Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2473/22.1T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONTRATO DE SEGURO
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
PRESSUPOSTOS
VEÍCULO AUTOMÓVEL
ABANDONO DE SINISTRADO
DOLO
NEGLIGÊNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 09/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
O conceito de abandono do sinistrado relevante para efeitos do artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, exige o dolo do lesante na omissão do auxílio devido ao lesado.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Recorrente: AA

Recorrida: Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A.

I. — RELATÓRIO

1. Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A., intentou a presente acção declarativa sob a forma comum contra AA, pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de 91.851,82 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

2. O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção improcedente.

3. Inconformada, a Autora Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A., interpôs recurso de apelação.

4. O Réu AA contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

5. O Tribunal da Relação julgou o recurso procedente, revogando a sentença recorrida.

6. O dispositivo do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação é do seguinte teor:

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a sentença recorrida, em consequência do que se condena o réu a pagar à autora a quantia de €91.851,82 (noventa e um mil oitocentos e cinquenta e um euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora contabilizados à taxa legal de juro civil desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Custas, em ambas as instâncias, a cargo do apelado (art. 527º, nºs 1 e 2).

7. Inconformado, o Réu AA interpôs recurso de revista.

8. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões.

1) Sendo o objecto do recurso de apelação definido pelas respectivas conclusões da recorrente (conforme artigos 5º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 e 3 do N.C.P.C.), delas resulta que a apelante se insurgiu contra a decisão da matéria de facto por, em seu aviso, o Tribunal de primeira instância ter incorrectamente julgado os pontos de facto 14 a 17 dos factos provados, já que não foi produzida qualquer prova concreta sobre os mesmos.

2) Apreciando tal impugnação, a Relação alterou o decidido pela primeira instância quanto à matéria de facto considerando os factos descritos nos pontos 14 a 17 como factos não provados.

3) O Tribunal da Relação delimitou o objeto do recurso às conclusões da alegação da recorrente, ora recorrida, por entender que apenas podia conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º,nº4, 637º, nº2, 1ª parte e 639º,nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.

4) O Tribunal recorrido, no seu Acórdão apenas e só se pronunciou quanto às conclusões da alegação da recorrente, ora recorrida, e não se pronunciou sobre questões que lhe foram submetidas pelo ora Recorrente, QUANTO À VALORAÇÃO DA PROVA DOCUMENTAL E TESTEMUNHAL, questões com relevância para a decisão de mérito.

5)O Tribunal recorrido agiu como se o ora Recorrente não tivesse contra-alegado.

6) Nos casos que exista violação do direito probatório formal ou material, máxime quando não tenha sido atribuído relevo a meios probatórios com força vinculada ou tenham sido desrespeitadas regras sobre a exigibilidade de determinados meios de prova, o STJ pode conhecer do juízo de prova fixado pela Relação quando tenha sido dado como não provado um facto para o qual tivesse sido produzida prova que a lei declare indispensável para a demonstração da sua existência ou tiverem sido violadas as normas reguladoras da força de alguns meios de prova – o que ocorreu nos presentes autos.

7) Seguiu este entendimento o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça SJ200901210039664, datado de 21-01-2009– quanto à ADMISSIBILIDADE DE RECURSO, IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO, PROVA DOCUMENTAL e FORÇA PROBATÓRIA – “É admissível o recurso de revista quando está em causa a reapreciação da prova, apesar dos limitados poderes do Supremo em sede de matéria de facto, quando a recorrente invoca, em abono da sua pretensão de alteração das respostas aos quesitos, aspectos que se situam no domínio do direito probatório material (…) e cuja eventual violação pelo acórdão recorrido pode ser apreciada por este Supremo, nos termos conjugados dos art.ºs 729º, n.º 2 e 722º, n.º 2 do CPC.”

8) A Relação sustenta o seu “veredicto” na audição do registo fonográfico dos depoimentos produzidos na audiência final, alegando que, constata-se que a única pessoa que depôs sobre a factualidade em crise foi o próprio réu e que os depoimentos das testemunhas BB (que foi o militar da GNR que elaborou o auto de participação junto aos autos) e CC (condutor sinistrado) o contrariaram.

9) Entendimento que se discorda,

10) Por o ora recorrente, não ter sido o único a depor sobre a factualidade dos pontos 14 a 17 da douta sentença proferida na 1ª Instância.

11) Quer a testemunha DD, quer e a testemunha Agente EE depuseram sobre a factualidade dos pontos 14 a 17:

- o 1º quanto ao estado perturbado que encontrou o ora Recorrente e que no dia seguinte ao sinistro acompanhou aquele ao posto da PSP de ...;

- o 2º confirmou que o ora Recorrente tinha-se apresentado junto das autoridades no dia seguinte ao sinistro, que justificou a sua ausência no local por se encontrar perturbado e que quando o próprio chegou ao local (em cerca de 20 minutos) já lá se encontravam o INEM e os bombeiros, conforme relatório fotográfico junto aos autos.

12) Já o depoimento da testemunha CC (sinistrado), para além de se apresentar comprometido, por ser um dos intervenientes no sinistro, quanto à factualidade dospontos14 a 17, fá-lo de forma indirecta, referindo o que lhe terão contado, porque ficou inconsciente em consequência do embate.

13) Pelo que, não pode ser valorado como meio de prova, dado que, o juiz não procedeu à sua confirmação através da audição das pessoas a que uma testemunha ouviu dizer.

14) Ainda que assim, não se entenda, atendibilidade do depoimento indireto em processo civil depende, designadamente, da sua concreta relevância, decorrente dos demais meios de prova, da livre apreciação da prova, conjugada com as regras da experiência.

15) O Tribunal recorrido esqueceu por completo de se pronunciar quanto à prova documental (ofícios do INEM e dos Bombeiros e relatórios médicos) existente nos autos que não foram impugnados pelas partes, pelo que, aceites pelas mesmas.

16) Dos relatórios juntos aos autos pelos Bombeiros e INEM verifica-se que o INEM chegou às 21H52 e os bombeiros às 21h35 que demonstram que o Sr. Militar chegou já depois das 21h52 e que demorou mais de 35 minutos a chegar ao local desde a data do sinistro (21h15).

17) Encontra-se ainda junto aos autos um ofício do INEM que refere que receberam as seguintes chamadas a requerer auxílio no dia 28/05/2015, os seguintes números de telefone: ... ... .69 21h16m21s, ... ... .63 - 21h18m51s e ... ... .02 21h18m30s.

18) Documento que prova que foi requerida assistência imediata para o sinistrado.

19) Os relatórios médicos juntos aos autos, confirmam o estado de pânico e perturbação em que ficou o ora recorrente no momento do acidente e à posteriori, e que, foi seguido na consulta de psiquiatria por stress pós-traumático consequente do acidente de viação.

20) Tais documentos gozam de força probatória plena e o ora Recorrente fez menção aos mesmos nas suas contra-alegações e conclusões, contudo, o douto Tribunal recorrido não se pronunciou quanto aos mesmos,

21) Ainda que, tais documentos façam prova das matérias incluídas nas conclusões da Recorrente, ora Recorrida e serem de conhecimento oficioso para questões com relevância para a decisão de mérito.

22) Existe gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, pelo que, nos termos do disposto no artigo 662º, nº 1, do C.P.C., o Tribunal da Relação só devia alterar a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente a gravação e a prova documental), fosse razoável concluir que aquela enferma de erro.

23) O que não ocorre nos presentes autos.

24) Está em causa o modo como o Tribunal recorrido fez uso dos poderes que lhe são conferidos pelo nº 1 do art. 662º, do CPC, nomeadamente quando está ocorre a violação ou a errada aplicação da lei de processo, como prevê o art. 674º, n.º 1, al. b), do mesmo código.

25) Não se pode esquecer que, ao reponderar a decisão sobre a matéria de facto, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, os princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz.

