Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO PINTO OLIVEIRA | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PODERES DA RELAÇÃO REAPRECIAÇÃO DA PROVA EXAME CRÍTICO DAS PROVAS LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
Data do Acordão: | 09/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | Não há violação do artigo 662.º do Código de Processo Civil quando a fundamentação do acórdão recorrido seja adequada e suficiente para que se possa concluir que o Tribunal da Relação reavaliou os meios de prova disponíveis, reponderou todas as questões de facto suscitadas, para formar uma convicção própria, e respondeu a todas as questões de facto suscitadas, fundamentando a sua resposta. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Recorrente: AA Recorrido: BB I. — RELATÓRIO 1. BB propõs a presente acção contra AA. 2. Formulou os pedidos seguintes: a) “Declarar-se nula a escritura de revogação de testamento supra identificado, lavrada no dia 02/09/2015, de folhas 86 e 86 verso, do Livro 6 para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos do Cartório Notarial ..., por vício de forma e preterição de formalidades legais, com todas as devidas e legais consequências; b) E, em consequência da declaração de nulidade, deve o Autor ser declarado como único herdeiro e cabeça-de-casal da herança de seu tio, CC, na qual se integra o prédio urbano situado no ..., na freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..86 da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..42 da referida freguesia; c) Devendo a Ré ser condenada a reconhecer a qualidade de herdeiro do Autor e a não perturbar, por qualquer forma, o direito de propriedade da herança sobre tal prédio; d) Devendo a Ré ser condenada a desocupar imediatamente o imóvel supra referido e a entregá-lo ao Autor.” 2. A Ré AA contestou, pugnando pela improcedência da acção. 3. O Tribunal de 1.º instância julgou a acção improcedente. 4. Inconformado, o Autor BB interpôs recurso de apelação. 5. A Ré AA não contra-alegou. 6. O Tribunal da Relação revogou a sentença recorrida, julgando a acção procedente. 7. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor: concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença recorrida e julga-se a acção procedente, condenando-se nos seguintes termos: a) declara-se nula, por vício de forma, a escritura de revogação de testamento lavrada no dia 02.09.2015, de folhas 86 e 86 verso, do Livro 6 para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos do Cartório Notarial da Dra. ...; b) em consequência, declara-se o A. como único herdeiro de seu tio, CC; c) condena-se a Ré a reconhecer essa qualidade ao Autor e a não perturbar, por qualquer forma, o seu direito de propriedade sobre o prédio que integra o acervo hereditário – prédio urbano situado no ..., na freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..86 da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..42 da referida freguesia; e, d) condena-se a Ré a desocupar o citado imóvel e a entregá-lo ao Autor. Custas pela Ré, sem prejuízo do apoio judiciário que a beneficia. 8. Inconformada, a Ré AA interpôs recurso de revista. 9. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões. 1. Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão proferido a fls… dos presentes autos, pelo Tribunal da Relação de Évora, no qual o Tribunal “a quo”, concedeu provimento ao recurso interposto pelo Autor/Recorrido, decidindo revogar a sentença proferida na 1.ª instância e, em consequência, condenar a Ré/Recorrente. 2. O presente recurso visa a impugnação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, que decidiu modificar a matéria de facto, uma vez que se entende que esse mesmo Tribunal incorreu na violação do direito probatório adjetivo. 3. O Tribunal “a quo” incorreu numa ilegal fixação dos factos e, em consequência, a uma incorreta determinação de aplicação do Direito. 4. O (mau) uso que o Tribunal da Relação de Évora fez dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC configura violação da lei de processo e, portanto, constitui fundamento do recurso de revista, nos termos do artigo 674.º, nº 1, al. b), do CPC. 5. O Tribunal da Relação de Évora, ao decidir como decidiu, violou as normas contidas nas diversas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC. 6. O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não pode de modo algum colocar em causa o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de 1ª instância. 