolação”, o que reside na “natureza ímpar do processo penal como modelo processual de confluência e concordância prática de princípios e garantias que procuram optimizar a prossecução” não só de uma “finalidade de realização da justiça e descoberta da verdade material”, mas também, e de modo particular, uma “finalidade de protecção dos direitos fundamentais das pessoas, maxime do direito de defesa do arguido (art. 32.º-1 da CRP)”[26] em ordem a garantir uma ampla defesa do arguido sem paralelo em outras regras processuais. Assim sendo, a declaração da inutilidade superveniente da lide (da ação de indemnização por perdas e danos enxertada no processo penal) resultaria em um enfraquecimento da posição processual do arguido/lesante[27] e em uma diminuição dos direitos processuais daquele. E, como já afirmámos, a consagração de uma exceção ao princípio da adesão por meio jurisprudencial constituiria uma clara violação do princípio da legalidade criminal[28]. Mas, não pode igualmente deixar de se referir ainda que, atento o princípio da adesão, se considerássemos que a ação de indemnização civil por perdas e danos, instaurada em processo penal, deveria ser declarada extinta (por inutilidade superveniente da lide) após declaração de insolvência do demandado/lesante, esta extinção determinaria, no caso de o lesante vir a deixar de estar insolvente e ser consequentemente encerrado o processo de insolvência, a impossibilidade posterior de nova interposição de ação civil de indemnização por perdas e danos, uma vez que esta teria que ter sido interposta, por força dos arts. 71.º e ss, do CPP, na ação penal. O que, desde logo, constituiria uma solução em clara dissonância com as regras relativas à insolvência que, mesmo em caso de exoneração do devedor, deixa subsistir os créditos indemnizatórios decorrentes da prática de factos ilícitos dolosos. É que, nos termos do art. 245.º, n.º 2, al. b), do CIRE, a exoneração do devedor não abrange as “indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade” (art. 245.º, n.º 2, al. b), do CIRE). Tal como refere Luís Carvalho Fernandes/João Labareda[29] a não extinção dos créditos relativos a indemnizações por factos ilícitos do devedor apenas abrange os casos em que os factos ilícitos sejam dolosos e os créditos tenham sido reclamados no processo de insolvência com essa qualidade, considerando, todavia, que o regime apenas se deve aplicar ao crédito de indemnização por ilícito extracontratual já não devendo abranger o crédito emergente de um negócio jurídico. E não se diga que a manutenção do decurso do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal constitui uma contradição com a natureza do processo de insolvência. O processo de insolvência constitui um “processo de execução universal”[30], todavia o “CIRE não regula de forma sistematizada os efeitos da declaração de insolvência sobre as acções declarativas intentadas contra o insolvente, o que se compreende, porque estas acções não colocam em crise, pelo menos de forma imediata, o princípio par conditio creditorum”[31]. Porém, “isto não significa que os créditos não possam — ou não tenham — que ser reconhecidos em processo autónomo, nomeadamente quando não se trata de créditos comuns, em particular com origem na responsabilidade civil”, pois a “natureza célere e urgente do processo de insolvência é incompatível com a tramitação e a necessária ponderação de direitos litigiosos complexos e especializados. Assim, ou o processo de insolvência se transformaria num emaranhado de processos, que colidiriam necessariamente com a natureza urgente do processo de insolvência (art.ºs 8.º e 9.º) e prejudicaria a satisfação dos credores, que é a finalidade do processo, ou seriam atropelados e prejudicados os direitos dos credores — ou a própria defesa do devedor insolvente — com prejuízo para a justiça e violação do princípio constitucional de um processo justo e equitativo (art.º 20.º da Constituição). Por outro lado, a extinção da acção declarativa, com a deslocação do processo para o tribunal de comércio, importaria a perda de toda a tramitação processual já decorrida, com prejuízo para as partes e para a celeridade do processo”[32]. 4. De tudo o exposto concluímos que: Por força do princípio de adesão, o titular do direito a indemnização, fundada na prática de crime, apenas no processo penal pode ver reconhecido o seu direito a ser indemnizado e determinado o quantitativo da indemnização pelos prejuízos causados (nos termos do disposto nos arts. 71.º a 84.º, do CPP). Só após o reconhecimento do direito e a determinação do quantitativo indemnizatório é que se torna claro qual o crédito de que emerge a obrigação de indemnizar. E somente quando não ocorra o cumprimento desta obrigação e após o vencimento da dívida[33] assiste ao credor o direito intervir no processo de insolvência para obter o pagamento da dívida pelo produto da liquidação dos bens do devedor. Deverá, então, ser reclamado o crédito no processo de insolvência no prazo fixado ou posteriormente até ao encerramento do processo de insolvência (cf. arts. 1.º, 3.º, 47.º, 90.º, 128.º, 146.º, n.º 1, e 230.º, do CIRE). A declaração de insolvência do responsável civil não tem por efeito a apensação do processo penal ao processo de insolvência, a qual se limita às ações mencionadas nos arts. 85.º e 86.º, do CIRE, para julgamento pelo tribunal da insolvência, cuja competência nunca se estende ao processo penal. O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, cujo conhecimento é da competência do tribunal penal, não se confunde com uma ação declarativa para reconhecimento de crédito, a que se refere o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014. Na falta de composição extrajudicial do litígio, sendo o processo penal o único meio de o lesado ver reconhecido o seu direito a indemnização, a declaração de insolvência do demandado não constitui motivo gerador de inutilidade superveniente da ação civil “enxertada” naquele processo.