26) O Tribunal de recurso, cinge-se a ouvir a reprodução da gravação da Audiência de Julgamento, não tendo a possibilidade de ter o contacto directo e imediato, que lhe permita a captação das reações das testemunhas.

27) Situação que o limita na valoração da prova testemunhal.

28) O douto Tribunal recorrido para além de não ponderar todos os meios de prova produzidos nos autos (prova documental e testemunhal da testemunha DD e Agente da GNR), sustenta a falta de prova dos factos 14 a 17º através da aplicação restritiva do art. 466º do C.P.C..

29) Entendendo que o depoimento de parte constitui um meio processual através do qual, só se pode obter e provocar a confissão judicial, em que se reconhece a realidade de um facto desfavorável ao declarante (contra se pronuntiatio) e favorável à parte contrária a quem competiria prová-lo (Art. 352 do Código Civil).

30) Corrente ultrapassada com a entrada em vigor do actual Código de Processo Civil, no qual, o depoimento de parte passou a ser um novo meio de prova, veja- se o Art. 466. n.º1. do CPC.

31) Tal mecanismo possibilita que a própria parte seja admitida a depor em casos em que não existam outros meios de prova ou que, embora existindo, a parte se defronta com dificuldades designadamente ligadas com a identificação dos sujeitos que poderiam depor como testemunhas ou com a sua comparência no tribunal;

32) Permite ultrapassar uma situação de desequilíbrio entre as partes no que concerne ao exercício do ónus probatório, o que era especialmente visível em acções de responsabilidade civil por acidente de viação (máxime em casos de colisão de veículos) em que à seguradora era possível indicar como testemunha o seu segurado (e condutor de um dos veículos), ao passo que o outro condutor (parte na acção) estava impedido de, por sua iniciativa, prestar declarações que desempenhassem uma verdadeira função contraditória das que fossem prestadas por aquele.

33) Tendo como argumentos favoráveis, a paridade face a outros meios de prova de livre apreciação com base nos quais pode ser provado o facto (art. 607, n.º5) e a necessidade de o juiz expor os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (n.º 4 do mesmo artigo);

34) O interesse da parte na sorte do litígio não é uma realidade substancialmente distinta da testemunha interessada, sendo a diferença apenas de grau;

35) A parte é quem, em regra, tem melhor razão de ciência; o n.º 3 do art. 466º não degrada o valor probatório das declarações de parte;

36) Simetricamente, no processo penal, as declarações do assistente e das partes civis podem, por si só, sustentar a convicção do tribunal;

37) Há que valorar, em primeiro lugar, as declarações de parte e só depois a pessoa do depoente, porquanto a metodologia contrária implica prejulgar as declarações de parte e incorrer no viés confirmatório.

38) Argumentos que o Tribunal recorrido, incorrectamente, não acolheu.

39) Mesmo que o douto Tribunal tenha pugnado pela aplicação da tese do princípio de prova para apreciar as declarações de parte do ora recorrente, entendendo que as mesmas não são suficientes por si só para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, tinha que conjugar outros meios de prova existentes no processo.

40) O que não fez!

41) Se o tivesse feito, a sua decisão teria, forçosamente que ser diferente da que o Acórdão recorrido apresenta.

42) Existiu nos presentes autos a omissão de pronúncia quanto aos elementos de prova documentais juntos aos autos (que não foram impugnados pelas partes, pelo que aceites pelas mesmas), e uma errada valoração da prova testemunhal.

43) A Relação fez mau uso dos seus poderes-deveres no tocante à reapreciação da matéria de facto.

44) Pelo que, os factos 14 a 17 devem ser dados como provados.

45) Entendeu ainda, o Tribunal recorrido:

- que para a apelante ter direito de reembolso pelo apelado, para além do pagamento da indemnização, tenha-se firmado a responsabilidade daquele na produção do acidente e que este tenha abandonado o sinistrado/lesado após esse evento;

- que o abandono do sinistrado, para além da repulsa social e humana que merece, seja causa de agravamento ou da produção de lesões que de outro modo não ocorreriam;

- e que a materialidade provada traduz ter o apelado actuado de forma dolosa ao se ausentar do local sem que houvesse razão objectiva que tal justificasse, designadamente a necessidade de receber tratamento médico ou por, eventualmente, estar em causa a sua integridade física.

46) Entendimento que fundamenta com aplicação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no Processo:620/12.0T2AND.C1.S1 de UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, datado de 02-07-2015.

47) O mesmo defende o direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do art. 19º do DL 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente. (negrito nosso)

48) Para além do Acórdão, supra referenciado ter tido votos de vencido, os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não gozam de força vinculativa a não ser no âmbito do processo em que são proferidos (artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário).

49) Os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.

50) Razão pela qual, o seu não acatamento pelos tribunais de 1ª instância e Relação constitui motivo para a admissibilidade especial de recurso, nos termos do art. 629º, nº 2, al. c), do CPC.

51) Ao contrário do entendimento do Tribunal recorrido, não basta o condutor responsável pelo sinistro ausentar-se do local, para, por si só, ser considerada a sua conduta dolosa, conforme entendeu erroneamente o Tribunal recorrido.

52) O conceito legal de abandono de sinistrado, pressupõe necessariamente a existência de dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência; (negrito e sublinhado nosso).

53) Não se pode confundir a figura do abandono de sinistrado com a contraordenação, prevista no art. 89º, nº2, do C. Estrada – que sanciona o condutor que não aguarde no local do acidente a chegada de agente de autoridade.

54) A assistência devida aos lesados pode ser prestada pelo próprio ou por terceiros,

55) Não comete o facto doloso de abandono de sinistrado o condutor que, apesar de infringir aquela obrigação de estrita permanência no local, não chegou a formar e consumar a vontade de omitir a prestação da assistência devida aos lesados - afastando-se do local do acidente, nomeadamente por fundadas razões de receio, segurança ou perturbação, mas identificando-se e comunicando imediatamente, acto continuo ao acidente, a ocorrência à competente autoridade policial ou rodoviária.

56) Para o recorrente ser responsabilizado, teria a sua conduta que ser censurável de um ponto de vista ético-jurídico, censura esta que possa ser reconduzida à figura do dolo,

57) O ora recorrente teria de ter a consciência e vontade de abandonar o sinistrado, indiferentemente das consequências que daí poderiam advir – o que não ocorreu.

58) É necessário realizar uma concreta ponderação entre a gravidade e censurabilidade do facto constitutivo do direito de regresso da seguradora e a intensidade e onerosidade que a perda da garantia do seguro envolve, a realizar na óptica do princípio fundamental da proporcionalidade e da adequação.

59) Não está preenchido o facto (constitutivo do direito de regresso) abandono de sinistrado quando o condutor possa ter agido com culpa, mas não dolosamente, na omissão de prestação do auxílio devido ao sinistrado.

60) Para haver dolo, o condutor responsável pelo sinistro tem de desenvolver a formação e consumação de uma vontade deliberada de omitir a prestação da assistência devida à vítima.

61) Situação que não ocorreu nos presentes autos - o Recorrente solicitou que chamassem os bombeiros e ficou claramente perturbado (que se veio a comprovar pelos relatórios médicos juntos aos autos).

62) Apresentou-se ainda de livre e espontânea vontade, no dia seguinte no posto da PSP, junto das autoridades que tomaram conta da ocorrência do sinistro (prova realizada pelo auto de notícia, depoimento das testemunhas DD, Agente de Autoridade BB e pelas declarações do ora Recorrente).

63) Também do ofício junto aos autos pelo INEM a fls. 125 e verso, verifica-se que foi requerido auxílio e assistência para o sinistrado às 21h16m21sg, tendo o sinistro ocorrido pelas 21h15, cerca de 1 minuto e 21 segundos após ter ocorrido o sinistro,

64) Sucede que quando o Recorrente se ausentou do local, já havia sido requerida assistência ao INEM.