7. O Tribunal da Relação de Évora decidiu modificar a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª instância, nomeadamente, alterar os pontos 4 e 6 e eliminar os pontos 12 e 28. 8. Entendemos que, para a modificação levada a cabo pelo Tribunal da Relação de Évora, fazendo-se uma correta interpretação do disposto no artigo662.ºdo CPC, o Tribunal de 2.ª instância, deveria ter ordenado: a. a produção de novos meios de prova, nomeadamente, prova pericial quanto às questões médico-legais que se impunham (relativamente aos pontos 4 e 6; b. a renovação da produção da prova sobre o sentido do depoimento da testemunha Sra. Notária Dra. ... (ponto 12); c. anular a decisão proferida na 1.ª instância por não constarem do processo todos os elementos que permitiam o Tribunal da Relação de Évora a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto considerada contraditória em determinados pontos da matéria de facto (ponto 22. e 28.). 9. Ao não o fazer, o Tribunal da Relação de Évora violou o disposto no artigo 662.º do CPC, pelo que, consequentemente, o Acórdão proferido deverá ser revogado, com repristinação da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância. “Iuri Novit Curia” Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso proceder e, em consequência, ser o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora revogado, pelos vícios supra elencados, ou por outros que V. Exas. na superior sabedoria descortinem, com repristinação da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância e demais consequências legais. FAZENDO V. EXAS. A TÃO COSTUMADA JUSTIÇA !!! 10. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes (cf. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigo 608.º, n.ª 2, por remissão do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a questão a decidir in casu é tão-só a seguinte: — se o Tribunal da Relação violou o artigo 662.º do Código de Processo Civil ao alterar a redacção dos factos dados como provados sob os n.ºs 4 e 6 e ao eliminar os factos dados como provados sob os n.ºs 12 e 28. II. — FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS 11. O Tribunal de 1.ª instância deu como provados os factos seguintes: 1- Por testamento do seu tio CC outorgado, no dia 29 de agosto de 2008, no Cartório Notarial de ..., em ..., foi o Autor instituído como seu único e universal herdeiro (resposta ao artº 1º da p.i.). 2- Nesse mesmo ano e, em momento anterior à celebração do testamento referido em 1 destes factos provados, o tio do Autor, CC foi submetido a uma intervenção cirúrgica, designadamente, a uma neoplasia da língua com invasão da mandibula (resposta ao artº 2º da p.i.). 3- Como consequência dessa intervenção cirúrgica, o tio do Autor sofreu um distúrbio da comunicação adquirido, interferindo na capacidade de processamento da linguagem (resposta ao artº 3º da p.i.). 4- Tendo ficado incapacitado de se exprimir perfeitamente e de comunicar perfeitamente por meio de palavras, o que era notório e do conhecimento dos seus amigos e familiares (resposta aos artºs 4º, 16º e 22º da p.i.). 5- No momento da outorga do testamento a favor do seu único sobrinho, aqui Autor, foi efetuada a menção manuscrita pelo testador: “Eu, CC não posso falar, mas li este testamento e reconheço conforme a minha vontade” (resposta aos artºs 5º e 18º da p.i.). 6- A saúde de CC era débil, no entanto, e não obstante a cirurgia a que havia sido submetido em razão da neoplasia de que padecia em 2008, ainda viveu algum tempo sozinho, estava consciente e fazia-se entender, expressando-se, bem como ainda sabia escrever e ler (resposta ao artº 33º da contestação). 7- Em agosto de 2015, o tio do Autor, CC, foi hospitalizado no Centro Hospitalar ... (Hospital de ...) (resposta ao artº 7º da p.i.). 8- No último internamento hospitalar do tio do A. CC, em 2015, este apresentava evidentes sinais de debilidade física e motora, a pesar cerca de 20 Kg e em estado asténico (resposta aos artºs 26º a 28º da p.i.). 9- No dia 2 de setembro de 2015, no referido centro hospitalar foi celebrada, por escritura pública, a revogação de todos os testamentos outorgados por CC, a cargo da Notária ... (resposta aos artºs 8º e 24º da p.i.). 