Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P2691
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
LIMITES DA CONDENAÇÃO
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
PERDÃO
Nº do Documento: SJ200710180026915
Data do Acordão: 10/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :

I - Face ao disposto no art.º 29.º, n.º 4, da CRP, o que conta para se aferir se houve mudança da lei penal não é apenas o momento da conduta, mas, se for caso disso, o momento da verificação dos pressupostos da aplicação da pena ou da medida de segurança.
II - Ora, no caso de concurso superveniente de crimes, como sucede nos autos, isto é, quando há que aplicar uma pena única por, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes (art.º 78.º do CP), a verificação dos respectivos pressupostos só pode ser feita, por definição, depois de “se mostrar” (é a expressão legal) que ocorre o concurso.
III - Daí que, quando se está perante um concurso superveniente de crimes já objecto de anteriores condenações, a lei penal aplicável no tempo para se determinar a medida abstracta da pena única é a do momento da última condenação, pois é esse o momento em que se “mostra” a existência do concurso de crimes.
IV - Pode suceder, todavia, que algumas das sentenças respeitantes a certas penas parcelares tenham sido proferidas no domínio de uma legislação penal mais favorável, enquanto que outras não. Nesse caso, há que verificar se representa um benefício para o arguido formular uma pena única tão só com as penas parcelares que beneficiariam do regime penal mais favorável, deixando de fora as restantes, ou se, em alternativa, se deve fazer um cúmulo que abranja todas as penas, mas aferido pelo regime penal aplicável no momento da última condenação (pois só então se verificaram os respectivos pressupostos desse concurso superveniente).
V - Para proceder ao cúmulo jurídico de penas em concurso de infracções quando só algumas beneficiam de perdão, há que seguir estes passos:
1.° Efectua-se o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, independentemente de alguma delas beneficiarem de perdão e, assim, obtém-se a pena única;
2.° Calcula-se o perdão, após se ficcionar um cúmulo jurídico parcelar das penas que por ele estão abrangidas;
3.° Faz-se incidir o perdão assim calculado sobre a pena única inicial, mas o perdão tem como limite máximo a soma das parcelas das penas “perdoáveis”, tal como encontradas na operação de cálculo dessa pena única inicial.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Pelo Tribunal Colectivo de Tomar, no âmbito do processo n.º 354/93.3JATMR do 2º Juízo e por ser o tribunal da última condenação, foi julgado um concurso de infracções por crimes já anteriormente julgados e com penas transitadas em julgado, para aplicação de uma pena única, relativamente ao arguido A, tendo este sido condenado, por Acórdão de 15 de Janeiro de 2007, na pena única de 25 anos de prisão. Foi ainda considerado extinto pelo perdão decorrente da Lei n.º 29/99, 12 de Maio, a pena aplicada no processo comum colectivo n.º 141/98.2TACSC do 3º Juízo Criminal de Cascais.
Na referida pena única foram consideradas as seguintes penas parcelares:
a) no mesmo processo de Tomar, por acórdão proferido em 16 de Outubro de 2006 e transitado em julgado em 22 de Novembro do 2006, por factos praticados na noite de 11 para 12 de Junho de 1993, foi condenado como reincidente e como co-autor material de um crime de roubo qualificado, p.p. pelo art. 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), com referência ao art.º 204.°, n.º 2, als. a), e) e f) 75.° e 76.° do Código Penal, revisto pelo D.L. 48/95, de 15/03, na pena de oito anos de prisão;
b) no processo comum colectivo n.º 2/99 (com o NUIPC 4008/98.6TDLSB) da 8ª Vara Criminal de Lisboa, 3ª Secção, por decisão proferida cm 23 de Fevereiro de 1999, transitada em julgado em 11 de Outubro de 1999, por factos praticados em Julho de 1998, foi condenado na pena de dois anos e nove meses de prisão, por crime de receptação, p.p. pelo art.º 231.° do C. Penal;
c) no processo comum colectivo n.º 584/94.0JGLSB da 1ª Vara Criminal de Lisboa, 1ª Secção, por decisão de 23 de Marco de 1998, transitada em julgado em 22 de Julho de 1999, por factos praticados em 15 de Novembro de 1993 e finais de Julho de 1995, foi condenado nas penas parcelares de 14 anos, 13 anos e 9 anos de prisão, pela prática, respectivamente, dos crimes de chefia de associação criminosa, p.p. pelo art.º 28.°, n.º 3, tráfico de estupefacientes agravado, p.p. pelos art.ºs 21.° e 24.°, als. b) e c), e de conversão e transferência de bens agravado, p.p. pelos art.ºs 23.°, n.º 1, als. a) e b), e 24.° al. c), todos do DL. 15/93 de 22.1, sobre cujas penas parcelares se concluiu pela pena única de 20 anos de prisão.