65) Todas estas circunstâncias, supra descritas, afastam o dolo.

66)Da factualidade provada em sede de audiência de julgamento, percebe-se que o ora Recorrente não teve consciência da ilicitude em se ausentar do local do sinistro, pelo que não agiu com culpa consciente.

67) Nem agiu com dolo, quer direto (o Recorrente não previu um resultado doloso, e não agiu para realizá-lo), quer indireto ( o Recorrente não quis, omitir a prestação da assistência devida à vítima, nem previu que tal pudesse ou aceitou essa possibilidade).

68) Não existe, nos presentes autos qualquer indício que o Recorrente abandonou o sinistrado dolosamente, com a convicção e uma vontade deliberada de omitir a prestação da assistência devida ao sinistrado.

69) O Tribunal da Relação violou e fez uma errada aplicação da lei do processo, o que gera a nulidade do aresto recorrido, nada impedindo que, nos termos do vertido no artigo 674º do C.P.C. o Supremo Tribunal de Justiça aprecie dessa violação.

70) O Acórdão recorrido viola ainda, o direito a um processo justo e equitativo, consagrado no artigo 6.º da CEDH e o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, preceitua do no artigo20.º, n.º4 da CRP” (cfr. conclusão49.ª).

71) Verifica-se ainda, uma violação dos princípios da certeza e segurança jurídica e o direito ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, que se argui, com as legais consequências.

Nestes termos e naqueles que, como sempre, Vs. Exas. douta e proficientemente suprirão, deve ser dado provimento ao recurso de revista aqui interposto e em consequência, ser revogado o douto acórdão recorrido em conformidade com o acima expendido, como é de elementar, sã e inteira Justiça!!!

9. A Autora Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A., contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

10. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

1. Entende a aqui Recorrida que o mui douto acórdão prolatado pelo Tribunal a quo não se revela merecedora de qualquer tipo de reparo, ou pelo menos, não o merece seguramente no sentido que a Recorrente pretende.

2. O Réu/Recorrente ao recorrer do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, vem alegar que este incorreu numa errada valoração da prova, nomeadamente no que concerne às declarações de parte do próprio Recorrente, dos depoimentos prestados por outras duas testemunhas (CC e BB) e documentos carreados para o processo.

3. Nos termos do disposto no número 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

4. Ora conforme se depreende das alegações do Recorrente, este mais não faz do que identificar elementos de prova produzidos em sede de audiência de julgamento, as suas próprias declarações de parte e documentos juntos aos autos para infirmar que factos que foram considerados como não provados em sede de recurso e apelação, não foram adequadamente valorados.

5. Nesta medida, o recurso formulado pelo Recorrente é inadmissível, já que nesta instância de revista tais elementos já não podem ser reapreciados, pelo que, não deve, assim, ser admitido, ou em última análise não deve merecer provimento

6. Em primeira instância foi considerado como provado que “14 - Deixou os seus documentos identificativos, tal como os do veículo no seu interior e foi de imediato ver se alguém estava no interior do veículo com matrícula ..-..-DJ que se encontrava capotado. 15 - Tendo visto uma pessoa pálida, com aparência de estar desmaiada, não tendo tido perceção se era homem ou mulher. 16 - Pediu a uma jovem ali presente que ligasse para os bombeiros a fim de virem prestar assistência ao condutor do veículo ..-..-DJ, tendo-lhe aquela informado que já estava a ligar. 17 - O Réu completamente atordoado devido ao embate e com toda aquela situação, sem saber o que fazer começou a chorar descontroladamente e andar de lado para lado, tendo saído sem rumo ou orientação.”

7. O recurso de apelação da Recorrente teve por objeto “a determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas no concernente aos factos dados como provados sob os nºs 14, 15, 16, e 17;” e “a determinar se assiste ou não à autora o direito de regresso por abandono do sinistrado, previsto na al. d) do nº 1 do art. 27º do DL nº 291/2007, de 31.12.” para que os pontos 14, 15, 16 e 17 da matéria de fato da sentença proferida em primeira instância fossem considerados como não provados.

8. Considerando o teor das conclusões formuladas pela aqui Recorrida no seu recurso de apelação, encontrava-se o Tribunal a quo vedado a apreciação de outros aspetos, nos termos do disposto no número 4 do artigo 635.º, número 2 do artigo 637.º e números 1 e 2 do artigo 639.º todos do Código de Processo Civil.

9. Pelo que o Tribunal da Relação apenas poderia apreciar a matéria de facto e de direito quanto aos pontos em apreço. O que fez.

10. Às questões objeto do recurso de apelação julgou o Tribunal a quo o seguinte:

“in casu, não ter sido produzida prova consistente que permita a formulação de um juízo positivo sobre as sindicadas afirmações de facto, já que, pelas razões anteriormente alinhadas, as declarações de parte do réu não têm, por si só, essa virtualidade, não se mostrando confirmadas por quaisquer outros subsídios probatórios, sendo antes contrariadas pelos depoimentos das testemunhas BB (que foi o militar da GNR que elaborou o auto de participação junto aos autos) e CC (condutor sinistrado). O primeiro deu notícia que pouco tempo após a ocorrência do acidente aí se deslocou verificando que o condutor do veículo (o ora réu) não se encontrava no local, mencionando no auto que não pôde submeter o mesmo aos testes de álcool e substâncias psicotrópicas “por fuga e abandono do local do acidente”. Já o segundo, quando questionado sobre quem o terá socorrido, referiu que foram pessoas que estavam num café existente nas imediações, que lhe “contaram que o outro condutor que me bateu fugiu do local”. - “Como assim, da ponderação dos meios de prova adrede produzidos, não se antolha razão bastante para a formulação do dito juízo probatório positivo, motivo pela qual as proposições factuais alvo de impugnação terão de transitar para o elenco dos factos não provados.”

11. Motivo pelo qual os factos constantes nos pontos 14, 15,16 e 17 da matéria de facto plasmadas na sentença proferida em primeira instância foram considerados como não provados.

12. Outra não poderia ser a conclusão do Tribunal a quo considerando aquela que foi a prova produzida em sede de audiência e julgamento, tendo valorado adequadamente todos os elementos probatórios e aplicando irrepreensivelmente o direito a tais factos.

13. , considerando ter aquele incorrido em houve violação ou errada aplicação da lei processual (art. 674.º, n.º 1, al. a) b) do CPC) e/ou dos preceitos substantivos relativos ao regime probatório.

14. O Recorrente pretende que o seu depoimento seja valorado de forma diversa, daquilo que o foi por parte do Tribunal a quo.

15. “Como a este propósito tem sido recorrentemente sublinhado pela doutrina e jurisprudência pátrias, a valoração das declarações de parte há de ser feita com parcimónia, já que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação”.

16. Considerando a existência depoimentos contraditórios com as declarações do Recorrente, nomeadamente os depoimentos das testemunhas CC e DD, militar da GNR, nunca poderia o tribunal considerar como provados os factos pela própria parte alegados e, tão só, por ela admitidos (nomeadamente os pontos 14 a 17 da decisão da matéria de facto proferida em primeira instância).

17. Ao contrário do alegado pelo Recorrente a existência de chamadas telefónicas para o INEM a seguir ao sinistro, não são de estranhar, tendo em consideração a audição do estrondo no estabelecimento nas imediações do local do acidente, e ter-se apurado a necessidade de chamar os meios de socorro adequados. Contudo tal situação não permite concluir nos mesmo termos em que o Recorrente pretende fazer.

18. Não obstante as declarações de parte serem um meio de prova admitido, estas devem ser “apreciadas livremente pelo tribunal (art. 466º, nº 3, 1ª parte) e, nessa apreciação, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar.”

19. Veja-se que as declarações do Recorrente vertem uma tese segunda a qual por mais nenhum elemento de prova foi corroborado, ao contrário do que pretende este agora fazer crer.