10- No documento autêntico celebrado no Centro Hospitalar de ... no dia 2/09/2015, pela Sra Notária ..., lavrado de folhas 86 e 86 verso, do livro 6 para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos, não consta que CC declarou, por escrito, no próprio instrumento e antes das assinaturas, que o leu e reconheceu conforme à sua vontade, apenas ali constando a sua assinatura (resposta aos artºs 15º, 19º e 20º da p.i.). 11- No documento autêntico celebrado no Centro Hospitalar de ... no dia 2/09/2015, pela Sra Notária ..., lavrado de folhas 86 e 86 verso, do livro 6 para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos, não consta nenhuma menção ao facto de o outorgante não conseguir falar ou exprimir-se por palavras, por força de incapacidade para o efeito (resposta ao artº 21º da p.i.). 12- A Sra. Notária Dra. ... considerou que CC tenha conseguido expressar a sua vontade perante si, razão pela qual lavrou a escritura de revogação de testamento (resposta aos artºs 34º e 42º da contestação). 13- No dia 28 de setembro de 2015, ocorreu o falecimento de CC, testador e tio do Autor (resposta aos artºs 9º e 24º da p.i.). 14- Com a escritura de revogação de testamento supra referida em 8 destes factos provados, passou a ser único herdeiro de CC o seu irmão DD, pai do ora Autor, assumindo este a qualidade de cabeça-de-casal da herança de CC (resposta aos artºs 10º e 11º da p.i.). 15- Fazia parte do acervo hereditário de CC, o prédio urbano situado no ..., na freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..86 da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..42 da referida freguesia, que passou a ser do pai do Autor, adquirindo este a qualidade de único proprietário do imóvel (resposta aos artºs 12º e 13º da p.i.). 16- O imóvel era primordialmente da mãe de CC e de DD (resposta ao artº 38º da contestação). 17- O pai do Autor, no dia 28/07/2016, outorgou um testamento, no Cartório Notarial de ..., em ..., pelo qual legou por conta da sua quota disponível a AA, de nacionalidade brasileira, o prédio urbano situado no ..., na freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana ..86 da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..42 da referida freguesia, e, por conta do testamento efetuado a favor da Ré, constituiu-se esta como comproprietária do imóvel (resposta aos artºs 30º, 34º e 36º da p.i.). 18- Tendo o pai do Autor, DD, falecido no dia .../.../2020 (resposta ao artº 31º da p.i.). 19- Desde a data do óbito e até á presente data que a Ré AA usa e usufrui o imóvel, assim como todo o recheio existente no mesmo, como se única e legítima proprietária fosse, fazendo deste a sua residência (resposta aos artºs 32º e 37º da p.i.). 20- Somente pós o óbito do seu pai, o Autor teve conhecimento da existência de um outro testamento a favor da Ré AA (resposta ao artº 33º da p.i.). 21- O pai do Autor não possuía outros bens imóveis (resposta ao artº 35º da p.i.). 22- O imóvel contém diversos bens móveis que constituem o recheio desta casa de habitação e que eram propriedade, uns, do tio do Autor e, outros, do pai do Autor (resposta ao artº 38º da p.i.). 23- O testamento outorgado pelo pai do Autor a favor da ora Ré não legou o recheio do imóvel (resposta ao artº 39º da p.i.). 24- O Autor intentou o procedimento cautelar de arrolamento, que correu termos sob o nº 2331/21.7... no Juiz 2 do Juízo Local Cível de ..., o qual foi julgado procedente, tendo sido arrolados os bens constantes no mesmo (resposta ao artº 42º da p.i.). 25- A Ré e DD viviam como se de mulher e marido se tratasse (resposta ao artº 25º da contestação). 26- DD, desde .../.../1981, era casado com EE, todavia, a relação entre ambos terminou e DD veio a separar-se (separação de pessoas e bens por mútuo consentimento) em .../.../2019 de EE (resposta aos artºs 26º e 27º da contestação). 27- Desde a união da Ré com DD, estes viveram em comunhão de leito, habitação e mesa, ou seja, em união de facto, nomeadamente, em imóveis que tinham arrendado e, por fim, foram habitar para o imóvel referido em 15 destes factos provados, o qual era a sua casa de morada de família (resposta aos artºs 28º, 29º, 47º e 52º da contestação). 28- Parte do recheio atual da habitação, como alguns eletrodomésticos, foi adquirido pela Ré e DD (resposta aos artºs 30º e 45º da contestação). 