III Com base no exposto, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide a) fixar a seguinte jurisprudência: A insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal. b) e revogar o acórdão recorrido que deverá ser substituído por outro que aplique a jurisprudência fixada.
Cumpra-se, oportunamente, o disposto no art. 444.º, n.º 1, do CPP. Não são devidas custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 26 de setembro de 2018
Helena Moniz (relatora) Nuno Gomes da Silva Carlos de Almeida Lopes da Mota Vinício Ribeiro Santos Cabral Pires da Graça Raul Borges (ultrapassada a questão prévia da incompetência, conforme declaração junta) Manuel Braz Francisco Caetano (vencido conforme declaração junta) ** Manuel Augusto de Matos (vencido nos termos da declaração do Exmo. Conselheiro Francisco Caetano) Henriques Gaspar (Presidente) (tem votos de vencido dos Senhores Conselheiros Gabriel Catarino e Souto de Moura, que não assinam por, entretanto, terem passado à condição de jubilado, e da Senhora Conselheira Isabel São Marcos, que não assina por não estar presente) -----------------------
Voto o acórdão, ultrapassada a questão prévia da incompetência material exposta no projecto apresentado em 10-05-2017, de que se extraem os seguintes pontos. “O presente recurso tem em vista a fixação de jurisprudência relativamente a matéria cível, em ordem a saber se face a insolvência do demandado, a instância cível enxertada em processo penal subsiste, ou se é de a declarar extinta por inutilidade superveniente da lide. A matéria em oposição tem a ver com o facto de a insolvência de demandado cível ter como consequência ou não a extinção da instância cível, por inutilidade da lide. No acórdão recorrido a questão colocava-se em sede de acção cível de indemnização emergente de responsabilidade delitual hospedada em processo crime. Na sentença de Barcelos, de 6-01-2016, a fis. 7 e verso, foi ponderado o seguinte: (realces do texto): Nos termos do artigo 277°, e), do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4° do Código de Processo Penal, a instância extingue-se com a inutilidade superveniente da lide, ou seja, quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, nomeadamente porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo. Nos termos do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 8 de Maio de 2013, publicado no DR, 1 Série, n.º 39,25 de Fevereiro de 2014, “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 287º, e), do C. P. C.”, actual artigo 277°, e), do Código de Processo Civil. Assim sendo, face à declaração de insolvência da arguida/demandada BB, a instância tomou-se, nos termos supra referidos, inútil. Em conformidade, declaro extinta a instância civil no que concerne à arguida /demandada BB por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277°, e), do Código de Processo Civil, condenando-a no pagamento das custas processuais, nos termos do artigo 536°, n.°3, do CPCivil, ex vi do artigo 523.° do CPPenal”. b) declaro extinta a instância civil no que concerne à arguida /demandada BB por inutilidade superveniente da lide.