20. Considerando os depoimentos das demais testemunhas, e o facto de contradizerem o depoimento do Réu/Recorrente (tese que não é corroborada por nenhum meio de prova) outra não poderia ser a decisão do Tribunal a quo que não considerar os aludidos pontos n.º 14 a 17 da matéria de facto da decisão e primeira instância como não provados.

21. Não foi efetuada um juízo subjetivo por parte do julgador, mas um juízo de probabilidade, nomeadamente um “juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundadamente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido.”

22. As declarações de parte foram efetivamente contrariadas pelas testemunhas BB (que foi o militar da GNR que elaborou o auto de participação junto aos autos) e CC (condutor sinistrado).

23. Em nenhum outro elemento probatório a tese do Recorrente, e vertida nos pontos 14, 15, 16 e 17 da factualidade dada como provada na sentença proferida em primeira instância, tem corroboração, para além das já mencionadas declarações de parte do Réu/Recorrente, as quais foram oportuna e adequadamente valoradas por parte do Tribunal da Relação do Porto, e considerados como não provados.

24. Encontra-se verificados os pressupostos estatuídos na al. d) do número 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei número 291/2007, de 21 de agosto, já que o Réu/Recorrente abandonou o sinistrado, conduta que deve ser enquadrada como dolosa.

25. Andou bem o acórdão ora em crise em considerar as doutas palavras do acórdão uniformizador de jurisprudência nº 11/2015, de 02.07.2015, ao considerar que “O abandono de sinistrado pressupõe o dolo do condutor, sendo por isso esta situação logo enquadrável no princípio geral segundo o qual o seguro não cobre definitivamente os riscos decorrentes de factos dolosamente provocados pelo beneficiário ou pelo tomador do seguro.”

26. A conduta do Ré/Recorrente foi dolosa, conforme resultou provado nos autos, não tendo sido demonstrado que este tenha se ausentado do local por motivo atendível, ou que tivesse garantido o socorro imediato do sinistrado, por si ou por terceiro.

27. Na realidade, o Recorrente teve intenção efetiva de sair do local do sinistro, conduta que levou a cabo, o que é demonstrativo de uma atuação dolosa por parte do mesmo.

28. A conduta do Réu não é negligente, já que não agiu por mero descuido, indiferença ou desatenção e sem adotar as devidas precauções.

29. Na realidade o Recorrente abandonou o local do sinistro, bem sabendo que tinha embatido noutro veículo, e face à violência do mesmo – já que o veículo ficou inclusive virado ao contrário – sempre seria de esperar a um homem médio que o outro condutor tivesse sofrido lesões previsivelmente graves.

30. Efetivamente o juízo de censura deve ser reconduzido à figura do dolo, já que efetivamente existiu uma vontade de abandonar o sinistrado.

31. Não estamos de “infrações muito pouco relevantes no plano ético jurídico, cometidas em circunstâncias que justificariam um redúzio ou francamente atenuado juízo de censura, possam conduzir a drásticas perdas patrimoniais, que ponham em causa a sobrevivência económica do abrigado em via de regresso”.

32. É assim, manifesto que a conduta do Recorrente em abandonar o local do sinistro e o sinistrado sempre será dolosa, “entende-se que a mera referência ao abandono já transporta essa intencionalidade do condutor de não acompanhar nem prestar assistência às vítimas, criando um risco acrescido para os danos das vítimas ou o seu agravamento. É que o abandono encerra a presunção natural ou judicial de que o abandonante quis diretamente realizar o facto ilícito – dolo direto, ou previu-o como uma consequência necessária, segura da sua conduta dolo necessário, ou, ainda, previu a produção do facto ilícito como uma consequência possível, eventual, da sua conduta – dolo eventual.”

33. O abandono envolve um elemento intencional, em qualquer das suas gradações, traduzindo um ato livre de afastamento do local do acidente. Por isso, a mera conduta de abandono praticada pelo condutor é suficiente para que a seguradora exerça contra ele o direito de regresso.

34. A conduta efetivamente dolosa do Réu/Recorrente fez nascer o direito de regresso da aqui Recorrida, por via do disposto na al. d) do número 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.

35. Pelo que outra não podia ter sido a decisão do Tribunal da Relação do Porto, que não a revogar a decisão proferida em primeira instância e assim condenar o Recorrente ao pagamento à Recorrida do montante de € 91.851,82 correspondente aos gastos efetivos com a reparação dos lesados civis do acidente em apreços nos autos, acrescidos de juros de mora desde a data da citação, por via do direito de regresso estatuído na al c) do n.º 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007.

NESTES TERMOS e nos melhores de direito, que V. Exas. Mui doutamente suprirão, não deve ser dado provimento ao presente recurso, mantendo-se o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo e, fazendo-se assim, A COSTUMADA E SÃ JUSTIÇA.

11. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código do Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

I. — se o acórdão recorrido incorreu em nulidade por omissão de pronúncia;

II. — se o acórdão recorrido incorreu em erro na aplicação da lei de processo

a. — ao desvalorizar as declarações de parte do Réu, agora Recorrente;

b. — ao desvalorizar os relatórios juntos aos autos pelos Bombeiros e INEM; e/ou

c. — ao desvalorizar os relatórios médicos;

III. — se os factos dados como provados são suficientes para que se dê como preenchida a previsão do artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

12. O Tribunal de 1.ª instância deu como provados os factos seguintes:

1 - No exercício da sua atividade, a Autora, celebrou com o Réu um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório titulado pela apólice nº ..........46, através do qual foi para si transferido o risco de circulação do veículo de matrícula ..-..-DO.

2 - No dia 28 de maio de 2015, sensivelmente pelas 21h15, ocorreu um acidente de viação no km 253.200, na Estrada Nacional n.º 1, da freguesia da ..., concelho de ....

3 - No referido acidente foram intervenientes o veículo de matrícula DO, conduzido pelo Réu e o veículo de matrícula ..-..-DJ, conduzido por CC.

4 - Em consequência desse acidente foi intentada uma ação no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Central Cível de ... - ... 3, com o n.º de processo 4047/16.7..., pelo condutor do veículo DJ, CC, contra o Réu e o Fundo de Garantia Automóvel.

5 - Tendo a Autora sido chamada a intervir nos autos, como associada ao Réu, em virtude do contrato de seguro titulado pela apólice identificada no ponto 1 dos factos provados.

6 - Na sequência dessa ação, ficaram demonstrados, entre outros, os seguintes factos:

a) A Estrada Nacional 1, o local do sinistro configura uma reta.

b) No local do sinistro, a Estrada Nacional 1 comporta dois sentidos de marcha, com uma via de circulação em cada sentido,

c) Delimitadas entre si por um traço contínuo delineado no pavimento ao eixo da via, ladeado por traços descontínuos na zona do entroncamento.

d) No local onde se deu o sinistro, a Estrada Nacional 1 é entroncada pelo lado esquerdo, considerando o sentido Lisboa – Porto, pela Estrada Nacional 1-12.

e) Estrada essa também com duas vias de trânsito e dois sentidos de marcha.

f) No topo de cada uma das estradas e imediatamente antes do entroncamento, estão implantados nos respetivos lados direitos das vias de circulação, sinais luminosos de regulação de trânsito (semáforos).

g) O acidente ocorreu de noite.

h) Contudo, havia iluminação proveniente dos postes públicos de iluminação nos passeios, das habitações e estabelecimentos comerciais,

i) Os quais se encontravam em funcionamento.

j) Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o condutor do veículo DJ, circulava na Estrada Nacional n.º 1 no sentido Lisboa/Porto, pela hemi-faixa de rodagem direita da estrada, atento o sentido Lisboa – Porto.

l) Ao aproximar-se do entroncamento supra descrito e pretendendo seguir em frente, constatou que o semáforo que se lhe deparava à sua frente se encontrava com a luz verde ligada.

m) Pelo que prosseguiu a sua marcha (em frente).