12. O Tribunal da Relação: I. —alterou a redacção dos factos dados como provados sob os n.ºs 4 e 6 para: 4. Tendo ficado incapacitado de se exprimir e de comunicar por meio de palavras, o que era notório e do conhecimento dos seus amigos e familiares. 6. A saúde de CC era débil, no entanto, e não obstante a cirurgia a que havia sido submetido em razão da neoplasia de que padecia em 2008, ainda viveu algum tempo sozinho, estava consciente e sabia escrever e ler. II. — deu como não provados os factos que o Tribunal de 1.ª instância dera como provados sob o n.º 12 e 28. 13. Em consequência, o Tribunal da Relação deu como provados os factos seguintes: 1- Por testamento do seu tio CC outorgado, no dia 29 de agosto de 2008, no Cartório Notarial de..., em ..., foi o Autor instituído como seu único e universal herdeiro (resposta ao artº 1º da p.i.). 2- Nesse mesmo ano e, em momento anterior à celebração do testamento referido em 1 destes factos provados, o tio do Autor, CC foi submetido a uma intervenção cirúrgica, designadamente, a uma neoplasia da língua com invasão da mandibula (resposta ao artº 2º da p.i.). 3- Como consequência dessa intervenção cirúrgica, o tio do Autor sofreu um distúrbio da comunicação adquirido, interferindo na capacidade de processamento da linguagem (resposta ao artº 3º da p.i.). 4. Tendo ficado incapacitado de se exprimir e de comunicar por meio de palavras, o que era notório e do conhecimento dos seus amigos e familiares [alterado pelo Tribunal da Relação] 5- No momento da outorga do testamento a favor do seu único sobrinho, aqui Autor, foi efetuada a menção manuscrita pelo testador: “Eu, CC não posso falar, mas li este testamento e reconheço conforme a minha vontade” (resposta aos artºs 5º e 18º da p.i.). 6. A saúde de CC era débil, no entanto, e não obstante a cirurgia a que havia sido submetido em razão da neoplasia de que padecia em 2008, ainda viveu algum tempo sozinho, estava consciente e sabia escrever e ler. [alterado pelo Tribunal da Relação] 7- Em agosto de 2015, o tio do Autor, CC, foi hospitalizado no Centro Hospitalar ... (Hospital de ...) (resposta ao artº 7º da p.i.). 8- No último internamento hospitalar do tio do A. CC, em 2015, este apresentava evidentes sinais de debilidade física e motora, a pesar cerca de 20 Kg e em estado asténico (resposta aos artºs 26º a 28º da p.i.). 9- No dia 2 de setembro de 2015, no referido centro hospitalar foi celebrada, por escritura pública, a revogação de todos os testamentos outorgados por CC, a cargo da Notária ... (resposta aos artºs 8º e 24º da p.i.). 10- No documento autêntico celebrado no Centro Hospitalar de ... no dia 2/09/2015, pela Sra Notária ..., lavrado de folhas 86 e 86 verso, do livro 6 para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos, não consta que CC declarou, por escrito, no próprio instrumento e antes das assinaturas, que o leu e reconheceu conforme à sua vontade, apenas ali constando a sua assinatura (resposta aos artºs 15º, 19º e 20º da p.i.). 11- No documento autêntico celebrado no Centro Hospitalar de ... no dia 2/09/2015, pela Sra Notária ..., lavrado de folhas 86 e 86 verso, do livro 6 para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos, não consta nenhuma menção ao facto de o outorgante não conseguir falar ou exprimir-se por palavras, por força de incapacidade para o efeito (resposta ao artº 21º da p.i.). 12- [Eliminado pelo Tribunal da Relação] 13- No dia 28 de setembro de 2015, ocorreu o falecimento de CC, testador e tio do Autor (resposta aos artºs 9º e 24º da p.i.). 14- Com a escritura de revogação de testamento supra referida em 8 destes factos provados, passou a ser único herdeiro de CC o seu irmão DD, pai do ora Autor, assumindo este a qualidade de cabeça-de-casal da herança de CC (resposta aos artºs 10º e 11º da p.i.). 15- Fazia parte do acervo hereditário de CC, o prédio urbano situado no ..., na freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..86 da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..42 da referida freguesia, que passou a ser do pai do Autor, adquirindo este a qualidade de único proprietário do imóvel (resposta aos artºs 12º e 13º da p.i.). 16- O imóvel era primordialmente da mãe de CC e de DD (resposta ao artº 38º da contestação). 