O arguido encontrava-se, quando foi proferido o acórdão de 15 de Janeiro de 2007 do Tribunal Colectivo de Tomar, em cumprimento da pena única de 21 anos de prisão que lhe foi imposta por cúmulo jurídico efectuado, em 19 de Outubro de 2000, no processo referido na al. b) supra e que abrangeu as penas aplicadas nas als. b), c) e a do 3º Juízo de Cascais anteriormente discriminadas.

2. Do Acórdão de 15 de Janeiro de 2007 do Tribunal Colectivo de Tomar recorre agora o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça e, da sua motivação, formula as seguintes conclusões:
1- O tribunal recorrido procedeu de forma ilegal ao cúmulo jurídico das penas que ao arguido A foram impostas neste processo comum colectivo n.º 354/933JATMR do 2° Juízo de Tomar; no comum colectivo n.º 2/99 da 8ª Vara Criminal de Lisboa, 3° secção e no comum colectivo n.º 584/94.0JGLSB da 1ª Vara Criminal de Lisboa, 1ª secção.
2- O acórdão recorrido entendeu que “o limite máximo da pena de prisão, em caso de concurso de crimes, é, actualmente, de vinte e cinco anos de prisão, de acordo com o disposto no art.º 77.°. n.º 2, do Código Penal, na redacção que lhe foi introduzida pela revisão de 1995, ao abrigo da qual foram, igualmente, proferidas as condenações nestes autos e no processo comum n.º 2/99 da 8ª Vara Criminal de Lisboa”.
3- Ora, os factos que deram origem a condenação nestes autos remontam ao ano de 1993, altura em que o limite máximo da pena de prisão, em caso de concurso de crimes, era de 20 anos.
4- O mesmo acontece com os factos que deram origem à condenação no processo da 1ª Vara Criminal, que também são anteriores à data da entrada em vigor do Dec.-Lei 48/95, de 15 de Março.
5- O n.º 4 do art.º 2° do CP e, bem assim o artigo 29°, n.º 4, da CRP, estabelecem a princípio da retroactividade da lei penal mais favorável.
6- É pois evidente que a lei mais favorável é a que estava em vigor na data da prática dos factos do presente processo (do Tribunal de Tomar) e do processo n.º 584/94.0JGLSB da 1ª Vara Criminal de Lisboa, 1ª secção, em que o limite máximo de prisão, em caso de concurso de crimes, era de 20 anos.
7- É esta a melhor interpretação a dar aos artigos 2°, n.º 1 e n.º 4 e 77.º do CP pois, a dar-se outra interpretação, a mesma contende com o estatuído no artigo 29° n.º 4 da CRP.
8- Assim sendo, aplicando a lei mais favorável, a pena única a aplicar, depois de se proceder ao cúmulo jurídico das penas acima indicas, deve ser fixada em 20 anos de prisão.
9- Mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que havia que efectuar primeiro o cúmulo das penas referentes ao presente processo e do processo de colectivo n.º 584/94.0JGLSB da 1ª Vara Criminal de Lisboa, 1ª secção (20 anos + 6 anos e 9 meses), sendo a limite máximo a pena única de 20 anos de prisão, uma vez que os factos ocorreram antes de ter entrado em vigor o Dec.-Lei 48/95 de 15 de Março, e só depois efectuar a cúmulo com a pena de 1 ano e 9 meses do processo 2/99 da 8ª Vara Criminal em que os factos foram praticados após a entrada em vigor do aludido Decreto-Lei.
Normas Jurídicas Violadas:
Artigos 2.º, 77.º e 78.° do CP
Artigo 29.º, n.º 4, da CRP
Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março
Nestes termos deverá o presente recurso obter provimento e ser aplicada ao recorrente uma pena única de 20 anos de prisão.