n) Quando já se encontrava a concluir a travessia do entroncamento, o condutor do veículo DJ foi violentamente embatido pelo veículo de matrícula DO.

o) Ora, o condutor do veículo DO, circulava na EN 1-12, no sentido Estarreja – Branca.

p) Quando, chegado ao supra referido entroncamento com a Estrada Nacional n.º 1,

q) Não obstante o semáforo, que se lhe apresentava a emitir luz vermelha, prosseguiu a marcha para a zona do entroncamento, nele penetrou com a direção do DO virada para a direção do Porto

r) Atravessou a hemi-faixa de rodagem esquerda (sentido Lisboa-Porto), entrou na da direita.

s) Indo então embater com a frente do veículo DO na lateral esquerda do veículo DJ, junto à roda traseira.

t) Após o embate, o veículo DJ prosseguiu a sua marcha, desgovernado, tendo ido embater em duas casas e num motociclo ali estacionado.

t) Acabando por se imobilizar parcialmente sobre o passeio da EN 1 no sentido Lisboa/Porto, capotado.

u) Por sua vez, o veículo de matrícula DO, prosseguiu, igualmente a marcha, indo embater na entrada de um estabelecimento comercial e num velocípede que ali se encontrava,

v) Acabando por imobilizar-se no lado esquerdo da estrada da EN 1, no sentido Lisboa/Porto, junto ao semáforo ali implantado.

x) Do exposto resultaram lesões corporais para o condutor do veículo DJ, bem como danos em ambos os veículos intervenientes.

z) O condutor do veículo DJ foi assistido no local pelo INEM, tendo sido posteriormente transportado também para o Centro Hospitalar e Universitário de ....

aa) Tendo dado entrada, no mesmo dia, pelas 23h51m, no serviço de urgência da referida unidade hospitalar, em coma.

bb) Feita a triagem foi-lhe atribuída prioridade “vermelho – emergente”.

cc) Foram realizados TAC crânio-encefálico, TAC torácica, TAC abdominal, TAC da coluna cervical e radiografia do ombro direito.

dd) O condutor do veículo DJ sofreu ainda, em resultado do sinistro, uma amputação do pavilhão auricular direito (dois terços do mesmo), tendo sido submetido a uma sutura de retalhos traumáticos da orelha direita.

ee) Tendo sido medicado com analgésicos.

ff) O resultado conjunto de tais lesões determinou o imediato internamento do condutor do veículo DJ naquela unidade hospitalar, no Serviço de Medicina Intensiva (SMI), sendo posteriormente transferido para o serviço de ortopedia.

gg) Permanecendo internado até dia 1 de Julho de 2015, data em que teve alta hospitalar.

hh) Sendo remetido para o domicílio, com indicação para uso de colar cervical antálgico e continuação de tratamentos (pensos) de uma ferida existente na região occipital.

ii) O condutor do veículo DJ desenvolveu uma úlcera de pressão na região occipital, tendo de recorrer aos serviços do Centro Médico da ... (Clínica Médica Privada de V..., Lda), onde realizou 13 tratamentos, até à total cicatrização dessa lesão.

jj) Necessitou de fazer tratamentos, designadamente sessões de fisioterapia, na Clínica de Reabilitação Física de D..., Lda., sita em ....

kk) Em virtude das lesões e tratamentos a que foi sujeito, teve dores, tendo o quantum doloris sido fixado no grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

ll) O condutor do veículo DJ teve cefaleias, decorrentes das sequelas do traumatismo crânio-encefálico que sofreu, às quais acresceram tonturas.

mm) Tinha dor, à palpação, no membro superior direito, na zona em correspondência com a articulação acrómio-clavicular, tendo ainda dor no movimento de rotação interna do ombro direito

nn) Carecendo de medição analgésica regular em virtude das dores que o afetavam.

oo) Para além de ter perdido dois terços do pavilhão auricular direito, ficou ainda com uma cicatriz na região occipital, medindo 4cm de comprimento por um 1cm de largura, dano, ao nível estético, que foi fixado no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

pp) Em resultado das sequelas decorrentes do acidente, apresentou um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 15 pontos.

7 - Ao local deslocaram-se as Autoridades do destacamento de Trânsito de ..., tendo verificado que o Réu não estava no local.

8 - Por sentença proferida a 13 de junho de 2019, no âmbito do processo 4047/16.7..., transitada em julgado, foi a Autora condenada a pagar ao condutor do veículo DJ, CC a quantia de 70.593,00 € (setenta mil e quinhentos e noventa e três euros), a título de indemnização global pelos danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento e ainda condenada a pagar a quantia que se viesse a liquidar em incidente próprio referente a despesas de medicação.

9 - A Autora liquidou ao condutor do veículo DJ, CC, a quantia de 70.593,00€ acrescido de juros, no montante total de 80.116,29 €.

10 – O Centro Hospitalar e Universitário de ... também intentou uma ação declarativa de condenação contra a Autora, o Réu e o Fundo de Garantia Automóvel, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo de Competência Genérica de ... - ... 1, com o n.º de processo n.º 157/18.4..., pelos encargos com a assistência hospitalar ao condutor do veículo DJ, no montante de € 11.735,53 (Onze mil setecentos e trinta e cinco euros e cinquenta e três cêntimos).

11 - Nesse processo foi celebrada transação, na qual a Autora se reconheceu devedora da quantia peticionada, tendo a mesma, sido homologada por Sentença.

12 - Assim, liquidou a Autora ao Centro Hospitalar e Universitário de ..., o valor de € 11.735,53 (Onze mil setecentos e trinta e cinco euros e cinquenta e três cêntimos).

13 - O réu na sequência do embate, saiu do veículo.

14 - Deixou os seus documentos identificativos, tal como os do veículo no seu interior e foi de imediato ver se alguém estava no interior do veículo com matrícula ..-..-DJ que se encontrava capotado.

15 - Tendo visto uma pessoa pálida, com aparência de estar desmaiada, não tendo tido perceção se era homem ou mulher.

16 - Pediu a uma jovem ali presente que ligasse para os bombeiros a fim de virem prestar assistência ao condutor do veículo ..-..-DJ, tendo-lhe aquela informado que já estava a ligar.

17 - O Réu completamente atordoado devido ao embate e com toda aquela situação, sem saber o que fazer começou a chorar descontroladamente e andar de lado para lado, tendo saído sem rumo ou orientação.

18 - Os familiares (filho e esposa) souberam por terceiros do acidente, tendo ido à procura do mesmo, tendo-o encontrado de madrugada a chorar e completamente desorientado.

19 - Logo pela manhã do dia 29-05-2015, após se acalmar, o Réu apresentou-se de livre e espontânea vontade nos serviços da PSP de ..., para se identificar e prestar declarações sobre o sinistro.

20 - Foi elaborado auto de contraordenação n.º .......20, por abandono do local do sinistro antes da chegada das autoridades, sendo a contraordenação arquivada por prescrição

21 - Logo após o acidente começaram-se a juntar muitas pessoas e, de imediato, foi realizado o pedido de auxílio para emergência médica.

13. Em contrapartida, o Tribunal de 1.ª instância deu como não provados os factos seguintes:

A - O réu na sequência da violência do embate, batesse com a cabeça no volante.

B - O Réu se colocasse em fuga e iniciasse a sua fuga colocando o veículo DO em marcha.

C- Os familiares (filho e esposa) encontrassem o Réu na berma da estrada.

D - O Réu deduzisse defesa na contraordenação referida em 20.

14. O Tribunal da Relação deu como não provados os factos que o Tribunal de 1.ª instância dera como provados sob os n.ºs 14, 15, 16 e 17.

15. Em consequência da alteração,

— o Tribunal da Relação deu como provados os factos seguintes:

1 - No exercício da sua atividade, a Autora, celebrou com o Réu um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório titulado pela apólice nº ..........46, através do qual foi para si transferido o risco de circulação do veículo de matrícula ..-..-DO.