17- O pai do Autor, no dia 28/07/2016, outorgou um testamento, no Cartório Notarial de ..., em ..., pelo qual legou por conta da sua quota disponível a AA, de nacionalidade brasileira, o prédio urbano situado no ..., na freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana ..86 da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..42 da referida freguesia, e, por conta do testamento efetuado a favor da Ré, constituiu-se esta como comproprietária do imóvel (resposta aos artºs 30º, 34º e 36º da p.i.). 18- Tendo o pai do Autor, DD, falecido no dia .../.../2020 (resposta ao artº 31º da p.i.). 19- Desde a data do óbito e até á presente data que a Ré AA usa e usufrui o imóvel, assim como todo o recheio existente no mesmo, como se única e legítima proprietária fosse, fazendo deste a sua residência (resposta aos artºs 32º e 37º da p.i.). 20- Somente pós o óbito do seu pai, o Autor teve conhecimento da existência de um outro testamento a favor da Ré AA (resposta ao artº 33º da p.i.). 21- O pai do Autor não possuía outros bens imóveis (resposta ao artº 35º da p.i.). 22- O imóvel contém diversos bens móveis que constituem o recheio desta casa de habitação e que eram propriedade, uns, do tio do Autor e, outros, do pai do Autor (resposta ao artº 38º da p.i.). 23- O testamento outorgado pelo pai do Autor a favor da ora Ré não legou o recheio do imóvel (resposta ao artº 39º da p.i.). 24- O Autor intentou o procedimento cautelar de arrolamento, que correu termos sob o nº 2331/21.7... no Juiz 2 do Juízo Local Cível de ..., o qual foi julgado procedente, tendo sido arrolados os bens constantes no mesmo (resposta ao artº 42º da p.i.). 25- A Ré e DD viviam como se de mulher e marido se tratasse (resposta ao artº 25º da contestação). 26- DD, desde .../.../1981, era casado com EE, todavia, a relação entre ambos terminou e DD veio a separar-se (separação de pessoas e bens por mútuo consentimento) em .../.../2019 de EE (resposta aos artºs 26º e 27º da contestação). 27- Desde a união da Ré com DD, estes viveram em comunhão de leito, habitação e mesa, ou seja, em união de facto, nomeadamente, em imóveis que tinham arrendado e, por fim, foram habitar para o imóvel referido em 15 destes factos provados, o qual era a sua casa de morada de família (resposta aos artºs 28º, 29º, 47º e 52º da contestação). 28- [Eliminado pelo Tribunal da Relação] O DIREITO 14. O artigo 662.º do Código de Processo Civil é do seguinte teor: 1. — A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 2. — A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. 3 - Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma: a) Se for ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância; b) Se a decisão for anulada e for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz, procede-se à repetição da prova na parte que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições; c) Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições; d) Se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção de prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade. 4 - Das decisões da Relação previstas nos n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. 15. O Supremo Tribunal de Justiça só pode avaliar se e, caso afirmativo, como o Tribunal da Relação usou os seus poderes na decisão sobre a impugnação da matéria de facto a partir da fundamentação do acórdão recorrido. 16. Em consequência, são em regra representados como casos típicos de mau uso dos poderes do Tribunal da Relação na decisão sobre a impugnação da matéria de facto: I. — aqueles em que a Relação rejeita indevidamente a impugnação de facto com fundamento na inobservância dos ónus do artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil; II. — aqueles em que a Relação não aprecia, com a completude exigível, toda a matéria impugnada; III. — aqueles em que a Relação não fundamenta, com a completude exigível, toda a decisão sobre a matéria impugnada, em termos que “permit[am] objectivamente compreender o percurso intelectual subjacente à reanálise da prova” 1. 17. Em concreto, o Tribunal da Relação admitiu a impugnação da matéria de facto, apreciou com a completude exigível toda a matéria de facto impugnada e fundamentou com a completude exigível toda a decisão sobre a matéria impugnada: I. — para fundamentar a alteração da redacção dos factos dados como provados sob os n.