O acórdão recorrido pronunciou-se a fis. 51/52, nestes termos: “Vejamos, então, se a declaração de insolvência da arguida BB determina a extinção da instância civil por inutilidade superveniente da lide nos termos do artigo 287°, e) do Código de Processo Civil, como decidido pelo tribunal a quo. A inutilidade superveniente da lide ocorre quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não pode ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação á pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o escopo visado com a ação foi atingido por outro meio. Ora, no caso sub judice, resulta dos autos que a arguida/demandada BB, por sentença transitada em julgado no dia 31 de Julho de 2013, na sequência de apresentação, foi declarada insolvente. Em causa está, então, o alcance dos efeitos externos da sentença, transitada em julgado. de declaração de insolvência da demandada BB nos pedidos de indemnização cível deduzidos nos presentes autos. Como decorre do art.º. 1° do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.° 53/2004, de 18 de Março, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, dispondo o art,90° do mesmo Código que «os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código (o CIRE, durante a pendência do processo de insolvência». Sendo um processo de execução universal ou de liquidação total e coletiva ( - Alberto dos Reis, Processos Especiais, Volume II, página 312.), a declaração de insolvência tem efeitos consideráveis sobre os créditos dado que a lei regula os prazos e a forma de todos os credores reclamarem neste processo os seus créditos- artigo 128.° do citado código ( - Sobre estes efeitos pode ver-se Gonçalo Andrade e Castro, Efeitos da Declaração de Insolvência sobre os Créditos, in Direito e Justiça. vol. XIX, tomo II, 2005,págs. 263 e seguintes). A razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade, não tendo nenhum credor qualquer privilégios ou outras garantias que não aqueles que sejam reconhecido pelo direito da insolvência e nos precisos termos em que este o reconhece (- Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, página 167.). Assim, durante a pendência do processo de insolvência, os credores apenas poderão exercer os seus direitos no âmbito do processo de insolvência e em conformidade com os preceitos do respetivo Código - artigo 90.° Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de nele exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo (...). Por conseguinte, a estatuição deste art° 90.º enquadra um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores» (- Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, edição de 2008, página 364.). Decorre do exposto que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores apenas poderão exercer os seus direitos no âmbito do mesmo, em conformidade como as normas do CIRE. Conclui-se, assim, que a declaração de insolvência da demandada BB, tomou, quanto à mesma, a lide cível enxertada neste processo supervenientemente inútil, nos termos do disposto no artigo 287°, alínea e), do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força da norma do artigo 4.° do Código de Processo Penal. Assim, não havendo que conhecer do mérito dos pedidos de indemnização civil formulados contra a demandada BB, por, no decurso do presente processo, se ter verificado a declaração de insolvência da arguida/demandada, o que tomou a lide cível supervenientemente inútil nos termos supra expostos, não merece a decisão recorrida censura neste particular”. E no dispositivo, a fls. 54, julgou o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida. Acórdão fundamento Por sentença proferida no 1.º Juízo do Tribunal de …, foi o arguido A condenado pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217°. n.º 1 e 218°, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na execução com regime de prova e no pagamento à demandante B de 17.500,00 €, de indemnização, acrescida de juros legais. Em recurso interposto pelo condenado, versando a admissibilidade do pedido cível e da inutilidade superveniente da lide, ponderou o acórdão fundamento, a fls. 27 verso e 28: “A única questão sobrante é a de saber se esta posição, que se adopta, contraria o AUJ n° 1/20 14, que fixou a jurisprudência seguinte: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.° do C.P.C.” (D.R. n.º 39. Série 1 de 2014-02-25). Este Acórdão mereceu já juízo de constitucionalidade (Ac. Tribunal Constitucional n° 42/20 14, DR 11.02.2014). Estava ali em causa o prosseguimento de acção declarativa tendente ao reconhecimento de direitos laborais (créditos salariais e direitos indemnizatórios do trabalhador). A questão decidenda foi equacionada como sendo a de saber se a sentença transitada, que declara a insolvência da ré-empregadora, determina, ou não, a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, de acção declarativa pendente contra a insolvente. O Acórdão não tratou, não aflorou, não analisou e não se pronunciou sobre o pedido cível deduzido em processo-crime, sendo certo que não são identificáveis aqui cenas homologias que ali (nos direitos processuais civil e laboral) se reconhecem. Também materialmente as duas situações são distinguíveis, não sendo o mesmo considerar-se que o juiz da insolvência pode reconhecer os créditos de trabalhadores e o decidir-se que este pode conhecer também do crime e dos seus elementos típicos. Por último, a instância laboral, todo o processo laboral, se extinguiria por força da inutilidade superveniente da lide, já o mesmo não sucedendo com a acção penal que acolheu o pedido cível, a qual teria sempre de prosseguir para conhecimento do crime e dos seus autores. Pelas razões desenvolvidas, considera-se que o “pedido cível deduzido em processo penal” não corresponde a uma “acção declarativa” no sentido e para os efeitos constantes do AUJ n° 1/2014. Razão pela qual, no caso sub judice, o Acórdão não obsta à improcedência da excepção invocada em recurso, inexistindo unia inutilidade superveniente da lide”. E assim julgou o recurso improcedente, confirmando a sentença.