3. O Ministério Público na 1ª instância respondeu ao recurso e culminou a sua resposta da seguinte forma:
“Dispondo a artigo 2°, n.ºs 1 e 4 do C. Penal, que as penas são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto, e que em caso de sucessão de diferentes regimes penais é aplicável o que se mostrar mais favorável ao agente, afigura-se-nos que alguma razão assiste ao recorrente.
Com efeito, na sequência de todo o explanado, parece-nos que pelos factos em causa nestes autos (Colectivo 354/93.3JATMR) e no Colectivo 584/94.0JGLSB não pode a arguido ser punido com pena superior a 20 anos de prisão.
Mas tal limite já não se impõe quando se consideram os factos julgados nos Colectivos 2/99 e 141/98, praticados em momento em que o limite máximo da pena de prisão em caso de cúmulo de penas é de 25 anos, havendo então que cumular os 20 anos de prisão possíveis no âmbito dos Colectivos 354/93 e 584/94, com as penas impostas naqueles, o que aliás já sucedeu no Colectivo n.º 141/98.2TACS, 3º Juízo Criminal de Cascais — vide fls. 1796 a 1800 - tendo sido fixada a pena única global de 21 anos de prisão, que nos parece dever agora manter-se.
Conclusões:
1- Pelas razões atrás aduzidas entende-se dever proceder parcialmente o recurso do arguido
2 – fixando-se em 21 anos de prisão a pena global a cumprir pelo mesmo.
*
O Excm.º PGA neste Supremo Tribunal requereu a audiência, para aí se pronunciar oralmente.

4. Colhidos os vistos, foi realizada a audiência com o formalismo legal.

Cumpre decidir.
As principais questões a decidir são:
1ª- Uma vez que algumas das penas parcelares levadas em conta no cúmulo jurídico reportam-se a factos ocorridos antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, deverá a pena única ter como limite máximo 20 anos de prisão, atenta a não retroactividade da lei penal, ou, pelo menos, efectuar-se um cúmulo dessas penas parcelares e só depois efectuar-se o cúmulo com as penas parcelares respeitantes aos factos posteriores à entrada em vigor desse diploma legal?
2ª- Verificando-se que no concurso de infracções algumas das penas parcelares beneficiam de perdão de penas e outras não, qual deverá ser o procedimento para fazer incidir esse perdão na pena única?
3ª- Mostra-se ajustada a pena de 25 anos de prisão aplicada em cúmulo jurídico ao recorrente?