2 - No dia 28 de maio de 2015, sensivelmente pelas 21h15, ocorreu um acidente de viação no km 253.200, na Estrada Nacional n.º 1, da freguesia da ..., concelho de ....

3 - No referido acidente foram intervenientes o veículo de matrícula DO, conduzido pelo Réu e o veículo de matrícula ..-..-DJ, conduzido por CC.

4 - Em consequência desse acidente foi intentada uma ação no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Central Cível de ... - ... 3, com o n.º de processo 4047/16.7..., pelo condutor do veículo DJ, CC, contra o Réu e o Fundo de Garantia Automóvel.

5 - Tendo a Autora sido chamada a intervir nos autos, como associada ao Réu, em virtude do contrato de seguro titulado pela apólice identificada no ponto 1 dos factos provados.

6 - Na sequência dessa ação, ficaram demonstrados, entre outros, os seguintes factos:

a) A Estrada Nacional 1, o local do sinistro configura uma reta.

b) No local do sinistro, a Estrada Nacional 1 comporta dois sentidos de marcha, com uma via de circulação em cada sentido,

c) Delimitadas entre si por um traço contínuo delineado no pavimento ao eixo da via, ladeado por traços descontínuos na zona do entroncamento.

d) No local onde se deu o sinistro, a Estrada Nacional 1 é entroncada pelo lado esquerdo, considerando o sentido Lisboa – Porto, pela Estrada Nacional 1-12.

e) Estrada essa também com duas vias de trânsito e dois sentidos de marcha.

f) No topo de cada uma das estradas e imediatamente antes do entroncamento, estão implantados nos respetivos lados direitos das vias de circulação, sinais luminosos de regulação de trânsito (semáforos).

g) O acidente ocorreu de noite.

h) Contudo, havia iluminação proveniente dos postes públicos de iluminação nos passeios, das habitações e estabelecimentos comerciais,

i) Os quais se encontravam em funcionamento.

j) Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o condutor do veículo DJ, circulava na Estrada Nacional n.º 1 no sentido Lisboa/Porto, pela hemi-faixa de rodagem direita da estrada, atento o sentido Lisboa – Porto.

l) Ao aproximar-se do entroncamento supra descrito e pretendendo seguir em frente, constatou que o semáforo que se lhe deparava à sua frente se encontrava com a luz verde ligada.

m) Pelo que prosseguiu a sua marcha (em frente).

n) Quando já se encontrava a concluir a travessia do entroncamento, o condutor do veículo DJ foi violentamente embatido pelo veículo de matrícula DO.

o) Ora, o condutor do veículo DO, circulava na EN 1-12, no sentido Estarreja – Branca.

p) Quando, chegado ao supra referido entroncamento com a Estrada Nacional n.º 1,

q) Não obstante o semáforo, que se lhe apresentava a emitir luz vermelha, prosseguiu a marcha para a zona do entroncamento, nele penetrou com a direção do DO virada para a direção do Porto

r) Atravessou a hemi-faixa de rodagem esquerda (sentido Lisboa-Porto), entrou na da direita.

s) Indo então embater com a frente do veículo DO na lateral esquerda do veículo DJ, junto à roda traseira.

t) Após o embate, o veículo DJ prosseguiu a sua marcha, desgovernado, tendo ido embater em duas casas e num motociclo ali estacionado.

t) Acabando por se imobilizar parcialmente sobre o passeio da EN 1 no sentido Lisboa/Porto, capotado.

u) Por sua vez, o veículo de matrícula DO, prosseguiu, igualmente a marcha, indo embater na entrada de um estabelecimento comercial e num velocípede que ali se encontrava,

v) Acabando por imobilizar-se no lado esquerdo da estrada da EN 1, no sentido Lisboa/Porto, junto ao semáforo ali implantado.

x) Do exposto resultaram lesões corporais para o condutor do veículo DJ, bem como danos em ambos os veículos intervenientes.

z) O condutor do veículo DJ foi assistido no local pelo INEM, tendo sido posteriormente transportado também para o Centro Hospitalar e Universitário de ....

aa) Tendo dado entrada, no mesmo dia, pelas 23h51m, no serviço de urgência da referida unidade hospitalar, em coma.

bb) Feita a triagem foi-lhe atribuída prioridade “vermelho – emergente”.

cc) Foram realizados TAC crânio-encefálico, TAC torácica, TAC abdominal, TAC da coluna cervical e radiografia do ombro direito.

dd) O condutor do veículo DJ sofreu ainda, em resultado do sinistro, uma amputação do pavilhão auricular direito (dois terços do mesmo), tendo sido submetido a uma sutura de retalhos traumáticos da orelha direita.

ee) Tendo sido medicado com analgésicos.

ff) O resultado conjunto de tais lesões determinou o imediato internamento do condutor do veículo DJ naquela unidade hospitalar, no Serviço de Medicina Intensiva (SMI), sendo posteriormente transferido para o serviço de ortopedia.

gg) Permanecendo internado até dia 1 de Julho de 2015, data em que teve alta hospitalar.

hh) Sendo remetido para o domicílio, com indicação para uso de colar cervical antálgico e continuação de tratamentos (pensos) de uma ferida existente na região occipital.

ii) O condutor do veículo DJ desenvolveu uma úlcera de pressão na região occipital, tendo de recorrer aos serviços do Centro Médico da ... (Clínica Médica Privada de V..., Lda), onde realizou 13 tratamentos, até à total cicatrização dessa lesão.

jj) Necessitou de fazer tratamentos, designadamente sessões de fisioterapia, na Clínica de Reabilitação Física de D..., Lda., sita em ....

kk) Em virtude das lesões e tratamentos a que foi sujeito, teve dores, tendo o quantum doloris sido fixado no grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

ll) O condutor do veículo DJ teve cefaleias, decorrentes das sequelas do traumatismo crânio-encefálico que sofreu, às quais acresceram tonturas.

mm) Tinha dor, à palpação, no membro superior direito, na zona em correspondência com a articulação acrómio-clavicular, tendo ainda dor no movimento de rotação interna do ombro direito

nn) Carecendo de medição analgésica regular em virtude das dores que o afetavam.

oo) Para além de ter perdido dois terços do pavilhão auricular direito, ficou ainda com uma cicatriz na região occipital, medindo 4cm de comprimento por um 1cm de largura, dano, ao nível estético, que foi fixado no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

pp) Em resultado das sequelas decorrentes do acidente, apresentou um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 15 pontos.

7 - Ao local deslocaram-se as Autoridades do destacamento de Trânsito de ..., tendo verificado que o Réu não estava no local.

8 - Por sentença proferida a 13 de junho de 2019, no âmbito do processo 4047/16.7..., transitada em julgado, foi a Autora condenada a pagar ao condutor do veículo DJ, CC a quantia de 70.593,00 € (setenta mil e quinhentos e noventa e três euros), a título de indemnização global pelos danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento e ainda condenada a pagar a quantia que se viesse a liquidar em incidente próprio referente a despesas de medicação.

9 - A Autora liquidou ao condutor do veículo DJ, CC, a quantia de 70.593,00€ acrescido de juros, no montante total de 80.116,29 €.

10 – O Centro Hospitalar e Universitário de ... também intentou uma ação declarativa de condenação contra a Autora, o Réu e o Fundo de Garantia Automóvel, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo de Competência Genérica de ... - ... 1, com o n.º de processo n.º 157/18.4..., pelos encargos com a assistência hospitalar ao condutor do veículo DJ, no montante de € 11.735,53 (Onze mil setecentos e trinta e cinco euros e cinquenta e três cêntimos).

11 - Nesse processo foi celebrada transação, na qual a Autora se reconheceu devedora da quantia peticionada, tendo a mesma, sido homologada por Sentença.