ºs 4 e 6, o Tribunal da Relação deduziu os argumentos seguintes: Analisando a prova, para além de se reconhecer a justeza da crítica feita pelo Recorrente quanto à ambiguidade do advérbio “perfeitamente” – o que significa isto, formulava ou não formulava palavras e organizava frases, conseguia ou não conseguia expor as suas ideias e intenções pelo meio da fala? – também diremos que os testemunhos produzidos em audiência demonstram que o autor da sucessão não falava, desde que em 2008 foi sujeito à ablação da língua e de parte da mandíbula, comunicando apenas por escrito, utilizando para o efeito cadernos de notas ou outros papéis que utilizava para o efeito. Neste aspecto, as pessoas que se relacionavam com o CC foram unânimes no seu depoimento. Quer a sua cunhada, a testemunha EE (entre 4m25s e 4m57s do seu depoimento), quer o seu amigo e ex-colega de trabalho FF (entre 3m10s e 4m25s do seu depoimento), quer a sua vizinha GG (entre 7m05s e 7m12s do seu depoimento), relataram que ele, após a cirurgia de 2008, ficou sem a língua e sem parte da mandíbula, tendo-lhe sido colocada uma cânula pela qual ingeria líquidos e alimentos, produzindo apenas alguns sons que, com o auxílio de gestos, poderiam indicar alguma intenção básica, mas carecendo de escrever para formular frases e expor ideias ou intenções mais elaboradas. Há ainda a ponderar que no relatório de admissão hospitalar de 12.08.2015 (dias antes da escritura de revogação de testamento de 02.09.2015) se menciona que o CC estava em estado de “afasia”, ou seja, incapaz de falar, o que é absolutamente compatível com a ausência da língua e de parte da mandíbula, uma vez que estes são órgãos absolutamente essenciais para a capacidade de formulação de palavras e de frases. Procedendo a impugnação quanto ao ponto 4, expressamente impugnado pelo Recorrente, há que alterar, também, a resposta ao ponto 6, para obter congruência fáctica, na linha do que é a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, expressa nos seus Acórdãos de 13.01.2015 e de 28.09.2022 (supra identificados em nota), pois, como se afirma no último destes arestos, a Relação “deparando-se com contradições factuais produzidas pelas alterações por si introduzidas, tem que fazer prevalecer o que irradia da sua reapreciação/convicção e alterar os pontos da matéria de facto (cuja reapreciação não foi requerida) que retratem tais contradições factuais.” Ora, no ponto 6 declara-se provado que o CC, não obstante a cirurgia a que havia sido submetido em 2008, “estava consciente e fazia-se entender, expressando-se, bem como ainda sabia escrever e ler.” A utilização do verbo “expressar”, retirado aqui do art. 33.º da contestação, significa que conseguia utilizar a fala, com o complemento que também sabia ler e escrever. Ora, falar não conseguia, e não se pode dizer que a produção de sons e monossílabos corresponda ao uso da fala. A fala envolve a articulação de palavras, é um acto complexo, que envolve a acção de diversos órgãos do corpo humano, através do uso do “ar, que sai dos pulmões percorre os brônquios e a traqueia, chegando até a laringe, onde os músculos se contraem, regulando a passagem do ar, fazendo as cordas vocais vibrarem e produzirem sons, e o som laringiano é articulado graças à acção da língua, dos lábios, dos dentes, do véu palatino e do assoalho da boca.” Era precisamente isto que o CC não conseguia fazer – não tinha língua nem parte da mandíbula, tinha-lhe sido colocada uma cânula na laringe por onde ingeria líquidos e alimentos não sólidos, e por isso já não tinha a capacidade de articulação de palavras, que é o que caracteriza a capacidade humana de falar. O facto de produzir gemidos e sons não articulados não é mesmo que articular palavras, e não pode haver dúvidas que o CC não se expressava com o uso da fala. Em consequência, o ponto 6 também deverá ser modificado, para evitar a ocorrência de contradições factuais, ficando a constar, no seu final, apenas que “estava consciente e sabia escrever e ler.” Assim, os pontos 4 e 6 ficarão com a seguinte redacção: “4. Tendo ficado incapacitado de se exprimir e de comunicar por meio de palavras, o que era notório e do conhecimento dos seus amigos e familiares. 