LIMITE MÁXIMO DA PENA ÚNICA APLICÁVEL AO CASO, ATENTO O PRINCÍPIO DA NÃO RETROACTIVIDADE DA LEI PENAL
Na versão original do Código Penal de 1982, o limite máximo da pena prisão, mesmo em caso de concurso de crimes, era de 20 anos. O Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que procedeu a uma profunda reforma desse Código, alterou tal limite para 25 anos de prisão, aplicável tanto à pena parcelar como à pena única (art.º 77.º, n.º 2).
Coloca-se, assim, a questão de saber se no presente caso o tribunal recorrido observou o princípio da aplicação da lei penal mais favorável perante a sucessão de regimes penais no tempo, plasmado nos art.ºs 29.º, n.º 4, da CRP e 2º, n.º 4, do C. Penal, ao indicar na fundamentação que a pena máxima abstractamente aplicável ao concurso de crimes era de 25 anos de prisão e ao, efectivamente, ter aplicado em concreto tal pena máxima.
O recorrente e o M.º P.º defendem que houve violação desse princípio, pois algumas das penas parcelares consideradas no concurso de crimes reportam-se a factos ocorridos antes de entrar em vigor o Dec.-Lei n.º 48/95 e, pelo menos em relação a essas penas, o máximo abstracto legalmente aplicável à pena única do concurso que elas formam era de 20 anos de prisão.
Fazem esta alegação, porém, sem fundamento legal, pois o princípio da aplicação da lei penal mais favorável está assim enunciado na nossa lei fundamental: «ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido».
Portanto, face à Constituição, o que conta para se aferir se houve mudança da lei penal não é apenas o momento da conduta, mas, se for caso disso, o momento da verificação dos pressupostos da aplicação da pena ou da medida de segurança.
Ora, no caso de concurso superveniente de crimes, como sucede nos autos, isto é, quando há que aplicar uma pena única por, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes (art.º 78.º do CP), a verificação dos respectivos pressupostos só pode ser feita, por definição, depois de “se mostrar” (é a expressão legal) que ocorre o concurso.
Daí que, quando se está perante um concurso superveniente de crimes já objecto de anteriores condenações, a lei penal aplicável no tempo para se determinar a medida abstracta da pena única é a do momento da última condenação, pois é esse o momento em que se “mostra” a existência do concurso de crimes.
Pode suceder, todavia, que algumas das sentenças respeitantes a certas penas parcelares tenham sido proferidas no domínio de uma legislação penal mais favorável, enquanto que outras não. Nesse caso, há que verificar se representa um benefício para o arguido formular uma pena única tão só com as penas parcelares que beneficiariam do regime penal mais favorável, deixando de fora as restantes, ou se, em alternativa, se deve fazer um cúmulo que abranja todas as penas, mas aferido pelo regime penal aplicável no momento da última condenação (pois só então se verificaram os respectivos pressupostos desse concurso superveniente).
Mas, no caso em apreço, todas as sentenças foram proferidas depois de entrar em vigor o Dec.-Lei n.º 48/95. Por isso, enquanto que as penas parcelares pelos crimes cometidos antes desse diploma tinham como limite máximo abstracto 20 anos de prisão, o concurso superveniente de qualquer desses crimes só foi conhecido depois das sentenças respectivas e, portanto, qualquer pena única que se formulasse teria como limite máximo abstracto 25 anos de prisão.
Assim, conclui-se que o tribunal recorrido não violou o disposto nos art.ºs 29.º, n.º 4, da CRP e 2º, n.º 4, do C. Penal.