12 - Assim, liquidou a Autora ao Centro Hospitalar e Universitário de ..., o valor de € 11.735,53 (Onze mil setecentos e trinta e cinco euros e cinquenta e três cêntimos).

13 - O réu na sequência do embate, saiu do veículo. […]

18 - Os familiares (filho e esposa) souberam por terceiros do acidente, tendo ido à procura do mesmo, tendo-o encontrado de madrugada a chorar e completamente desorientado.

19 - Logo pela manhã do dia 29-05-2015, após se acalmar, o Réu apresentou-se de livre e espontânea vontade nos serviços da PSP de ..., para se identificar e prestar declarações sobre o sinistro.

20 - Foi elaborado auto de contraordenação n.º .......20, por abandono do local do sinistro antes da chegada das autoridades, sendo a contraordenação arquivada por prescrição

21 - Logo após o acidente começaram-se a juntar muitas pessoas e, de imediato, foi realizado o pedido de auxílio para emergência médica.

II. — em contrapartida, o Tribunal da Relação deu como não provados os factos seguintes:

A - [Que] O réu na sequência da violência do embate, batesse com a cabeça no volante.

B - [Que] O Réu se colocasse em fuga e iniciasse a sua fuga colocando o veículo DO em marcha.

C- [Que] Os familiares (filho e esposa) encontrassem o Réu na berma da estrada.

D - [Que] O Réu deduzisse defesa na contraordenação referida em 20.

— “[Que o réu] [deixasse] os seus documentos identificativos, tal como os do veículo no seu interior e [fosse] de imediato ver se alguém estava no interior do veículo com matrícula ..-..-DJ que se encontrava capotado” (ponto nº 14);

— “Tendo visto uma pessoa pálida, com aparência de estar desmaiada, não tendo tido perceção se era homem ou mulher” (ponto nº 15);

— “[Que o réu pedisse] a uma jovem ali presente que ligasse para os bombeiros a fim de virem prestar assistência ao condutor do veículo ..-..-DJ, tendo-lhe aquela informado que já estava a ligar” (ponto nº 16);

—. “[Que] O Réu completamente atordoado devido ao embate e com toda aquela situação, sem saber o que fazer [começasse] a chorar descontroladamente e andar de lado para lado, tendo saído sem rumo ou orientação” (ponto nº 17).

O DIREITO

16. A primeira questão suscitada consiste em determinar se o acórdão recorrido incorreu em nulidade por omissão de pronúncia.

17. O Réu, agora Recorrente, alega que

42) Existiu nos presentes autos a omissão de pronúncia quanto aos elementos de prova documentais juntos aos autos (que não foram impugnados pelas partes, pelo que aceites pelas mesmas), e uma errada valoração da prova testemunhal.

18. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, constantemente, que “[p]ara efeitos de nulidade de sentença/acórdão há que não confundir ‘questões’ com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes nos seus articulados, e aos quais o tribunal não tem obrigação de dar resposta especificada ou individualizada, sem com isso incorrer em omissão de pronúncia” 1.

19. Em concreto, a pronúncia sobre os elementos de prova indicados seria tão-só uma pronúncia sobre argumentos, considerações ou motivos — nunca seria uma pronúncia sobre questões de que o tribunal devesse conhecer..

20. O Réu, agora Recorrente, admite, ainda que implicitamente, que o Tribunal a quo decidiu todas as questões sobre as quais foi chamado a pronunciar-se, alegando tão-só que não apreciou “todos os fundamentos ou razões em que [se apoiou] para sustentar a sua pretensão” 2 — em concreto, que não se pronunciou sobre todos os meios de prova sobre os quais o Réu, agora Recorrente, pretendia que o Tribunal se pronunciasse.

21. Em consequência, a alegada omissão de pronúncia nunca seria relevante para efeitos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do Código de Processo Civil.

22. A segunda questão suscitada consiste em determinar se o acórdão recorrido incorreu em erro na aplicação da lei de processo:

a. — ao desvalorizar as declarações de parte do Réu, agora Recorrente;

b. — ao desvalorizar os relatórios juntos aos autos pelos Bombeiros e INEM;

c. — ao desvalorizar os relatórios médicos.

23. Os princípios gerais sobre a admissibilidade e sobre o valor das declarações de parte constam do artigo 466.º do Código de Processo Civil 3. O n.º 1 do artigo 466.º pronuncia-se sobre a admissibilidade 4 e o n.º 3, sobre o valor das declarações de parte, dizendo que

O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.

24. O artigo 466.º, n.º 3, em ligação com o artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, está no centro de uma controvérsia entre duas teses — entre a tese de que as declarações de parte não são e não podem ser suficientes e a tese de que as declarações de parte são ou podem ser, suficientes para sustentar uma decisão sobre um facto.

Considerar-se que as declarações de parte não podem ser suficientes significaria que não são um meio de prova como outro qualquer; que só podem funcionar antes ou depois dos demais meios de prova, com carácter supletivo 5; considerar-se que as declarações de parte podem ser, só por si suficientes, significaria que são um meio de prova como outro qualquer — e que, “como outro qualquer, pode suportar só por si uma decisão sobre um facto” 6 7.

Significaria uma normalização do valor probatório das declarações de parte 8.

25. Em todo o caso, a controvérsia é irrelevante para a decisão do caso sub judice.

26. O ponto de partida para a resolução do caso deve procurar-se no princípio da livre apreciação das provas — e, entre os corolários do princípio da livre apreciação está “a avaliação das declarações tendo em conta a sua proveniência” 9.

27. O Tribunal da Relação, ao avaliar as declarações de parte tendo em conta a sua proveniência, considerou que as declarações do Réu, agora Recorrente, não eram suficientes para que se desse como provados os factos descritos sob os n.ºs 14 a 17.

28. O Réu, agora Recorrente, está em substância a invocar um erro na apreciação das provas.

29. Ora o artigo 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova..

30. Como se escreve, p. ex., nos acórdãos de 14 de Dezembro de 2016 — proferido no processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1 —, de 12 de Julho de 2018 — proferido no processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1 — e de 12 de Fevereiro de 2019 — proferido no processo n.º 882/14.9TJVNF-H.G1.A1 —,

“… o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil), estando-lhe interdito sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. Só relativamente à designada prova vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou fixa a força de determinado meio de prova, poderá exercer os seus poderes de controlo em sede de recurso de revista” 10.

“… está vedado ao STJ conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada, ou seja quando está em causa um erro de direito (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, nº 2)” 11.

31. Em consequência, o Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer da questão suscitada.

32. Entrando agora na alegada desvalorização dos relatórios juntos aos autos pelos Bombeiros e INEM e dos relatórios médicos.

33. Os factos que o Réu, agora Recorrente, pretende que sejam dados como provados são os seguintes:

— “[Que o réu] [deixasse] os seus documentos identificativos, tal como os do veículo no seu interior e [fosse] de imediato ver se alguém estava no interior do veículo com matrícula ..-..-DJ que se encontrava capotado” (ponto nº 14);

— “Tendo visto uma pessoa pálida, com aparência de estar desmaiada, não tendo tido perceção se era homem ou mulher” (ponto nº 15);

— “[Que o réu pedisse] a uma jovem ali presente que ligasse para os bombeiros a fim de virem prestar assistência ao condutor do veículo ..-..-DJ, tendo-lhe aquela informado que já estava a ligar” (ponto nº 16);

—. “[Que] O Réu completamente atordoado devido ao embate e com toda aquela situação, sem saber o que fazer [começasse] a chorar descontroladamente e andar de lado para lado, tendo saído sem rumo ou orientação” (ponto nº 17).

34. Ora nem o relatório dos Bombeiros, nem o relatório do INEM, nem tão-pouco os relatórios médicos seriam relevantes para dar como provados os factos descritos sob os n.ºs 14 a 17.