6. A saúde de CC era débil, no entanto, e não obstante a cirurgia a que havia sido submetido em razão da neoplasia de que padecia em 2008, ainda viveu algum tempo sozinho, estava consciente e sabia escrever e ler.” II. — para fundamentar a decisão de eliminar o facto dado como provado sob o n.º 12, o Tribunal da Relação disse o seguinte. Após audição da prova – e quanto ao depoimento na Sra. Notária, repetidas vezes – entendemos que a crítica endereçada pelo Recorrente é acertada. Para além da estranheza que causa o comportamento da Sra. Notária em invocar o sigilo profissional para se recusar a depor acerca das condições de elaboração da escritura de revogação de testamento, quando não pode desconhecer que o art. 32.º n.º 2 do Código do Notariado excepciona do regime de confidencialidade a matéria relativa aos testamentos e tudo o que com eles se relacione, após ter sido exibida ao notário certidão de óbito do testador – e na escritura de revogação de testamento consta o averbamento desse facto em 05.11.2015, assinado pelo próprio punho da Sra. Notária – também se reparou que a Sra. Notária declarou que não se lembrava sequer da pessoa em particular, quando é certo que as condições físicas do CC saíam em absoluto da normalidade (uma pessoa sem a língua e parte da mandíbula, em estado de afasia, internado em hospital e em estado terminal, pesando apenas 20 quilos). Este comportamento da Sra. Notária – primeiro invocando injustificado sigilo profissional, para depois dizer que nem sequer se lembrava do caso – leva-nos a considerar que não existe qualquer certeza acerca da certificação da capacidade do CC para expressar a sua vontade. Ademais, uma das pessoas que na escritura de revogação de testamento se declara ter testemunhado o acto, HH, foi ouvido em audiência de julgamento e declarou que nem sequer contactou o CC, não o conhecia e não esteve com ele no hospital – aliás, nem sequer se lembrava de ter assinado o acto no hospital, mas sim numa agência. As suas relações de amizade eram apenas com o DD, o irmão do CC. Logo, as condições de certificação da capacidade do CC para expressar a sua vontade são mais que duvidosas, e certo é que a prova produzida não permite afirmar, com o mínimo de segurança, que a Sra. Notária procedeu efectivamente a essa certificação. Consequentemente, também esta parte da impugnação procede, com eliminação do ponto 12 do elenco de factos provados. III. — para fundamentar a decisão de eliminar o facto dado como provado sob o n.º 28, o Tribunal da Relação explicou que os factos dados como provados sob os n.ºs 22 e 28 se contradiziam e que “os depoimentos prestado[s] em audiência não permit[iam] afirmar que o recheio actual da habitação [tivesse] sido também adquirido pela Ré”: “Não está junto qualquer documento titulando a aquisição de bens pela Ré, como nenhuma testemunha sabia alguma coisa sobre o assunto. Mesmo a testemunha GG, vizinha do imóvel, nada sabia sobre o assunto, respondendo apenas que não sabia se a Ré comprou algum do recheio do imóvel. Como tal, procedendo esta parte da impugnação, elimina-se o ponto 28 do elenco de factos provados”. 18. A fundamentação do acórdão recorrido é adequada e suficiente para que se possa concluir que o Tribunal da Relação reavaliou os meios de prova disponíveis, reponderou todas as questões de facto suscitadas, para formar uma convicção própria, e respondeu a todas as questões de facto suscitadas, fundamentando a sua resposta. Em consequência, não há violação alguma do artigo 662.º do Código de Processo Civil 2 III. — DECISÃO Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido. Custas pela Recorrente AA, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe tenha sido concedido. Lisboa, 19 de Setembro de 2024 Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria de Deus Correia _______
1. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 2022 — processo n.º 1916/18.3T8STS.P1.S1. 2. Cf. designadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Setembro de 2021 — processo n.º 60/19.0T8ETZ.E1.S1 —, em cujo sumário se escreve: “Não há violação do artigo 662.º do Código de Processo Civil quando a fundamentação do acórdão recorrido seja adequada e suficiente para que se possa concluir que o Tribunal da Relação reavaliou os meios de prova disponíveis, reponderou todas as questões de facto suscitadas, para formar uma convicção própria, e respondeu a todas as questões de facto suscitadas, fundamentando a sua resposta”. |