CONCURSO DE CRIMES E PERDÃO DE ALGUMAS DAS PENAS PARCELARES
Como proceder ao cúmulo jurídico de penas num concurso de infracções quando só algumas delas beneficiam de perdão?
Sobre esta temática, já o relator, em anterior acórdão (Ac. de 24-10-2006, proc. 2941/06-5), teve oportunidade de se pronunciar.
Disse-se, então, que, como se sabe, o perdão das penas por crimes em concurso incide sobre a pena única (art.º 1.º, n.º 4, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio). Por isso, não se pode aplicar o perdão a cada uma das penas parcelares abrangidas pela lei, mas também não se pode fazê-lo sobre a pena única, visto nela concorrerem crimes que não foram abarcados pelo perdão.
Para resolver este problema, cuja solução não decorre apenas da lei, há quem efectue um cúmulo jurídico provisório das penas abrangidas pelo perdão, aplique o perdão à pena única parcelar provisória e, depois, efectue o cúmulo final entre o remanescente desta e as restantes penas não abrangidas pelo perdão.
Ora, esta fórmula é passível, pelo menos, de duas críticas pertinentes.
Por um lado, dela resulta uma dupla compressão injustificada de certas penas. Como se sabe, para a formação de um cúmulo jurídico, todas as penas, com excepção da mais grave, sofrem uma determinada compressão, maior ou menor consoante a ponderação que é feita dos factos e da personalidade do agente, visto que, em regra, não é aplicada a pena máxima do concurso (a soma material de todas as penas). Daí decorre que na fórmula em apreço há uma primeira compressão na formação do cúmulo jurídico provisório para calcular o perdão e uma segunda no cúmulo jurídico definitivo. E, como facilmente se percebe, é uma dupla compressão injustificada, pois há só um cúmulo jurídico real, já que o outro é meramente ficcionado tendo em vista o cálculo do perdão.
A outra crítica é a de que, com este método, o perdão fica diluído e não transparece na pena única definitiva, pelo que, por um lado, o arguido mal se apercebe de que beneficiou de um perdão no meio das contas do cúmulo, por outro, não se sabe ao certo que desconto efectivo foi feito na pena única final, por fim, perde-se o efeito dissuasor da condição resolutiva a que está sujeito o perdão (art.º 4.º da Lei 29/99).
Daí que tenha surgido uma outra corrente jurisprudencial, cujo método consiste em começar por fazer o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso para assim obter a pena única, independentemente do perdão. Depois e tão só para cálculo do perdão, efectua-se um cúmulo jurídico parcelar das penas que beneficiam do perdão. Finalmente, incide-se o perdão assim calculado sobre a pena única que se formou inicialmente.
Esta solução contorna totalmente as críticas apontadas ao primeiro método e, portanto, é a que consideramos preferível. Mas há que lhe estabelecer um limite.
É que, sendo o cúmulo jurídico formado por uma soma entre a pena mais elevada e parcelas de cada uma das penas restantes, a aplicação do perdão feita nestes moldes pode levar a que o perdão beneficie também as parcelas das penas que legalmente por ele não estão abrangidas, o que sucederá quando, nessa operação, a soma das parcelas das penas “perdoáveis” for inferior ao montante do perdão.
Um simples exemplo ajuda a compreender esta situação. Se o cúmulo abrange três penas de um ano de prisão, das quais só duas beneficiam de perdão, a pena única será, por hipótese, de 1 ano e 8 meses de prisão (somando-se à pena mais grave um terço da soma das restantes). Para cálculo do perdão, obtém-se uma pena única parcelar das penas perdoáveis, com o mesmo critério, de 1 ano e 4 meses de prisão, pelo que o perdão será fixado em um ano de prisão. Fazendo incidir este perdão sobre a pena única inicial, o arguido terá de cumprir um remanescente de 8 meses de prisão, o qual é inferior à pena parcelar não perdoada e inferior mesmo ao limite mínimo abstracto do cúmulo, que é o da pena mais grave (um ano de prisão, não perdoado). Chegamos a um resultado que contraria a lei que concedeu o perdão de penas e também o art.º 77.º, n.º 2, do CP.
Daí que se possa concluir que, para proceder ao cúmulo jurídico de penas em concurso de infracções quando só algumas beneficiam de perdão, há que seguir estes passos:
1º- efectua-se o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, independentemente de alguma delas beneficiarem de perdão e, assim, obtém-se a pena única;
2º- calcula-se o perdão, após se ficcionar um cúmulo jurídico parcelar das penas que por ele estão abrangidas;
3º- faz-se incidir o perdão assim calculado sobre a pena única inicial, mas o perdão tem como limite máximo a soma das parcelas das penas “perdoáveis”, tal como encontradas na operação de cálculo dessa pena única inicial.
No exemplo anterior, o limite máximo do perdão seria de 8 meses de prisão, correspondente ao “peso” que tiveram as penas que beneficiavam de perdão na formação da pena única. Portanto, o arguido, em tal exemplo, seria condenado na pena única de 1 ano e 8 meses de prisão, da qual se descontaria o perdão de 8 meses.

Ora, no caso em apreço, o tribunal recorrido utilizou uma fórmula que contraria frontalmente a lei, pois aplicou o perdão às penas parcelares que dele beneficiam e não à pena única, considerando para a concretização desta a medida de cada uma das penas parcelares depois do desconto do perdão. Violou, deste modo, os art.ºs 8.º, n.º 4, da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio e 1.º, n.º 4, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio).
Assim e em reparação desse erro de direito há que:
- manter a extinção pelo perdão decorrente da Lei n.º 29/99, 12 de Maio, a pena aplicada no processo comum colectivo n.º 141/98.2TACSC do 3º Juízo Criminal de Cascais, pois no concurso superveniente não cabem penas já extintas (art.º 78.º, n.º 1, do CP);
- fazer reflectir na pena única, com o referido limite máximo, os seguintes perdões de pena aplicados na decisão recorrida: um ano e quatro meses de prisão no processo n.º 354/93.3JATMR de Tomar, por força dos art.ºs 8.º, n.º 1, al. d), 9.º, n.º 1 e 11.º), a Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, e um ano de prisão no processo 4008/98.6TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa, por força da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.