Analisando.
A questão a resolver situa-se no exclusivo plano da matéria cível. No acórdão de 28-01-20 15, no processo n.º 4608/04.7TDLSB.L2.SI, tivemos oportunidade de abordar esta questão, mas em sede de recurso ordinário, estando em causa crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, com pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social, I.P. sendo insolvente o demandado. Em primeira instância foi decidido: “Parte Cível Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido contra os demandados, e consequentemente, condená-los a pagar à demandante a quantia de 74.667,95€, (setenta e quatro mil seiscentos e sessenta e sete euros e noventa e cinco cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos, calculados, à taxa legal prevista, respectivamente, nas Portarias n.º 263/99, de 12.04 e n.º 291/03, de 08.04 — desde a data da notificação dos demandados para contestarem o pedido de indemnização civil, até efectivo e integral pagamento”. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Setembro de 2014, foi determinada a extinção da instância, na parte cível, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no au. 277.°, alínea e), do CPC (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06). A questão nodal colocada no recurso consistia na discussão da possibilidade ou não de extinção da lide por inutilidade superveniente relativa a pedido de indemnização deduzido em processo penal por crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, face à declaração de insolvência dos arguidos/demandados, por força da aplicação da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014, pelas Secções Social e Cíveis deste Supremo Tribunal. Em causa a definição do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014, proferido no Plenário das Secções Cíveis e Social do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 170/08.OTTALM.Ll .S 1, tendo na sua base, uma acção declarativa, com processo comum, intentada a 4-03-2008, no Tribunal do Trabalho de Almada, em que a A. pedia a condenação da R. a ver declarada a ilicitude do despedimento de que fora alvo, com a consequente condenação desta na sua reintegração e no pagamento das prestações vencidas e vincendas. Logo após a contestação da R., conhecida nos autos sentença que decretou a insolvência da R., foi proferida decisão a declarar, por via disso, a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide. Concluiu-se no caso que a doutrina do Acórdão n.º 1/2014, atento o muito diverso lastro fáctico e diferente enquadramento jurídico-legal, que caracterizavam as situações versadas naquele acórdão e a dos autos, não tinha cabimento na situação então em apreciação, tendo-se decidido revogar o acórdão recorrido, a ser substituído por outro, que conhecesse da questão colocada em recurso. No presente caso estamos perante recurso extraordinário, sendo de colocar o problema da competência para fixar jurisprudência. No acórdão de 9-03-2017, no processo n.º 582/05.OTASTR.E1.51, versando legitimidade activa em caso de indemnização por dano morte a filhos de vítima mortal em obra (artigo 277.° do Código Penal), sendo invocada em sede de revista excepcional a relevância em sede de aplicação do direito, considerámos plausível que a questão da oposição de julgados fosse resolvida na sede própria, ponderando-se então: “Como se verá, as clivagens e desencontros existentes poderão/deverão alcançar-se através de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ), estando em causa uma questão meramente civilistica. A uniformização caberá às Secções Cíveis, de acordo com a solução apontada no acórdão de 14-07-2010, proferido no processo n.º 203/99.9TBVRL.Pl.Sl-A, da 3.’ Secção, em caso de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, estando em causa um acórdão proferido num processo penal, mas tanto o acórdão recorrido como o acórdão invocado como acórdão fundamento (proferido por uma secção cível do STJ num recurso em processo civil), incidem e decidem exclusivamente sobre questão de natureza (matéria) civil, sobre questões exclusivas do pedido de reparação civil deduzido em processo penal. Aí se refere: “A atribuição da competência em razão da matéria segundo a especialização constitui o critério de repartição de competência do Pleno das várias secções para uniformizar jurisprudência. A repartição faz-se, deste modo, seguindo