35. O Réu, agora Recorrente, admite-o, ainda que só implicitamente 12 — o acidente deu-se pelas 21.15; os Bombeiros chegaram ao local pelas 21.35 e o INEM chegou ao local pelas 21.52 13.

36. Os relatórios de quem chegou ao local ca. de 20 ou ca. de 40 minutos depois do acidente são irrelevantes para a prova do que se deu imediatamente a seguir ao acidente.

37. O raciocínio aplica-se a fortiori aos relatórios médicos — a perturbação do Réu, agora Recorrente, só poderia ser avaliada algum tempo depois do acidente e o stress pós-traumático só poderia ser avaliado muito tempo depois do acidente.

38. Em consequência, o Supremo Tribunal de Justiça não deve conhecer da questão suscitada — a formulação de um juízo sobre o valor probatório de documentos que nunca seriam suficientes para que se desse como provados os factos controvertidos sempre seria a formulação de um juízo inútil.

39. A terceira questão consiste em determinar se os factos dados como provados são suficientes para que se dê como preenchida a previsão do artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

40. O Réu agora Recorrente, alega duas coisas:

I. — que não houve o abandono doloso do sinistrado exigido pelo artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto;

II. — que, ainda que houvesse abandono doloso, sempre deveria desaplicar-se a doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 11/2015, de 2 de Julho de 2015, para que o Réu, agora Recorrente, respondesse tão-só pelos danos que danos que o abandono tivesse especificamente causado ou agravado.

41. O acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 11/2015, de 2 de Julho de 2015, desenvolve uma interpretação restritiva do conceito de abandono do lesado relevante para efeitos do artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto 14.

42. O conceito de abandono do sinistrado — diz-se na fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 11/2015 —

“pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência. Não está, assim, preenchido o facto (constitutivo do direito de regresso) abandono de sinistrado quando o condutor não se apercebe efectivamente do acidente em que interveio, podendo e devendo, todavia, ter-se apercebido, por exemplo, do atropelamento da vítima se agisse com a diligência devida – actuando, deste modo, com culpa, mas não dolosamente, na omissão de prestação do auxílio devido ao sinistrado.”.

43. Entre as aplicações do princípio de que o abandono do sinistrado relevante para efeitos do artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007 estão, p. ex., as decisões proferidas nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 2024 — processo n.º 8585/20.9T8PRT.P1.S1 15 — e de 18 de Junho de 2024 — processo n.º 1585/21.3T8VFR.P1.S1 16.

44. Ora dolo deve apreciar-se atendendo a dois elementos. Em primeiro lugar, atendendo a um elemento intelectual. O lesante deve ter consciência de ter causado o acidente 17 e de, através do acidente, ter causado vítimas 18. Em segundo lugar, atendendo a um elemento volitivo. O lesante deve ter-se conformado o resultado da omissão de auxílio ao sinistrado.

45. A fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 11/2015 diz, expressamente, que, “podendo a assistência devida aos lesados ser prestada pelo próprio ou por terceiros, não comete o facto doloso de abandono de sinistrado o condutor que, apesar de infringir aquela obrigação de estrita permanência no local, não chegou a formar e consumar a vontade de omitir a prestação da assistência devida aos lesados”.

46. Os factos dados como provados — designadamente, o facto dado como provado sob o n.º 13 — permitem sustentar que se encontra preenchido o elemento intelectual do dolo; embora permitam sustentar que se encontra preenchido o elemento intelectual, não permitem sustentar que se encontre preenchido o elemento volitivo do dolo.

46. O facto dado como provado sob o n.º 21 é do seguinte teor:

21 - Logo após o acidente começaram-se a juntar muitas pessoas e, de imediato, foi realizado o pedido de auxílio para emergência médica.

47. Em face das circunstâncias descritas, o lesante não terá sequer representado como possível o resultado da omissão da assistência — e, não o tendo sequer representado como possível, não pode ter-se conformado com o resultado ilícito 19.

48. Em resposta à terceira questão, dir-se-á que os factos dados como provados não são suficientes para que se dê como preenchida a previsão do artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

Custas pela Autora Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A.

Lisboa, 19 de Setembro de 2024

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

António Barateiro Martins

Nuno Ataíde das Neves

_____


1. Cf. designadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Março de 2014 — processo n.º 555/2002.E2.S1.

2. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V — Artigos 658.º a 720.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1984 (reimpressão), pág. 143.

3. Sobre a interpretação do artigo 466.º do Código de Processo Civil, vide desenvolvidamente José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao artigo 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018 (reimpressão), págs. 307-310; António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao artigo 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 529-532; Rui Pinto, anotação ao artigo 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 545.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 669-682; Maria dos Prazeres Beleza, “A prova por declarações de parte: uma desnecessária duplicação das alegações das partes ou uma prova útil?” (inédito); ou Luís Filipe Pires de Sousa, “Declarações de parte. Uma síntese”, in: WWW: < http://www.trl.mj.pt/PDF/As%20declaracoes%20de%20parte.%20Uma%20sintese.%202017.pdf >.

4. O artigo 466.º, n.º 1, do Código de Processo Civil é do seguinte teor: “As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.a instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto”.

5. Cf. António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao artigo 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), cit., pág. 532.

6. Rui Pinto, anotação ao artigo 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 545.º, cit., pág. 680.

7. Em termos semelhantes, vide os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2015 — processo n.º 607/06.2TBPMS.C1.S1 —, de 4 de Junho de 2015 — processo n.º 3852/09.5TJVNF.G1.S1 — e de 14 de Dezembro de 2016 — processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1.

8. Cf. Rui Pinto, anotação ao artigo 466.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 545.º, cit., pág. 680.

9. Cf. Maria dos Prazeres Beleza, “A prova por declarações de parte: uma desnecessária duplicação das alegações das partes ou uma prova útil?”, cit., pág. 21.

10. Cf. do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016 — processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1.

11. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2018 — processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1.

12. Cf. conclusões 15 a 19 do recurso de revista.

13. Cf. conclusão n.º 15 do recurso de revista.

14. Sobre o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 11/2015, vide por todos Margarida Lima Rego, "O direito de regresso do segurador contra o condutor em caso de abandono do sinistrado", in: Cadernos de Direito Privado, n.º 53 — 2016, págs. 18-41.

15. Em cujo sumário se escreve que “[o] abandono de sinistrado pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência”.

16. Em cujo sumário se escreve que “[o] conceito de abandono de sinistrado pressupõe necessariamente, para efeitos de tornar operativo o direito de regresso da seguradora (artigo 27.º, n.º 1, al. d), do DL n.º 291/2007, de 21.08), que tenha existido dolo do condutor na conduta omissiva, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência”.

17. Como se diz na fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 2024 — processo n.º 8585/20.9T8PRT.P1.S1 —, “prima facie, para estarmos perante um caso de abandono de sinistrado, será necessário, previamente, que o condutor tenha consciência que provocou um acidente com outro veículo, não sendo bastante, que tenha possibilidade de o ver quando o estava a ultrapassar, sem que por isso se tenha apercebido de qualquer colisão com outro veículo”.

18. Como se diz na fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 2024 — processo n.º 8585/20.9T8PRT.P1.S1 —, “só há abandono doloso do sinistrado, se o condutor do veículo souber que o acidente provocou vítimas ou, se […] em face das circunstâncias em que o embate ocorreu, fosse previsível que [as] houvesse”.

19. Cf. Margarida Lima Rego, "O direito de regresso do segurador contra o condutor em caso de abandono do sinistrado”, cit., pág. 38: “Não caberiam [no] conceito [de abandono do sinistrado] […] os casos em que a vítima se encontra rodeada de quem a possa acudir, não representando o afastamento do condutor qualquer perigo para a sua vida ou integridade física […]. Parece que todos estes casos ficariam de fora da previsão da norma, à luz da interpretação que lhe é dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, sustentada no âmbito de aplicação do crime de omissão de auxílio tipificado no artigo 200.º do Código Penal”.