MEDIDA DA PENA ÚNICA
Conforme decorre do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do CP, a pena aplicável ao concurso de crimes tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Estas regras prevalecem mesmo em caso de conhecimento superveniente do concurso, isto é, se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes. E mantém-se ainda que todos os crimes tenham sido objecto separadamente de condenações transitadas em julgado (art.º 78.º, n.º 1 e 2, do CP).
Destas normas decorre que no caso de se mostrar que determinadas penas, não cumpridas, prescritas ou extintas, aplicadas por mais do que uma sentença transitada em julgado, se reportam a uma situação de concurso de crimes, na formulação da pena única haverá que respeitar o trânsito em julgado quanto às penas parcelares, mas não, necessariamente, quanto à pena conjunta que certas penas parcelares hajam anteriormente formado, pois o limite mínimo da reformulação da pena única será a mais elevada das penas parcelares em concurso e não o montante da pena conjunta anterior.
Essa solução é, por exemplo, a do Ac. deste STJ de 22-04-2004, proc. 132/04-5, onde se lê o seguinte: «A reformulação é um novo cúmulo, em que tudo se passa como se o anterior não existisse. É, de resto, a solução que decorre da lei (art. 78.º n.º 1 do CP), pois o trânsito em julgado não obsta à formação de uma nova decisão para reformulação do cúmulo, em que os factos, na sua globalidade, conjuntamente com a personalidade do agente, serão reapreciados, segundo as regras fixadas no art. 77.º. A única limitação ao cúmulo (ou à sua reformulação) é a de as respectivas penas não estarem cumpridas, prescritas ou extintas. Esta é também a solução doutrinária mais congruente e que se pode ver, por exemplo, em FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, p. 295: «Se a condenação anterior tiver sido já em pena conjunta, o tribunal anula-a e, em função das penas concretas constantes daquela e da que considerar cabida ao crime agora conhecido, determina uma nova pena conjunta que abranja todo o concurso».
Contudo, há que ponderar, caso a caso, qual a solução que melhor se harmoniza com a unidade do sistema jurídico, pois esse é um valor que se afigura inultrapassável, atenta a segurança jurídica que os tribunais devem proporcionar aos intervenientes no processo e desde que assegurados todos os direitos de defesa do condenado.
E assim, considerando que, no caso em apreço neste recurso, aquando da decisão recorrida, o recorrente estava já a cumprir uma pena conjunta de 21 anos de prisão que lhe tinha sido imposta pelo Tribunal de Cascais e que, obviamente, havia transitado em julgado após processo onde se lhe proporcionara todos os direitos de defesa, inclusivamente o de recorrer, não faria sentido e causaria uma enorme quebra do sistema jurídico se, condenado novamente num outro processo, este da comarca de Tomar, por crime diverso cometido antes de transitar a primeira condenação, devesse ser condenado em nova pena conjunta inferior àquela que, de modo pacífico para a ordem jurídica, já há muito cumpria.
Com efeito, se no processo de Tomar o recorrente tivesse sido absolvido, continuaria a cumprir a condenação de Cascais, onde se lhe impusera a pena conjunta de 21 anos de prisão. Por isso, não tendo sido absolvido em Tomar, mas condenado noutra pena que, assim, de algum modo acresce às penas parcelares aplicadas em Cascais, a diminuição da pena conjunta que estava a cumprir constituiria uma grave quebra da unidade do sistema jurídico, pois viria a beneficiar com a nova condenação, mas, comparativamente, ficaria prejudicado com a eventual absolvição.
Esta solução, que já defendemos no processo n.º 2283/07-5 de 12 de Julho de 2007, tem no caso concreto uma ligeira nuance, pois a pena parcelar do 3ª Juízo de Cascais (dez meses de prisão), que também entrou no cúmulo jurídico onde se concluiu pela pena única de 21 anos de prisão, foi declarada extinta pelo perdão, pelo que nessa pena única há que descontar a parcela desses 10 meses que entrou na respectiva operação de cálculo, que se situa, fazendo a respectiva operação matemática de acordo com a regra aí utilizada, em 2 meses e 21 dias.

Em suma, temos de formar uma pena única entre as seguintes penas parcelares:
- oito anos de prisão (processo 354/93.3JATMR do 2º Juízo de Tomar);
- dois anos e nove meses de prisão (processo 4008/98.6TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa, 3ª Secção);
- 14 anos (processo n.º 584/94.0JGLSB da 1ª Vara Criminal de Lisboa, 1ª Secção);
- 13 anos (processo n.º 584/94.0JGLSB da 1ª Vara Criminal de Lisboa, 1ª Secção);
- 9 anos (processo n.º 584/94.0JGLSB da 1ª Vara Criminal de Lisboa, 1ª Secção).