critérios materiais e não processuais ou da natureza do processo - que todavia, só excepcionalmente não coincidirão. No caso em apreço, a matéria que está em causa no objecto do recurso é de natureza exclusivamente civil. O objecto das decisões não constitui numa «causa» (no sentido de questão, determinação, controvérsia, objecto e matéria, e não no sentido adjectivo e formal de tipo ou espécie de processo) de natureza criminal. A fixação de jurisprudência «segundo a (..,.) especialidade» cabe, assim, às secções cíveis pelo Pleno. A circunstância de o acórdão recorrido ter sido proferido num processo penal, por força do princípio da adesão, não altera nem a natureza da «causa» nem a matéria sobre que versa. A espécie do processo em que foi proferido o acórdão recorrido não é, para este efeito, relevante”. No mesmo sentido, pelo relator do acórdão anterior, o despacho proferido pelo então Vice- Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em 10-01-2014, no processo n.º 696/03.1PAVCD.P1 S1-A (conflito negativo de competência), estando em causa oposição entre acórdão da 5.ª Secção Criminal e acórdão proferido em processo de revista excepcional (processo de apreciação preliminar sumária). o qual decidiu que só se verifica dupla conforme, nos termos e para os efeitos do disposto no n,° 3 do artigo 721.° do CPC, quando o Tribunal da Relação confirma, integral e irrestritamente, a decisão de 1.ª instância. Naqueloutro, da Secção Criminal, sendo o acórdão exclusivamente referido à questão cível suscitada no pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, decidira-se ocorrer dupla conforme, não só quando é confirmada a decisão, como nos casos em que é mais favorável à demandante. No mesmo sentido se pronunciou o acórdão de 13-1 1-20 13, proferido no processo n.º 900l/09.2TDPRT.P1.B.Sl - 3.ª Secção, nestes termos: “A matéria que está em causa no recurso extraordinário interposto é de natureza exclusivamente cível. Efectivamente, o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, o primeiro proferido por juízes do Tribunal da Relação e o segundo prolatado por juízes do STJ, apreciaram e decidiram questão de natureza civil, concretamente a de saber se a alteração introduzida ao art. 4969 do CC, pela Lei 23/20 12, de 08-08, relativa ao direito de indemnização do companheiro sobrevivo, tem ou não efeitos retroactivos. A dimensão organizatória das secções do STJ parte de um modelo de competência em razão da matéria — secções cíveis, secções criminais e secção social (além da especificidade da formação e competência da secção de contencioso)— cf. arts. 42°, da Lei 58/08, de 28-08, e 34.° da Lei 3/99, de 13-01. O Pleno das secções, como formação específica e com autonomia de competências para determinadas questões, tem também competências materiais atribuídas, designadamente a de «uniformizar a jurisprudência nos termos da lei de processo», sendo esta competência atribuída «segundo a sua especialização» — cf. arts 43°, al. a), da Lei 58/08, de 26-08, e 35.°, da Lei 3/99, de 13-01 A atribuição da competência em razão da matéria segundo a especialização, constitui o critério de repartição de competência do Pleno das várias secções para uniformizar a jurisprudência. A repartição faz-se, deste modo, seguindo critérios materiais e não processuais ou de natureza do processo — que, todavia, só excepcionalmente não coincidirão. Nesta conformidade, atenta a natureza da questão que está em causa no presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, a competência para dele conhecer cabe às secções cíveis, visto que a circunstância de o acórdão recorrido ter sido proferido num processo penal. por força do princípio da adesão, não altera nem a natureza da «causa», nem a matéria sobre que versa. A espécie de processo em que foi proferido o acórdão recorrido não é, para este efeito, relevante.
Concluindo.
A fixação de jurisprudência pretendida restringe-se a matéria cível, declarando-se, nos termos do artigo 32°, n.º 1, do CPP, a incompetência das Secções Criminais para fixar jurisprudência nestas situações. Em consequência do que, nos termos do artigo 33°, n.º 1, do CPP, é de remeter o processo à distribuição pelas Secções Cíveis, por serem as competentes" Lisboa, 26 de Setembro de 2018 Raul Borges
_________ ** * (Francisco M. Caetano) _______
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