O mínimo abstracto da pena única é de 14 anos de prisão (montante da pena parcelar mais elevada), mas, em nome da unidade do sistema jurídico, não deve ser inferior a 20 anos, 9 meses e 9 dias de prisão, como já explicámos.
O máximo abstracto da pena única é de 25 anos de prisão.

Sobre a medida concreta da pena única o tribunal recorrido disse o seguinte:
«Para determinar a medida concreta da pena, dentro da mencionada moldura há a considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Ponderando com natureza agravante, que a intensidade dolosa foi, em todos os crimes cometidos, na modalidade de dolo directo, que é, entre as modalidades previstas no art.º 14.º do Código Penal, a mais intensa.
Do certificado de registo criminal do arguido, junto a fls. 1144 a 1155, registam-se, para além das acima mencionadas, as seguintes condenações:
No processo n.º 416/81 do 2º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, por decisão de 30 de Julho de 1982, na pena de três anos e seis meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, praticado em 1981;
No processo n.º 620/85 do 1° Juízo do Tribunal Judicial do Funchal, por decisão de 24 de Outubro de 1985, na pena de oito anos de prisão, por crime de furto qualificado, praticado cm 5 de Janeiro de 1985.
No processo n.º 444/85 do 4° Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa, 2ª Secção por decisão de 13 de Janeiro de 1983, nas penas de oito meses de prisão e multa e de dois anos de prisão e seis meses de prisão, pela prática de dois crimes de furto qualificados praticados em 20 de Janeiro de 1981 e em 7 de Setembro de 1984, respectivamente;
No processo n.º 749/83 do 3° Juízo Criminal de Lisboa, 1ª Secção, por decisão de 26 de Fevereiro de 1986, na pena de sessenta dias de prisão, substituída por multa, por crime de furto qualificado, praticado em 21 de Maio de 1981;
No processo n.º 2977/86 do 1º Juízo Criminal de Lisboa, 1ª secção, por decisão de 18 de Julho de 1986, na pena de 18 meses de prisão por crime de furto qualificado praticado em 1980.
Neste processo foi efectuado cúmulo jurídico com as penas acima mencionadas, tendo o arguido sido condenado na pena única de dez anos e seis meses de prisão e multa;
No processo n.º 4539/87 do 1° Juízo Criminal de Lisboa, 1ª Secção, por decisão do 8 do Junho de 1988, na pena de 9 meses de prisão e multa, por crime de furto qualificado, na forma tentada, praticado cm 8 de Junho de 1981.
Neste processo foi reformulado o cúmulo jurídico e o arguido condenado em pena única de dez anos e oito meses de prisão e multa;
No processo nº 290/87 do 10 Juízo do Tribunal Judicial do Funchal, por decisão de 27 de Janeiro de 1987, na pena de sete anos de prisão, por crime de furto qualificado, praticado em Setembro de 1984;
No processo nº 516/89 do 4° Juízo do Tribunal Judicial de Cascais, 1ª Secção, por decisão do 6 de Marco de 1990, na pena de dois anos do prisão, por crime de evasão. na forma tentada, praticado em 9 de Dezembro de 1986;
No processo nº 445/87 do 4° Juízo Criminal de Lisboa, 1ª Secção, por decisão do 22 de Janeiro de 1992, na pena de três anos de prisão, por crime de furto qualificado praticado entre Novembro de 1980 e Marco do 1981.
Neste processo foi efectuado novo cúmulo jurídico, tendo a pena única imposta ao arguido sido fixada em 16 anos e 6 meses de prisão e multa.
Desta pena foram perdoados dois anos e vinte e três dias de prisão, ao abrigo da Lei 16/86 e dezanove meses e vinte e três dias de prisão e metade da multa, ao abrigo da Lei 23/91.
Esteve ininterruptamente preso, em cumprimento desta pena, desde 10 do Janeiro de 1985, ate 26 de Maio de 1992. altura em que foi colocado em liberdade condicional.
Come se escreveu, no acórdão de fls. 1662 e seguintes destes autos, o arguido A cometeu os factos integradores do crime por que foi condenado, apesar do todas as referidas condenações e desrespeitando as advertências contidas nas decisões proferidas em tais processos, as quais resultaram totalmente ineficazes para o afastar da delinquência, revelando o arguido A uma predisposição especifica para a prática do crimes contra o património.
Apenas manifesta arrependimento, em relação ao crime de tráfico do substâncias estupefacientes que praticou, assumindo uma postura desculpabilizante quanto aos restantes crimes por si praticados, a partir do seu percurso de vida pessoal, em virtude de como o próprio disse, “ter sido um miúdo de rua” e a partir do argumento de que, depois de furtar os objectos, sempre as Seguradoras providenciariam pela cobertura dos prejuízos daí resultantes, aos respectivos proprietários.
O arguido tem uma companheira. com quem tem dois filhos de 13 e 10 anos de idade.
A sua companheira também se encontra presa, em cumprimento de pena de prisão.
Planeiam, urna vez restituídos a liberdade, viver em comunhão de cama mesa e habitação e providenciar pela formação e acompanhamento dos filhos.
Sopesados todos estes factores, mostra-se adequada a pena única de vinte e cinco anos de prisão.»

A estes factores há, ainda, que ponderar, para uma correcta fixação da pena única, o muito tempo decorrido desde os factos e o acentuado esbatimento da necessidade da pena. Na verdade, passaram 14 anos (!) desde os factos no processo de Tomar, 9 anos desde os da 8ª Vara Criminal de Lisboa, 3ª Secção, e entre 14 e 12 (!) anos desde os factos do processo da 1ª Vara Criminal de Lisboa.

Tudo considerado, há que fixar a pena única em 21 anos de prisão, que corresponde à soma da pena parcelar mais elevada com cerca de um quinto da soma das restantes penas parcelares.
Esta proporção permite-nos, agora, aplicar o perdão de penas supra referido sobre a pena única, de acordo com a regra enunciada anteriormente, isto é, o perdão tem como limite máximo a soma das parcelas das penas “perdoáveis”, tal como encontradas na operação de cálculo da pena única.
E, assim, o perdão será de um ano e quatro meses de prisão no processo n.º 354/93.3JATMR de Tomar, por força dos art.ºs 8.º, n.º 1, al. d), 9.º, n.º 1 e 11.º), a Lei n.º 15/94, de 11 de Maio [que é a totalidade do perdão tal como configurado na lei], e de seis meses e 18 dias de prisão no processo 4008/98.6TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa, por força da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio [que corresponde à proporção de um quinto da pena originalmente aplicada e que foi o total que entrou na operação de formação da pena única].
Deste modo, o recorrente terá de cumprir, após a redução destes perdões, 19 anos, 1 mês e 12 dias de prisão.
Termos em que o recurso merece provimento, embora por razões completamente distintas das invocadas.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso e em decidir o seguinte:
- no cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nos processos n.ºs 354/93.3JATMR do 2º Juízo do Tribunal de Tomar, 4008/98.6TDLSB) da 8ª Vara Criminal de Lisboa, 3ª Secção e 584/94.0JGLSB da 1ª Vara Criminal de Lisboa, 1ª Secção, aplicar a pena única de 21 (vinte e um) anos de prisão;
- confirmar a extinção pelo perdão decorrente da Lei n.º 29/99, 12 de Maio, da pena aplicada no processo comum colectivo n.º 141/98.2TACSC do 3º Juízo Criminal de Cascais;
- sobre a referida pena única aplicar o perdão de um ano e quatro meses de prisão, respeitante ao processo n.º 354/93.3JATMR de Tomar, por força dos art.ºs 8.º, n.º 1, al. d), 9.º, n.º 1 e sob a condição referida no art.º 11.º, da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, e ainda de seis meses e 18 dias de prisão, respeitante ao processo 4008/98.6TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa, por força do art.º 1º, n.º 1 e sob a condição do art.º 4.º, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio;
- considerar que o recorrente terá de cumprir, após a redução decorrente destes perdões, 19 (dezanove) anos, 1 (um) mês e 12 (doze) dias de prisão.
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Outubro de 2007

Santos Carvalho (relator)
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa
Reiono Pires